Aproximação às concepções de design e artesanato em Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães Zoy Anastassakis Designer, Mestre em Antropologia Social PPGAS-Museu Nacional/UFRJ [email protected] Aproximação às concepções de design e artesanato em Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães Resumo Nesta comunicação, apresento resultados parciais de minha pesquisa de doutoramento, iniciada em 2007. Analiso os discursos e a prática social de Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães. Há em ambos um envolvimento com o mesmo corpo de questões: as relações entre design, projeto, artesanato, industrialização, desenvolvimento nacional e cultura popular. Entre 1950 e 1980, tanto Lina quanto Aloísio buscavam criar soluções alternativas para a questão da produção nacional, elaborando articulações entre as produções industrial e artesanal, ela no eixo Roma-São Paulo-Salvador, ele no eixo Recife-Rio de Janeiro-Brasília. Ambos desenvolveram iniciativas no âmbito da produção cultural, em diálogo com indústria, comércio e tecnologia e com o campo político. Suas reflexões transbordam as áreas específicas de suas atuações profissionais, espalhando-se para áreas contíguas, e têm servido como fonte de referências para a formulação de reflexões acadêmicas e de políticas públicas nas áreas de design, artesanato e patrimônio cultural. Para uma análise substancial do que é feito hoje no Brasil em termos de programas de incentivo às áreas acima referidas é de vital importância a compreensão das questões que norteam os discursos desses dois agentes culturais. O mesmo se dá com as questões relativas ao design no Brasil: de suas relações com o processo de industrialização, com a produção artesanal, e, também, com um projeto de país que se formula (e se rediscute) junto à implantação da profissão no país, ocorrida por volta dos anos 1950. A partir da análise dos discursos de Lina e de Aloísio, observo que ambos agiram no sentido de um transbordamento de sua prática profissional em direção à reflexão e à busca por soluções para a questão do desenvolvimento nacional, articulado, em seus pontos-de-vista, necessariamente aos valores culturais do país. Ambos buscavam criar bases para o desenvolvimento de um desenho industrial nacional, contribuindo não apenas no campo projetivo, mas também no campo da reflexão e do debate intelectual sobre projeto, que aqui pode ser entendido como: arquitetura, design e cultura.Nesse sentido, podemos afirmar que tanto um quanto o outro, e cada um a seu modo, apresentavam visões renovadas do movimento moderno no design, pensando em novas possibilidades de diálogo do design com a realidade nacional brasileira. Tendo atuado em frentes diferentes aproximadamente no mesmo período de tempo – ela com uma trajetória mais longa que a dele, e tendo proposto, cada um à sua maneira, novas possibilidades dentro do campo de projeto, Lina teve sua atuação político-cultural (à época baseada em Salvador, Bahia) refreada pela ditadura militar que se instalou no país em 1964, enquanto Aloísio encontrou no mesmo regime ditatorial o espaço onde desenvolveu sua atuação junto às políticas de design, artesanato e cultura. Cabe analisar em que as proposições de ambos se distinguem, e em que elas dialogam, ou seja, quais os pontos de encontro, fronteiras e divergências entre as reflexões e as ações de Lina e Aloísio. É a isso que me dedico nesta pesquisa. Palavras-chave: design – artesanato – Lina Bo Bardi – Aloísio Magalhães An approach to the concepts of design and handicrafts of Lina Bo Bardi and Aloisio Magalhaes Abstract This paper presents partial results of research for my doctorate begun in 2007. It analyzes the discourses and social practices of Lina Bo Bardi and Aloisio Magalhaes, and discusses their involvement with the same body of questions: the relationships between design, projects, handicrafts, industrialization, national development, and popular culture. Between 1950 and 1980 Lina and Aloisio equally sought the creation of alternative solutions for the question of national production, elaborating connections between industrial production and handicrafts, she in the axis connecting Rome-Sao Paulo- Salvador and he in the one connecting Recife-Rio de Janeiro-Brasilia. Both developed initiatives to widen the scope of cultural production, in dialogue with industry, commerce, technology and the field of politics. Their reflections, which extended beyond their professions’ borders into contiguous ones, have since served as a reference source for academic thought and public policy in the areas of design, handicrafts, and cultural patrimony. To make a thorough analysis of what is being done in Brazil today, in terms of incentive programs in the aforementioned areas, it is vitally important to understand the questions that oriented the discourses of these two cultural agents. The same holds true for questions related to design in Brazil: of their relationships with the industrialization process, with handicraft production, and, also, with a country project that was formulated (and re-discussed) together with the implementation of the profession, which occurred in the early 1950s. Starting with an analysis of the discourses of Lina and Aloisio, it can be observed that both of them went beyond the limits of their professional practice searching for solutions to the question of national development, which necessitated, from their point of view, the articulation of the cultural values of the country. They both desired the creation of bases for the development of a national industrial design, 1 contributing not only to the project field, but also to the areas of reflection and intellectual debate about projects, that can here be understood as architecture, design, and culture. Thus each one in their own way presented visions which served to renovate the modern design movement, innovating new design dialogue possibilities in the context of Brazilian national reality. They were active in different fronts during approximately the same time frame, though she had a longer career trajectory than he did, and each one proposed, in their own way, new possibilities in the project field. Lina had her political-cultural activity (at the time based in Salvador, Bahia) curbed by the military dictatorship which installed itself in the country in 1964, while Aloisio was able to find a space during the same military regime where he could carry out his policies of design, handicrafts, and culture. Analysis shows that both their propositions differentiate themselves, that they have a dialogue, and what the points of meeting, frontiers and divergences between the reflections and actions of Lina and Aloisio are. It is this that I have dedicated myself to in this research. Key words: design, handicrafts, Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhaes 2 Aproximação às concepções de design e artesanato em Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães “Chegada ao Rio de Janeiro de navio, em outubro. Deslumbre. Para quem chegava pelo mar, o Ministério da Educação e Saúde avançava como um grande navio branco e azul contra o céu. Primeira mensagem de paz após o dilúvio da Segunda Guerra Mundial. Me senti num país inimaginável, onde tudo era possível. Me senti feliz, e no Rio de Janeiro não tinha ruínas.” (Bardi, 1996: 12) Quando Lina Bo Bardi chega ao Brasil, corria o ano de 1946. A arquiteta italiana e seu marido Pietro Maria Bardi deixavam a Itália, em busca de um outro país onde fixar residência. A impressão positiva causada pelo primeiro edifício modernista construído na América do Sul afirmava para Lina a possibilidade do exercício de uma arquitetura moderna em solo brasileiro. O edifício, projetado por uma equipe coordenada por Lucio Costa a partir de traço original de Le Corbusier, foi construído entre 1936 e 1945, e entregue em 1947. Lá viria a funcionar, entre outras repartições públicas, a sede do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O projeto do prédio foi realizado durante o Governo de Getúlio Vargas. Em 1947, já instalado em São Paulo, o casal Bardi funda e coordena as atividades do Museu de Arte de São Paulo. Em 1951, Lina e Pietro criam o Instituto de Arte Contemporânea, que viria a formar os primeiros designers brasileiros. Também em 1951, eles montam no MASP uma exposição do designer alemão Max Bill, um dos diretores da Escola de Ulm. A partir do contato com Bill, o IAC firma um convênio com Ulm, e alguns alunos do Instituto vão à Alemanha para um intercâmbio. Em 1954, o IAC é fechado, mas o contato brasileiro com a Escola de Ulm é continuamente ampliado. Os alunos intercambistas voltam ao país, e articula-se, em torno do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, uma nova possibilidade de escola voltada para a criação industrial. Entre 1959 e 1960, funciona a Escola Técnica de Criação, um ensaio para o que viria a ser desenvolvido de fato, somente em 1962, com a criação da Escola Superior de Desenho Industrial – a saber uma escola de desenho industrial propriamente dita. Em torno do MAM, circulavam alguns dos ex-alunos do IAC e de Ulm, professores alemães e um pernambucano, chamado Aloísio Magalhães. Aloísio, que era artista plástico, voltava de uma temporada nos Estados Unidos, onde trabalhara como professor visitante no Philadelphia Museum College of Art. Em 1959, em companhia do americano Eugene Feldman, ele visita as obras da futura capital-federal, Brasília. Depois da visita a Brasília, Aloísio se transfere para o Rio de Janeiro, onde monta um escritório de design e começa a dar aulas. Segundo João de Souza Leite, a nova capita-federal brasileira, que foi projetada por Lucio Costa e por Oscar Niemeyer, sinaliza para Aloísio a possibilidade de realização de projeto em solo brasileiro. É curioso que alguns ‘sinais’ em relação à possibilidade de exercício de projeto no Brasil tenham sido lançados e tenham ecoado positivamente tanto para Lina Bo Bardi (em 1946), quanto para Aloísio Magalhães (em 1959) por obras projetadas por Lucio Costa e Oscar Niemeyer1. Tendo ‘despertado’ para as possibilidades de um projeto moderno no Brasil a partir das realizações dos arquitetos modernistas brasileiros, que desde os anos 1930 encontravam no Estado um aliado para as realizações de seus ideais projetivos, Lina e Aloísio participam ativa e estrategicamente, cada um em um contexto específico, na implantação e na sedimentação de uma prática e de um ensino de design no país. 1 É importante ressaltar que entre o projeto do Edifício Gustavo Capanema e a inauguaração de Brasília a vertente modernista da arquitetura brasileira se estabelece e seus principais agentes atuam em projetos de grande vulto, muitos deles, subvencionados ou encomendados pelo Estado. Entre os anos 1950 e 1960, com o processo de industrialização nacional avançando rapidamente, a discussão em torno da criação para a indústria também se acelera, e é nesse contexto que se articulam as primeiras iniciativas de educação em design, assim como os primeiros escritórios profissionais da área. 3 Deixando-se inebriar pela cultura projetiva modernista, edificada a partir dos projetos de Lucio e Oscar, e entendendo-se como parte dessa cultura, tanto Lina quanto Aloísio rompem com a posição vigente no projeto de instalação do design, tal qual ele foi levado a cabo no país, propondo, cada um a seu modo, alternativas tanto para a prática projetual, quanto para o ensino e a pesquisa em design. Nesse sentido, é possível afirmar que tanto Lina quanto Aloísio configuram outras vertentes dentro do design brasileiro, ou melhor, dentro da vertente hegemônica que serviu de modelo, a saber, a vertente alemã do design moderno. É curioso perceber que o direcionamento de seus discursos e de suas propostas não representa propriamente rompimento com o modernismo arquitetônico brasileiro, sintetizado na figura de Lucio Costa, mas, talvez, a tentativa de estabelecimento de um diálogo (denso e complexo) tanto com a tradição quanto com as possibilidades de modernização. Duplicidade essa que Lucio Costa soube manejar como nenhum outro em sua geração. Pensar o futuro e pensar o passado, em articulacão, era a proposta de Lucio, que tanto Lina quanto Aloísio re-enquadram a partir das questões que se apresentam no momento em que atuam. Se Lucio discute as possibilidades de uma arquitetura moderna no país, Lina discute tanto arquitetura quanto design, transitando tanto pelo território de atuação mais específica de Lucio quanto pela de Aloísio. No fundo, a discussão parece girar em torno da atividade projetiva, ou seja, das possibilidades de realização de projeto no Brasil e, também, das possibilidades de um projeto de Brasil que seja articulado a partir das profissões relacionadas diretamente às atividades de projeto. Por uma construção antropológica da história do design no Brasil Nesta comunicação apresento algumas das questões em torno das quais se organiza a pesquisa de doutoramento que venho desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Na pesquisa, me proponho a construir, através da análise das trajetórias de Lina Bo Bardi2 e Aloísio Magalhães3, uma antropologia histórica do design no Brasil. Para isso, analiso os discursos e a prática social de Lina e de Aloísio, problematizando, na observação de suas trajetórias e de suas produções, como cada um dos dois compreendia as possibilidades de vinculação entre design e projeto, artesanato e cultura popular, no Brasil, no período que compreende os anos 1950 e anos 1980. A decisão por analisar a trajetória de um frente à trajetória do outro se baseia no entendimento, por minha parte, de que há em Lina e em Aloísio, mesmo que de forma diversa, um envolvimento com o mesmo corpo de questões, a saber, as relações entre atividades projetuais, 2 Achillina Bo Bardi nasceu em Roma, na Itália, em 1914. Arquiteta, designer, cenógrafa, editora, ilustradora. Em 1946, após o fim da guerra, casou-se com o crítico e historiador da arte Pietro Maria Bardi, com quem viajou para o Brasil país no qual o casal decidiu se fixar. No ano seguinte, P. M. Bardi foi convidado pelo jornalista Assis Chateaubriand a fundar e dirigir o Museu de Arte de São Paulo - MASP. Lina projetou as instalações do museu. Em 1948, ela fundou o Studio d'Arte Palma, voltado à produção manufatureira de móveis de madeira compensada e materiais "brasileiros populares", como a chita e o couro. Em 1951, junto ao marido fundou o Instituto de Arte Contemporânea, sediado no MASP. O IAC – considerado como a primeira experiência de ensino das artes voltadas para o contexto industrial no Brasil – funcionou por apenas dois anos. Em 1958, Lina transferiu-se para Salvador, convidada a dirigir o Museu de Arte da Moderna da Bahia - MAM/BA. Na capital baiana, organizou o Museu de Arte Popular do Unhão (1963) e o Centro de Estudos sobre o Trabalho Artesanal. Em 1962, idealizou a Escola de Desenho Industrial e Artesanato, projeto nunca realizado. Faleceu em São Paulo em 1992. 3 Aloísio Magalhães nasceu em Recife, Pernambuco, em 1927, pertencente a uma uma família de políticos - seu tio Agamenon Magalhães foi interventor de Getúlio Vargas em Pernambuco. Graduou-se em Direito. Trabalhou durante anos como artista plástico. Em 1954, fundou em Recife o “Gráfico Amador”, mistura de atelier gráfico e editora. Em 1960, montou no Rio de Janeiro aquele que viria a ser o mais importante escritório de design de sua época. Trabalhou para clientes particulares mas também para diversas empresas estatais, desenvolvendo projetos de grande porte, tais como as cédulas do cruzeiro e as identidades visuais da Petrobras, da Light, do Banco Central, da Caixa Econômica Federal e da Bienal de São Paulo. Em 1962, participou da fundação da Escola Superior de Desenho Industrial, onde lecionou durante alguns anos. Em 1975, criou em Brasília o Centro Nacional de Referência Cultural, órgão de pesquisa e ação em cultura popular. Em 1979, foi nomeado presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em sua gestão, realizou-se uma reformulação do Instituto e de suas políticas de preservação do patrimônio cultural. Em 1981, Aloísio foi nomeado Secretário de Cultura do MEC. Faleceu na Itália em 1982. 4 industrialização, desenvolvimento nacional e cultura popular, que são formalizadas tanto por ela quanto por ele a partir do binômio design-artesanato. As questões que discuto na pesquisa surgem a partir de um interesse mais amplo em examinar as relações possíveis entre design e sociedade no Brasil, e, também, entre design e uma reflexão sobre o país. A partir deste interesse desenvolvi a pesquisa para a dissertação de mestrado (Anastassakis, 2007). No doutoramento, amplio e aprofundo o campo das questões discutidas na dissertação. Aloísio Magalhães: um projeto de design nacional Tendo iniciado aquela pesquisa em função de um interesse específico pelo designer Aloísio Magalhães, a partir de um primeiro levantamento bibliográfico e de entrevistas com pessoas ligadas a ele, pude perceber a complexidade e amplitude de sua presença para além do âmbito específico do design, mais especificamente no que tange à sua atuação na área das políticas culturais. Buscando aprofundar a pesquisa, deparei-me com o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), órgão criado e coordenado por Aloísio, em Brasília. A literatura corrente comenta que o CNRC teria sido o ‘lócus de experimentação’ das propostas que Magalhães levou para a esfera oficial em 1979. Partindo da observação da reincidência da classificação das políticas públicas de preservação do patrimônio cultural no Brasil em duas fases, a ‘heróica’ e a ‘moderna’, e da afirmação reiterada e unânime de que o ano de 1979 seria o marco divisor entre elas, questionei o que teria feito desse ano “o ano”. Ora, nas narrativas sobre a trajetória das políticas de patrimônio cultural no Brasil – tanto as oficiais, quanto as produzidas pela academia – 1979 consta como o momento em que o CNRC foi fundido ao Instituto Nacional de Patrimônio Cultural (Iphan), que, em seguida, foi desmembrado em Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e Fundação Nacional PróMemória (FNpM). Assim, nas narrativas supra-citadas, o Centro surge como mais um episódio da trajetória das políticas oficiais de patrimônio, vinculadas, desde 1937, ao Iphan e, conseqüentemente, ao Ministério de Educação e Cultura (MEC). Contudo, conforme aprofundava as leituras sobre o tema, tal inserção do CNRC na trajetória do órgão oficial de preservação cultural nacional soava como uma indexação não errônea, mas forçada, feita a posteriori. Quando tive acesso aos documentos produzidos pelo Centro, percebi que a proposta do órgão era outra, desvinculada, a princípio, das questões que regiam o campo do patrimônio. A partir de tal constatação, decidi ensaiar um movimento diverso do seguido por aqueles autores, no que tange à reflexão sobre o Centro Nacional de Referência Cultural. Considerei retirá-lo do quadro das políticas públicas de preservação cultural, e pesquisar, dentro do material produzido pelo CNRC, as justificativas de sua criação. Uma vez levantadas as questões que balizavam a sua proposta, busquei contrastá-las com o quadro maior da época em que o Centro funcionou, a saber, a segunda metade da década de setenta do século vinte. Então, o que propus na pesquisa de mestrado foi uma revisão da versão consagrada, ou seja, uma desnaturalização do local já ‘cativo’ onde o CNRC foi ‘colocado’. O que questionei foi o modo apriorístico como alguns autores colocaram o CNRC dentro das políticas oficiais de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Se ele foi ‘catalogado’ como pertencente a essa política, uma vez que, efetivamente, foi incorporado por ela em 1979, sendo definido, então, como de dentro, sugiro que ele não se propunha como tal, e, portanto, observei como ele se constituiu, de fora da esfera oficial de preservação cultural. 5 Acredito que o CNRC estabeleceu vinculações mais íntimas com outras áreas, tanto políticas quanto teóricas. Sua fusão com o Iphan, que veio a modificar, de fato, o modo como se pensa e se pratica a preservação cultural a nível oficial no Brasil, parece ter sido mais uma saída política circunstancial encontrada pelo grupo, que estava confrontado com a necessidade de institucionalização definitiva, do que um planejamento cultivado e realizado em função de estritas afinidades temáticas. As questões que os pesquisadores do CNRC levantavam tinham uma vinculação mais imediata com os temas do desenvolvimento - e de sua relação com a cultura, que, por sua vez, era compreendida a partir de sua ligação com o contexto de onde ela emerge; da tecnologia – e dentro desse tópico, com o que era denominado de ‘tecnologia patrimonial’ (ou ‘proto- tecnologia’, ou ‘pré-design’), vinculado a um questionamento da ciência e de suas possibilidades em um país tropical e subdesenvolvido; da produção e da dinâmica cultural; de uma compreensão do papel de Brasília no contexto nacional; e, por fim, do design – profissão de origem de Aloísio Magalhães como responsabilidade social, ou seja, do compromisso de construção de um desenho projetivo para o Brasil. Logo, se a literatura sobre o patrimônio no Brasil tenta trazer para dentro da trajetória das políticas públicas de preservação cultural a experiência do CNRC, ensaiei o exercício contrário. Tentando seguir a pista encontrada nos documentos de dentro, retirei o órgão da trajetória maior do patrimônio no Brasil, buscando lançar um olhar sobre a sua experiência enquanto algo que teve início, meio e fim, e uma inserção específica em um dado contexto histórico. Assim, pretendi contribuir para o adensamento da compreensão que se tem do CNRC e da atuação político-cultural de Aloísio Magalhães, considerando tanto suas afinidades com o campo do patrimônio, quanto suas filiações a outras áreas do pensamento e da ação culturais, como faces múltiplas e complementares do órgão e do pensamento de seu coordenador-geral. Pesquisando sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, e buscando compreender o cerne de um (dito) ‘novo paradigma antropológico’ associado às políticas culturais veiculadas pelo Iphan a partir da administração de Aloísio Magalhães, não encontrei menções significativas à antropologia, mas sim, ao design. Observei que o que foi tomado (pela literatura corrente) como ‘paradigma antropológico’ – associado às idéias e ações de Magalhães – era, em sua concepção original, uma tentativa de busca por um design propriamente nacional. Assim, pretendi explorar, em minha pesquisa, o fato de que Aloísio Magalhães entrou para o campo das políticas culturais pensando em design e em projeto, e não em antropologia. O que se passa, a meu ver, é que, talvez, a sua concepção de design fosse tal que suscitasse associações com a disciplina antropológica, e nessa medida interessa então investigar em profundidade no que consiste a sua concepção de design. Aloísio Magalhães ancorava suas ações na idéia de projeto (ação projetual), e no pensamento do que seria um design (entendido como desenho projetivo) nacional, para pesquisar e agir politicamente na busca do que ele acreditava ser uma saída para o desenvolvimento do país – o encontro com sua cultura, com os fazeres e as tecnologias geradas pelo homem simples, que ele denominava de ‘proto-tecnologia’, ‘tecnologia patrimonial’, ‘tecnologia de sobrevivência’ ou ‘prédesign’. Com essas colocações, não pretendi dizer que as idéias de Magalhães não tivessem nenhuma relação com a antropologia. Apenas apontar para o fato de que há um deslocamento entre o que se diz (e o que se entendeu) que ele fez, ou que ele pensava, e o que encontramos nos documentos escritos por ele e pela equipe do Centro Nacional de Referência Cultural. Os que falam de Aloísio e do CNRC associam suas idéias a uma ‘perspectiva antropológica’. Aloísio e seus parceiros pensavam em termos de processos culturais, de produtos, de tecnologias 6 e de design. A partir dessas observações, formuladas na dissertação de mestrado4, sugiro que o discurso de Aloísio era uma discurso articulado em torno de questões relacionadas primordialmente ao design. Assim, em funções de tais constatações, decidi partir para uma investigação mais detalhada sobre o discurso de Aloísio Magalhães, que considero como um discurso de design. Discurso esse que expressa não somente uma visão-de-mundo pessoal, mas uma compreensão do papel do design em um país como o Brasil que é compartilhada e também seguida por diversos outros designers. Nesse sentido, acredito que o discurso de Aloísio é representante fundamental de uma das matrizes discursivas da área de projeto em território brasileiro. Lina Bo Bardi: o design no impasse Em um texto de 1977, intitulado “Da invenção e do fazer – reflexão sobre o artesanato e o homem”, Aloísio cita um texto de Lina Bo Bardi publicado no ano anterior. Posteriormente, o texto citado foi incluído na coletânea de artigos editada pela arquiteta com o título de “Tempos de grossura: o design no impasse” (Bardi, 1980). A partir da leitura desse e de outros textos de Lina, percebo ser fundamental agregar à pesquisa sobre o discurso do designer pernambucano uma investigação sobre o discurso formulado pela arquiteta italiana, uma vez que há em ambos os discursos reflexões sobre o mesmo corpo de questões, a saber, as relações entre industrialização, desenvolvimento e cultura popular, que são formalizadas por eles em termos do binômio design-artesanato. Entendo que, embora atuando em frentes distintas, Lina e Aloísio configuram outras possibilidades para o design no Brasil. Com atuação fundamental em momentos decisivos para o processo de implantação do design no Brasil, Lina e Aloísio criticaram, cada um a seu modo, as matrizes ulmianas que terminaram por servir de modelo ao design brasileiro, propondo alternativas, seja no campo da educação e da pesquisa em design, seja no campo profissional, em seus projetos como arquiteta e como designers. Entre os anos 1950 e 1980, tanto Lina Bo Bardi quanto Aloísio Magalhães estavam envolvidos em projetos que buscavam criar soluções alternativas para a questão da produção nacional. Tanto ele quanto ela elaboravam articulações entre as produções industrial e artesanal, ela transitando no eixo Roma-São Paulo-Salvador, ele no eixo Recife-Rio de Janeiro-Brasília. Ambos desenvolveram iniciativas no âmbito da produção cultural, em articulação com as áreas de indústria, comércio e tecnologia, e com o campo político. As reflexões geradas por esses dois agentes culturais no Brasil são até hoje fonte de inspiração para aqueles que pensam em termos de políticas de design e de artesanato. Seus exemplos são citados em palestras de especialistas nas áreas de design, artesanato e do patrimônio, e muitas de suas idéias e iniciativas servem de base para a formulação de programas voltados para as áreas acima referidas, seja no âmbito de agências estatais, ou seja em termos de iniciativas privadas. Nesse sentido, entendo que os discursos e as atuações de Lina Bo Bardi e de Aloísio Magalhães exercem grande influência ainda hoje, no país. Suas reflexões transbordam as áreas específicas de suas atuações profissionais, espalhando-se para áreas contíguas a elas. Ambos são 4 No primeiro capítulo da dissertação de mestrado, realizo uma análise da bibliografia que menciona, cita ou trata mais diretamente do CNRC e da atuação de Aloísio Magalhães no campo das políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Entre o material analisado, há estudos realizados pelo próprio Iphan assim como dissertações e teses produzidas em diversas disciplinas vinculadas à área das ciências humanas. No segundo capítulo, analiso os documentos produzidos pela equipe do CNRC bem como textos escritos por Aloísio Magalhães. 7 reconhecidos como profissionais em seus ramos específicos (a saber, a arquitetura e o design), mas, mais do que isso, têm servido como fonte de referências para a formulação de reflexões acadêmicas e de políticas públicas nas áreas de design, artesanato e também de patrimônio. Assim, entendo que seja de vital importância para uma análise substancial do que é feito hoje no Brasil em termos de programas de incentivo às áreas acima referidas a compreensão das questões que norteiam os discursos desses dois agentes. Além disso, acredito que a análise de seus discursos e de suas atuações (político-profissionais) seja de fundamental importância para a compreensão das questões relativas ao design no Brasil (desde sua instalação no país, como área de trabalho a ser exercida no mercado e ensinada nas universidades): de suas relações com o processo de industrialização, com a produção artesanal, e, também, com um projeto de país que se formula (e se rediscute) junto à implantação da profissão no país, ocorrida por volta dos anos 1950. Creio ser urgente, então, a análise de suas produções intelectuais, ou seja, o estabelecimento de uma conversação (nos termos de Gonçalves, 2002) com os discursos formulados por Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães. A partir da análise de algumas colocações feitas por eles, observo que ambos agiram no sentido de um transbordamento de sua prática profissional em direção à reflexão e à busca por soluções para a questão do desenvolvimento nacional, articulado, em seus pontos-de-vista, necessariamente aos valores culturais do país. Ambos buscavam criar bases para o desenvolvimento de um desenho industrial nacional, contribuindo não apenas no campo projetivo, mas também no campo da reflexão e do debate intelectual sobre projeto, que aqui pode ser entendido como: arquitetura, design e cultura. Tanto Lina quanto Aloísio participaram ativamente das primeiras iniciativas de implantação do ensino formal de design no Brasil – ela em São Paulo e em Salvador, ele no Rio de Janeiro. Ambos tinham escritórios de sucesso, desenvolvendo projetos de arquitetura e design reconhecidamente relevantes para a produção de suas áreas de atuação. No entanto, ambos entendiam sua prática profissional e sua responsabilidade social enquanto ‘projetistas’ para além da estrita prática projetiva. Para os dois, fazer arquitetura e design em um país como o Brasil significava também articular novas possibilidades de projeto e de desenvolvimento para a produção nacional, em um espectro mais amplo. Dessa forma, ambos entendiam seu papel na sociedade mais como articuladores do que como meros criadores. Mesmo fazendo parte ativa dos processos de implantação da prática profissional e da institucionalização do ensino de design no Brasil, ambos, cada um a seu modo, representavam outras vertentes (Leite, 2006) dentro do pensamento de design trazido para o país através do intercâmbio de paulistas e cariocas com professores da Escola de Ulm, nos anos 1950 e início dos 1960. Dialogando com esse pensamento e também com o modernismo brasileiro, Lina e Aloísio propunham outras formas de se pensar o design, diversas da matriz alemã que serviu de base para o modelo de design implantado no Brasil. Nesse sentido, podemos afirmar que tanto Lina quanto Aloísio apresentavam visões renovadas do movimento moderno no design, pensando em novas possibilidades de diálogo do design com a realidade nacional brasileira. Se, diferentemente do que aconteceu em outros países, o design se estabeleceu com um menor grau de diálogo com a produção artesanal, Lina e Aloísio buscavam retomar os debates entre as produções artesanal e industrial. Tendo atuado em frentes diferentes aproximadamente no mesmo período de tempo – ela com uma trajetória mais longa que a dele, e tendo proposto, cada um à sua maneira, novas possibilidades dentro do campo de projeto, Lina teve sua atuação político-cultural (à época baseada em Salvador, Bahia) refreada pela ditadura militar que se instalou no país em 1964, enquanto Aloísio encontrou no mesmo regime ditatorial o espaço onde desenvolveu sua atuação 8 junto às políticas de design, artesanato e cultura. Cabe nesta pesquisa analisar em que as proposições de ambos se distinguem, e em que elas dialogam, ou seja, quais os pontos de encontro, fronteiras e divergências entre as reflexões e as ações de Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães. Se em um primeiro momento de suas atuações, ambos participaram estrategicamente dos projetos que vieram a facilitar a aproximação do incipiente mercado relacionado à criação industrial brasileiro com a vertente alemã do design moderno (Lina com o MASP, a Bienal de São Paulo e o IAC) e Aloísio com a Escola Técnica de Criação, MAM/RJ e com a ESDI), logo Lina e Aloísio criam outras redes de relações e propostas para o desenvolvimento do design no Brasil. Ela, transferindo-se para a Bahia, e ele, criando em Brasília o Centro Nacional de Referência Cultural. Nessas tentativas, parece estar em jogo a busca por um design nacional feito em diálogo com os processos criativos ‘autóctones’. A possibilidade da simples importação de um modelo europeu é questionada, rechaçada e substituída por uma proposta de diálogo do (que seria o) ‘design moderno’ com os processos culturais locais. O quadro social de implantação do design no Brasil Vale também investigar em que medida os posicionamentos de ambos relacionam-se com os momentos históricos em que eles atuaram. Na pesquisa, analiso as implicações dos contextos em que Lina e Aloísio se inseriram, bem como suas atividades e seus discursos em termos de ações político-pragmáticas, no sentido de uma articulação entre design, artesanato, identidade nacional e desenvolvimento no Brasil. Tomando em conta a pesquisa desenvolvida até o momento, acredito que alguns eixos fundamentais se articulem em torno das proposições de desenvolvimento para o Brasil elaboradas no início da segunda metade do século XX, quando o processo de industrialização nacional traz para a pauta de discussões a implantação da prática e do ensino formal de design em território brasileiro. Assim, entre os temas associados às discussões sobre design no Brasil, podemos destacar: a relação design-arquitetura, a relação design-artesanato, modelos de ensino, modelos de industrialização, questões de projeto, desenvolvimento, identidade nacional, modernidade e tradição. Assim, venho investigando o que Lina Bo Bardi e Aloísio Magalhães entendiam por design, e, em conseqüência, como essas compreensões os levavam a pensar também os papéis do artesanato, da educação e das possibilidades de projeto a serem desenvolvidas no país. Através de suas concepções sobre design e artesanato, podemos entrever pensamentos sobre o Brasil, que em seus casos específicos, articulam-se a partir de reflexões sobre o papel das atividades de projeto, seja em sua vertente artesanal, seja em sua vertente industrial. Dessa forma, pretendo contribuir para o adensamento das reflexões sobre os papéis de Lina e Aloísio no Brasil, e, mais especificamente, sobre os modos como cada um dos dois entendia e experimentava a inserção de uma área do saber formalizada na Europa dentro de um contexto industrial (e de uma ideologia industrialista) no contexto brasileiro da segunda metade do século XX, bem como discutir como a partir do design eles re-elaboram, cada um a seu modo, questões relativas à identidade nacional brasileira. Em suma, nesta pesquisa pretendo discutir como Lina e Aloísio entendiam, cada um a seu modo: 1) o design, 2) as possibilidades para o design no Brasil, 3) e também as possibilidades para o Brasil através do design. Resumidamente, a proposta da pesquisa é construir antropologicamente 9 uma história do design no país a partir da análise contrastiva das trajetórias e das produções intelectuais desses dois agentes estratégicos para o campo projetivo nacional no século 20. Bibliografia ANASTASSAKIS, Zoy. Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil: Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1980. BARDI, Lina Bo e FERRAZ, Marcelo C. (coords.). Lina Bo Bardi. São Paulo, Empresa das Artes / Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1996. GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, IPHAN, 2002. LEITE, João de Souza. De costas para o Brasil, o ensino de um design internacionalista. In MELO, Chico Homem de (org.). O design gráfico brasileiro – anos 60. São Paulo, Cosac & Naify, 2006. MAGALHÃES, Aloísio. Da invenção e do fazer – reflexão sobre o artesanato e o homem. 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