Música é movimento orgânico Gregório Pereira de Queiroz 1 O que identifica a música enquanto arte elevada não é o fato de que ela é movimento, mas o modo, o “como” deste movimento, sua estrutura interna e orgânica. Zuckerkandl, Man the Musician Resumo A música é definida como sendo movimento puro articulado organicamente, e deste ponto de vista é analisado seu papel na atuação musicoterapêutica músico-centrada e a formação dos musicoterapeutas dentro desta abordagem. Palavras-chave: movimento orgânico, estrutura orgânica, forma expressiva da música, atuação da música na musicoterapia. Abstract Music is defined as being pure motion organically articulated, and from this point of view, using this approach in the performance of the music-centered music therapeutic and also the graduation of the music therapists, that its rule is analyzed. Key-Words: organic motion, organic structure, expressive form of the music, performance of the music in music therapy. Dos cinco pontos de fundamentação do Músico-centramento, três tratam especificamente da música, definindo-a e definindo sua função no processo terapêutico: “a Música é uma ação de forças; a Música trata (...); a Música é o terapeuta principal” 2. Estas são as premissas a partir das quais atuam os musicoterapeutas músico-centrados. 1 Gregório Pereira de Queiroz – Arquiteto, formado pela FAUUSP; especialista em Educação Musical com área de concentração em Musicoterapia, pela Faculdade de Música Carlos Gomes; especialista em Musicoterapia, pela Faculdade Paulista de Artes. E-mail: [email protected], telefone: (11) 3086-0586. 2 Brandalise, 2001, p. 22. 2 Este trabalho se propõe a investigar tais premissas, com vistas a destrinchar o que é uma „ação de forças‟, de que modo a música trata e por que e como ela pode ser o terapeuta principal. Não é trabalho que pretende abranger todas as possibilidades contidas em tais afirmações, mas tão somente abrir uma trilha, um caminho para a compreensão da música e de seu papel no processo musicoterapêutico. Propõe-se ainda a caracterizar a necessidade do desenvolvimento da musicalidade na formação do musicoterapeuta, e no que esta contribui para sua atuação, em particular nos trabalhos de improvisação, re-criação e composição. Apesar de, aparentemente, este trabalho estar baseado em pensadores e em pensamentos, filiando-se de certo modo à filosofia da música, seu cerne real é a experiência direta com a música – experiência esta que será requisitada do leitor, indiretamente: nada do que está dito nas próximas páginas fará muito sentido se o leitor não tiver um mínimo de familiaridade com a música; ou melhor, se não estiver acostumado a lidar com o material do qual é feita a música, se não tiver em algum momento se sensibilizado para com aquilo que, afinal, se movimenta em nós no contato com a música, com aquilo que a música nos diz ou suscita. Antes mesmo de entrar na investigação, adiantemos seus resultados: 1. A estrutura orgânica, seu movimento articulado, é a característica peculiar da „ação de forças‟ da música, é a maneira peculiar como ela trata e atua enquanto terapeuta principal; 2. O tema, padrão ou “semente”, a repetição e as ressonâncias desse padrão no decorrer da obra, a articulação de todas as partes da obra, e a unidade imanente nessa articulação são os componentes principais da estrutura orgânica da música; 3. A música artística é aquela que está estruturada organicamente de modo pleno, isto é, em que as partes são articuladas com maior interação e unidade (e, aqui, colocamos uma definição que transcende a dicotomia erudita-popular, qualificando a música por sua estrutura interna, e não por qualquer outro elemento); 4. O treinamento dos musicoterapeutas, em especial dos que atuam dentro das premissas do Músico-centramento, deve desenvolver as capacidades de perceber a organicidade da música e de produzir música estruturada organicamente; algumas linhas deste treinamento são aqui apresentadas; 3 5. A musicalidade, que em outro lugar definimos como “a percepção de uma dimensão em que coisas, pessoas e condições se integram, daquela dimensão existencial na qual interagem dinamicamente” 3, é aqui definida como a capacidade de lidar com a música no nível de sua natureza orgânica e das articulações de seu movimento – pois o que chamamos lá de integração e interação, com relação aos fenômenos na vida, designamos aqui de articulação orgânica dos componentes da música; 6. Proposta de oficinas de desenvolvimento da musicalidade, para musicoterapeutas em formação, dentro de cursos de graduação e pós-graduação; assim como oficinas fora deste contexto para aquelas pessoas que desejem desenvolver seus potenciais musicais e humanos; pois que se a musicalidade é uma capacidade de todo ser humano, não há porque restringir seu desenvolvimento apenas a musicoterapeutas, embora estes necessitem dela como ferramenta. A definição de que a música é uma ação de forças é feita por Zuckerkandl: “As notas musicais são condutoras de força. Escutar música significa escutar uma ação de forças” 4. Entrementes, tal idéia está presente, colocada de diferentes maneiras, em muitos outros autores. Trazendo a questão para a colocação que talvez seja a mais primordial possível: a palavra “tom”, sinônimo de nota musical, vem da palavra grega tonus, que significa tensão. As notas musicais, os tons, as tensões (e suas contra-tensões e resoluções) definem a música, são sua essência, desde os gregos antigos: a música é feita de tons, de tensões, é uma ação de tensões ou de forças. Cada nota musical é uma tensão5, a ação de uma força, e o conjunto de notas, de tons, produz uma configuração de tensões ou forças, e é esta configuração o que nossa sensibilidade percebe como sendo a música, como sendo o significado ou conteúdo da música. 3 Queiroz, 2003, p. 23. Zuckerkandl, 1973, p. 22. 5 Nestes tempos, a palavra tensão está tão associada a desequilíbrio e problemas, que pareceu conveniente incluir esta nota. “Tensão e stress” são um par de conceitos atualmente contrapostos a “relaxamento e equilíbrio”, com o primeiro par tendo conotação negativa. Também na música, as oposições tensão e relaxamento, dissonância e consonância, podem ganhar certa conotação de valor. Por outro lado, algo que possui tônus pode ser entendido como algo forte, poderoso, positivo: uma musculatura com tônus é algo melhor do que uma desprovida de tônus. Não obstante isso tudo, utilizamos os termos tensão e tônus sem qualquer conotação de “bom” e “ruim”. Tensão e relaxamento são como que fases de um ciclo vital, com características próprias diferenciadas – por exemplo, o relaxamento como a necessidade de aliviar a existência de uma tensão, e esta.como a coagulação das forças esparsas em uma situação em relaxamento. 4 4 Quando dizemos “as notas de uma melodia” ou de uma canção, estamos na verdade dizendo “as tensões de uma melodia” ou de uma canção. A sucessão de tensões, produzidas pelas notas, é música. Mesmo se ouvimos uma música feita somente de percussão, as tensões e resoluções rítmicas é o que percebemos como sendo “música”. Não ouvimos partículas vibrando (por mais que, acusticamente, a música seja isso); não ouvimos apenas as alturas definidas pelas partículas em vibração; ouvimos, na música, algo mais, que se destaca para além do puramente acústico (embora este dado seja sua base): quando escutamos música, escutamos uma ação de forças. Esta ação de forças é o que dá forma à música, uma forma muito particular, pois que não se fixa no espaço, não ganha corpo no espaço propriamente, nem é definível enquanto um objeto, embora seja mesmo assim um fenômeno do mundo exterior (isto é, não se trata de algo presente somente na subjetividade humana, mas algo que existe no mundo exterior, um dado que chega desde fora aos nossos sentidos). Um certo conjunto de notas sai de um instrumento musical ou da voz de um cantor. Temos aqui objetos: o instrumento musical, a garganta ou o próprio cantor. Mas quem confundiria a música com estes objetos que produzem as notas? As notas destacam-se da fonte que as produz de um modo particular. Tomemos um exemplo comparativo: ninguém haveria de confundir o pincel e as tintas com uma pintura, pois aqui temos um objeto bastante bem definido: a pintura – algo que podemos pegar com as mãos, ver com os olhos, e que se diferencia facilmente dos outros objetos, também tangíveis e visíveis, o pincel e as tintas. Contudo, o elemento produzido pelas notas – isto é, a música – não se define da mesma maneira como os instrumentos musicais: a música não é tangível nem visível como o são os instrumentos; ela é audível, coisa que o instrumento em si não é! (ouve-se a vibração produzida pelo instrumento, não se ouve o instrumento; todavia, vê-se a vibração da cor tanto na tinta sobre a paleta quanto no quadro pintado). Alguém poderia ainda dizer: mas as notas, e portanto a própria música, são corpos e partículas vibrando, um dado ainda material embora não sendo avistado nem tocado pela percepção direta. Este fato não altera a argumentação: a música tem por base um dado material, mas ela em si não é esse dado material, e sim as tensões percebidas. Em uma pintura, assim como no mundo em geral, percebemos as tensões e forças que emanam das cores e das formas; contudo, percebemos também os objetos (suas formas, contornos, 5 desenhos, massas de cores) que geram as tensões e forças. Na música, percebemos tensões e forças, sem que os objetos que as geram sejam percebidos (esses “objetos” seriam as partículas em vibração, e não os instrumentos musicais, como afirmado antes). Este milagre é alcançado por meio da nota musical, do tom, do tônus, da tensão - que é tudo o que percebemos enquanto sendo música. A nota musical, este milagre corriqueiro, possui uma natureza muito peculiar, que passa desapercebida aos nossos olhos a maior parte do tempo: ao mesmo tempo em que a nota é um dado material, físico-acústico, a vibração de um corpo em uma dada freqüência, ela é percebida também enquanto tensão, enquanto força. Os dois mundos – aquele dos corpos e aquele das notas, aquele do físico (físicodinâmico) e aquele dos eventos puramente dinâmicos – têm o mesmo fundamento. A parede que as notas rompem não separa dois mundos, dois graus de realidade, mas dois modos de existência de um mundo igualmente reais e interpenetrantes, do mundo que nossos sentidos encontram. Não precisamos, por assim dizer, mudar de lugar a fim de passar de um para o outro. Simplesmente as notas abrem uma vista que os demais corpos obstruem. 6 A nota é a vibração do corpo, é um certo movimento do corpo, e não o próprio corpo. Nota musical é movimento puro, no sentido mais imediato e concreto possível. Assim, a música, entreouvida nas notas, é percebida enquanto puramente uma ação de forças ou, dizendo a mesma coisa de outro modo: a música é percebida enquanto movimento ou dinâmica pura. É este movimento que ouvimos quando ouvimos uma obra musical, seja ela qual for, tenha ela a qualidade artística que tiver. É o movimento, a ação de forças, que, de algum modo, estabelece relação com nossa interioridade; em particular, com aquilo que costumamos designar “sentimento”. Música e sentimento têm algo em comum. Mesmo que não se consiga delinear cabalmente o que têm em comum, ambos persistem em chamar nossa atenção para este fato. Seja porque a música “contém sentimento”, seja por ela nada conter e apenas suscitar sentimento no ouvinte devido à resposta natural deste à música, uma coisa é inconteste: a música e o sentimento humano estabelecem relação significativa. Os mais diversos autores, os mais diversos musicistas, as obras musicais mais diferentes e os amplos usos da música em diversas culturas atestam isso. O leitor poderá procurar em praticamente qualquer fonte pertinente e encontrará, definida de um modo ou de outro, a existência de relação significativa entre música e sentimento. 6 Zuckerkandl, 1973, p. 268. 6 O que estes dois têm em comum, segundo Langer, é serem ambos movimento articulado organicamente, pois que “a lógica de todos os símbolos que podem expressar sentimento é a lógica de processos orgânicos” 7. A essência de toda composição – tonal ou atonal, vocal ou instrumental, mesmo puramente percussiva, se se quiser – é a semelhança de movimento orgânico, a ilusão de um todo indivisível. A organização vital é a estrutura de todo sentimento, porque o sentimento existe apenas em organismos vivos; e a lógica de todos os símbolos que podem expressar sentimento é a lógica de processos orgânicos. . . . Uma sucessão de emoções que não se relacionam umas com as outras não constitui uma “vida emocional”, da mesma forma como um funcionamento descontínuo e independente de órgãos reunidos sob uma pele não seria uma “vida” física. 8 Além de ser uma “ação de forças”, uma sensação de movimento puro, ausente de objetos, tal qual nossa interioridade (ou sentimento), a música tem ainda uma segunda característica essencial na relação com o sentimento humano: a de ser uma estrutura orgânica. No ser humano, o movimento é o da própria vida, do sentimento; são os movimentos da psique, do fluxo de consciência. Na música, o movimento é a sua própria forma, uma forma que não se fixa no espaço mas que preenche o tempo com tensões e relaxamentos, uma forma que, como já dissemos, é dinâmica pura, isto é, movimento no qual não há objetos que se movem, mas somente o movimento percebido diretamente. Estes dois movimentos caracterizam-se pela articulação orgânica de suas partes, isto é, por uma unidade orgânica interna que dá coerência à obra musical por ser “o resultado final de transformações graduais de uma forma primeira da vida tonal” 9, e dá coerência ao ser humano por ser igualmente o resultado de transformações graduais a partir de sua forma primeira de vida. Langer, na mesma parte do texto citado acima, afirma ser o ritmo, o fator que estrutura organicamente a música e a vida: O princípio mais característico da atividade vital é o ritmo. Toda vida é rítmica; em circunstâncias difíceis, seus ritmos podem tornar-se muito complexos, mas, quando eles são realmente perdidos, a vida não pode durar por muito tempo. Esse caráter 7 Langer, 1980, p. 133. Ibid. 9 Zuckerkandl, 1976, p. 178. 8 7 rítmico do organismo permeia a música, porque a música é uma apresentação simbólica da mais alta resposta orgânica, a vida emocional dos seres humanos. 10 Zuckerkandl define o princípio causador do movimento de modo a também abarcar o ritmo, mas como sendo não o ritmo como o entendemos comumente, a seqüência de partes iguais e/ou desiguais de tempo, mas este enquanto tensão e resolução-da-tensão: A vida tonal, como toda outra vida, é primordialmente caracterizada pela alternância de estados polares: sístole e diástole, inalação e exalação, para longe desde e de volta para. No domínio da música, este processo tem a forma de um partir atrás de e de um retornar para um estado audível de equilíbrio, de colocar uma tensão tonal, e então buscar e encontrar sua resolução. 11 Em outro lugar, Langer descreve a mesma alternância de tensões como sendo a forma da música e associando-a ao tempo criado pela música, que ela denomina de virtual – assim como denomina de virtual todo o universo em que a arte, toda arte, nos faz mergulhar. A experiência direta da passagem [do tempo], como ocorre em cada vida individual, é, evidentemente, algo real . . . Ela é o modelo de tempo virtual criado na música. Aí temos sua imagem, completamente articulada e pura; todo tipo de tensão transformado em tensão musical, todo conteúdo qualitativo em qualidade musical, todo fator estranho substituído por elementos musicais. A ilusão primária da música é a imagem sonora da passagem [do tempo], abstraída da realidade para tornar-se livre e plástica e inteiramente perceptível. 12 O que percebemos na música, e que é natural e automaticamente tomado como significativo por nossa vida interior, é o jogo de “tensões em direção a” e a busca de equilíbrio das tensões, que tem suas partes articuladas organicamente gerando um todo coerente – ou dizendo em outras palavras, gerando uma forma expressiva (forma esta que, segundo Langer, torna perceptível, sonoramente, a passagem do tempo13). A música é uma “ação de forças”, e as forças em ação são sua forma expressiva, estabelecendo relação com nosso sentimento ou interioridade. Há diversas gradações possíveis na 10 Langer, 1980, p. 133. Zuckerkandl, 1976, p. 170. 12 Langer, 1980, p. 120. 11 8 expressividade da forma musical. Uma obra musical pode ser uma forma mais expressiva do que outra obra. O que define as diferenças de qualidade expressiva, não é propriamente o movimento, “mas o modo, o „como‟ deste movimento, sua estrutura interna e orgânica” 14. Chegamos a um primeiro ponto de parada neste trabalho. Daqui se descortina um primeiro resultado, uma conclusão que não apenas reafirma a colocação inicial do Músico-centramento, mas a recoloca em termos mais esmiuçados. A música – está sendo afirmado – é movimento puro articulado organicamente; e é isto o que percebemos, natural e diretamente, ter algo a ver com nossa vida interior. A atuação da música enquanto “aquilo que trata”, enquanto terapeuta principal, ocorre por ela ser movimento puro articulado organicamente. Suas semelhanças com a vida interior, e mesmo com a vida orgânica, do ser humano dão-lhe a condição de interagir com os processos humanos, como se lhes fosse uma igual. Antes que se argumente que a natureza da música é bem outra, voltando à velha questão de sua redução ao dado acústico, e que tudo o mais é uma construção do intelecto humano (e, conseqüentemente, não está presente de fato na música), será útil distinguir os quatro níveis em que nossa audição percebe a música, recapitulando o que vimos até aqui acrescentando uma informação: é a audição, e apenas a audição, que capta todos os níveis expressivos da música. A audição da música é um processo de muitas camadas. Podemos distinguir quatro camadas: audição de notas, audição de qualidades dinâmicas, audição de movimento e audição de estrutura orgânica. E tudo isto reside inteiramente dentro da jurisdição do sentido da audição: os outros sentidos e funções não entram aqui. Estas “camadas” não devem ser confundidas com estágios sucessivos, como se ouvíssemos primeiro um, depois o outro, e assim por diante. Quando ouvimos música todas elas se apresentam de uma vez. 15 A audição das notas é ouvir o som, o aspecto acústico da música. A audição das qualidades dinâmicas é ouvir o desejo da nota por se completar, sua inclinação em direção ao centro do sistema de forças do qual faz parte, é ouvir as tensões inerentes à 13 A questão “tempo” mereceria uma discussão muito mais extensa do que cabe aqui. Embora seja vital para a compreensão da forma e do significado da música, e de sua relação com o ser humano, esta questão não será desenvolvida neste trabalho. 14 Zuckerkandl, 1976, p. 163. 15 Ibid., p. 88. 9 nota enquanto parte de um sistema (por ser parte de um sistema, ela se completa somente em sua interação com este) 16. A audição do movimento é mover-se junto com o movimento das notas, é a capacidade da audição que é vivida somente na audição musical, pois que “ouvir música é compartilhar ativamente a vida de uma realidade vivente” 17 . (Não sendo possível na audição de ruídos, por exemplo, pois que estes não formam um sistema, não contêm qualidades dinâmicas e, portanto, não contêm movimento, no mesmo sentido que as notas e a música contêm.) No ato da audição, realidades viventes vêm em contato direto; ouvindo notas, eu me movo com elas; eu experimento seu movimento como meu próprio movimento. Ouvir notas em movimento é mover-se junto com elas. 18 (A audição do movimento, conforme analisada por Zuckerkandl no capítulo XII do livro Man the Musician, é descrita de modo elucidativo para a compreensão do tipo de relação que se estabelece entre a forma musical e a interioridade humana.) Esta talvez seja a “camada” crucial da audição para o processo musicoterapêutico. Talvez neste nível da audição esteja localizado o grande poder da música em afetar o ser humano. (Aqui, quando se fala em música no processo musicoterapêutico, estamos separando-a radicalmente dos sons e dos ruídos, isto é, dos sons e ruídos que não estejam existindo dentro de um sistema musical e subordinados a ele. A música feita de tensões, de notas, traz os fatores “movimento” e “organicidade” para dentro do processo musicoterapêutico, enquanto que a utilização de sons e ruídos fora de um sistema musical, não o faz: trabalha direto na relação som – ser humano; enquanto que a música trabalha por meio da relação movimento/organicidade – ser humano. O trabalho de sons e ruídos em musicoterapia teria que ser considerado a partir de outra base teórica.) A audição da estrutura orgânica, a quarta “camada” da audição, é ouvir a coerência interna da música, o modo como suas partes estão articuladas, tal qual um organismo cujas partes necessitam certa interação para se manter enquanto organismo. Perceber tal organicidade presente 16 Ver explicação mais completa sobre as qualidades dinâmicas das notas em Zuckerkandl, 1976, capítulo 1, ou um resumo desta em Queiroz, 2003, capítulo 4. “As qualidades dinâmicas das notas podem ser compreendidas somente como manifestações de uma ação ordenada de forças dentro de um dado sistema. As notas de nosso sistema tonal são eventos em um campo dinâmico, e cada nota, enquanto soa, dá expressão a uma certa constelação de forças presente no ponto do campo o qual a nota está situada.” 17 Zuckerkandl, 1976, p. 161. 18 Ibid. p. 157. 10 na música é também uma função direta da audição, sem o auxílio de qualquer outra função, segundo Zuckerkandl. Seria como se, ao ouvirmos um organismo vivo, ouvíssemos diretamente a vida que pulsa nele, e não as manifestações audíveis de suas partes. A vida, especialmente a vida humana, tem uma estrutura hierárquica; suas manifestações são sempre caracterizadas de acordo com qualidades e graus. São diferenciadas dentro de ordens fundamentais de autêntico e inautêntico, nobre e vulgar; são ordenadas de acordo com estágios de desenvolvimento, alinhando-se desde o começo simples à maturidade final. Desde que a música é ouvida como algo vivo, também deverá ser audivelmente caracterizada de acordo com diferenças em qualidade e grau, e o ouvido humano deve ser capaz, unicamente por si mesmo, de distinguir entre autêntico e inautêntico, nobre e vulgar, maduro e imaturo, entre obras musicais desenvolvidas de modo rudimentar e elevado. 19 Ouvir a estrutura orgânica da música é a função da audição que torna plena a equivalência entre música e sentimento, entre música e ser humano. Se ouvir movimento é colocar-se junto com o movimento, é viver ativamente esse movimento, ouvir estrutura orgânica é compartilhar das muitas diferenciações e hierarquias presentes nesse movimento, é compartilhar do crescimento e do desenvolvimento contidos no movimento: é o que nos torna capazes de crescer e nos desenvolvermos junto com a música 20. A percepção de que a verdadeira estrutura musical tem característica orgânica foi primeiramente mostrada no trabalho do musicólogo Heinrich Schenker, Der Freie Satz. Este trabalho é a base tanto para o de Susanne Langer, sobre a forma expressiva da música ser articulada organicamente, quanto o de Zuckerkandl, sobre a capacidade da audição em ouvir diretamente a estrutura orgânica da música 21. Embora tenhamos chegado até este ponto, utilizando-nos largamente do adjetivo “orgânico”, ao que exatamente ele se refere, quando falamos de música? Este termo é aplicado usualmente a seres vivos, a organismos vivos, e daqui nasce sua aplicação às obras musicais. Os seres vivos 19 Ibid., p. 161. Este é um ponto de convergência com o conceito Nordoff-Robbins de “music child”, talvez até mesmo uma possível definição do que seja “music child”, aquilo em nós que cresce e se desenvolve junto com a música, assim como é um ponto de convergência com o conceito de musicalidade por nós apresentado em outro trabalho (Queiroz, 2003, Cap. 1). 21 As várias camadas de uma obra musical definidas por Schenker – os planos de fundo, intermediário e primeiro plano – não devem ser confundidas com as “camadas” da audição. Estas últimas foram definidas por Zuckerkandl e dizem respeito a diferentes níveis da percepção auditiva. Os planos ou camadas, como definidos por Schenker, exibem a estrutura em profundidade da música. 20 11 seguem um plano determinado em seu desenvolvimento, e assim também acontece com uma obra musical, com uma melodia. Como o organismo vivo, a obra musical não é construída por algum plano estrangeiro a ela. Como poderia um compositor proceder para construir uma peça de música de acordo com um plano? . . . Como poderia saber o que deve escolher, e em quais proporções, para produzir sua melodia? Onde está o plano que o guiaria? Ele não existe; deve ser descoberto em primeiro lugar. Como? Por descobrir a melodia. Descobrir o plano e descobrir a melodia é uma e a mesma coisa. Que o plano exista antes que a melodia, como uma espécie de esquema a ser preenchido com notas, é uma idéia absurda até mesmo para ser imaginada. . . . O plano da melodia individual é a própria melodia. A feição essencial e específica da vida orgânica, a saber, o fato de que o plano é inerente e inseparável do organismo vivo, está aqui presente em seu extremo, por assim dizer, em sua forma teoricamente mais pura. 22 Temos aqui o motivo do adjetivo “orgânico”, apropriado para seres vivos, ser aplicado tão apropriadamente para uma obra musical: esta se desenvolve da mesma maneira que um ser vivo, . . . através de um processo de desenvolvimento, começando com um embrião ou semente de uma idéia musical e continuando com um processo de desenvolvimento, auto-duplicação e transformações sucessivas até a obra ter sido plenamente realizada. 23 Uma obra musical se desenvolve organicamente, é criada organicamente, a partir de uma semente, que não é uma idéia, algo à parte da música, mas essa semente é já algo da música, e não um pedaço ou parte dela, mas sim uma semente, um padrão musical que dá origem a toda a obra musical. A analogia com a geração de um ser vivo é exata. A música é como um ser vivente, sua forma é uma forma vivente no mesmo sentido em que um ser vivo é vivo: uma forma que nasce com um plano interior que é o gerador de seu desenvolvimento, um plano indissociável do próprio fato dela existir. Alguns elementos estão necessariamente presentes em uma obra musical desenvolvida organicamente. O primeiro deles é um padrão, um tema, uma melodia, a “semente” que dará origem ao todo da obra. Este padrão pode ter características melódicas, rítmicas, harmônicas e de timbre, ou apenas 22 23 Zuckerkandl, 1976, p. 188. Ibid, p. 189. 12 uma ou duas destas características; não há uma lei fixa sobre como definir um tema ou padrão musical. A questão é que, ao definir esse padrão-semente, todo o seu desenvolvimento, se é para ser orgânico, estará já contido aí desde o início. É isso o que Schenker observou em suas análises das grandes obras primas da música ocidental: há um padrão subjacente a toda a obra, que por vezes pode ser evidente na linha melódica, mas que no mais das vezes está subjacente nas camadas profundas, que requerem análise específica para serem percebidos. É isso o que Zuckerkandl estende às melodias populares: nelas encontramos também um padrão-semente que organiza e articula todo o conjunto da obra – embora o faça de modo mais simples. Há temas que dizem algo, há temas que soam vazios. Mas estes dizem algo, quando o dizem, não como uma linguagem o faz, enquanto símbolo convencionado de alguma coisa. Um tema diz algo por meio das forças e tensões que coloca em ação, isto é, do uso que faz das qualidades dinâmicas das notas. Há temas expressivos de certas coisas, há temas expressivos de outras; há temas mais expressivos, outros menos. O tema em si não é mais orgânico ou menos do que outro; o tema é a semente, e como tal possui maior ou menor qualidade, mas não medida em termos de organicidade, e sim do conjunto de forças que aciona, do arquétipo de forças que coloca em ação. O segundo elemento é a reverberação do padrão ou tema por toda a obra, seja estruturalmente, seja sob diversas modificações, transformações e repetições. O padrão é o elemento que orienta o desenvolvimento da obra e deve ser encontrado em todas as suas partes – é como se fosse sua característica genética – o que implica em ser repetido, sob alguma forma, reverberando por toda a obra. O terceiro elemento é a articulação das diversas partes ou níveis da obra em torno do tema ou padrão, é o aspecto verdadeiramente orgânico de uma obra musical. A reverberação do tema e a articulação da obra em torno do tema podem ser mais orgânicas ou menos; a avaliação de qualidade destes dois elementos difere do primeira. Se o tema pode ser avaliado quanto a ser arquétipo de algo significativo ou de algo insignificante, a reverberação e a articulação têm diferenças de qualidade pelo tipo de desenvolvimento interno pelo qual geram a obra. O quarto elemento é a unidade imanente da obra – ou a ausência desta, ou ainda a unidade parcial da obra, se é que esta contradição é possível. É o resultado final dos três elementos, e é ela que responde pela qualidade da obra musical, seja esta artística ou musicoterapêutica. 13 A qualidade orgânica não é exclusiva da música, está presente em toda a arte. Toda obra de arte, para ter qualidade artística, deverá ser orgânica, deverá ser um símbolo cuja forma contenha uma unidade expressiva. Langer e Zuckerkandl distinguem a “boa” arte da “má” arte, a arte de qualidade da arte vulgar, a arte cuja forma é expressiva daquela cuja forma nada ou pouco exprime, pelo grau de organicidade da obra. Mas estamos aqui falando de música e, portanto, devemos acrescentar à qualidade orgânica do desenvolvimento da forma artística, o fato de esta ser movimento puro. Temos uma combinação que, mais do que qualquer outra arte, mobiliza o ser humano, ou poderíamos dizer, mobiliza a vida no ser humano, pois que a música é, dentre as artes, aquela cuja forma é símile à da própria vida. A união entre movimento e organicidade seria, então, o porquê da música ser tão íntima da vida e, em especial, da vida interior (ou sentimento) do ser humano – e o porquê dela atuar como terapeuta principal: por tal similitude com os processos humanos. (Aqui, destaca-se a idéia de que a música resultante de um dado processo musicoterapêutico poderá ser considerada como obra musical artística, isto é, como uma forma significativa a ser ouvida enquanto símbolo do sentimento, no sentido estrito definido por Langer24. No entanto, tal obra musical talvez possa ser reconhecida em seu significado pleno somente dentro do contexto do processo musicoterapêutico, o que a torna uma espécie de obra artística muito particular, bastante diferente das obras artísticas comuns. Ao lançarmos esta idéia, nada mais fazemos que não corroborar e explicitar o que está presente no trabalho clínico-musical de Paul Nordoff, em suas improvisações, já de há muito consideradas como obras artístico-terapêuticas.25) A questão central aqui, em um texto voltado para o trabalho musicoterapêutico e não para a arte, não está na qualidade artística da obra musical, mas sim no quanto ela pode ser expressiva e como tal expressividade pode ser adequada ou não para o processo musicoterapêutico, ou seja, na qualidade musicoterapêutica da obra; não obstante as duas compartilharem das mesmas bases. Música ruim, do ponto de vista artístico, é música pouco orgânica, não importa se ela tem origem erudita ou popular. Este conceito pode ser ampliado para o que seja música ruim, do ponto de vista musicoterapêutico: é também música pouco orgânica, música na qual suas partes não se articulam conforme o padrão que lhe é inerente, obedecendo ora a um padrão, ora a outro, ou ainda 24 Langer, 1980, p. 42: “Arte é a criação de formas simbólicas do sentimento humano.” Ver Bruscia, 2000, p. 103: “Qualquer pessoa que tenha escutado a requintada habilidade musical de Paul Nordoff dificilmente dirá que a musicoterapia não está preocupada com a qualidade musical!” e Aigen, 1998, p. 249: “A abordagem Nordoff-Robbins é talvez a única a enfatiza a objetividade da música e o valor terapêutico de sua qualidade quando ela vem a ser esteticamente realizada.” 25 14 não tendo nada que lhe dê unidade, nenhum padrão que lhe confira organicidade; mas é também, música cujo tema ou padrão não é significativo (ou é insignificante) para o momento do paciente e do processo terapêutico. Música boa, do ponto de vista artístico, é aquela em que há um padrão organizando cada parte da obra dentro de um todo unitário. Música boa, do ponto de vista musicoterapêutico, é aquela em que além de ter um padrão-semente que lhe ordena e dá unidade, este padrão-semente é significativo para o paciente e para aquele determinado momento do processo terapêutico26 (tal padrão-semente pode ser gerado pelo paciente, pelo terapeuta ou por ambos em alguma proporção). É música cujo todo é orgânico, sendo assim símile da condição humana – fisiológica ou psicológica – que a música necessita acessar, espelhar ou estimular. Desta perspectiva, torna-se evidente o poder terapêutico da escolha adequada de um tema clínico, como este é entendido no Músico-centramento e na Nordoff-Robbins. O tema clínico será o padrão-semente da obra desenvolvida, seja ela uma improvisação ou uma composição clínicomusical. Naturalmente, junto com este, deverá haver o desenvolvimento orgânico do tema. O desenvolvimento orgânico da improvisação clínico-musical, mais do que qualquer outro elemento, é o fator que torna tal improvisação, a partir do tema-semente, significativa para o paciente. Não há que se buscar somente fatores tais como as afinidades culturais e as afinidades com a identidade sonora do paciente, mas também, e diríamos com maior importância, um desenvolvimento orgânico da improvisação; pois é o desenvolvimento orgânico o que mobilizará o sentimento do paciente, o que, na visão de Langer sobre este termo, quer dizer também: a vida do paciente. A música tem importe, e esse importe é o padrão . . . da própria vida, como é sentida e conhecida diretamente. Chamemos, então, a significação da música de “importe vital” ao invés de “significado”, usando “vital” não como um vago termo laudatório, mas como um adjetivo qualificativo que restringe a relevância do “importe” ao dinamismo da experiência subjetiva. . . . a música é “forma significante”, e sua significação é a de um símbolo, um objeto sensorial altamente articulado que, em virtude de sua estrutura dinâmica, pode expressar as formas da experiência vital que a 26 Para um maior esclarecimento sobre “música significativa para o paciente”, ver Queiroz, 2003, Capítulo 5. 15 linguagem é especialmente inadequada para transmitir. Sentimento, vida, movimento e emoção constituem seu importe.27 A sinergia entre improvisação clínica e a vida do paciente se daria, então, por meio do mais alto grau de organicidade da obra musical, de tal modo que a forma significante da música, seu “importe vital” no dizer de Langer, interaja com a experiência vital do paciente. Deste modo, esperamos tornar mais claro como pode a música assumir o papel de terapeuta principal no processo musicoterápico na abordagem proposta pelo Músico-centramento: a música não é um ser humano, mas sua forma tem características símiles às do sentimento e da vida humana. Se parece que queremos reduzir a música dentro da musicoterapia ao seu valor artístico, restringindo o potencial terapêutico ao que tenha de mérito estético, esta consideração está complemente equivocada. O que se quer é recuperar o aspecto da qualidade artística da música que é feita terapeuticamente, deixando clara a sua importância, e não reduzir tal música a qualquer parâmetro estético. A qualidade artística da música aumenta o poder terapêutico da música, mas o poder terapêutico da música não se restringe à sua qualidade artística. Assim, em muitos casos, determinada música bastante simples poderá ser altamente significativa dentro do processo terapêutico; todavia, tal música se executada com maior sentido musical, o qual explore e seja expressiva quanto à forma significante da peça, provavelmente terá maior eficiência terapêutica do que se essa mesma peça for improvisada ou executada sem qualquer sentido musical. Neste ponto, atingimos outros dois resultados deste trabalho: definimos os elementos que compõem uma obra musical de qualidade, sendo esta qualidade referida tanto a um critério artístico quanto a um critério musicoterapêutico; e procuramos mostrar a necessidade da obra musical utilizada na terapia ter qualidade, em um sentido bastante idêntico ao da qualidade artística, pois esta está diretamente vinculada à eficiência da música na terapia. Passamos agora para a etapa final de nossa jornada, quando introduzimos a necessidade de uma formação específica para musicoterapeutas, a partir desta visão da música em terapia. A partir das colocações feitas aqui, delineiam-se necessidades específicas na formação do musicoterapeuta para atuar a partir dos parâmetros do Músico-centramento. A formação do musicoterapeuta deverá familiarizá-lo com o trabalho das qualidades dinâmicas, do movimento e da articulação orgânica na música. Não se trata mais de aprender “melodia, ritmo e harmonia” como no ensino convencional de música, mas de olhar a música com olhos de quem procura perceber sua essência e não apenas seus elementos básicos. 27 Langer, 1980, p. 34. 16 Aprender e praticar qualidades dinâmicas, movimento e articulação orgânica na música é, então, o que propomos para a formação do musicoterapeuta músico-centrado (e, por que não, para a formação de todo musicoterapeuta). Este trabalho escrito tem seguido um caminho intelectual, o que pode, neste ponto, desvirtua um tanto o sentido do que queremos colocar. O aprendizado e a prática destas essências musicais – qualidades dinâmicas, movimento e articulação orgânica – não se dá por meio do estudo intelectual apenas nem principalmente; dá-se pela lida direta com a música, pelas sessões de improvisação, de criação, de composição, de re-criação, e também pela audição e estudo das obras musicais existentes, em particular aquelas que contenham soluções criativas para o uso destas essências musicais. Nada substitui o contato direto com a música, na formação de um musicoterapeuta. Um trabalho escrito não pode mostrar o que é o contato direto com a música. Ficamos aqui no limite do que pode ser colocado em palavras, limite este que não chega perto do que é a lida direta com a música. Mas podemos traçar teoricamente algumas linhas do que é o trabalho de formação. A experimentação das qualidades dinâmicas, em exercícios de improvisação musical dentro de determinadas escalas, isto é, de determinados campos de dinâmica desenvolve a percepção e a resposta musical, não como um estilo ou artifício pessoal, mas realmente percebendo a música viva a cada momento. O intuito de trabalhar com diferentes escalas é o de sensibilizar o estudante às diferentes dinâmicas possíveis entre as notas, as diferentes ações de forças que a música pode conter 28 . Contudo, além desta, há muitas outras formas de se trabalhar com as qualidades dinâmicas. Por exemplo, propor uma dada situação humana ou psicológica para ser transmutada em notas musicais, a partir dos significados das qualidades dinâmicas. Há alguns exemplos muito interessantes deste tipo de trabalho nas improvisações clínicas de Paul Nordoff e Clive Robbins 29. Há ainda todo um livro a este respeito: Healing Heritage, com inúmeros exemplos do trabalho das 28 O outro trabalho deste mesmo Autor neste livro, sobre as qualidades dinâmicas e o movimento nos modos mixolídio, dórico e frígio, procura fornecer a base para estes exercícios. 29 Aigen, 2000, diversos capítulos, mas destacamos o capítulo 5. Há também nossos comentários a respeito do trabalho de Paul Nordoff (Queiroz, 2003, capítulos 5.2 e 5.3). 17 qualidades dinâmicas em musicoterapia (embora nem sempre os autores utilizem expressamente este termo) 30. O desenvolvimento da capacidade de perceber e acompanhar o movimento na música é feito por meio de exercícios de interação da pessoa com os movimentos propostos pela música. Como a primeira idéia, quando falamos em “movimento”, são movimentos corpóreos, é preciso distinguir: trata-se de movimentos puramente musicais. O mais simples é pensar no movimento ascendente ou descendente em um exercício de solfejo, ou de uma melodia. Acompanhar tais movimentos seria um dos exercícios propostos. Não com o sentido de desenvolver o canto, mas a capacidade expressiva em movimentos variados 31. Costumam haver bloqueios por parte das pessoas para acompanhar os movimentos na música: alguns acompanham bem certos movimentos, e não conseguem acompanhar outros. Isto fica patente quando vemos um musicoterapeuta, ao improvisar, escolher sempre as mesmas melodias ou linhas gerais para a sua melodia: o movimento que ele consegue realizar com facilidade se impõe. Treinar uma gama maior de movimentos em música, dissolvendo seus bloqueios, seria parte da formação aqui proposta, pois assim o terapeuta será capaz de seguir ou propor o movimento necessário ao momento do paciente, e não apenas repetir seus modelos e limitações pessoais. Tal desenvolvimento alargaria os limites de sua compreensão musical do ser humano. A criação de um tema, de um padrão-semente, e o reconhecimento do movimento que este gera potencialmente, é outro exercício importante para a formação da musicalidade de um musicoterapeuta. O que dizem os temas-semente? Há a possibilidade de um significado geral para os temas musicais? Como treinar o reconhecimento da arquetipia contida em um tema-semente? Os temas clínicos gerados nas improvisações feitas pelos músico-centrados e, em particular, aqueles nascidos nas improvisações de Nordoff e Robbins são tópicos de estudo para este item. Haveria outros exercícios com o movimento em música: acompanhar uma dada melodia com o tipo de harmonia que corresponde ao seu movimento ou que se contrapõe a ela; fazer sucessivas modificações no ritmo de uma melodia, alterando assim seu movimento, talvez adaptando uma melodia conhecida e por meio de modificações estudar o quê no ritmo compõe seu movimento natural; todos exercícios que se utilizam da sensibilidade às essências musicais e do entendimento intelectual do que são essas essências. 30 Robbins e Robbins, 1998. Paul Nordoff, em Healing Heritage, propõe começar a sensibilizar seus alunos para o movimento na música trabalhando com os intervalos que compõem as melodias de obras eruditas, salientando o uso de graus conjuntos e saltos usados alternada e apropriadamente para dar significado à melodia. 31 18 Os exercícios para desenvolver a percepção e a atuação organicamente estruturada na improvisação, re-criação ou composição musical são mais complexos de serem descritos. Assim, também os exercícios ligados ao sentido de unidade presente na música. O estudo das obras-primas da música erudita talvez possa ser um caminho, pois aqui estão alguns exemplos máximos do que seja unidade orgânica. No entanto, a música popular contém também exemplos de unidade orgânica muito bem resolvida. O estudo de exemplos prontos de unidade orgânica musical não somente daria a visão da síntese dessa unidade (pois que a uma unidade não se chega propriamente por meio de uma análise), como também o estudante encontraria aí formas de resolver as articulações entre as diversas partes da obra. O valor das articulações depende diretamente do tema-semente, pois este já contém em si o tipo de desenvolvimento do qual necessita, cabendo então descobrir para cada tema-semente quais meios de articulação e multiplicação lhe são inerentes. Mas tal estudo não deveria recorrer primordialmente ao caminho da análise musical, como o faz, por exemplo, o trabalho de Schenker. Não se chega à criação musical por este tipo de análise32, e o que se pretende para um musicoterapeuta é, principalmente, a atuação musical, mais do que a capacidade analítica operando sobre um dado trecho de música. Claro, é preciso que o musicoterapeuta entenda o que faz, mas antes que isso ele precisa ser capaz de fazer (isto é, fazer música). Tal estudo deverá ser eminentemente prático: improvisar música, compor música, re-criar música. E, a partir desta prática, ser analisado a ver se está organicamente estruturada, em que pontos foi bem resolvida, em quais pontos a organicidade foi perdida ou falhou em orientar o desenvolvimento da obra. O trabalho do musicoterapeuta enquanto improvisando com o paciente é tratar organicamente o material musical trazido para a improvisação: seja ele um tema, um fragmento de tema, uma melodia ou ritmo, ou mesmo a sugestão apenas de uma forma musical. Tratar organicamente é tornar realmente musical o material trazido pelo paciente, é despertar a musicalidade, é colocar em movimento a interação musical no processo terapêutico. Mas não se chega à correta percepção do que seja tudo isto, se ao mesmo tempo não nos familiarizamos com exemplos prontos, e de preferência em seu mais alto grau, de música 32 Zuckerkandl, 1976, p. 170: “Não se deve crer que os compositores devem estar familiarizados com a teoria [de Schenker] para serem capazes de criar obras musicais: a teoria decorre da experiência das obras; as obras não decorrem da teoria”. 19 organicamente criada – e disto a importância da lida com a música artística, em seu mais alto grau. O convívio com e o estudo de obras musicais que contenham unidade faz nascer um padrão intuitivo de como atuar com unidade musical quando improvisamos, compomos e re-criamos. Preparar-se para este trabalho é muito semelhante a fazer o próprio trabalho, é improvisar, compor e re-criar, de modo a ir pegando a mão, a treinar a intuição para se o que está sendo feito é orgânico, até que em um certo momento, o musicoterapeuta esteja preparado para deixar-se levar pelo fluxo orgânico, assim como se deixar levar pelo movimento que naturalmente a música impõe dentro de uma sessão musicoterapêutica, sendo este fluxo algo que ele é capaz tanto de acompanhar, quanto de acentuar ou criar, pois que sendo orgânico, não é de se esperar que possa ser moldado que não de maneira orgânica. Como fazer crescer uma árvore, ou qualquer outro ser vivo, que não permitindo seu impulso vital se manifestar, acrescentando aportes que favoreçam tal manifestação? Qualquer tentativa de impor crescimento a um ser orgânico termina sendo repressiva, anti-orgânica, e o mesmo acontece na atuação musical quando esta não aprende a seguir as linhas vitais do tema-semente e suas decorrentes necessidades de articulação e unicidade. Em todas estas etapas de formação, não se trata nunca de um trabalho comum de criação e improvisação musical, pois que a isto se acrescenta o dado que torna a música terapêutica: a música feita em função das questões trazidas pelo paciente. Não se trata aqui de criar música, mesmo que com a melhor das qualidades, para o paciente. Este não é público para a expressão musical do terapeuta. A música criada segundo as premissas descritas neste trabalho, para se tornar verdadeiramente terapêutica, necessita de um ingrediente a mais: deve ser música feita pelo paciente, isto é, música cuja forma expressiva e significante traga à luz as questões do paciente e do momento de seu processo terapêutico; música que seja “realmente a forma de um determinado conteúdo da pessoa” 33. A própria pessoa que irá orientar estes exercícios para a formação de outras pessoas, de estudantes, deverá ter ela mesma desenvolvida a capacidade de gerar música com unidade orgânica e de perceber os mesmos aspectos na música já criada: isto é, ter desenvolvido sua musicalidade. Não se trata de mero conhecimento intelectual, mas de uma competência vivencial; está mais em linha com uma capacidade artística, do que com uma competência acadêmica. Na verdade, está perfeitamente em linha com uma capacidade tanto presente no verdadeiro artista quanto no verdadeiro terapeuta: a capacidade de perceber e atuar no campo das essências humanas. 20 O atributo capaz de fazer com que desenvolvamos nossa humanidade por meio da música e com a música, denominamos, em outro livro, de musicalidade 34 . Definimo-la como “a percepção de uma dimensão em que coisas, pessoas e condições se integram, daquela dimensão existencial na qual interagem dinamicamente”35. Quando concernido à música, é o atributo que nos habilita a lidar com a música no nível de sua natureza orgânica e das articulações de seu movimento. Valer-se da musicalidade presente em todo o ser humano para, a partir dela, desenvolver o homem e, em particular, desenvolver a habilidade, o caráter e a ética daqueles que atuam como musicoterapeutas é a proposição fundamental que orienta a criação da Oficina para o Desenvolvimento da Musicalidade. Estas oficinas poderão também servir àquelas pessoas que desejem desenvolver seus potenciais musicais e humanos, sem necessariamente atuar como terapeutas. Se a musicalidade é uma capacidade de todo ser humano, não há porque restringir seu desenvolvimento apenas a musicoterapeutas, embora estes sejam os que mais necessitem dela, como sua ferramenta principal. O trabalho de desenvolvimento musical para musicoterapeutas, deverá estar claro agora, não é apenas de informação sobre ou treino de técnicas de improvisação musical, mas é, no seu pleno sentido, um trabalho de formação humana por meio da música. Afinal, aquele que irá cuidar, desenvolver ou sanar outros seres humanos por meio da música, não deverá ter sido ele mesmo cuidado, desenvolvido e sanado, isto é, formado pela música? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIGEN, Kenneth. Paths of Development in Nordoff-Robbins Music Therapy. Gilsum, EUA: Barcelona Publisher, 1998. BRANDALISE, André. Musicoterapia Músico-Centrada: Linda 120 Sessões. São Paulo: Apontamentos, 2001. BRUSCIA, Kenneth. Definindo Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000, 2ª LANGER, Susanne. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva, 1980. PEREIRA DE QUEIROZ, Gregório . Aspectos da Musicalidade e da Música de Paul Nordoff e suas implicações na prática clínica musicoterapêutica. São Paulo: Apontamentos, 2003. 33 Queiroz, 2003, p. 66. Ibid., capítulo 1. 35 Ibid., p. 23. 34 21 ROBBINS, Carol & ROBBINS, Clive. Healing Heritage: Paul Nordoff Exploring the Tonal Language of Music. Gilsum, EUA: Barcelona Publisher, 1998. ZUCKERKANDL, Victor. Sound and Symbol: Music and the External World. Princeton, EUA: Princeton University Press, 1973. ZUCKERKANDL, Victor. Man the Musician. Princeton, EUA: Princeton University Press, 1976.