Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 ESTUDANTES DO PROEJA: TRAJETÓRIAS E VIVÊNCIAS André Boccasius Siqueira1 RESUMO: Neste texto sumarizo excerto de minha tese de doutorado, que tratou acerca das histórias contadas pelos estudantes do Ensino Médio, modalidade Educação de Jovens e Adultos, integrada ao Ensino Profissionalizante. A pesquisa desenvolveu-se nos anos de 2006 até 2010. Realizada junto ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, Campus Sapucaia do Sul/RS. Teve como objetivo pesquisar as histórias dos estudantes do PROEJA. Entrevistou-se nove estudantes voluntários. A entrevista foi gravada e semiestruturada. Apresenta-se o modo de ingresso dos estudantes, suas expectativas e tensões e cada um deles. Por fim um desabafo de uma das estudantes e as considerações finais. PALAVRAS-CHAVE: PROEJA; EJA; Trajetórias de vida. 1. Introdução Este trabalho acadêmico tem por finalidade apresentar algumas reminiscências de estudantes do Ensino médio profissionalizante, na modalidade de educação de jovens e adultos, no IF-Sul, Campus Sapucaia do Sul. Os estudantes foram convidados a participar da pesquisa já no primeiro dia após o ingresso no curso, que foi através de sorteio público. Neste texto apresento o que os estudantes expressaram acerca do sorteio a que foram submetidos a fim de ingressar no curso, bem como apresento brevemente cada um dos estudantes. No final socializo uma carta que recebi de uma das estudantes, após a formatura e ingresso no ensino superior. E teço minhas considerações acerca do PROEJA. 2. O Instituto A instituição já possuía um curso de ensino médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – EMA – que veio ser substituída pelo PROEJA. Hoje, então, oferece aos estudantes de PROEJA o Curso Técnico de Nível Médio em Processos Administrativos Forma Integrada à Modalidade de EJA, com duração de três anos. Os pré-requisitos de ingresso são ter concluído o ensino fundamental e ter 18 anos completos. A forma de ingresso da turma que se está pesquisando foi através de sorteio público. No dia seis de dezembro de 2006 os 149 inscritos para o ingresso em 2007 compareceram no horário combinado a fim de acompanhar o sorteio das 35 vagas. Os objetivos do curso do PROEJA, conforme o sitio oficial da instituição, são: - atender à demanda pela elevação da escolaridade com profissionalização para Jovens e Adultos; - aproximar campos educativos de EJA, Ensino Médio e educação Profissional; - sintonizar com as necessidades de Sapucaia do Sul e região a fim de oferecer educação profissional para jovens e adultos que tenham concluído o ensino fundamental (Disponível em: <http://www.cefetrs.edu.br/cursos.php>2. Acesso em: 18 ago. 2008). 1 Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado; Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL/Tubarão/SC. Endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected] 2 Tal página não existe mais, e também não está disponível no endereço eletrônico do IF-Sul, Sapucaia do Sul. Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 O Curso Técnico de Nível Médio em Processos Administrativos Forma Integrada Modalidade de EJA, oferecido pela instituição, teve como origem uma pesquisa de campo onde foram apontados pelos participantes como Mecânica e Informática em primeiros lugares e, este foi escolhido pela comissão de implantação do PROEJA tendo em vista o material disponível na escola, bem como o corpo docente. Para os primeiros havia a necessidade de verbas especiais para a construção de laboratórios de que a escola não dispunha no momento. Apesar da proposta final ter sido escolhida em terceiro lugar naquela pesquisa, a aceitabilidade dos estudantes foi bastante grande, visto o número de inscritos. No Capítulo 6 verifica-se que a escolha teve frutos positivos, conforme a opinião dos estudantes que contribuíram com essa pesquisa. Para encerrar esse breve anúncio do IF-Sul, Campus Sapucaia do Sul, o texto (que finaliza a apresentação da instituição) demonstra que a mesma tem a intenção de estar em consonância com a comunidade escolar e industrial: Dadas as características diferenciadas dos cursos oferecidos por este Instituto Federal, acreditamos poder colaborar no desenvolvimento industrial, bem como contribuir para a promoção do desenvolvimento social e a formação integral do educando, consoante com o lema: Educação para a vida. Profissionais para o mundo (Grifos no original).3 3. Implantação e Processo Seletivo do PROEJA “Tá, eu não ia perguntar: mas o que é PROEJA?”4 Depois de ter percorrido várias escolas em busca de vaga para o curso de Ensino Médio, Mafalda foi surpreendida quando entrou na lotação5 e encontrou uma colega que também trabalhava na mesma empresa que ela. Nas palavras da estudante: Foi quando eu estava na lotação, uma pessoa no ônibus, que é uma conhecida, já tinha me falado que ela… já tinha estudado aqui no EJA só que ela desistiu, no… […] EMA6. E que ela tinha desistido e que ela tinha começado a trabalhar lá e não sei o que… […] ela tinha filho e ficava pesado para ela. E eu disse: ‘Eu estou precisando de um lugar assim’, eu disse para ela. ‘Vai lá, conversa com eles que eles são super gente fina’. ‘Tudo bem’, eu desconfiei… [risos] (Mafalda) E de fato, a estudante procurou o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, Campus Sapucaia do Sul, a fim de receber maiores informações. Desconfiada mas decidida, tomou a atitude de buscar as informações que almejava. Nas palavras de Mafalda: Pensei: ‘Será?’ Eu procurei tanto, eu estou remando tanto para conseguir. ‘Ah! Vou lá, de repente…’. Aí acabei […] além dela me falar depois eu vi na lotação um anúncio […] do PROEJA, coisa e tal, falando e eu digo: ‘mas vou lá, vou lá’. Peguei um dia e decidi. Vim até a escola. E perguntei: ‘Ah!’ eu disse: ‘Ah!, gostaria de saber sobre o ensino(sic) de jovens e adultos, e disse…’ e daí estava me inscrevendo… Aí me inscrevi… Aí me falaram que era por sorteio. Eu digo: ‘nossa, eu nunca ganhei nada…[risos]’ (Mafalda). 3 Fonte: http://www.ifsul.edu.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=32&Itemid=9. A estudante Mafalda quando chegou na instituição não sabia do que se tratava o PROEJA. Procurou o IF SulSapucaia do Sul para completar seus estudos na Educação Básica, procurou o antigo EMA. 5 Denominação local ao transporte coletivo feito com microônibus que circula pela cidade. Possuem licença para circular apenas na cidade. 6 Ensino Médio para Adultos. 4 Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 Apesar de a estudante estar quase cinco anos sem estudar, encontrou uma instituição que a aceitasse. Segundo Mafalda, mesmo não sabendo de que se referia o PROEJA, assim mesmo se matriculou, pois havia a possibilidade de concluir a educação básica, que era sua meta. Nas palavras da estudante: Então eu cheguei aqui [no IF-Sul] e me falaram do PROEJA […] Daí eu disse, […] ta, PROEJA… daí eu perguntei: ‘é o ensino de jovem…’ para tirar a dúvida [risos] […] para tirar a minha dúvida, né? […] Tá, eu não ia perguntar: mas o que é PROEJA?’ [risos] […] para não ‘pagar mico’7, eu digo: ‘é educação de jovens e adultos’. ‘Tá, o que é que precisa?’ (Mafalda). Sem ter certeza do curso que estava se inscrevendo, procurou sanar suas dúvidas no momento de inscrição, mesmo assim, a estudante afirma que “Não me dei conta que era um curso técnico, que era um curso… muito bom assim. Me dei conta realmente quando eu já estava aqui dentro, sabe?”. Porque na hora da matrícula e no dia do sorteio houve uma breve palestra aos 35 estudantes sorteados sobre o curso, mas Mafalda afirma que ouviu, mas não apreendeu as informações. Nas palavras dela “na hora, na inscrição, no dia da palestra eles falaram… Mas até então ainda para mim não tinha caído a minha ficha que era um curso técnico…”. Somente depois de ter iniciado as atividades estudantis, no início do ano letivo, percebeu que se tratava de um curso de Ensino Médio integrado ao Ensino Técnico. E, foi melhor do que esperava. “Eu estava procurando… […] o ensino médio normal. […] Ou uma coisa assim, e encontrei um PROEJA com técnico… […] e aqui, nessa escola… […] que é uma referência…”. O fato do IF Sul-Rio-Grandense ser uma referência na cidade, também é lembrado por outros de seus colegas. 4.Ingresso por Sorteio “Agora eu vou agarrar isso […] com unhas e dentes, sabia? E é o que estou fazendo…”.8 Em conversas informais com os membros da comissão que implantou o PROEJA na instituição, esta teve a idéia de realizar sorteio para o ingresso dos primeiros estudantes desse programa. O objetivo dessa comissão foi de ser justo com todos os futuros estudantes, utilizando um método que não julgasse pelo conhecimento nenhum dos participantes no processo seletivo a fim de eliminar aqueles que estavam mais tempo fora da escola. O intuito foi de ser uma seleção que não medisse a quantidade de conhecimentos prévios dos estudantes e nem conteúdos memorizados. A proposta inicial foi bastante interessante, mobilizou várias pessoas da comunidade para a divulgação, para a seleção e para o sorteio. Nessa seção procuro apresentar, no primeiro momento, o malabarismo que os concorrentes à vaga tiveram que fazer em seus empregos, em suas rotinas diárias; num segundo momento, a reação dos participantes durante o processo que os permitiu ingressar no PROEJA, e por fim, questionamentos dos próprios estudantes acerca do sorteio e a defesa do novo modelo de seleção. Pode-se constatar que os estudantes entrevistados têm críticas ao processo seletivo empregado para a primeira turma e recomendam, por considerarem ser um processo de melhor elaboração, o modo da seleção da segunda turma. 7 Expressão usada popularmente quando a pessoa, numa situação embaraçosa, passa vexame ou vergonha. Expressão usada por Mafalda ao afirmar que esse curso fará até o final e que vai fazê-lo com máximo empenho e dedicação. 8 Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 “[…] tudo na vida tem o momento certo…”.9 O retorno aos estudos era um desejo de vários estudantes. Com a possibilidade de estudar perto de casa, no entanto, instigou que Guido realizasse sua inscrição para a seleção do PROEJA, a fim de direcionar sua vida futura a outras atividades. Segundo ele, a inscrição se deu “porque eu já queria, faz tempo, voltar a estudar”. E concluiu afirmando que tinha como meta alçar novos rumos em sua vida. Nas palavras dele: “como surgiu essa oportunidade e… como eu precisava fazer uma coisa para minha vida não ficar só no emprego […]”. Depois de ter feito a inscrição no processo seletivo, Maria Luiza não acreditou nas possibilidades de ser sorteada: “Sabe, na primeira, numa primeira instância, eu não estava nem aí para nada…”, porém, na medida em que a data tão esperada se aproximava a expectativa foi mudando, a adrenalina foi aumentando no organismo. Nos dias que antecederam ao sorteio, trabalhou antecipado a fim de ter o direito de participar do mesmo, uma vez que tal atividade não estava relacionada diretamente com as laborais ou as da empresa e a presença era obrigatória. Nas palavras da estudante se observa a tensão nervosa a que se submeteu: quando chega o dia do sorteio, vai chegando perto, vai chegando perto, vai dando aquela emoção. Depois no final das contas tu está te vendo, depois no final das contas tu estás pagando horas adiantado para poder ir lá. Foi o que eu fiz. Paguei hora adiantado para poder… […] eu trabalhei quatro horas antes para poder soltar… era sete horas [da noite] que tinha que estar aqui […]. Eu fiquei… eu trabalhei dois dias para poder […] aquele dia e mais um outro dia para poder…[…] Naquele dia eu trabalhei de manhã para poder soltar e chegar aqui… Que correria… […] Só eu mesmo…(Maria Luiza). Apesar de toda a expectativa, Maria Luiza afirma que não lembra de muitas situações no dia do sorteio, nas palavras da estudante: “[…] Mas, daí, graças a Deus… eu estava tão na neura naquele dia que ele me chamou e eu nem ouvi… [risos]”. O sorteio se deu por número de inscrição e o nome completo de cada estudante. Justificou do seguinte modo: “Sério. Sabe, assim, é. Ai que raiva, eu trabalhei o dia inteiro, eu cheguei em casa e tomei um banho, saí correndo e estou aqui esperando e nada… Sabe, […] tu começa… tricotando10 sozinha…”. Por fim, foi chamada e “aí fiquei lá no cantão do palco, do auditório, no lado esquerdo eu bem quieta, lá, tricotando comigo… mas que raiva, eu não consegui nada… mas tudo bem. Aí depois ele chamou o número 104 e… Aqui, eu sou, eu sou… [risos]”. “Aí eu com um papelzinho assim (neste momento da entrevista, a estudante pegou um pedaço de folha e gesticulou-a balançando sobre a cabeça, como diz que teria feito na data do sorteio) depois que fui me flagrar que era o meu número. Primeiro fiquei… estava [inaudível], nem ouvi direito…”. Ou seja, o estado emocional tomou conta da estudante. Em outro momento da entrevista, ela voltou ao assunto, dando uma outra versão ao momento do sorteio e, rindo, disse: “eu fui uma das quatro últimas bolachinhas do pacote11 […] Das 35 fui a 3112. […] Nossa […] quando chegou no 30 já comecei a resmungar…”. E 9 Palavras da estudante Maria Luiza defendendo a seleção por sorteio. Esta é outra expressão popular que quer dizer que a pessoa se envolve em seus pensamentos e praticamente não ouve e não vê o que está acontecendo em sua volta. Em outro momento, também, é usada essa expressão quando duas pessoas conversam animadamente sem se importar com quem está em seu entorno. 11 Fez alusão a uma propaganda de uma marca de biscoitos onde valoriza a última bolacha afirmando que essa é a melhor. 12 Em minhas anotações no diário de campo feitas no dia do sorteio, a estudante foi a 19° a ser sorteada. Nossas percepções podem mudar de acordo com o estado emocional do momento. 10 Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 afirmou que para o curso é preciso esforço pessoal. “Aí eu disse ai, não, puxa vida… tanto esforço para nada… daí… quando me chamaram… pelo menos, o porquê eu estar aqui até hoje, estou levando a sério e estou me empenhando e tomara que consiga seguir.” A oportunidade de cursar o PROEJA apresenta uma possibilidade de ascensão pessoal enquanto caminho para seguir diferente do que vinha tendo, e a expectativa de chegar a um lugar social diverso de onde está inserida. Durante frações de segundos passou pelo imaginário dos estudantes a sua vida e até onde pretendiam chegar com o agraciamento da vaga ou o que fazer se não fosse um dos sorteados. Com os ensinamentos do curso e com a pretensão de seguir para caminhos ainda não percorridos, mas seguros, poderiam galgar novos horizontes e proporcionar, através de seu trabalho na nova profissão, uma vida melhor para seus familiares e para si próprios. As reflexões a seguir dizem respeito ao processo seletivo propriamente dito e que foi acompanhado pelos estudantes e pela comunidade escolar. “Bah, hoje, assim, eu sei que… vale a pena, valeu a pena, e… com certeza, tem que dar o melhor de si, aproveitar ao máximo e…”.13 A seleção de um curso de PROEJA na cidade de Sapucaia do Sul mobilizou vários segmentos da comunidade. Havia a exposição de cartazes no transporte coletivo que circula na cidade, em escolas públicas e em prédios públicos. Quase 200 pessoas inscreveram-se, porém pouco menos de 150 pagaram a taxa de inscrição14. O sorteio das vagas para a primeira turma do PROEJA ocorreu no dia 4 de dezembro de 2006. Para o momento do sorteio, o candidato deveria estar presente ou enviar representante legal. Maria Luiza: É, não adiantava tu estar… tu ser sorteado, tu tinhas que estar… Entrevistador: Estar… Maria Luiza: Estar no sorteio… Entrevistador: Ou alguém te representando… Maria Luiza: Não, tinha que ser a pessoa. Entrevistador: Não? Maria Luiza: Só se for com procuração… Entrevistador: Ah! está… porque eu lembro, eu estava aqui no sorteio, naquele dia… Maria Luiza: Mas eu acho que tinha, tinha que estar sim, porque eu me lembro que… Entrevistador: É eu acho que fazia […] dava a presença… Maria Luiza: Eu não lembro disso não, André, tu me desculpa… Entrevistador: Acho que sim, porque assinava a presença ali na frente e depois… Maria Luiza: É assinava… […] Maria Luiza: Depois os sorteados ficaram por último… (Entrevista com a estudante Maria Luiza – novembro de 2008). Quase dois anos se passaram desde o dia do sorteio até quando foi realizada a entrevista com a estudante Maria Luiza, cujo excerto foi apresentado acima. Algumas situações podem ter ocorrido e a então candidata não ter se dado conta, uma vez que tal sorteio poderia ou não mudar a trajetória de vida futura. É provável que a estudante não recorde dos detalhes que observei e que os anotei em meu diário de campo. Eram duas 13 14 Estudante Adolpho confirmando que valeu a pena ter sido sorteado e iniciado o curso. Foi cobrado como taxa de inscrição um valor simbólico de R$5,00. Porém nem todos conseguiram tal recurso. Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 pessoas com perspectivas diferentes no mesmo tempo-espaço, com objetivos diferentes um e outra. Acerca da entrevista, a estudante lembrou que os candidatos sorteados permaneceram no auditório onde foram realizados os sorteios, para receber as boas-vindas do diretor da instituição, dos professores da comissão de implantação e do futuro coordenador do curso. Vale a pena lembrar que “a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK, 1992, p. 201). Ela pode, também, ser um “fenômeno coletivo e social” (Id.), por esse motivo, pode ser “submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes” (Id.). Ela contribui para o sentimento de identidade de um grupo, nesse caso, o de estudantes que ingressaram na primeira turma do PROEJA através de um sorteio público, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-RioGrandense, Campus Sapucaia do Sul. A memória, ainda, “permite-nos tanto lembrar quanto esquecer. A qualquer momento, nós podemos lembrar, esquecer, e reinventar certos aspectos de nosso passado pessoal e coletivo” (ERRANTE, 2000, p. 162). Desse modo conseguimos expressar melhor o passado, refletir sobre o presente. Assim, compartilhamos com o outro nossos passos, traçados com muito esforço, ou reinterpretados e resignificados durante a narração, pois “o que nós lembramos e contamos, e os modos pelos quais fazemos isso, são expressões de construções locais de pessoa e de voz” (Idem, p. 168). Algumas vezes as memórias são compartilhadas por comunidades que reinventam a história. As “experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram formas de compreensão” (THOMSON, 1997, p. 57), porque a relação entre o presente e o passado é muito tênue. [...] ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas do nosso passado, trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades (Id.). Depois do sorteio, a estudante Maria Luiza relata que estava eufórica e queria chegar em casa e dividir a feliz notícia com seus familiares: eu estava muito… ufff…, oba-oba, não lembro de ninguém… […] Só via eu mesma [risos] […] já imaginaste que lindo, só olhar e só… ver tu mesma, né? Ai eu cheguei em casa e eu estava em estado de graça… Mas eu só queria abraçar todo mundo… [e gritar:] êh êh êhêhêh… [risos] (Maria Luiza). Segundo a estudante, aquela noite passou tão devagar, pois, no dia seguinte, queria dividir sua alegria, também, com seus colegas de trabalho: Eu cheguei no outro dia ao serviço… [as colegas perguntaram:] ‘E aí conseguiste?’ [Maria Luiza respondeu:] ‘Consegui… hehehehe…’ E todo mundo queria sabe porque eu estava gritando… o que é que foi, o que ela ganhou, o que ela ganhou, será que sortearam… ai que bom… Mesmo colocando em jogo todo o futuro seu e de sua família, vários estudantes não acreditavam que pudessem ser sorteados. Assim mesmo relatam que tomaram todas as medidas necessárias para a participação do sorteio, ou seja, a inscrição no prazo estipulado pela instituição. Foi o que aconteceu com a candidata sorteada, Mafalda: Aquela coisa que a gente nunca acreditar na gente… quando é por sorteio, a gente diz: ‘ih…’ [risos] […] aí vim, mas eu vim com fé, assim, no dia do sorteio e coisa e tal. [Antes,] trouxe foto, trouxe tudo… aí me inscrevi […], vim aqui no dia do sorteio. Nossa, eu estava muito nervosa… Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 Apesar de não acreditar que pudessem ser sorteados, alguns dos estudantes desconsideravam, também, o próprio sucesso, pois se compreendiam “sem sorte” para ingressar no PROEJA. Vários entrevistados revelaram surpresa ao serem sorteados, uma vez que o contrário, no entender de alguns, mostram um sentimento de derrota ou um acúmulo de sucessivas decepções, como, por exemplo, na expressão da estudante Mafalda: “daí eu, bah, é aquela…, aquele medo de não ser sorteada e sair decepcionada de novo, sabe?”. O número de participantes assustou-a, mas, “eram quase 200 […]. Eu acho que… e eu fui […] a 18a. […] a ser chamada”. A sua estratégia para tentar não ficar nervosa era contar o número de sorteados. A reação, ao ser sorteada, foi ímpar, mas na mesma plenitude dos demais colegas. Descreve-a do seguinte modo: “Nossa, eu não sabia se estava gelada, se eu estava quente, se eu estava... [risos]. Eu sei que eu fiquei muito, muito contente… Eu digo: ‘Agora eu vou agarrar isso com unhas e dentes15’, sabia?”. E completa afirmando que “é o que eu estou fazendo…”. Segundo Adolpho, ele ficou ao mesmo tempo entusiasmado e surpreso quando foi sorteado: […] entusiasmo e surpreso, porque… Como eu te disse: estávamos eu, minha esposa e a Edi Julieta até…[…] Porque… a Edi Julieta estava até com um problema na perna, tinha feito uma cirurgia, um negócio assim. E a gente foi na casa dela e buscou-a. Então ficamos eu, minha esposa e ela [sentados]… e acabou por… e eu até brincando: ‘isso aqui eu não vou ganhar, nunca ganho nada […]. A única coisa que o cara ganha é conta a pagar, se ganhar alguma coisa’, fui o segundo. O segundo a ser sorteado fui eu, então, foi surpresa e claro, bah, fiquei tri feliz e… mas foi mais uma euforia, mas foi mais até surpresa […] ganhar qualquer coisa tu fica feliz, ganhar uma caneta, ganhar uma… que legal… […] Um curso… um curso e tal… mas foi muito bom. Bah, hoje eu sei que… vale a pena… com certeza, tem que dar o melhor de si, aproveitar ao máximo… (Adolpho). A reação de Edi Julieta ao ser sorteada foi relembrada durante a entrevista. A estudante teve uma reação bastante espontânea, pois se diz ser expansiva em seu modo de ser e fizeram, junto com o já sorteado estudante Adolpho e sua esposa uma “algazarra”. Nas palavras da estudante Tu só imagina… tu tem uma noção de como eu sou… tu só imagina o que eu fiz, né? […] Ele foi o segundo. Ele dizia: eu não ganho nada em sorteio, não tem nem… e aí chegou no dia ele foi o segundo e daí eu dizia: minha nossa… e eu fui a vigésima sétima… eu não acreditei… eu já sou esparrenta… fiz aquela algazarra… Aí, eu nem acredito… (Edi Julieta). Em minha compreensão, para os 35 pré-candidatos sorteados o momento foi ímpar, de plenitude, de felicidade, de alegria, enfim, de sentimentos só positivos. Aos que não foram sorteados não houve nem a possibilidade de entrar com recursos contra o processo, uma vez que estava descrito no edital e ocorreu de modo transparente. Participei, como observador, de todo o processo cuja transparência ficou evidente. 15 “Agarrar com unhas e dentes” é uma expressão popular usada com sentido de não perder algo que conseguiu, nesse caso, não perder a oportunidade, dedicar-se ao máximo, seguir em frente e concluir o curso que estava se candidatando e que fora, na ocasião, sorteada para integrar a primeira turma da instituição na modalidade de PROEJA. Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 5. Escolha dos Sujeitos de Pesquisa Após as devidas autorizações do coordenador do curso e do instituto, procurei os estudantes em sala de aula, expus os objetivos da pesquisa e solicitei voluntário. Prontamente dez candidataram-se. No desenvolver das atividades e, uma desistiu de expor sua opinião, isto é, de participar das entrevistas individuais. Abaixo apresento cada sujeito. Por questões éticas substituí seus nomes por outros a fim de não serem identificados facilmente. Apresento-os em ordem alfabética: Adolpho: É natural de Seberi e atualmente reside em Sapucaia do Sul. Quando o entrevistado ainda era criança, os nove membros da família migraram com o intuito de conseguir melhores condições de vida, para a cidade de Novo Hamburgo. Hoje ele tem três filhos com a primeira esposa e com a segunda nenhum. Teve uma infância difícil e humilde, pois seus pais eram pobres. Recebeu pouco incentivo para os estudos. Ingressou cedo no mercado de trabalho, deixando, em segundo plano, os estudos. Conseguiu um bom emprego devido a seus novos conhecimentos adquiridos ao longo do curso no PROEJA. É uma pessoa bastante comunicativa. Participou da primeira e da segunda entrevistas. Deolina: É casada e não tem filhos. Residente em Canoas, mas é natural de Sapucaia do Sul. Gosta de trabalhar porque está sempre em contato com pessoas. Seu primeiro emprego foi na empresa do pai. É uma pessoa líder. Quando estudante do ensino fundamental era “sapeca e arteira” e, nas séries finais, sempre foi considerada a líder (monitora, representante) da turma. Ao terminar o ensino fundamental, fez seleção nessa instituição, mas não permaneceu estudando. Quando parou de estudar noivou. Retornou no PROEJA para finalizar o ensino médio. Nos últimos meses do segundo ano passou a dedicar-se exclusivamente aos estudos, com o incentivo do esposo e do pai. Pensa em cursar o ensino superior, talvez Biologia. Participou da primeira e da segunda entrevistas. Edi Julieta: A estudante é casada e tem um filho do qual se orgulha bastante. Criada pela mãe, teve uma infância difícil, quando tinha 11 anos o pai apareceu, mas permanece até hoje sem vínculos com ele. Começou a trabalhar com oito anos de idade. Em se tratando de vida escolar, não teve muito incentivo da família para estudar. Faz amizades facilmente por ser bastante comunicativa. É natural de Sapucaia do Sul. Seu sonho, desde a infância, é cursar o ensino superior. Estava muito distante. Tem se preparado para tal. Na sala de aula se destaca dos demais colegas por ser uma das líderes. Foi escolhida como representante da turma em um encontro de professores e estudantes de PROEJA, no ano de 2008. Sente-se realizada por estar cursando o PROEJA. Participou da primeira (2006) e da segunda entrevista (2008). Guido: É natural de Porto Alegre e hoje reside em Sapucaia do Sul. É solteiro e mora com a mãe. Quando criança faltava a escola para jogar futebol com os amigos. Cedo teve que trabalhar para ajudar no sustento da família. Adapta-se muito bem a novos grupos. Hoje se dedica bastante ao trabalho, deixando, em alguns momentos a escola em segundo plano. Pretende especializar-se em plástico e no futuro ser professor, ensinar o quanto sabe sobre o assunto. Participou somente da segunda entrevista, em 2008. Mafalda: É natural de Sapucaia do Sul e mora na mesma cidade que nasceu. Era uma aluna bastante tímida e fazia poucos amigos devido a sua introspecção. Era apegada a sua mãe. Quando estava na quinta série ingressou no mercado de trabalho e abandonou a escola, retornando com muito esforço pessoal, depois de alguns anos. Quase não recebia incentivos dos pais para estudar porque possuía muitas irmãs. Trabalhou muitos anos no setor de Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 produção de uma empresa em Sapucaia do Sul e admirava os colegas da área de administração. Achava-os inteligentes: “Pareciam filosofar”. Hoje é uma trabalhadora da área de administração. Participou somente da segunda entrevista. Maria Cândida: É solteira (noiva) e mora com os pais. Até o final do segundo ano morava defronte da escola, no ano seguinte mudou-se para São Leopoldo. É natural de Sapucaia do Sul. Quando terminou a educação básica ingressou no mercado de trabalho e iniciou dois cursos superiores, mas não os concluiu. Foi sorteada como quarta suplente. Ao realizar a matrícula para o segundo curso superior, foi comunicada de que abrira a vaga par o PROEJA. Não titubeou, sempre quis fazer o curso técnico no IF. Era bastante envergonhada, mas está fazendo esforço para desinibição. Trabalha como recepcionista, por esse motivo está perdendo a vergonha. Considera-se líder, com fortes opiniões e perfeccionista. Ao concluir o PROEJA, voltará aos estudos de língua estrangeira, juntamente com o noivo. Participou somente da segunda entrevista (em 2008). Maria Luiza: É separada judicialmente, tem um filho e mora com a família em Sapucaia do Sul. É natural de Esteio. Não tinha muita persistência para estudar, pois quando encontrava dificuldades não insistia. Não teve muitos incentivos familiares. Entretanto, sempre gostou muito de aprender. Incentiva o filho e o sobrinho para estudarem no IF por considerar uma instituição escolar de qualidade. Antes da seleção no PROEJA fazia cinco anos que não estudava. Iniciou no mercado de trabalho para adquirir suas próprias roupas. Afirma que sempre quis trabalhar no escritório de uma empresa. Está realizando um sonho. Participou somente da segunda entrevista, em 2008. Na primeira entrevista foi voluntária, mas não conseguimos conciliar nossos horários. Natália: É casada e não tem filhos. É residente de Sapucaia do Sul e natural de Recife, Pernambuco. Trabalha confeccionando doces e salgados e os vende nos pontos comerciais da cidade e aos colegas da escola. Já possui a educação básica completa, mas queria realizar um curso de qualidade, então procurou o PROEJA. Considerava-se uma criança que aprontava na escola, mas não desrespeitava os professores. Cursou os cursos técnicos em contabilidade, em enfermagem em Recife e vários cursos profissionalizantes em Brasília. Apesar de apontar lacunas no atual curso, considera-o importante para sua inserção na área de trabalho. Quer colocar uma empresa formal para administrar. Trabalha desde os onze anos de idade. Participou somente da segunda entrevista, em março de 2009. Waldemar: É natural de Santo Antônio das Missões e reside em Sapucaia do Sul. É casado e tem um casal de filhos. Trabalha na mesma empresa desde que migrou para a cidade. Representa ser tímido e introvertido, mas se expressa muito bem, dizendo claramente o que quer e com segurança. Saiu de casa e da escola muito jovem para trabalhar. Nos primeiros anos como aluno apresentou dificuldades de relacionamento com os colegas devido a sua introspecção. Hoje exerce cargo de liderança na empresa onde trabalha. Com o curso do PROEJA, elevou sua auto-estima e aumentaram as possibilidades de ascensão profissional. Participou somente da segunda entrevista. Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 6. Último Contato Edi Julieta inspirou-se e enviou o seguinte texto, após sua formatura e no seu primeiro ato enquanto bolsista de Iniciação Científica do Curso de Pedagogia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, no Seminário da Pós-Graduação em Educação, em março de 2010. O desafio da transformação Para todos aqueles que se envolvem com a educação na Modalidade PROEJA, seja esses docentes ou discentes, a maior perspectiva é o resultado da transformação. Os professores com suas formações e crenças na construção da educação profissional, da concepção de formação integral do cidadão que combine práticas e fundamentos com políticas de inclusão social. O aluno por sua vez, com expectativas de um aprendizado profissional e social, conseguindo uma oportunidade no mercado de trabalho. Uma moeda de lados, mas com um único objetivo transformar este país dentro de uma perspectiva de desenvolvimento e justiça social. A crença no ser humano, a esperança na educação. Novos desafios são assumidos, com propostas diferenciadas e papel estratégico na formação do aluno PROEJA. Esta educação busca resgatar e reinserir no sistema escolar jovens e adultos, entretanto vai além, é mais que um projeto educacional, ele é um instrumento de resgate da cidadania, de uma grande parcela de excluídos do sistema escolar tradicional. (Edi Julieta). 7. Considerações Finais O PROEJA vem se consolidando através dos tempos, isto é, a partir de seu surgimento no ano de 2005 e expandido às instituições públicas e privadas do país. Contribui para que estudantes de todo o Brasil consigam se realizar enquanto cidadãos, uma vez que completam o ensino médio em instituições que dificilmente conseguiriam estudar, dado as dificuldades de ingresso e permanência destes institutos. Apresentei as histórias de nove estudantes do PROEJA, mas que poderiam ser histórias de qualquer brasileiro que não conseguiu seguir seus estudos na época considerada regular. Pessoas com histórias de ingresso precoce no Mundo do Trabalho, pessoas com pouca adaptação ao sistema escolar, na época em que deveriam estar estudando, contudo, estavam trabalhando também para contribuir ao sustento da família, geralmente numerosa. Enfim, trouxe as histórias de pessoas comuns que se dedicaram com o máximo de suas forças para concluir o ensino médio, algumas conseguindo e outras ainda não. Há muito que se desenvolver na educação àqueles que não concluíram sua escolarização básica, contudo, este programa é uma fagulha que se estende para todo o território nacional. Acredito que, com iniciativas como a do PROEJA, outros cidadãos transformem-se em pessoas muito mais felizes, como o exemplo de Edi Julieta e seus colegas. Anais do III Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 28 a 31 de março de 2011 Referências ERRANTE, A. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias orais e modos de lembrar e contar. História da Educação – ASPHE/FaE/UFPel. n. 8, Set. 2000. Pelotas: Editora da UFPel. p. 141-174. SIQUEIRA, A. B. Alunos do PROEJA: Histórias de Estudantes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, Campus Sapucaia do Sul. 2010. 301 f. Tese (Doutorado)-Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2010, São Leopoldo. THOMSON, A. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. Projeto História, n. 15, p. 51-71, Abr. 1997.