OS TRÊS EFES
A noite caia na cidade. Naquele bairro mal afamado, cujas convulsões faziam as
delícias jornalísticas e os directos dos noticiários televisivos, as pessoas regressavam do seu
dia de labuta. Nas ruas mal iluminadas, passavam de olhos baixos, sem fitar directamente
os elementos dos gangs que, durante todo o dia, estirados ao sol, tinham realizado negócios
de legalidade dúbia e planeado hábeis esquemas para concretizarem nessa longa noite.
Agora, observavam os honestos trabalhadores que retornavam a casa, fazendo comentários
brejeiros, entre si, sobre os mesmos. Quais cigarras observando o carreiro de formigas.
Filomena era uma das obreiras deste formigueiro. Vinha estafada. Passara um dia inteiro a
fazer limpezas nas cinco patroas para onde trabalhava e sabia que ainda tinha a lida da sua
própria casa para fazer. Ao chegar ao quarteirão onde vivia, suspirou, olhando a entrada do
prédio. Porta arrancada e graffiti por todo o lado. E um interminável labirinto pejado de
imundos degraus, até ao quinto andar de sua casa. Sacrifício diário, pois o elevador há
muito deixara de funcionar. Os cento e cinquenta degraus e os seus cinquenta anos não
contribuíam para a sua já debilitada saúde.
- Valha-me a Senhora de Fátima! – Suspirava, enquanto, a muito custo, subia os
degraus.
Entrou em casa, cruzando-se com o filho que ia a sair.
- Olá, cota. Tudo numa nice?! Até logo.
- Isso é forma de falares comigo? E, para onde vais a esta hora?
- Vou ter co’ people!
- Fábio, tens de jantar primeiro!
- Não me chates, velha! – Rosnou entredentes, ameaçador, do alto dos seus
dezasseis anos, empurrando a mãe.
Filomena ficou a olhar para o filho enquanto este se afastava, atirando com a porta.
Fábio, o seu querido filho, estava irreconhecível: de bom miúdo e estudioso, em poucos
meses, mudara por completo. Tinha ingressado num dos bandos do bairro. Deixara de
respeitar a mãe. Ignorava o pai. Envergava roupas de marca, compradas sabe-se lá com que
dinheiro – pois a mãe e o pai não o tinham para lhe dar! – Deixara a escola no 9º ano e
passava o dia e a noite em más companhias.
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Abanando a cabeça, Filomena entrou em casa. Foi para a cozinha e atirou para a
mesa os sacos com as parcas compras – tudo produtos de marca branca que comprara na
grande superfície da cidade – e começou a preparar o jantar. O marido chegaria dali a meia
hora e teria de ter a janta em andamento. Cortou em bifes o naco de carne dura e nervosa
que comprara, em promoção, e bateu-os muito bem para amaciá-los. Depois, temperou-os e
colocou-os a fritar. Enquanto isso, uma mão cheia de batatas – que uma das suas patroas
lhe ofertara – cozia no bico de trás do fogão.
Bateram as oito da noite. Terminava a preparação do jantar, quando o noticiário
começou, mostrando confrontos e tumultos num bairro vizinho. Pelo menos, hoje não seria
o seu bairro a abrir as notícias nos canais nacionais.
Ouviram-se passos pesados que subiam as escadas e que se detiveram à sua porta.
Soaram fortes pancadas na porta. Filomena sobressaltou-se e estremeceu. Seria a polícia
com o Fábio preso? Como no mês anterior? Estava sempre em sobressalto. Arrastou-se até à
porta. Era o marido.
- Então, homem, que grande susto me pregaste! – Exclamou, com uma expressão
mista de alívio e de preocupação: alívio por não serem as autoridades e apreensão pelo
deplorável estado que já adivinhava no seu Francisco.
- Susstoo… Porquê, Filó?! – Respondeu o marido de forma entaramelada, enquanto
o seu olhar se mostrava perdido nos vapores do álcool. – Então, não encontrava a porcaria
da… da… chaaaveeee…
Perante o olhar desaprovador da mulher, Francisco entrou em casa a cambalear.
Filomena suspirou, fechando a porta. O estado do marido não prenunciava um bom
desfecho de dia.
Rapidamente, pôs a mesa e, enquanto viam o noticiário, serviu o jantar: Carne com
batatas, recheada de cheias, desalojados, guerras e confrontos. O duro Francisco, devido
aos efeitos do álcool, mostrava-se comovido pelas calamitosas notícias, começou a chorar
copiosamente.
- Ah! Filó… Coitada daquela mulher, maltratada pelo … pelo marido… E as crianças
desalojadas por aquela cheiaaa!... E a velhota deitada à ruuua! Coitada, ao menos… ao
menos… deixem-lhe a pouca dignidade da senhora… - Bebeu um grande copo de tinto,
para afogar a mágoa que sentia.
- Então, homem, que é lá isso? – Questionou a esposa atarantada com a verbosidade
do marido – Deixa-te de coisas, que problemas temos nós de sobra!
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Não obteve qualquer resposta do marido, somente num olhar pouco amigável. O
aviso foi suficiente para fazer calar a mulher.
Filomena acabou de jantar, perante o olhar sempre carrancudo do marido. Fingiu
não reparar. Talvez se mantivesse assim… Se não piorasse… Só pedia à senhora de Fátima
que não piorasse… Pelo sim, pelo não, acendeu a velinha que estava junto à piedosa
imagem da senhora e murmurou uma curta prece.
Levantou a mesa em silêncio, enquanto o marido via o jogo de futebol que se
iniciava na televisão pública. Era um derby lisboeta, entre o Sporting e o Benfica.
Olhou para a enorme águia que, junto às garras, tinha uma faixa com os dizeres “E
Pluribus Unum” e que encimava o emblema do Sport Lisboa e Benfica. O marido era um
ferrenho adepto desse clube. Aquela escultura fora-lhe oferecida pelo padrinho de
casamento, outro “doente da bola”, pensou, encolhendo os ombros. Dirigiu uma prece à
imponente ave de rapina e outra à senhora de sua devoção: os encarnados tinham de sair
vencedores do derby! Pela sua saúde!
Enquanto lavava a louça, Filomena matutava noutras situações similares do passado.
Sempre que havia jogo de futebol com o Benfica, o marido estava a assistir: fosse no
estádio, em casa ou no café. Não perdia um único desafio do seu clube. Tudo muito bem
regado com cerveja e vinho! Se o clube ganhava, era a festa. E, para celebrar, bebia mais
umas bejecas e mais uns copos. Já muito tocado pelo álcool, tentava a sua sorte com a
mulher. Tudo ritmado com uns sopapos que lhe dava, para tornar a coisa mais excitante e
para vencer a sua inicial resistência. Se, por acaso, o clube perdia o jogo, Francisco
enfrascava-se em cerveja, até quase cair para o lado. Depois, descarregava em Filó a raiva e
a frustração acumuladas durante o jogo, durante o árduo dia, durante a inóspita vida. Nos
dias seguintes ao dia do malfadado jogo, Filomena ostentava no seu corpo as inúmeras
nódoas negras com que o marido a brindara. Quando lhe perguntavam o que tinha
acontecido, dizia que tinha caído nas escadas, que tropeçara nos detritos espalhados pelos
degraus. A sua vizinha e amiga Maria já tentara falar com ela sobre o assunto.
- Filomena, isso não foi uma queda. Foi agressão do teu marido! - Dissera-lhe várias
vezes. – Não te podes deixar bater assim! O teu filho leva uma vida de marginal e o teu
marido é um brutamontes! Tens de lutar pela tua dignidade! Há instituições que te podem
ajudar… Faz queixa… Pede ajuda… Refugia-te…
- Maria, - interrompia Filomena, suspirando – tens razão, mas ainda há esperança
para o meu filho, não o posso abandonar! E, quanto ao meu homem, ele não é má pessoa!
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Às vezes bate-me de mais. É da bebida! E de ser tão ferrenho benfiquista! Mas, depois,
pede-me desculpa e procura-me para fazer amor comigo… Coitado…
- Filomena – retorquira a amiga – o meu marido também é um benfiquista ferrenho e
não me chega a casa embriagado, nem me bate! E também vivemos neste bairro
degradado! Por favor, Filomena… és uma mulher trabalhadora, lutadora e digna! Liberta-te
destas amarras!
Um forte grito do marido desviou-lhe os pensamentos e fê-la regressar ao presente: a
equipa idolatrada por Francisco acabara de fazer um golo, na sequência de um penalty.
Menos mal, pensou Filomena, pelo menos os encarnados estavam em vantagem no
marcador. Talvez nessa noite se safasse de uma tareia do seu Francisco e ficasse só por
uma tentativa dele a forçá-la a ter relações sexuais. Um arrepio percorreu-lhe a coluna
vertebral. Uma náusea instalou-se no seu estômago. Sentou-se pesadamente no banco da
cozinha e bebericou um pouco de água. Respirou fundo e procurou afastar o pânico e o
pejo que a invadiam. Ligou o velho leitor de cassetes, com uma cassete de fados. Regulou
o volume para um nível baixo, de modo a não incomodar o marido. Começou por cantarolar
um fado:
- Foi por vontade de Deus / que eu vivo nesta ansiedade / que todos os ais são meus
/ que toda a minha saudade…
E, depois, outro e outro… Era das poucas coisas que podia fazer sem receber
críticas do seu Francisco. Enquanto cantarolava, de volta da caixa de costura, passajava as
meias do marido.
Pensava nos maus caminhos do filho e comentava com os seus botões:
- Este meu Fábio, é o meu fado… é o meu fado!
Foi interrompida pela entrada intempestiva do marido na cozinha.
- Alegra-te mulher! Deixa as tristezas do fado, porque o Benfica ganhou! Deu uma
abada aos lagartos! BENFICA!!! BENFICA!!!
Filomena agradeceu em silêncio, pois as suas preces tinham sido ouvidas. Não
sabia bem se pela sua santa, se pela imponente águia. Mas, também isso agora não era
relevante: tinha-se safado da tareia. Agora, teria de tentar evitar o avanço sexual do marido
sobre si…
- Parabéns! – disse-lhe, simulando um sorriso prazenteiro. Deu-lhe uma palmadinha
amigável no ombro. - Então, é altura de te ires deitar, homem. Deves estar muito cansado…
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- Nem penses mulher! Vamos é celebrar os dois! – Disse, puxando para si a mulher,
tentando acariciá-la. Violentando-a.
Em vão, Filomena tentou resistir…
Na cozinha, o leitor de cassetes desbobinava outro fado, que Filomena já não
escutava:
- Povo que lavas no rio / E talhas com o teu machado / As tábuas do meu caixão. /
Pode haver quem te defenda / Quem compre o teu chão sagrado / Mas a tua vida não.
Ano de 2009. Bairro problemático da grande cidade. Uma família. Três pessoas.
Três Efes: Filomena, Francisco e Fábio. A dignidade individual não faz parte dos seus
valores. À semelhança do passado, do século passado, os seus valores, as suas esperanças,
as suas vidas reduzem-se aos populares Três Efes: Fátima, Futebol e Fado.
FIM
João Manuel da Silva Rogaciano
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OS TRÊS EFES A noite caia na cidade. Naquele bairro mal