A Garota dos Pés de Vidro
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A Garota
dos
Pés de Vidro
Ali Shaw
Tradução
Santiago Nazarian
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© Ali Shaw, 2009
Todos os direitos reservados.
Tradução para a língua portuguesa: copyright © 2010, Texto Editores Ltda.
Título original: The girl with glass feet
Diretor editorial: Pascoal Soto
Editora: Mariana Rolier
Produção editorial: Suria Scapin
Preparação de texto: Tulio Kawata
Revisão: Luiz Carlos Cardoso
Diagramação: S4 Editorial
Adaptação de capa: S4 Editorial
Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP-Brasil)
Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.
S534
Shaw, Ali, 1982A garota dos pés de vidro / Ali Shaw ; tradução: Santiago
Nazarian. – São Paulo : Leya, 2010.
288 p.:
Tradução de: The girl with glass feet
ISBN 978-85-62936-42-5
1. Literatura inglesa. 2. Ficção inglesa. 3. Romance. I. Título.
10-0031
CDD 823
Texto Editores Ltda.
[Uma editora do grupo Leya]
Av. Angélica, 2163 – Conj. 175/178
01227-200 – Santa Cecília – São Paulo – SP
www.leya.com
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AGRADECIMENTOS
Sou grato a toda a boa gente que me ajudou durante o
percurso para escrever A garota dos pés de vidro. Devo
agradecer a vários amigos que leram e releram rascunhos
e deram sua opinião sincera, ou simplesmente entenderam
por que eu não saía para brincar em dias de sol. Obrigado
também a Jan e Malcolm Shaw por seu querido apoio, e a
todos em Lancaster por viver com a ideia em seu estágio
mais inicial, e a Ed Jasper por ficar com ela.
Estou especialmente em dívida com duas pessoas que
entenderam o livro instintivamente, e então trabalharam
duro para vê-lo publicado: Sue Armstrong, por permanecer
dedicada à ideia, e Sarah Castleton, por seu perfeito equilíbrio de entusiasmo e sábia edição.
Finalmente, amor infinito e obrigado a Iona, que escutou
cada palavra infinitas vezes. Escrever é como mergulhar –
obrigado por estar lá quando eu voltei à tona.
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Naquele inverno, houve relatos nos jornais de um iceberg do
tamanho de um galeão flutuando num ranger majestoso pelos
penhascos de St. Hauda’s Land, de um porco que fungava levando
andarilhos perdidos dos morros para o precipício abaixo de Lomdendol Tor, de um espantado ornitologista contando cinco corvos
albinos numa revoada de duzentos. Mas Midas Crook não lia os
jornais, apenas olhava as fotografias.
Naquele inverno, Midas via fotos por todos os cantos. Elas
assombravam os bosques e o espreitavam no final de ruas desertas.
Era tamanha a quantidade que, quando ele se arrumava para capturar uma, a segunda cruzava sua mira e, seguindo-a, ele avistava
uma terceira.
Um dia, na metade de dezembro, ele buscava fotos numa parte
dos bosques perto de Ettinsford. Era uma tarde em que escurecia
com os raios finais de luz passando entre as árvores, dançando pela
terra como holofotes à busca de algo. Ele deixou a trilha para seguir
um desses raios. Gravetos estalavam sob seus sapatos. Um pássaro
guinchando saltitou para longe sobre as folhas. Os galhos balançavam e estalavam uns contra os outros sobre sua cabeça, cortando
através dos raios. Ele manteve a busca, seguindo por uma trilha de
sombras.
Seu pai certa vez lhe contou uma lenda: viajantes solitários
em trilhas tomadas pela vegetação percebiam um brilho de formas
humanas como um vulto entre as árvores ou nadando num lago
parado. E algo, algum impulso vindo do âmago, iria fazer os viaX
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jantes sair da trilha em busca daquilo, para o labirinto das árvores
ou as águas profundas. Quando o alcançavam, ele tomava forma.
Às vezes formava uma flor com pétalas fluorescentes. Às vezes formava um pássaro de faíscas cujas penas do rabo soltavam brasas.
Às vezes tomava a forma de uma pessoa e eles achavam que viam,
sob uma nuvem como um véu sobre o rosto, os traços de um ente
querido havia muito falecido. A luz sempre ficava cada vez mais
brilhante até que – num flash – os viajantes eram cegados. O pai
de Midas não precisou se deter muito no que acontecia com eles
depois disso, perdidos e sozinhos no frio do bosque.
Não fazia sentido, claro, como tudo o que seu pai dizia. Mas a
luz era mágica, tornando viva a terra insípida. Um feixe dela contra
um tronco de árvore, clareando o amarelo rachado da casca. Seduzido, Midas se aproximou e a capturou com a câmera antes que
voltasse ao solo. Uma rápida olhada em sua tela prometia uma bela
foto, mas ele estava ávido por mais. Outro feixe acendeu arbustos
em frente. Dava às amoras um vermelho incisivo, as folhas venenosamente verdes. Ele fotografou, e se apressou para outro feixe que
corria através da vegetação rasteira. Seguia em seu próprio ritmo,
enquanto Midas tropeçava em raízes e perfurava os tornozelos em
ramos de espinhos. Ele seguiu até as margens do bosque e continuou em campo aberto, onde o cerrado se tornava uma descida para
longe, em direção a um rio. Corvos giravam no céu em seus trapos
oleosos. Uma água não visível borbulhava por perto, formando uma
poça negra no fundo do declive. Sobre a poça, o raio de luz repousava como uma fita dourada. Midas desceu o barranco para pegá-lo, com os pés derrapando no solo úmido e o ar frio penetrando em
seus pulmões enquanto cambaleava pela última distância, descendo
à margem. Uma camada de gelo rendado cobria a água e impedia
reflexos, então tudo o que ele podia ver da poça era a escuridão.
O raio havia sumido. As nuvens se aglutinaram rápido demais. Ele
estava ofegante, segurando a cabeça entre mãos e joelhos. Seu hálito
perdurava no ar.
“Tudo bem com você?”
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Ele se virou e sentiu o pé deslizar na terra. Caiu à frente e cambaleou novamente, com mãos sujas e manchas frias de lama em seus
joelhos. Uma garota estava sentada, tranquila, numa rocha lisa. Por
algum motivo, ele não a havia visto. Ela parecia ter saído de um
filme dos anos cinquenta. A pele clara e o cabelo loiro eram tão
pálidos que pareciam monocromáticos. Seu longo casaco estava
amarrado na cintura por um cinto de tecido. Ela era provavelmente
alguns anos mais nova do que ele, com vinte e poucos e usava um
chapéu branco combinando com as luvas.
“Desculpe se te assustei”, ela disse.
As íris dos olhos dela eram de um cinza-titânio, seu traço mais
marcante. Seus lábios não tinham nada de especial e suas bochechas
eram normais. Mas seus olhos... Ele percebeu que os estava encarando e rapidamente afastou o olhar.
Virou-se para a água à procura da luz. Do outro lado havia um
campo marcado por uma cerca com arame farpado. Um felpudo carneiro cinza estava lá, com chifres como caracóis, olhando para o
espaço. Depois disso, o bosque começava novamente, sem sinal de
uma casa de fazenda no campo do carneiro. Não havia sinal algum
da luz.
“Tem certeza de que está tudo bem? Perdeu alguma coisa?”
“Luz.”
Ele se virou de volta para a garota, querendo saber se ela
poderia ter visto. Estava na rocha a seu lado, irradiando através de
um buraco nas nuvens.
“Psiu!” Ele gastou meio segundo mirando, então tirou a foto.
“O que está fazendo?”
Midas examinou a imagem na tela da câmera. Uma boa foto,
pode-se dizer. Metade da pedra da menina estava manchada de
uma sombra ramificada de árvore, a outra metade tornada uma
porção de âmbar brilhante. Mas espere... Examinando melhor, ele
havia estragado a composição, cortado a ponta das suas botas. Ele
se aproximou da tela. Não fora à toa que cometera o erro; os pés
da menina estavam juntinhos num par de botas vários números
maior do que devia ser o dela. As botas estavam cobertas de laços
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e fivelas, como uma camisa de força. E havia uma bengala em seu
colo.
“Ainda estou aqui, sabe?”
Ele levantou o olhar, assustado.
“E perguntei o que está fazendo.”
“O quê?”
“Você é fotógrafo?”
“Sim.”
“Profissional?”
“Não.”
“Amador?”
Ele franziu a testa.
“Você é um fotógrafo desempregado?”
Ele abanou as mãos num gesto vago. Essa pergunta complicada o preocupava com frequência. O que as outras pessoas não
conseguiam perceber é que a fotografia não era um trabalho, um
hobby ou uma obsessão; era simplesmente tão fundamental para
sua interpretação do mundo como o efeito da luz mergulhando em
sua retina.
“Eu lido com fotografia”, ele murmurou.
Ela levantou uma sobrancelha. “É falta de educação fotografar as
pessoas sem o consentimento delas. Não é todo mundo que gosta.”
O carneiro roncou em seu campo.
Ela prosseguiu: “Mas, enfim, posso ver? A foto que você tirou
de mim.”
Midas timidamente estendeu a câmera, inclinando-a levemente
em direção a ela.
“Na verdade”, ele explicou, “hum, não é uma foto sua. Se fosse,
eu teria enquadrado diferente. Eu não teria cortado a ponta de
suas... botas. E teria pedido sua permissão.”
“Então é uma foto do quê?”
Ele deu de ombros: “Pode-se dizer que é da luz”.
“Posso olhar mais de perto?”
Antes de ele ter a chance de pensar numa maneira de dizer
não, não realmente, na verdade não – ele não ficava confortável
com outras pessoas vendo seu trabalho –, ela se esticou e pegou
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a câmera. A alça ainda presa no pescoço o forçou a se aproximar
insuportavelmente dela. Ele recuou esperando, se inclinando para
trás para manter-se o máximo que pudesse longe dela. Os olhos de
Midas se voltaram para as botas da garota. Essas não eram apenas
grandes. Eram enormes para uma pessoa tão magra. Chegavam
quase aos joelhos.
“Deus, eu estou péssima. Tão sombria!” Ela suspirou e soltou
a câmera. Midas se endireitou e deu um passo aliviado para trás,
ainda olhando para as botas dela.
“Eram do meu pai. Ele era policial. São feitas para andar na
lama.”
“Oh, ah...”
“Aqui”, ela abriu a bolsa e tirou a carteira, que tinha um pedaço
de foto amassada mostrando-a de bermuda jeans, camiseta amarela
e óculos escuros. Estava numa praia que Midas reconhecia.
“É Shalhem Bay”, ele disse, “perto de Gurmton.”
“Verão passado. A última vez que vim para St. Hauda’s Land.”
Ela passou a foto para ele olhar mais de perto. Nela, a pele
estava bronzeada e o cabelo era de um loiro queimado. Ela calçava
chinelos com pés pequenos, desconcertantes.
Um rosnado atrás dele fez Midas saltar. O carneiro soltou um
círculo de vapor em sua cabeça de chifre.
“Você se assusta fácil. Tem certeza de que está tudo bem com
você? Qual é seu nome?”
“Midas.”
“Que incomum!”
Ele deu de ombros.
“Não tão incomum se é seu próprio nome, creio eu. O meu é
Ida.”
“Olá, Ida.”
Ela sorriu, mostrando os dentes levemente amarelados. Ele
não sabia por que isso o surpreendia. Talvez porque o rosto dela
era cinza.
“Ida”, ele disse.
“Sim.” Ela apontou para a superfície escura da rocha. “Não
quer se sentar?”
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Ele se sentou a alguns centímetros dela.
“Sou só eu que acho”, ela perguntou, “ou está um inverno
horrível?”
As nuvens agora estavam pesadas e fechadas como concreto. O
carneiro esfregou uma das patas na cerca, rasgando a lã acinzentada no arame farpado.
“Não sei”, disse Midas.
“Tem havido poucos desses dias frescos, quando o céu é de um
azul brilhante. Gosto de dias ao ar livre. E as folhas mortas não são
cúpricas, são cinza.”
Ele examinou o monte de folhas a seus pés. Ela estava certa.
“Agradável”, ele disse.
Ela riu. Tinha uma risada úmida, da qual ele não tinha certeza
se gostava ou não.
“Mas você”, ele disse, “está vestida de cinza.” E ela estava bem.
Ele gostaria de fotografá-la entre pinheiros monocromáticos. Ela
usaria um vestido preto e maquiagem branca. Ele usaria filme colorido e capturaria o tom tênue em suas bochechas.
“Eu costumava usar cores vibrantes”, ela disse, “açafrão e escarlate. Jesus, eu costumava ser bronzeada.”
Ele fechou o rosto.
“Bem, você deve sempre aproveitar o inverno preto e branco.
Você é fotógrafo.” Ela se adiantou e o empurrou de uma forma
jocosa que o espantou e o teria feito recuar se não tivesse sido pego
de surpresa. “Como o homem lobo.”
“Hum?”
“Vendo em preto e branco, como um cão. Quanto a mim, eu
gosto de invernos coloridos, queria mesmo que eles voltassem.
Nunca foram tão soturnos assim.”
Ela mantinha os pés parados enquanto sentada, não os mexia
nem batia no solo, como ele tinha o hábito de fazer.
“Então, o que você faz? Já que não é fotógrafo profissional.”
Ele se lembrou repentinamente de seu pai avisando para não
conversar com estranhos. Limpou a garganta. “Trabalho para um
amigo. Numa floricultura. Chama-se Catherine’s.”
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“Parece divertido.”
“Eu me corto sempre. Com o papel dos buquês.”
“Uma floricultura deve ser um pesadelo para um fotógrafo de
preto e branco.”
O carneiro remexeu com o casco a terra lamacenta.
Midas engoliu em seco. Essas haviam sido mais palavras do que
ele havia falado em algumas semanas. Sua língua estava ficando
seca. “E você?”
“Eu? Creio que se pode dizer que não sou empregável.”
“Hum... está doente?”
Ela deu de ombros. Um pingo de chuva acertou a rocha. Ela
afundou o chapéu na cabeça. Outra gota caiu sobre o couro de sua
bota, formando uma mancha sobre os dedos.
Ela suspirou. “Não sei.”
Mais chuva caiu, gelada, sobre suas bochechas e a testa.
Ida olhou para o céu. “Melhor eu voltar.” Pegou a bengala e
cuidadosamente ficou de pé.
Midas olhou para o alto do barranco do qual descera. “Para...
onde?”
Ela apontou com a bengala. Descendo a margem sinuosa do
rio. “Uma pequena cabana que pertence a um amigo.”
“Ah. Creio que devo ir embora também.”
“Prazer em conhecê-lo.”
“O mesmo. Fique... Fique boa logo.”
Ela acenou levemente, então se virou e seguiu pela margem.
Andava num passo de caramujo, apoiando-se cuidadosamente com
a bengala a cada passo, como se estivesse redescobrindo o jeito de
andar depois de um sono enfeitiçado. Midas sentiu uma pontada
dentro de si quando ela partiu. Queria tirar uma foto, desta vez fotografá-la, não fotografar a luz. Ele hesitou, então a fotografou, sua
forma móvel recortada pela água e pelo campo cinza do carneiro.
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