O Sermão de uma Amiga
Itacir José Santim
Já não havia mais felicidade nos olhos dele. Sentia-se cansado,
desiludido e por um motivo considerado fútil para a maioria das pessoas mais
próximas e íntimas. No sofá, com o chimarrão a uma mão e um caderno
colocado à direita, ele lançou um olhar sem graça para fora da janela de sua
casa. O barulho, ou melhor, rugido do trem vindo e desacelerando antes de
chegar à pontezinha fez o jovem rapaz sair de seu devaneio, de sua fuga para
evitar pensar na realidade re em que o perturbava fazia meses. Sua nova
amiga, que o havia socorrido naquele dia infeliz perguntou com uma voz doce e
demonstrando preocupação:
-O que houve? Tu ainda estás pensando nela?
-Sim, e fiz analogias. -Respondeu melancolicamente ele.
Baixou sua cabeça e pensou que aquele seria o momento de contar uma
história não contada e quiçá refletir sobre si mesmo. A garota, dezenove anos,
ajudá-lo-ia a fazer isso. Naquele instante, o vento soprou pela janela e uma
mecha dos longos e brilhantes cabelos loiros dela caiu sobre seus olhos. Ele
sorriu. Achou graça quando ela os afastou e ficou encabulada com aquele olhar
repentino.
-O que foi?!
Houve constrangimento. Ela era linda, principalmente quando surgia a
imagem de a garota estar acariciando um gatinho de estimação sobre a barriga
dela. Fazer o quê? Porém, ele afastou os pensamentos íntimos de sua mente e
passou a cuia a ela. Lá fora, os vagões continuavam a passar, o que lhe fez
lembrar do título de sua cidade: “Princesa das Pontes” e da inutilidade daquela
ferrovia ao município.
-Tu vais me dar outro sermão?
-De fato. Ela já lhe falou sobre a “opção sexual” dela e tu tens de
entender a necessidade do afastamento. Tu a cansaste, talvez ela te odeie e
sinta aversão, mas e daí? Todos passam por desilusões amorosas e a única
coisa que aquela menina havia te garantido era a amizade, mas cobraste
demais, demonstraste egocentrismo, possessividade, roubaste o espaço dela e
falhaste no respeito. Ela te deu algo bom, sem exigir nada e fizeste o oposto.
Isso odiável, mas servirá como uma escola, a qual precisas inserir-te.,
As últimas palavras pareceram consoladoras, mas não aliviava a
sensação de perda e de que jamais voltaria a se apaixonar. Tinha surgido um
novo temor. Se novamente sentisse o mesmo por outra menina e ela não
recebesse bem seus sentimentos. Lembrou-se vagamente de uma das aulas
de uma disciplina da graduação quando estudou sobre Freud e num debate
tornou-se consciente da existência de um padrão inconsciente que orienta a
atração. Era o que queria contar, relacionando com uma paixão boba de
escola. Preferiu não contar e escutar o último conselho.
-Buscar apoio psicológico e psiquiátrico te fará bem, mas melhor ainda é
que tu comeces a sair, continue a ler teus livros, beba e escreva. Diários
ajudam. Ah, e se voltar a falar dela, você apanha!
Ele sorriu. O mate que a garota bebia não tinha mais espuma, nem
vapor, porém o gosto amargo e suave continuava. Ao devolver, ela lançou um
sorriso cômico. Talvez nunca cumprisse a ameaça, mas seria melhor não
esperar para ver. O assunto, assim, foi concluído. O trem distanciava-se e
escutava-se um barulho que gradualmente diminuía. Pelo bairro, paralelo à
ferrovia, os pássaros voando, pousados sobre os postes e perambulando sem
permissão pelos telhados cantavam alegremente.
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O Sermão de uma Amiga Itacir José Santim Já não havia mais