2 1. INTRODUÇÃO Esta monografia se propõe a analisar a obra de dois artistas italianos que produziram histórias em quadrinhos com visões e estilos distintos. A análise tem por objetivo mostrar o valor dessa forma de arte através da relação entre os autores escolhidos, suas biografias e bibliografias. A escolha do tema proposto se deu, principalmente, pelo interesse pessoal sobre o assunto. Além disso, a falta de material de estudo e a pouca atenção dada ao tema dentro da universidade e também fora dela faz com que esse trabalho tenha a pretensão de se somar a outros esforços que tem o intuito de dar à nona arte algum tipo de base crítica. Os dois autores a serem estudados são Hugo Pratt (1927 – 1995) e Andrea Pazienza (1956 – 1988), o primeiro um cidadão do mundo que confunde suas obras e seus personagens com sua própria vida e o outro, o símbolo do movimento artístico da Itália nos anos 70/80. Após um apanhado histórico geral sobre as histórias em quadrinhos no mundo e em particular na Itália, farei uma breve discussão sobre o que é a história em quadrinhos e a sua importância como expressão artística nos dias de hoje. Em seguida, analisarei algumas das produções dos dois artistas escolhidos, levando em consideração a biografia de Pratt e Pazienza, e sua influência na produção artística dos dois autores. A proposta de trabalho é inspirada no método de análise utilizado por Davi Arrigucci Jr. O autor fez um estudo minucioso, apresentado e dividido em diversos ensaios, sobre as poesias de Manuel Bandeira. Nesses ensaios, Arrigucci usou, em suas análises poéticas, uma abordagem que se preocupou em levar sempre 3 em consideração o estilo de vida do autor e a importância disso dentro de suas obras. 4 2 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS 2.1 HISTÓRIA EM QUADRINHOS: LITERATURA COM PALAVRAS E IMAGENS? DISCUSSÃO E CRÍTICA. A história em quadrinhos é uma combinação de texto e imagem, dispostas de forma seqüencial, que se propõe a passar algum tipo de conteúdo, conteúdo esse que vai desde histórias infantis, dramas, comédias, histórias de super-heróis a informes educativos, publicidade, storyboards de cinema e programas de TV, entre outros. Por suas características e forma de apresentação (normalmente em revistas com papel de qualidade variável e com um número de páginas que varia desde as vinte e duas, no formato clássico do Comic Book americano1, até as mais de quinhentas páginas de alguns mangás japoneses2) é comum traçar um paralelo entre a história em quadrinhos e a literatura. Os dois são impressos em papel, em forma quase idêntica, de tamanho e espessura semelhantes e lê-se de forma parecida. A partir dessa comparação, a história em quadrinhos é normalmente entendida como uma forma literária menor, devido ao seu mais fácil acesso, conseqüência direta da leitura tanto de palavras como de imagens, 1 Versão estadunidense da história em quadrinhos que é popularmente conhecida pelo seu conteúdo freqüentemente ligado ao mundo dos super-heróis. As histórias são seriais e apresentam, normalmente, em suas vinte duas páginas coloridas, as aventuras dos super-heróis mais populares dos Estados Unidos. Esse tipo de publicação representa um padrão para os lançamentos de histórias em quadrinhos na Europa e América. 2 Versão japonesa da história em quadrinhos que apresenta um estilo de desenho caracterizado por traços mais simples para os personagens e mais detalhados para os ambientes e cenários. Além disso, sua leitura, de quadrinhos e balões, vai de cima para baixo, da direita para a esquerda. É comum, no Japão, o lançamento de diversas histórias reunidas em um único volume que varia entre 300 a 800 páginas. Esses volumes são lançados com papel jornal e, em sua maioria, com as histórias em preto e branco. A partir desses lançamentos, baseados na resposta do público, as histórias mais populares são relançadas em edições especiais, coloridas e com papel de melhor qualidade. 5 associada a idéias de conteúdo mais simples. Esse tipo de visão, pelo menos na visão brasileira a respeito da história em quadrinhos, se dá também pelo fato de que a maioria das publicações que circulam pelo território brasileiro são de histórias de editoras norte-americanas ou criações nacionais bastante influenciadas por essas edições e seus personagens. Tal tipo de publicação é em grande parte de histórias seriadas de super-heróis, que tem maior apelo ao público infantil e infanto-juvenil. Além disso, a falta de estudos críticos apropriados sobre o assunto, contribui para a marginalização dessa forma de arte. No texto ‘Andrea Pazienza e la lingua del fumetto’, o escritor MIRKO TAVOSANIS (1998) diz: Uma entre as causas (do valor recebido pela história em quadrinhos pela comunidade em geral) [...] é a falta de uma linguagem crítica adequada. [...] E, apesar das histórias em quadrinhos possam ser examinadas a partir das disciplinas que fazem parte do currículo tradicional de estudos, como por exemplo a história da arte, a crítica literária e a história da literatura, as pesquisas universitárias sobre esse meio de comunicação ainda são limitadíssimos.3 Por tudo isso, tem-se dado um valor menor à história em quadrinhos e tudo o que é relacionado aos chamados ‘gibis’. Essa concepção generalizada é, de qualquer forma, equivocada. Pensar que a história em quadrinhos é um tipo de literatura de menor qualidade ou até algum tipo de literatura para iniciantes ou de mais fácil acesso é um erro. Em primeiro lugar, a história em quadrinhos, ou ‘arte seqüencial’ como sugere um de seus primeiros e mais importantes teóricos, Will Eisner, não é, para todos os efeitos, literatura. E em segundo lugar, considerando 3 Una tra le cause di questa trascuratezza [...] è la mancanza di un linguaggio critico adeguato. [...] E nonostante il fumetto possa essere affrontato partendo da discipline che fanno parte del tradizionale curriculum di studi, come per esempio la storia dell'arte, la critica letteraria e la storia della letteratura, le ricerche universitarie su questo mezzo di comunicazione sono tuttora limitatissime [...]. 6 a história em quadrinhos como uma forma de arte, torna-se impossível determinar, ou medir, algum tipo de valor que determine que arte é considerada melhor que outra, por exemplo, literatura melhor que pintura ou teatro melhor que música. Considerar história em quadrinhos como literatura, portanto, é um erro. Existem experimentações literárias que fazem uma combinação de texto com algum tipo de informação visual e até os livros ilustrados que usam as imagens para representar o que está escrito no texto, mas isso não é história em quadrinhos. Isso é literatura. Experimental ou infantil, mas literatura. É muito difícil estabelecer um limite que determina quando acaba a literatura e começam as histórias em quadrinhos e vice-versa, mas os quadrinhos são tão literatura como o cinema é teatro ou como a fotografia é pintura. Essas artes têm pontos em comum. Diversos, isso não se pode negar. Porém, afirmar que o cinema é uma forma teatral mais pobre ou que a pintura é precária diante da fotografia é tão absurdo quanto aceitar que a história em quadrinhos seja uma forma mais pobre de literatura. Todas as formas de arte são diversas. Todas elas têm muitas características em comum e um universo de peculiaridades que as distinguem. Os quadrinhos são uma outra forma de arte, mesmo se a sua credibilidade, seriedade e valor ainda são questionados. Eles reúnem características que constituem a sua própria estrutura e o transformam em um objeto artístico por si próprio. E assim como o cinema ou o teatro, as histórias em quadrinhos possuem características em comum com a literatura, mas não são literatura. São histórias 7 em quadrinhos. Scott MCcloud (2005, p. 2), em seu livro, ‘Desvendando os Quadrinhos’, escreve: Quando criança, sabia exatamente o que era história em quadrinhos. Histórias em quadrinhos eram um monte de revistas coloridas, com arte mal-feita, aventuras estúpidas e pessoas com roupas colantes. Nesse trecho McCloud se refere especificamente à visão comum que relaciona história em quadrinhos com super-heróis e que faz confusão entre o meio artístico (histórias em quadrinhos como forma de arte) e o conteúdo desse meio artístico (obras no formato de histórias em quadrinhos que falam sobre super-heróis). McCloud (2005, p. 3) completa: Eu percebi que tinha alguma coisa escondida nos quadrinhos. Alguma coisa que nunca tinha sido pensada. Algum tipo de poder secreto. (...) Se as pessoas não entendem o que são as histórias em quadrinhos é porque possuem uma visão muito limitada. Para McCloud, a imagem que a maioria da população tem dos quadrinhos se confunde com o valor dos quadrinhos como forma de arte, ou seja, a forma de narrar. O emissor, como propõe McCloud, se confunde com a coisa narrada. McCloud (2005, p. 4-6) continua: O mundo dos quadrinhos é imenso e variado. A nossa definição (dos quadrinhos) deve abranger todos esses tipos: (de conteúdo) [...] “Quadrinhos” é um termo que merece ser definido, porque se refere ao meio em si, não a um objeto específico como “revista” ou”gibi”, [...] Note que essa definição é estritamente neutra em questão de estilo, qualidade ou o assunto. Muito já foi escrito sobre as várias escolas de quadrinhos; sobre artistas específicos, títulos, tendências... Só que, para chegar a uma definição, a gente deve fazer uma cirurgia estética e separar forma de conteúdo! A forma artística – o meio - reconhecida como quadrinhos é um recipiente que pode conter diversas idéias e imagens. O conteúdo dessas imagens e idéias dependem, é lógico, dos criadores, e todos nós temos gostos diferentes. O truque é nunca confundir a mensagem... com o mensageiro. 8 McCloud procura explicar a confusão de valores que acontece com as histórias em quadrinhos, ou seja, devido a associação entre valores infantis e juvenis (desenhos educacionais, super-heróis coloridos, etc.) e a forma artística das histórias em quadrinhos o valor se perde. Por isso, os freqüentes comentários de que história em quadrinhos é coisa de super-herói, é literatura menor ou qualquer outra idéia pré-estabelecida sobre o tema. Portanto, uma coisa não deveria anular a outra. Existem livros infantis com intuito educacional, livros que falam sobre heróis salvando donzelas em perigo. A literatura proporciona essa variação de temas. No nosso mundo não existe livros apenas policiais, músicas que só falam da dor da separação ou filmes só de comédia. Esses meios apresentam diferentes gêneros que se adequam a uma mesma forma. O valor artístico, nesse caso, é dado a partir da relação entre conteúdo e forma. As formas de arte (literatura, teatro, música, etc.) não podem ser questionadas quanto ao seu valor como forma de arte. Contudo, as histórias em quadrinhos são avaliadas como se tivessem um valor previamente fixado, que independe do conteúdo narrado, como é a relação entre obra e meio, etc. Um preconceito já estabelecido que considera as histórias em quadrinhos como coisas bobas, de criança, que falam de super-heróis e outros personagens infantis e que tem a única função de entreter, e que podem no seu máximo, servir aos jovens como introdução ao mundo da verdadeira literatura. Mas por que então, as histórias em quadrinhos, como forma de arte, deveriam ser valorizadas e limitadas a poucos gêneros? Não é possível a produção de histórias em quadrinhos de drama, comédia, filosofia, etc, já que é um meio artístico como qualquer outro? 9 O exemplo a seguir demonstra as possibilidades desse meio artístico. Esse trecho foi criado por Will Eisner4, que extraiu ‘Hamlet’, de Shakespeare. O ‘Hamlet’ de Eisner, apesar de seu vocabulário fiel a obra original, é um homem moderno (dos anos setenta), do gueto, que reflete sobre sua situação atual. Esse exemplo, usando material de suas aulas ministradas na School of Visual Arts de Nova Iorque, é uma forma de demonstrar a possibilidade de divisão entre mensagem e emissor. 4 Comic Book and Sequential Arts, Will Eisner – pag. 113 – 115. 10 FIGURA 1 – ‘Hamlet’ de Will Eisner 11 FIGURA 2 – ‘Hamlet’ de Will Eisner 12 FIGURA 3 – ‘Hamlet’ de Will Eisner 13 Will Eisner (1999, p. 113 - 115), no seu livro, ‘História em quadrinhos e a arte seqüencial’, diz: Por motivos que têm muito a ver com o uso e a temática, a arte seqüencial tem sido geralmente ignorada como forma digna de discussão acadêmica. Embora cada um de seus elementos mais importantes, tais como design, o desenho, o cartum e a criação escrita, tenham merecido consideração acadêmica isoladamente, esta combinação única tem recebido um espaço bem pequeno (se é que tem recebido algum) no currículo literário e artístico. Ainda no mesmo livro, Eisner define os quadrinhos como arte seqüencial e os explica como uma linguagem que tem o seu valor a partir da experiência entre o artista e o público. Scott McCloud, em ‘Desvendando os Quadrinhos’, contesta essa definição, afirmando que a arte seqüencial com imagens isoladas não é necessariamente quadrinhos. A definição de quadrinhos de McCloud, como explica categoricamente em seu livro, é de “Imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador” (MCCLOUD, 2005, p. 9). McCloud não usa em sua definição a palavra “arte”, pois acha que o uso dessa palavra comporta um tipo de julgamento de valor e considera que a fruição de um objeto e a sua valorização como forma artística é dada através de suas próprias características e não como um objeto é apresentado. 14 2.2 A ARTE SEQÜENCIAL OU AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS. Definida a história em quadrinhos como forma artística por si só e tentando desassociar o formato do conteúdo, cabe agora explicar como se comporta essa forma artística. Will Eisner aplica o termo ‘arte seqüencial’ quando define o que é história em quadrinhos, ou seja, uma figura por si só não passa de uma figura. Imagine um homem segurando um revólver apontado para outro homem. Isso por si só não passa de uma figura. Se ao lado dessa figura desenharmos os mesmos homens, mas dessa vez o que tinha a arma apontada para o outro está no chão com uma expressão de dor e o que tinha a arma em mãos tem um revólver agora de que sai fumaça agora e uma onomatopéia onde se lê “BANG!”, aí sim temos, história em quadrinhos. FIGURA 4 – ‘Master Race’ de B. Krigstein 5 5 Ilustração de B. Krigstein publicada na história Master Race, na antologia B. Krigstein: Comics, pela editora Fantagraphics Comics. 15 Esse é o tipo de arte seqüencial de que Eisner fala. Pode-se pensar que o cinema é a mesma coisa, isto é, uma série de seqüências de imagens que são postas lado a lado, que têm um sentido e passam uma idéia. Porém, no cinema não existe o controle de tempo e nem de espaço como existe nos quadrinhos. No cinema, a imagem é limitada pelo tamanho da tela e a velocidade do filme rodando no projetor. Mesmo que seja uma seqüência em câmera lenta ou um salto de milhões de anos no futuro, existe sempre a necessidade de apresentar um certo número de frames (imagens) por segundo. O filme não pára de rodar. Um filme de cem minutos vai ter cem minutos sempre. Nos quadrinhos o autor e o leitor definem o tempo: o autor quando escolhe como representar a cena e o leitor quando resolve como a página será lida. Uma página de nove quadros, por exemplo, divididos em três linhas de três quadros cada uma, com diálogos extensos sobre uma questão qualquer será muito mais lenta do que uma página com o Batman dando uma surra em um assaltante de banco. Isso é definido pelo autor (o quê, como e a velocidade do que será apresentado). O exemplo abaixo mostra uma diferença de velocidade, empregada pelo autor, com os usos dos quadros influenciando o andamento da leitura. O primeiro exemplo é uma página escrita e desenhada por Art Spiegelman. Ela mostra um diálogo entre dois personagens de seu romance gráfico ‘Maus – A história de um sobrevivente’. O diálogo intenso e a falta de movimento dos personagens aliados a uma seqüência de oito quadros, deixa a página lenta e reflexiva. 16 FIGURA 5 – ‘Maus – A história de um sobrevivente’ 6 O segundo exemplo mostra uma cena da primeira publicação do personagem Super-Homem, publicada na revista ‘Action Comics’, produzida por Jerry Siegel e Joe Shuster. A cena dispensa palavras e se concentra na ação e no movimento do personagem Super-Homem. É uma cena rápida e direta. Existem os detalhes do homem correndo ao fundo, do farol do carro lançado ao ar e até o suor de preocupação do homem no primeiro plano. De qualquer forma, a cena em 6 Ilustração de Art Spiegelman, publicado na romance gráfico ‘Maus’, pela editora Rizzoli. 17 questão é dinâmica. Ela flui, é rápida e funciona de acordo com a intenção do autor. FIGURA 6 – ‘Action Comics no 1’ 7 Além da particular característica do tempo nos quadrinhos, um outro comportamento específico do meio é o uso do espaço. Apesar de ser limitado pela página (considerando as obras impressas em papel - o que pode ser diferente com quadrinhos apresentados em murais ou com o advento da internet), o espaço 7 Ilustração de Jerry Siegel e Joe Shuster na revista ‘Action Comics’ no 1, publicado pela DC Comics. 18 é dividido em quadros dentro dessa página. Essa divisão é mais definida pelo autor do que pelo tamanho da tela. Os exemplos a seguir mostram maneiras de quebrar os limites da página. O primeiro, um mural de Chris Ware, o segundo, parte de uma história de Scott McCloud. Aqui, com o uso da Internet e o espaço virtual temos a total independência do autor sobre a forma e os espaços dos quadros. Como uma página de Internet, a “página” de McCloud8 não tem limites físicos. Uma mesma página pode ser do tamanho definido pelo autor e, nesse caso, nunca pelo tamanho da página, pois essa, simplesmente, não existe. FIGURA 7 – Mural de Chris Ware 9 8 Ilustrações de Scott McCloud na história ‘I can’t Stop Thinking!’ No 4. Essa história foi publicada diretamente na Internet: http://www.scottmccloud.com/comics/icst/icst-4/icst-4.html 9 Mural do artista Chris Ware 19 FIGURAS 8, 9 e 10 – ‘I can’t stop thinking’ de Scott McCloud 20 Os dois exemplos abaixo mostram duas formas diferentes de dar forma a página. Ambos produzidos pelo cartunista Chris Ware em sua publicação Acme Novelty Library. FIGURA 11 – ‘Acme Novelty Library’ de Chris Ware 10 O primeiro exemplo mostra uma forma tradicional de uso do espaço dentro de uma página. Quadrados, do mesmo tamanho, colocados lado a lado. A 10 Ilustração de Chris Ware na publicação Acme Novelty Library da editora Fantagraphics Comics 21 seqüência lenta e monótona, devido ao excesso de quadros e diálogo, se torna interessante ao remover da imagem os personagens que estão conversando e dando atenção aos detalhes do lugar em que estão conversando. Desse modo o autor une palavra e imagem. Os diálogos definem os personagens e as cenas descrevem onde eles estão e, por conseqüência, em maior ou menor grau, quem são. FIGURA 12 ‘Acme Novelty Library’ de Chris Ware 11 11 Idem 22 O segundo exemplo, apresenta uma interessante abordagem de Ware em relação ao espaço da página. Aqui, a linearidade é quebrada. Os quadros em seqüência do exemplo anterior dão lugar a uma seqüência não definida de acontecimentos. É como se o tempo ficasse suspenso, enquanto o leitor recebe as informações da personagem em questão. A seqüência, ao mesmo tempo, mostra a personagem saindo em uma sala de espera do hospital, o seu próprio nascimento e o processo de adoção pelo qual passou quando era um bebê. O autor faz isso deixando a cena suspensa. O tempo desaparece deixando apenas o espaço. Não existe uma ordem dos fatos a serem lidos, são informações, jogadas na página. Cabe ao leitor definir a sua ordem. Essa seqüência de imagens lidas com tempo e espaço definidos pelo autor dá as características básicas aos quadrinhos. Outras limitações de suas formas expressivas se apresentam como oportunidades de peculiaridades do seu meio. As onomatopéias, por exemplo, representam uma forma de simular o som. Palavras como BOOOM, BANG, gritos de dor como ARGH!, AIEEE! Ou mesmo o TIC TAC do relógio são onomatopéias comuns das histórias em quadrinhos que tentam reproduzir uma falta do meio. Além disso, o uso de linhas e letras serve para passar intenções do autor. O exemplo abaixo é de uma publicação chamada Spawn, criada por Todd McFarlane. Nessa página, no primeiro e último quadro, o uso de tamanhos diferentes para a letra, o que identifica como aquela palavra pronunciada mais forte e mais alta pelo personagem, ajudando o autor a simular um tom de voz para seu personagem. Além disso, no primeiro e quarto quadro, temos o uso da 23 onomatopéia. No primeiro quadro, a expressão SNAP é usada para identificar o barulho de um pescoço quebrando e no quarto quadro, aparece o termo SLAAASSSH, caracterizando o movimento das asas do anjo. Além disso, o uso repetido das letras A e S, na onomatopéia, denotam uma duração mais longa do movimento. Ainda nessa página, no terceiro quadro, temos três pessoas falando ao mesmo tempo uma mesma frase. A escolha de fazer um único balão para os três personagens, com uma espécie de contorno, quer mostrar que os personagens são, apesar de três corpos, uma única entidade. O contorno do balão quer dar à fala um tom de voz angelical aos personagens e realçar sua qualidades divinas. 24 FIGURA 13 – ‘Spawn’ de Greg Capullo 12 Os quadrinhos reúnem características de maneira única. Essas figuras que se complementam com palavras e símbolos, arranjadas em uma “tela” de tamanho indefinido proporciona ao meio uma infinidade de possibilidades e peculiaridades. 12 Ilustração de Greg Capullo para a publicação Spawn, personagem criado por Todd McFarlane, pela Image Comics. 25 As características tão particulares desse meio dão aos quadrinhos autonomia artística e independente de qualquer outra forma de arte. 26 3 BREVE HISTÓRIA DA ARTE SEQÜENCIAL NO MUNDO E NA ITÁLIA. Como conhecemos hoje, a história em quadrinhos teve a sua forma definida (forma como era veiculada – em jornais, revistas, edições de capa dura, etc.) no final do século XIX. Embora a forma narrativa de se contar histórias usando imagens seja muito anterior. Desde o início da história humana são contadas histórias nesse formato artístico. Os homens das cavernas já começavam a esboçar aquilo que seria hoje os quadrinhos. O hieróglifo egípcio também é um outro exemplo dessa forma de arte durante o percurso da história. Depois disso, no nosso milênio, a França produziu, em 1066, um trabalho semelhante chamado tapeçaria Bayeux, um tipo de tapeçaria de 70 metros que conta a conquista da Normandia. Em 1519 foi descoberto por Cortés13, um manuscrito com imagens pré-colombianas, que relata pedaços de histórias épicas. As imagens a seguir apresentam alguns exemplos do uso do formato conhecido atualmente como história em quadrinhos durante o desenvolvimento da nossa civilização. Nos exemplos a seguir, as setas vermelhas indicam o sentido da leitura. 13 Hernan Cortés, desbravador que conquistou o território do México para a coroa Espanhol no século XVI 27 FIGURA 15 – Colunas Troianas FIGURA 14 – Códice de Nuttall 15 14 FIGURA 16 – Tapeçaria Bayeux 16 FIGURA 17 – A tumba de Menna 17 14 O códice de Nuttall, descoberto 1.500 d.C. Colunas Troianas, datadas de 1.000 a.C. 16 Tapeçaria Bayeux, Séculos XI e XII a.C. 17 A tumba de Menna, o escriba. 1.300 a.C. 15 28 Apesar de apresentarem meios físicos e formas distintas, todos os exemplos usam imagens em seqüência para contar algum tipo de história. A forma aproximada da que temos hoje em dia foi criada no final do século XIX. A princípio como sátiras políticas que apresentavam caricaturas com pequenos comentários ou diálogos junto a imagem em jornais europeus e norte-americanos. Mais tarde, depois de criado o recurso dos “balões”, um tipo de recurso gráfico que indica que personagem está falando (o termo italiano para quadrinhos, fumetti – fumaça, tem origem na utilização desse recurso), os quadrinhos ganharam o título de comic strip (tiras cômicas). Ganhou esse nome por causa da sua forma, em média dois a cinco quadros seqüenciais postos lado a lado (a tira) e que apresentavam conteúdo cômico. O nome permaneceu, mas o formato foi mudando. Depois de obterem público, começou-se a produzir encartes nos jornais que continham apenas histórias em quadrinhos. Em seguida, revistas completamente independentes de seus jornais, que receberam o nome de comic book (livros cômicos). Embora o formato e conteúdo tenham mudado, a referência ao tipo de conteúdo permaneceu no nome, indicando que aquele veículo artístico apresentaria obras cômicas. Depois da difusão do formato pelo mundo, temos a criação da graphic novel (romance gráfico). Esse termo, idealizado pelo artista Will Eisner, foi criado quando produziu sua obra ‘Contrato com Deus’. O autor diz que sentiu a necessidade de procurar outro termo pra definir o que produzira, pois, a sua obra não era cômica e não poderia chamá-la de um “comic book”. Criou-se então o 29 termo graphic novel para publicações no formato de histórias em quadrinhos que têm uma abordagem mais complexa. Esse termo é amplamente usado até hoje, podendo apresentar alguma variações: romance gráfico, literatura desenhada, etc. Na Itália, mais especificamente, no dia 27 de dezembro de 1908, as bancas de jornais italianas receberam o primeiro número de “Il corriere dei piccoli”, a primeira publicação de massa totalmente dedicada aos quadrinhos. Essa primeira edição apresenta o personagem Bilbolbul, de Attilio Mussino, considerado o primeiro personagem de quadrinhos italiano. O periódico também introduziu alguns quadrinhos produzidos nos Estados Unidos ao público italiano. Devido ao seu sucesso, que se aproximava das 700.000 cópias vendidas, foram criados outros periódicos do mesmo estilo, como: Il Giornaletto, Donnina, L’intrepido e Piccolo Mondo. Durante o fascismo, as histórias em quadrinhos eram usadas para espalhar a propaganda governamental. Diversos títulos foram criados, como “Il giornale dei Balilla” e “La piccola italiana”. Durante esse período as produções estrangeiras foram proibidas e as histórias em quadrinhos italianas são forçadas a seguir um rigoroso padrão imposto, que propuseram valores de heroísmo, patriotismo e a exaltação da raça italiana. Com o fim da guerra, os quadrinhos estrangeiros voltaram a ser publicados na Itália. Um desses exemplos é a revista “L’avventura” que publica histórias de heróis americanos como Mandrake, Fantasma (L’uomo mascherato) e Flash Gordon. Uma outra revista, Robinson (1945), tenta publicar uma revista com maior apelo a um público mais velho, publicando histórias de personagens como 30 Príncipe Valente, Tarzan e Dick Tracy. Em 1945 é publicado “L’asso di picche”, em Veneza. A revista trazia autores como Alberto Ongaro, Damiano Damiani, Dino Battaglia, Rinaldo D’Arni e, acima de todos, Hugo Pratt. Essa publicação, por sua abordagem e autores únicos, determinou a criação da escola veneziana de quadrinhos. Nascido em 30 de setembro de 1948, o personagem de Gianluigi Bonelli, Tex Willer é o mais renomado. Suas histórias definiram um novo padrão de quadrinhos italiano. As histórias de Tex, sempre ambientadas em aventuras que se passam no velho oeste, são publicadas em papel jornal, em formato de bolso e em preto e branco. Esse tipo de criação definiu o modelo “bonelliano” de fazer quadrinhos. Muitas outras publicações seguiram os passos de Tex: Zagor (1961), Il comandante Mark (1966) e Martin Mystère (1982) que é influente, na Itália e no mundo, até os dias de hoje. Nos anos 70, mais especificamente, temos a consolidação do talento e reconhecimento de três importantes autores italianos: Hugo Pratt, Guido Crepax e Milo Manara. Pratt ultrapassa fronteiras e é publicado e reconhecido primeiro na França, depois ao redor do mundo. A Valentina de Crepax, que aparece em sua extensa obra, mesmo quando é apenas influência de outras personagens femininas, ajudou a transportar a produção quadrinhista do momento a uma formulação mais autoral e mais complexa. As mulheres de Manara e a poesia de seus desenhos colocam o autor como um dos mais importantes criadores italianos. 31 Ao longo dos anos 70 e 80, temos nomes como Andrea Pazienza, que produziu quadrinhos autorais, de caráter biográfico e relacionado ao momento político da época. Além desses, o personagem Dylan Dog, de Tiziano Sclavi, que era um detetive dos sonhos, talvez, o único personagem a despertar algum interesse significativo entre o público feminino. Em suas histórias, Sclavi traz uma narrativa extremamente influenciada pelo cinema americano. No final dos anos 80, essa foi uma característica importante das histórias em quadrinhos mundiais e também nas histórias italianas. Essa tendência permanece até os dias de hoje. 32 4 DOIS AUTORES ITALIANOS: HUGO PRATT E ANDREA PAZIENZA 4.1 HUGO PRATT Hugo Pratt, é conhecido como, entre outras coisas, o criador do personagem viajante Corto Maltese. Pratt, como seu personagem, viveu uma vida aventurosa. Nascido na cidade de Rimini, Itália, no dia 15 de junho de 1927, viveu sua infância na Etiópia. Entre o período de 1941 até 1942 foi mantido em um campo de concentração nazista, e foi liberado apenas em 1943 quando retorna a Itália. Em 1946 criou seu primeiro personagem, “L’asso di Picche”, fazendo referência aos quadrinhos americanos (os comic books). O fracasso de seu personagem fez com que Pratt desistisse temporariamente da carreira de quadrinhista. Virou marinheiro. Em 1950 passa a viver em Buenos Aires, Argentina. Ali, permanece por mais de quinze anos. Nesse tempo ajudou consideravelmente o boom dos quadrinhos argentinos. Antes de retornar à Europa, em 1967, permaneceu na cidade de São Paulo, Brasil, como professor da Escola Pan-Americana de Artes. Criou seu alter-ego, Corto Maltese, depois de seu retorno à Europa. Personagem com o qual é comumente confundido. Sobre Hugo Pratt, o desenhista e ensaísta argentino, Carlos Trillo (1980), diz: Ele criou um dos maiores clássicos dos quadrinhos de todos os tempos. A história de Pratt e de Corto Maltese têm várias ligações e cruzamentos que quase ninguém acredita. Viagens, mulheres, aventuras, lugares exóticos, tudo se mistura e se confunde maravilhosamente. [...] Em Corto 33 Maltese, Pratt reconhece o seu verdadeiro eu. [...] (Corto Maltese) corria a vida em busca do desraizamento. Pratt também. Essa relação entre personagem e autor será a base da minha análise sobre a influência da vida do autor na sua obra, a criação do personagem baseado no conflito entre personagem e autor. Em suas histórias, Pratt combina seus personagens fictícios a uma extensa relação de fatos e pesquisas históricas. É comum a presença de mapas detalhados, referências a fatos e lugares e culturas conhecidas e apresentadas pelo autor. Essa ambientação que vai para o lado do real contrasta com a ficção das aventuras vividas pelo protagonista, mesmo quando o protagonista não é Corto Maltese. A narrativa de Pratt, com desenhos normalmente em preto e branco, é de uma beleza poética. O estilo de seu traço influenciou e influencia ainda hoje muitos artistas que vieram depois dele. Em suas obras, encontramos o gosto pela descoberta, a aventura, os dados históricos, e a reflexão sobre a vida, sobre o desenraizamento e sobre nós mesmos. Em 20 de agosto de 1995, Pratt morre de um câncer no estômago. Corto Maltese, dado como morto, por alguns, durante a guerra civil espanhola, ainda vive intensamente no imaginário e seguidores da arte seqüencial. 34 4.1.1 A BALADA DO MAR SALGADO ‘A Balada do Mar Salgado’ é a primeira obra de Pratt com a participação do seu personagem mais célebre, Corto Maltese. Essa obra representa um momento importante na vida do autor, em 1967, poucos anos depois de voltar a morar em seu país natal, a Itália. A obra, como é encontrada hoje (em um livro trazendo a história completa) não foi originalmente desenvolvida dessa forma. Ela foi publicada em 1967 como parte de uma revista mensal chamada Sgt. Kirk, nomeada a partir de um personagem criado pelo próprio Pratt. A publicação serviria para publicar as histórias que Pratt desenvolveu no período em que morou na Argentina, alguns clássicos americanos e também material inédito. Essa publicação, produzida pelo próprio Pratt e um empresário genovês chamado Florenzo Ivaldi, traz as primeiras aventuras de Corto. A revista terminou trinta edições mais tarde, no ano de 1969. Em seguida, Pratt continuou publicando suas histórias de Corto pela revista francesa ‘Pif’ e, depois, com o passar dos anos, através de diversas editoras ao redor do mundo. Para a criação de sua obra ‘A Balada do Mar Salgado’ temos, com Pratt, uma extensa pesquisa histórica, levando em consideração eventos, personagens e referências visuais. Tudo misturado às aventuras de seu protagonista. Esse comportamento é um reflexo do que Pratt se tornou. A criação de Corto Maltese converge com uma imagem de um Hugo Pratt mais maduro. Ele está em posição de criar o seu alter-ego e o retorno à Itália representa isso. Nesse momento, Pratt já viveu e conheceu Itália, Etiópia, Argentina, Brasil, Londres, entre muitos outros 35 lugares. Sua obra é criada a partir de suas experiências. Corto Maltese é uma espécie de homem do mundo, que está em completa sintonia com culturas e pessoas diferentes. Em entrevista a Alberto Ongaro, compilada posteriormente por Vincenzo Mollica e Patrizia Zanotti em Hugo Pratt/Corto Maltese – Letteratura Disegnata, depois de relatar diversas experiências que viveu com os índios Xavantes, em terras brasileiras, Pratt diz “É claro que experiências desse tipo, de um modo ou de outro, terminam por transformar-se em Corto Maltese. Poderia contá-las a dezenas...”18 (MOLLICA; ZANOTTI, 2006, p. 44). Não é mistério que essas experiências da vida do autor tenham influenciado não apenas na criação do personagem, mas também suas aventuras. E para personificar esse espírito aventureiro e multicultural de Pratt, nada melhor que a imagem de um marinheiro errante. O forte senso histórico de Pratt o faz relatar com detalhes a biografia de seu personagem. Corto Maltese, nascido em 10 de julho de 1887, é o resultado de uma noite de amor entre uma cigana espanhola de Sevilha, chamada Nina de Gibraltar, e de um marujo inglês da Cornualha. Esses dados foram publicados em uma obra produzida pelo autor francês Michel Pierre em parceria com o próprio Pratt, chamado ‘Memories’. A obra, nada mais é do que uma biografia de seu personagem. Um relato detalhado, que apresenta datas, nomes e lugares da vida de Corto Maltese. 18 “[...] È chiaro che esperienze di questo tipo in um modo o nell’altro finiscono per diventare il Corto Maltese. Potrei raccontarne a decine...” 36 Um exemplo interessante da condição de Corto é a forma que Pratt usou para definir o lado errante de seu personagem, em que explica um fato que aconteceu durante sua infância. Quando nasceu, a mãe de Corto notou que ele não possuía a linha do destino em sua mão. Querendo tomar o seu destino para si, Corto pegou uma navalha e cortou, ele mesmo, uma linha do destino na palma de sua mão. Além disso, usa uma argola em sua orelha esquerda. É conhecido o fato de marinheiros de guerra da marinha britânica usarem uma argola na orelha direita, mas o uso na orelha esquerda como uma referência ao anarquismo. Embora exista uma associação do termo anarquia com valores de desordem e caos, prefiro pensar no uso mais literal da palavra e associar essa referência a um sentimento de ausência de autoridade, governo e até mesmo de pátria. Esse sentimento cosmopolita, sem raízes, é apresentado na obra de maneira interessante. Temos, de forma geral, uma obra que preza a aventura. Não existe uma mensagem geral mais significativa ou uma espécie de moral da história. A aventura é o objeto principal. Em uma entrevista com MICHEL PIERRE (MOLLICA; ZANOTTI, 2006, p. 90), Pratt discorre sobre o estilo narrativo que deseja seguir: Michel Pierre: Corto Maltese começou também a fazer parte de uma certa tradição do romance, a mesma de Conrad, London, Stevenson, Curwood. Hugo Pratt: Quando eu era jovem, preferio mundo anglo-saxão a me impregnar de escritores francese, talvez para contrastar a borguesia italiana que os admirava demais. É preciso também imaginar que nos anos 30 nos propunham a leitura de escritores fascistas. Se tratava de uma literatura provincial, miserável e de propagando, privada de qualquer estímulo. Eu encontrava o prazer de ler com os grandes romancistas de aventura ingleses ou americanos, com os filmes de Hollywood ou com os gibis. 19 19 Michel Pierre: Corto Maltese è entrato anche a far parte di una certa tradizione romanzesca, quella di Conrad, London, Stevenson, Curwood. Hugo Pratt 37 E o autor (MOLLICA; ZANOTTI, 2006, p. 92-93) perguntando sobre pretensões artísticas das histórias em quadrinhos de Pratt, este diz: É uma verdadeira idiotice. O gibi não precisa procurar grandes antepassados inexistentes, como as tapeçarias Bayeus ou as colunas troianas. O gibi tem sua origem nas grandes imprensas e na América, e basta. Não deve se preocupar em ser uma arte. Eu, de qualquer maneira, não sou um artista. Em Veneza existem pintores e artesãos. Portanto, é isso! Eu me considero um artesão que se exprime com um meio maleável, que não requer grandes investimentos mas oferece possibilidades formidáveis20 Com essa atitude definida, ‘A Balada do Mar Salgado’ é criada, numa aventura extraordinária com extensos relatos no texto e também nos desenhos de fatos e personagens históricos, com várias referências culturais e uma série de discursos curtos que promovem algum tipo de pensamento enfatizam questões sociais e também existenciais. A história central do romance é ambientada durante o período da Primeira Guerra Mundial, e o próprio Oceano Pacífico é o narrador no início da obra. O Oceano se comporta talvez mais como um apresentador do que narrador. Ele determina o tempo e o espaço em que a história vai se desenrolar e informa sobre o primeiro personagem que aparecerá, Rasputin. A trama se desenvolve a partir das ordens do misterioso personagem conhecido apenas como O Monge (Il Monaco). Ele ordena a Corto e Rasputin, homem desonesto de origem russa que tem o seu destino ligado ao do marinheiro Quando ero giovane ho scelto il mondo anglosassone piuttosto che impregnarmi di scrottori francese, forse per contrastare la borghesia italiana che li ammirava troppo. Bisogna anche immaginare che negli anni Trenta ci proponevano di leggere scrittori fascisti. Si trattava di una letteratura provinciale, miserabile e di propaganda, priva di qualsiasi stimolo. Il piacere di leggere lo si provava com i grandi romanzieri d’avventura inglesi o americani, coi i film di Hollywood o con i fumetti. 20 È una vera e propria idiozia. Il fumetto non ha bisogno di cercarsi dei grande antenati che non esistono come gli arazzi di Bayeux o la colonna di Traiano. Il fumetto ha le sue origini nella grande stampa e in America, punto e basta. Non deve preocuparsi di essere un’arte. Io, comunque sia, non sono um’artista. A Venezia ci sono pittori e artigiani. Ebbene si! Io mi considero un’artigiano che si esprime con un mezzo morbido, che non richiede grossi investimenti ma offre possibilità formidabili. 38 Corto, assaltos a navios mercantes para se apossar dos carregamentos de carvão, que seriam, posteriormente vendidos, a peso de ouro, para a marinha alemã. Junta-se à história um casal de irmãos, Pandora e Caim Groovesnore. Dois jovens nobres que são resgatados pela embarcação de Rasputin. Depois desse encontro, temos uma série de eventos e aventuras. A descoberta da quase mística ilha de Escondida, uma das bases do misterioso Monge, sua relação com os irmãos Groovensnore, o relacionamento entre Pandora e Corto e a definição e evolução dos personagens principais da obra, Corto e Rasputin. Esses dois personagens se comportam como uma espécie de herói e vilão dessa história (parceria essa que se desenvolverá durante as outras histórias de Corto). Os dois são multilaterais, não tendo uma característica principal que os define. São ambíguos e complexos. Rasputin, que assume o papel de vilão da história, é um personagem ambíguo, com ações violentas, de individualismo exacerbado e insegurança latente. Parece não ter uma visão muito bem definida do que é o bem ou mal, apenas enxerga suas próprias necessidades e o caminho para satisfazê-las. Corto Maltese também é um ser individualista, mas diferentemente de Rasputin, ele tem uma espécie de código de honra, aparentemente criado e seguido apenas por si mesmo. Ao contrário de seu rival, se é que podemos chamá-lo assim, Corto tem uma noção do bem e do mal (que não é necessariamente maniqueísta), não é gratuitamente violento, mas não se importa de fazer valer a sua vontade. 39 O romance de aventura de Pratt é fortemente embasado em referências históricas. Elas se misturam com a fantasia proposta pelo autor. Personagens completamente fictícios se encontram com outros personagens saídos diretamente do mundo real (mais ou menos do final do século XIX e início do século XX). Rasputin, por exemplo, é criado a partir da figura histórica do russo Griogori Yefimovich Rasputin, figura controversa e influente no final do período czarista da Rússia, durante a virada do século XIX e XX. O Rasputin de Pratt, herda da figura histórica sua personalidade ambígua e controversa, o país de origem, o tempo em que viveu e a aparência física. FIGURA 18 - Rasputin FIGURA 19 – Rasputin de Hugo Pratt 21 21 A esquerda a foto de Grigori Yefimovich Rasputin, importante influência no final do período czarista russo e a direita Rasuputin de Hugo Pratt, influenciado pela figura histórica. 40 Além das referências a personagens históricas, existe na ‘Balada do Mar Salgado’ (e nas aventuras posteriores de Maltese) uma certa preocupação em adequar a realidade fictícia do autor a uma realidade histórica e geográfica. Antes mesmo do início do romance, nas páginas de apresentação da obra temos mais um exemplo da fusão entre realidade e fantasia. Pratt apresente um desenho detalhado da misteriosa ilha de Escondida, dando detalhes cartográficos precisos sobre a localização da ilha, detalhes de suas características, etc. O uso de mapas, para dar verossimilhança a fantasia, é um recurso freqüente no decorrer da obra: na página 12, que mostra várias ilhas do Oceano Pacífico; a seguir, na página 59, temos o mesmo uso, dessa vez para mostrar o Arquipélago da Milanésia. Em todos esses exemplos, existe a preocupação de Pratt com os detalhes. Os mapas são desenhados minuciosamente, criando, assim, uma espécie de ambientação mais realista para inserir seus personagens fictícios. É interessante notar como existe nesses mapas uma espécie de simbologia que representa um aspecto muito importante na obra de Pratt: a combinação entre o real e a fantasia. O mapa de uma ilha irreal – a ilha de Escondida - desenhado e detalhado minuciosamente representa esse sentido. É criada, assim, uma ambientação realista, com toques de fantasia para uma narrativa quase fantástica. Além disso, vale a pena salientar que esse estilo narrativo, que vai do autor para a vida de seu personagem, também segue o caminho inverso. Pratt também relata, com igual fantasia e imaginação, sua própria vida. Ele coloca suas experiências pessoais como aventuras fantásticas. Em entrevista cedida a Alberto Ongaro, em outubro de 1973, Pratt relata algumas de suas 41 experiências como se fossem verdadeiras façanhas de Corto. Como os seus encontros com “personagens” encontrados nas matas do Mato Grosso ou como o mistério da chave de toledo, história particular de sua família que relata quase como uma narrativa durante a entrevista, dando sempre pedaços de informações para que se desvende um mistério.22 Duas outras formas são usadas por Pratt para ambientar o seu mundo ficcional com base na realidade.A primeira é o uso e citação de datas e lugares a partir de um evento histórico e espaço físico conhecidos. A saga de Corto começa um pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial e se passa na região do Pacífico. Ali, a trama se desenrola (paralelamente à Primeira Guerra Mundial) e termina pouco depois do seu fim. Durante todo o texto, o autor dá pequenas referências de tempo e espaço que permitem datar e localizar os acontecimentos. A segunda forma reside na experiência e cultura do autor. Dentro da obra, ele retrata, minuciosa e detalhadamente, diversos traços e características culturais de vários povos. Essas referências podem ser visuais, como referências artísticas e também de vestuário de um povo. De uma forma mais verbal, procura fazer referências a canções, antigas histórias e termos de navegação e embarcações específicos de alguns povos e, também, algumas palavras em idiomas estrangeiros (se relacionarmos a “língua oficial” imposta por Pratt em sua obra). Além disso, temos o uso de uma língua (italiana, no original) como uma espécie de “idioma oficial” do romance. As vezes misturada com palavras da 22 Hugo Pratt – Corto Maltese – Letteratura Disegnata, páginas 21 – 50, Lizard Edizioni 42 língua nativa, dos respectivos personagens. Alguns tripulantes ainda falam essa “língua oficial” com certas dificuldades. Na página 10, temos uma conversa entre tripulantes da embarcação de Rasputin conversando entre si, utilizando essa língua oficial misturada com interjeições e palavras de suas próprias línguas nativas: Tripulante: Pete ateatea! Homens brancos! Tripulante 2: Evarua-t-eatua, são dois náufragos. A seguir, na página 11, temos o diálogo de um dos tripulantes com Rasputin: - Eles jovens brancas, capitão. Eles, doentes... Depois, nas páginas 13 e 14, temos mais um tripulante gritando, quando encontra Corto Maltese, a deriva, amarrado a uma jangada: Capitão Rasputin... Vem rápido. Pamparemba. Ainda temos, nas páginas 75, 76, 77 e 78, mais usos de expressões de uma língua materno de personagens de uma tribo da ilha de Escondida e de Crânio, numa tentativa de salvar Corto Maltese: Página 75 Nativo 1: E parau mau tahi fee. Nativo 2: Sim, sim... Poupeton, poupeton. Página 76 43 Corto Maltese: Devo a vida a você, amigo. Nativo: Acho que sim. Como se sente agora? Pupu naroa. Corto Maltese: Um grande problema? Nativo: Taatoa... Mao... Mao... Pobres de nós... Um tubarão! Página 77 Nativo: E meafifi rahi mau! Nativo 2: Certo, certo... Eu acerto... Patia maa vanta lá! Página 78 Nativo: Auê te nehe nehe ê! Sai daqui! Sai daqui! Essa preocupação lingüística mostra uma intenção do autor em identificar diferenças e promover uma espécie de harmonia cultural entre os personagens. De qualquer modo, é igualmente necessário fazer essa reunião de línguas trabalhar bem e a favor de uma narrativa de aventura. Existe assim, uma preocupação em mostrar as diferenças culturais, mas ela se limita a pontuar, em alguns trechos do romance, tais diferenças. Depois que se estabelece essa confirmação de diferenças culturais proposta pelo autor, temos, no restante da obra (com exceção de nomes de pessoas e lugares), o uso de uma língua oficial. O italiano, no original, falado por todos os povos. Corto, Rasputin, os neozelandeses nativos, os oficiais alemães, os marinheiros japoneses, etc. É como um recado do autor para o leitor, em que aquele pensou no assunto e que, depois de esclarecido, estava pronto para continuar com a sua história. Uma outra forma de ambientação real é usada na ficção de Pratt. Durante sua vida literária, Corto encontrou diversos personagens e autores contemporâneos de seu tempo. Encontros com os escritores como Joseph Conrad, Jack London ou Herman Hesse são tidos como encontros clássicos do 44 personagem e, ainda, são uma demonstração de conhecimento e erudição do autor. Durante a ‘Balada do Mar Salgado’, Pratt aponta algumas referências literárias. Na página 11, temos a primeira aparição do Capitão Rasputin. Ele está sentado em sua cabine lendo uma cópia em francês do diário de viagens do descobridor francês Louis Antoine de Bougainville, ‘Voyage autour du monde par la frégate du roi La Boudeuse et la flûte l’Etoile’. Umberto Eco, em seu ensaio sobre ‘A Balada do Mar Salgado’, discute, como o nome do próprio ensaio já diz, a geografia imperfeita de Corto Maltese, chamado ‘Geografia Imperfetta di Corto Maltese’. ECO (1988) discute, entre outras coisas, a razão de leitura do diário de viagens de Bougainville por Rasputin e a veracidade de dados geográficos apresentados pelo autor no romance: No início (sétimo quadro) o encontramos consultando Bougainville, Voyage autou du monde par la frégate du roi La Boudeuse et la flûte l’Etoile. Posso assegurar que não se trata da primeira edição de 1771, que diferentemente da cópia de Rasputin é anônima e, portanto, no poderia trazer o nome do autor na capa; já que se trata de um volume de quatro edições, poderia ser um original encapado posteriormente, mas seria um pecado estragar com umidade e sal um pedaço de antiguidade desse tipo; De qualquer jeito, no sexto quadrado, a página aparece composta por três colunas, e, portanto, poderia se tratar de uma edição popular de 1800. O livro é aberto mais ou menos pela metade e, naquele ponto, independente de sua composição tipográfica, se abre no capítulo V, “Navigation depuis les Grandes Cyclades; découverte du Golfe de la Louisiade… Relâche à la Nouvelle Bretagne”. Rasputin não se permite divagações literária, consulta e confirma informações relacionando-as como uma situação que passa naquele momento, já que veleja em uma base alemã da Nova Pomerania – que é anotada a Nouvelle Bretagne di Bougainville. Mas, na parte do capítulo em que Bougainville encontra embarcações e selvagens que parecem ter saídos das páginas da Balada (mas talvez seja prudente inverter a prospectiva) se vemos a bela e ampla carta que precede o “Discours préliminaire” surgem algumas questões inquietantes. A carta de Bougainville não coincide inteiramente com a carta que Pratt desenha na página da frente. Nesse caso, Pratt sabe mais que seu personagem, mas o personagem não lê a Balada, lê Bougainville e presume de estar príóximo a Nova Pomerania, então não pode pensar de estar no mar de Salomão, porque Bougainville colocala o Salomão muito mais a leste (mais ou menos no lugar das ilhas Fiji, errando em cerca de 20 graus de longitude e 10 de latitude). Nos outros termos se Rasputin, por intuição, ou com algum instrumento que em 1913 não poderia faltar a um navegador, sabendo aquilo que Pratt sabe e nos dizendo, e, ou seja, ele havia resgatado Caim e 45 Pandora entre o 155º meridiano (est. Direi) e o 6º paralelo sul, verificando em Bougainville deveria estar seguro que se encontrava a baía de Choiseul a pouca distância das Lusíada que está lendo, mas muito distante das de Salomão (onde, de qualquer modo, está, sem sabe-lo)23 Embora Eco questione as intenções da leitura de Rasputin, fica claro uma outra intenção que se refere a credibilidade que o autor tenta passar a seu personagem. Independentemente de Rasputin usa o livro como guia geográfico ou como leitura simplesmente, a escolha de um diário de viagens de um descobridor e navegador francês como um livro da “biblioteca” de Rasputin é uma forma sutil e inteligente que Pratt encontra para apresentá-lo. Uma outra referência literária aparece na página 37, no encontro entre Caim e Tarao. A situação se apresenta depois do naufrágio da embarcação de Caim. Ele se vê sozinho, em uma ilha deserta, com um canibal. Então pensa, de 23 Proprio all’inizio (settima inquadratura) lo troviamo a consultare Bougainville, Voyage autour du monde par la frégate du roi La Boudeuse et la flûte l’Etoile. Posso assicurare che non si tratta della prima edizione del 1771, che a differenza della copia di Rasputin è anonima e quindi non potrebbe portare il nome dell’autore in copertina; visto che si tratta ugualmente di un volume in quarto, potrebbe essere un originale rilegato posteriormente, ma sarebbe un peccato rovinare con l’umidità e il salmastro un pezzo d’antiquariato del genere; in effetti nella sesta inquadratura la pagina appare composta a tre colonne, e quindi potrebbe trattarsi di una edizione popolare ottocentesca. Il libro è aperto circa alla metà e a quel punto, comunque sia la composizione tipografica, si apre il capitolo V, “Navigation depuis les Grandes Cyclades; découverte du Golfe de la Louisiade… Relâche à la Nouvelle Bretagne”. Rasputin non si concede divagazioni letterarie, consulta, assume informazioni sul punto in cui prevede di essere, visto che veleggia verso una base tedesca della Nuova Pomerania- che è appunto la Nouvelle Bretagne di Bougainville. Però, a parte che in quel capitolo Bougainville incontra piroghe e selvaggi che sembrano usciti dalle pagine della Ballata (ma forse sarebbe prudente invertire la prospettiva), se andiamo a vedere la bella ed ampia carta che precede il “Discours préliminaire” sorgono alcuni interrogativi inquietanti. La carta di Bougainville non coincide affatto con la carta che Pratt disegna proprio nella pagina a fronte. In questo caso Pratt ne sa più del suo personaggio, ma il personaggio non legge la Ballata, legge Bougainville. Se Rasputin si riferisce alla carta di Bougainville e presume di essere vicino alla Nuova Pomerania, allora non può pensare di essere nel mare delle Salomone, perché Bougainville poneva le Salomone molto più a est (più o meno al posto delle Figi, prendendo un abbaglio di circa venti gradi di longitudine e dieci di latitudine). In altri termini se Rasputin, a naso, o con qualche strumento che nel 1913 non poteva mancare a uno scorridore dei mari, sa quello che Pratt sa e ci dice, e cioè che egli aveva raccolto Cain e Pandora tra il 155° meridiano (est, direi) e il 6° parallelo sud, controllando su Bougainville dovrebbe essere sicuro di trovarsi vicino alla baia di Choiseul a poca distanza dalle Luisiadi di cui sta leggendo, ma lontanissimo dalle Salomone (dove tuttavia c’è senza saperlo). 46 maneira sarcástica, em chamá-lo de Sexta-Feira e de se fazer chamar de Robinson. Referência à obra de Daniel Defoe, ‘Robinson Crusoé’, onde o protagonista, sozinho em uma ilha, nomeia um nativo a partir do dia da semana quando acontece o encontro entre os dois. FIGURA 20 – ‘A Balada do Mar Salgado’ 47 A seguir, na página 42, Corto cita uma passagem da Bíblia, durante uma discussão com Pandora. FIGURA 21 – ‘A Balada do Mar Salgado’ Aqui, é interessante notar como os “caminhos infinitos e misteriosos” podem ser entendidos. Nesse momento surge uma espécie de relação entre Corto e Pandora. Uma relação de amor e ódio que se desenrolará durante as aventuras seguintes marinheiro. Uma possível interpretação para essa citação literária seria o surgimento desse sentimento entre os dois. O ódio se tornando amor. Uma possibilidade entre outras infinitas e um destino não imaginado, ou seja, uma forte relação de ódio (pelo menos até esse trecho da trama) que se transformará em amor (pelo menos uma relação caminhando nessa direção) até o final do romance. Além dessa interpretação, é possível identificar na citação de Corto uma definição de si mesmo. Ele é o marinheiro que vive sem destino pelo mundo. 48 Talvez os seus caminhos sejam livres como os caminhos de Deus, suas possibilidades infinitas e suas razões misteriosas. É claro, não existe aqui nenhuma tentativa de comparação entre Deus e Corto, apenas uma outra forma de se explicar o personagem. Uma outra referência bíblica aparece na página 57, mas dessa vez temos um cruzamento entre a baleia de Jonas e a do Capitão Ahab, escrita por Melville. Em uma conversa entre Caim e Tarao, o primeiro cita o livro de Gênesis, ao falar da criação de Deus, mais especificamente das baleias, enquanto Tarao tenta pescar um peixe, Caim, referencia a baleia de Jonas e a grande baleia branca do Capitão Ahab. Logo após a conversa, parece, como uma baleia branca (a de Jonas ou a de Melville) o navio alemão e salva os náufragos do catamarã. 49 FIGURA 22 – ‘A Balada do Mar Salgado’ 50 Outra citação literária acontece na página 63, quando aparece Caim lendo e citando uma passagem de The Rime of the Ancient Mariner, do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge. 51 FIGURA 23 – ‘A Balada do Mar Salgado’ 52 Corto Maltese, na página 149, retoma algumas lendas nórdicas, enquanto cura um ferimento de bala do comandante alemão Christian Slüter. Ele faz uma referência a lenda que deu origem a muitas obras, entre elas, a ópera de Wagner ‘O anel de Nibelungo’. FIGURA 24 – ‘A Balada do Mar Salgado’ 53 Já no final da obra, na página 169, Caim cita um trecho de Medéia, de Eurípedes, comparando Corto e as Três Santas Marias a Jasão e Argo. FIGURA 25 – ‘A Balada do Mar Salgado’ 54 É interessante notar que, em quase todas as referências literárias de Pratt, existe uma preocupação em usar temas encontrados em sua própria obra, como Literatura envolvendo mar, aventuras em ilhas desertas, aventureiros, etc. A ‘Balada do Mar Salgado’ é uma obra de aventura que extrapola suas próprias limitações. Com uma série de personagens complexos, encontros entre realidade e imaginação, Hugo Pratt constrói, com um traço simples e refinado, a imagem de um marinheiro errante que representa um homem moderno, cosmopolita e que busca a harmonia com o mundo a sua volta. 55 3.2 ANDREA PAZIENZA Sobre sua própria vida, Andrea Pazienza (1997, p. 3-4) diz: Me chamo Andrea Michele Vincenzo Ciro Pazienza, tenho vinte quatro anos, tenho um metro e oitenta e seis centímetros de altura e peso setenta e cinco quilos. Nasci em San Benedetto del Tronto, meu pai é de pugliese, tenho um irmão e uma irmã de vinte e dois e quinze anos. Desenho desde que tenho dezoito meses, sei desenhar qualquer coisa de qualquer jeito. [...] Fiz a escola secundária de arte, uma dezena de personagens, e em 74 virei sócio de uma galeria de arte em Pescara. [...] Ainda em 74 fui para Bolaffi. Desde 75 vivo em Bologna. Fui membro de 71 até 73 dos Marxistias-Lenistas. Sou míope, um pouco estrábico, alguns dentes cariados e nenhum restaurado. [...] Desde 76 publico em algumas revistas. Desenho pouco e contra a minha vontade [...] eu sou o melhor desenhista vivo. Amo os animais, mas não suporto ajuda-los. Morrerei em 6 de janeiro de 1984.24 A arte de Paz (como é mais conhecida) não é limitada às histórias em quadrinhos. Ele também foi escritor de teatro, pintor e poeta. Pazienza constrói a sua obra consciente do movimento artístico dos anos setenta e oitenta. Píer Vittorio Tondelli (1999, p. 204-208) define: Andrea Pazienza conseguiu representar, em vida, e também em morte, o destino, as abstrações, a alegria, a genialidade, a miséria, o desespero de uma geração que, para resumir, chamaremos de Bolonheses de 1977. [...] Andrea Pazienza foi, desde o início, o grande cantor desse universo juvenil através das fábulas de Straordinaire avventure di Pentothal, publicadas a partir de 1977[...]. Narcisismo e autobiografia, jogos de palavras e gírias jovens, técnica revolucionária no desenho e na composição da página, talento inverossímil na conjugação de estilos opostos, mas sempre dotados de um valor muito pessoal, político e Movement, drogas e mentiras, mulheres e amigos e brancos e grupos, delírios e paranóias... Ainda hoje, folheando aquelas páginas, se entende todo vôo como Pazienza se define, na Itália, e sobretudo no exterior, do James Joyce dos quadrinhos.25 24 Mi chiamo Andrea Michele Vincenzo Ciro Pazienza, ho ventiquattr'anni, sono alto un metro e ottantasei centimetri e peso settantacinque chili. Sono nato a San Benedetto del Tronto, mio padre è pugliese, ho un fratello e una sorella di ventidue e quindici anni. Disegno da quando avevo diciotto mesi, so disegnare qualsiasi cosa in qualunque modo. Da undici anni vivo solo. Ho fatto il liceo artistico, una decina di personali e nel '74 sono divenuto socio di una galleria d'arte a Pescara: "Convergenze", centro di incontro e di formazione, laboratorio comune d'arte. Sempre nel '74 sono sul Bolaffi. Dal '75 vivo a Bologna. Sono stato tesserato dal '71 al '73 ai marxisti-leninisti. Sono miope, ho un leggero strabismo, qualche molare cariato e mal curato. Fumo pochissimo. Mi rado ogni tre giorni, mi lavo spessissimo i capelli e d'inverno porto sempre i guanti. Ho la patente da sei anni ma non ho la macchina. Quando mi serve, uso quella di mia madre, una Renault 5 verde. Dal '76 pubblico su alcune riviste. Disegno poco e controvoglia. Sono comproprietario del mensile "Frigidaire". Mio padre, anche lui svogliatissimo, è il più notevole acquerellista ch'io conosca. Io sono il più bravo disegnatore vivente. Amo gli animali ma non sopporto di accudirli. Morirò il sei gennaio 1984. 25 Andrea Pazienza è stato, dall’inizio, il grande cantore di questo universo giovanile attraverso lê tavole delle Sraordinarie Avventure di Pentothal, pubblicate a partire dal 1977 su Alter e raccolte più tardi in un volume della Milano Libri con una indimenticabile prefazione di Oreste del Buono. Narcisismo e autoniografia, giochi di parole e slang giovanile, tecnica rivoluzionaria nel disegno e nella composizione della tavola, talento 56 Pazienza nasceu em San Benedetto del Toronto, província de Ascoli em 1956. Depois de cursar o “liceo artístico” se inscreveu na DAMS (Dipartimento di Arte, Musica e Spettacolo) em 1973, na Universidade de Bolonha. Se graduou com sua tese que era uma adptação, em formato de história em quadrinhos, da obra de Luigi Pulci, Morgante. Em 1977, estreiou como artista de quadrinhos na revista Alteralter, com sua história ‘Le straordinarie avventure di Pentothal’, uma história que tinha elementos psicodélicos e surrealistas com um protagonista batizado a partir de um sedativo. Depois participou de diversas publicações como ‘Il Male’, ‘Cannibale’ e ‘Frigidaire’, onde produziu inúmeras histórias com influências do quadrinho underground americano, arte da renascença italiana e quadrinhos da Walt Disney – criou ‘Perché Pippo sembra uno sballato’, usando o personagem da Disney, Pateta, como um hippie dos anos setenta. Sua obra sempre foi variada. Ele produziu obras mais simples com um traço se aproximando do cartum até obras mais densas, com temas que falam sobre drogas, violência, política e humor negro. Em 1980, criou Zanardi, trabalhou em revistas como ‘Corto Maltese’ e ‘Comic Art’. Além disso, trabalhou com design, publicidade, posters de filmes, capas de discos, etc. Foi extremamente prolífico durante os anos oitenta, criando cartuns de uma página e também complexas histórias com seu personagem Zanardi. Se Pentothal era o símbolo de Bolonha 77 (com ativismo político, drogas e psicodelia), Zanardi era uma criatura cínica e descompromissada. Uma caricatura dos anos oitenta. inverosimile nella coniugazione di stili opposti, ma sempre riconducibili a un tratto personalissimo, politica e Movimento, droga e sballi, donne e amici e branchi e gruppuscoli, deliri e paranoie... Anche adesso, risfogliando quelle pagine, si capisce al volo come Pazienza sia stato definitm in Italia, e sopratutto all’estero, il James Joyce del fumetto. 57 Em Pompeo, seu último romance gráfico, contou os últimos dias de um viciado em drogas até o seu suicídio. O personagem, que dá nome à obra, é extremamente autobiográfico. A história é contada de forma crua e real. A morte do personagem se confunde com a morte do artista. Em 1988, com 32 anos, morre Andrea Pazienza, provavelmente de overdose, um retorno as drogas que tinha conseguido largar por algum tempo. 58 4.2.1 GLI ULTIMI GIORNI DI POMPEO – FINO ALL’ESTREMO Com ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – fino all’estremo’, temos o fechamento de uma trilogia quadrinhista de Andrea Pazienza iniciada com a publicação da obra ‘Le straordinarie avventure di Pentothal’, no ano de 1982. Na primeira parte dessa trilogia, já é possível notar diversos aspectos que irão povoar o imaginário artístico de Paz. Na obra, está presente um estilo gráfico que se adapta ao tom da situação, ou seja, o autor usa o desenho como uma forma de expressar sentimentos passados pelos personagens e suas histórias. Mais especificamente, em relação ao traço, percebe-se também, apesar da ampla variedade de estilos empregados, uma forte influência dos quadrinhos franceses, mais precisamente do autor Jean Giraud, mais conhecido por Moebius. Sobre essa influência de Moebius, Pazienza produz o seguinte cartum: FIGURA 26 – Cartum de Andrea Pazienza 59 Além disso, existe uma relação entre personagem e autor, ou seja, entre Pazienza e Pentothal, característica essa presente nessa publicação de Paz, e recorrente no desenrolar da produção artística. É interessante notar o modo como o autor cria essas referências em seus personagens (ultrapassando, às vezes, a barreira entre a realidade e a ficção, se inserindo como um personagem de si mesmo, interagindo diretamente com outras de suas próprias criações) e como transporta o seu cotidiano como uma espécie de pano de fundo para fazer suas histórias. A trama de ‘Le straordinarie avventure de Pentothal’ gira em torno do personagem que dá origem ao título da obra, Pentothal, e tem como ambientação a cidade de Bolonha, no ano de 1977. A história, que muda de traço gráfico e de estilo de narrativa (hora fluxo de consciência, hora história linear, hora puro nonsense) para se adaptar ao seu próprio conteúdo, busca retratar as contradições, as lutas e os acontecimentos estudantis da época, a partir da visão de seu protagonista. A segunda parte de sua trilogia viria com o lançamento de Zanardi, publicado pela primeira vez em 1983. Dessa vez temos uma diminuição na influência de Moebius na arte de Paz. O seu traço parece ter adquirido maior personalidade. Utiliza-se de uma narrativa mais pessoal. Apesar da evolução na direção de um estilo gráfico mais próprio do autor, temos, ao menos nessa trilogia, uma espécie de permanência de alguns elementos estilísticos de Pazienza. Dentre eles, pode-se destacar a inserção de um autor personagem na obra. Na história, Pazienza discute com o protagonista da história, Zanardi. Além disso, existe uma preocupação sinestésica entre 60 desenho e texto, que se complementam para criar uma mesma impressão no leitor, assim como fora feito em ‘Le straordinarie avventure di Pentothal’. A diferença dessa segunda parte da trilogia parece se concentrar em seu protagonista, Zanardi. Enquanto Pentothal representava o espírito da Bolonha de 1977, Zanardi simbolizava o descompromisso da juventude dos anos oitenta. A trama de Zanardi conta a história de três amigos (o próprio Zanardi, Colasanti e Petrilli) que tentam vencer o tédio que atormenta a vida dos três. As tentativas para superar esse desconforto não têm limites e são feitas sem qualquer tipo de remorso ou escrúpulos. Finalmente, finalizando a trilogia, temos a publicação de ‘Gli Ultimi Giorni di Pentothal – Fino all’estremo’. A obra foi lançada em 1987, um ano antes da morte do autor, e conta, como o título já diz, os últimos dias do protagonista, Pompeo. ‘Gli ultimi giorni di Pompeo – Fino all’estremo’ é um exemplo de arte pós-moderna que se traça nada mais que um retrato (ou até mesmo um auto-retrato), sem nenhum tipo de juízo ou julgamento moral, dos últimos dias de um homem e do seu vício com as drogas. A obra é extremamente crua, visceral e pesada. O universo de Pazienza é assustador pela realidade que apresenta. Fazendo o leitor sentir o que o personagem sente, a partir da figura de um narrador onisciente e um personagem autodestrutivo, Pazienza consegue nos transportar para a mente de seu personagem. Com a leitura, sabemos, sentimos e sofremos como Pompeo. Uma das características mais interessantes de ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino all’estremo’ é o seu caráter premonitório da obra. O personagem de Pompeo se confunde muito com o autor Pazienza. E a morte do autor, devido a 61 uma overdose de heroína, uma ano após o lançamento da obra faz o leitor lembrar o protagonista Pompeo que teve um fim semelhante. Não que a idéia de uma real previsão de morte seja seriamente levada em consideração, mas é interessante notar como a relação entre obra e vida, dentro da arte de Pazienza, é tão forte que ele foi capaz de produzir um romance extremamente autobiográfico e apresentar um possível fim para sua vida que se tornaria real um ano depois. Tal caráter premonitório só consegue ser estabelecido se levarmos em consideração a também forte relação entre personagem e autor, isto é, o que de Pazienza é representado em Pompeo. A característica mais latente é a semelhança visual. Embora isso aconteça em obras anteriores, como citado anteriormente, temos na imagem de Pompeo uma visão de Pazienza para si mesmo, praticamente um auto-retrato. A seguir temos, no traço de Pazienza, seu personagem Pompeo e, em seguida, uma foto do próprio Pazienza segurando uma cópia de seu livro. FIGURA 27 - Pompeo 62 FIGURA 28 – Andrea Pazienza Estabelecida a referência visual que faz o paralelo entre autor e personagem, podemos levantar mais algumas semelhanças que vão fazer a ligação ou confundir a vida de Pazienza e a sua obra. A primeira referência se encontra na página 36. Pazienza praticava a arte marcial do Kendo. Escreveu, aliás, alguns textos sobre o assunto e sua relação com as histórias em quadrinhos. Pompeo, seu personagem também pratica a arte marcial. Temos na página 36, durante uma das viagens de drogas do protagonista, dentro de um redemoinho, uma série de objetos do personagem. Entre eles um shinai (espada de bambu usada para treinamentos no Kendo) e o capacete de bogo (armadura usada no Kendo). 63 FIGURA 29 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Em seguida, na página 85, temos mais uma vez a referência ao Kendo. Dessa vez, Pompeo usa a armadura completa e empunha o shinai. 64 FIGURA 30 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ 65 Além da referência ao Kendo, temos uma segunda semelhança entre a vida de Pompeo e Pazienza. Quando se muda para Bolonha, Pazienza começa a ter aulas no DAMS (Dipartimento di Arte, Musica e Spettacolo) em 1973, na Universidade de Bolonha. Mais uma vez, seu personagem, Pompeo, acompanha tal fato biográfico. Na seqüência que começa na página 49 e se estende até a página 59, temos o personagem Pompeo visitando o DAMS, lugar onde dá aulas de arte e histórias em quadrinhos. Ainda relacionando o artista gráfico que é Pompeo a Pazienza, temos, na página 32 uma indicação do ofício de Pompeo. O personagem, durante mais um período de influência das drogas, descreve, com extrema precisão, os materiais que tem no estúdio. FIGURA 31 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ 66 Pode-se considerar mais uma semelhança entre autor e personagem o fato de ambos serem usuários de drogas. Ao longo de todo o livro, há várias referências às drogas, em momentos em que o protagonista está sob o seu efeito ou não, temos freqüentemente algum tipo de influência das drogas nas ações ou sentimentos do protagonista. É claro que seria demasiado dizer que o que Pompeo sente em relação às drogas era o mesmo relacionamento de Pazienza com as drogas, mas é um fato que ele fosse um usuário que morreu de overdose de heroína. A partir dessa relação entre criador e criatura podemos analisar em que termos Pazienza cria seu romance Pompeo. Primeiramente, como característica do movimento artístico corrente e contemporâneo ao autor, temos uma série de referências a obras, artistas, personagens e objetos culturais em geral que se misturam ao desenrolar do romance, caracterizam a obra. O livro se inicia com o protagonista, Pompeo, lendo um livro do escritor T.S. Elliot, nomeado após o poema do autor, ‘The Waste Land’. É interessante notar que o personagem não lê, nesse momento, o poema em si ou qualquer outra obra de Eliot, mas o prefácio do editor do livro, Alessandro Serpieri. Edição essa publicada pela editora Rizzoli, no ano de 1982. É também curioso que, embora Pazienza tenha escolhido ler a versão italiana da obra, indicada pela leitura que faz o personagem e pelo fato de ler uma edição editada por Serpieri, temos o nome da publicação em inglês e não traduzida em italiano (La terra desolata). 67 FIGURA 32 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Em seguida, na página 14, temos a visão do quarto de Pompeo. Nele podese explicar tanto o personagem como fazer algumas referências à cultura artística de Pazienza. Temos, na parede dois quadros (ou pôsteres) interessantes. O primeiro referencia um artista norte americano (pintor, fotógrafo e diretor de cinema) que transitou entre os movimentos modernista, dadaísta e surrealista chamado Emmanuel Radnitzky, ou como era conhecido, Man Ray. Ainda na parede de Pompeo, temos um segundo pôster. Mais uma vez, Pazienza faz uma referência a si mesmo colocando um de seus personagens, Zanardi, na parede do quarto de seu protagonista. Temos aqui, a capa da edição de Zanardi representada na 68 parede. Embora esse cuidado tenha sido tomado, é interessante notar como, na auto-referência, Pazienza é rigoroso em manter uma certa veracidade, ao passo que, em referências externas, se preocupe apenas em relatar e não com a semelhança entre a obra no mundo real e a versão desta dentro do romance. Isso pode ser aplicado ao pôster de Man Ray na parede ou no livro, ‘The WasteLand’, que seu personagem lia no início da história. Nas imagens abaixo, temos um trecho da página 14 de Pompeo, e, em seguida, a capa os livros Zanardi, de Paz, e La Terra Desolata, de T.S. Eliot. FIGURA 33 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ 69 FIGURA 34 – La terra Desolata FIGURA 35 - Zanardi Em seguida, na página 18, Pompeo, em um café, faz uma refeição enquanto lê diversos jornais italianos e, mais especificamente, bolonheses. 70 FIGURA 36 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Faz também referências a personagens de Walt Disney. Na página 51 temos o próprio Pompeo caracterizado de Pato Donald e seus alunos como os Irmãos Metralha. FIGURA 37 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ 71 Mais uma vez na página 54: FIGURA 38 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Mais adiante, nas páginas 88 e 89, temos uma conversa entre Pompeo e o personagem da Disney, Mickey Mouse. FIGURA 39 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ 72 FIGURA 40 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Uma outrareferência literária acontece na página 99, quando Pompeo começa a ler os ‘Três Mosqueteiros’. 73 FIGURA 41 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ No final do romance, na página 119, temos um trecho de um poema do autor russo Majak. 74 FIGURA 42 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Todas essas referências literárias e poéticas mostram o conhecimento e erudição do autor e reforçam a idéia dessa obra como uma obra pós-moderna. Desde as citações e referências literárias, a apresentação de objetos do cotidiano bolonhês até o uso de personagens e Walt Disney dentro do texto, temos uma mistura de estilos e de informações. Além do mais, durante toda a obra temos uma história que começa sem qualquer tipo de introdução, quer dizer, não temos uma definição do personagem principal ou uma indicação do que a trama pede desse personagem. Ela é direta, como um recorte de vida, um recorte dos últimos dias desse protagonista. Isso também acontece com os personagens que contracenam com Pompeo. Não temos nenhuma explicação de quem são ou o que fazem. Pazienza assume que já são conhecidos pelo leitor todos os detalhes 75 da vida de seu personagem. Se Pompeo os conhece, o leitor também os conhecerá. Isso se estende a todos os detalhes da vida de seu personagem. O seu conhecimento no mundo das drogas, a sua Bolonha tão particular, seus amigos, seu ofício, enfim, todo esse universo criado por Pazienza é apresentado ao leitor como se fossem “velhos amigos”. De acordo com os preceitos da literatura pós-moderna, o autor cria um livro sem moral. É de esperar que em uma história de um viciado em drogas que termina com o seu suicídio seja apresentado algum tipo de julgamento moral do autor. No entanto, Pazienza se abstém. Ele tem o interesse apenas de apresentar os fatos. Mostrar detalhadamente como acontece. Deixando para o leitor a moral da história. O que se pode aprender com a leitura de Pompeo cabe ao leitor decidir. E para fazer isso o autor procura ser imparcial e, ainda mais, apresentar os fatos com a maior veracidade possível. Para fazer isso, Pazienza, além das supracitadas referências culturais que faz em toda a sua obra, tenta passar essa realidade, para que seja sentida como verdadeira, como se fosse em primeira pessoa e não distante como um documentário, através de duas formas mais representativas: o texto e a imagem. Embora pareça óbvio citar texto e imagem como formas de sentir uma realidade em uma história em quadrinhos, temos em Pazienza um uso diferente para isso. Ele não usa texto e imagem apenas como instrumento para contar a sua história, mas se utiliza desse instrumento para se expressar. A obra de Pazienza é sinestésica. Para que o leitor possa se sentir no lugar do protagonista é necessário que se sinta como tal. E Pazienza o faz com maestria. Para isso escreve o texto em uma linguagem bastante próxima da 76 linguagem oral. Com Pompeo, temos um narrador que sofre com o protagonista. A obra, diferente de outras publicações do autor, é muito mais narrada do que baseada em diálogo. Como um texto muito mais íntimo, temos uma presença muito maior de um narrador que procura mostrar como Pompeo se sente. E para isso, utiliza uma linguagem bastante informal. Ao longo de toda a obra é comum esse narrador se referenciar ao protagonista por diversos nomes (Pompeo, Pompi, etc.). Além disso, nos diálogos entre os personagens, temos uma série de usos de palavrões, gírias e expressões locais. Sempre se aproximando da linguagem oral, Pazienza escreve um texto “falado” que se preocupa muito mais com a veracidade, mesmo assim acrescido de um lirismo extraordinário. Além do uso do texto, Pazienza consegue fazer-nos sentir a obra através do uso de imagens. O traço se adapta à situação. O que o protagonista sente é representado visualmente. O traço se torna mais sujo e confuso conforme o protagonista se sente mais perdido e mais em transe pelo uso das drogas. Como Pompeo é retratado também muda bastante durante todo o livro. Na página 15, temos Pompeo dormindo tranqüilamente em sua cama. O personagem se sente calmo, está dormindo. O traço de Pazienza segue esse sentimento. Seu traço é limpo e simples: 77 FIGURA 43 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Na página 27 já existe uma mudança de humor. Temos um personagem mais nervoso e isso se mostra no traço. Pode-se notar como os detalhes tão precisos da página 15 são substituídos por traços grosseiros e pesados da cidade e dos carros do primeiro quadro da página e da expressão nervosa de Pompeo, que não se limita a traçar com o mesmo traço uma expressão diversa, mas mudar completamente a forma de desenhar para que o leitor se sinta tão nervoso como o protagonista. 78 FIGURA 44 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Já na página 98 temos um Pompeo completamente ensandecido. A página é mostrada ao contrário, apresenta letras amontoadas de tamanhos e formas distintas. O traço também é confuso. Hora se aproxima do cartum, hora dos quadrinhos underground americanos, hora dos trabalhos com carvão. Tudo isso mostrando as sensações do protagonista a serem experimentadas pelo leitor. 79 FIGURA 45 – ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’ Em ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’, Pazienza cria sua obraprima. Ele consegue criar um romance que é, ao mesmo tempo, feio e belo, 80 pesado e leve. Suas palavras, tão informais criam belas poesias, suas imagens tão particulares e de estilo variado conseguem com tanta facilidade fazer com que o leitor tenha uma experiência real e dolorosa. Um escritor moderno que consegue criar, com um meio artístico marginalizado e desprezado até hoje, uma importante obra de arte da literatura pós-moderna italiana. 81 5 CONCLUSÃO Desde os homens pré-históricos que tinham na arte rupestre, como é hoje conhecida, uma forma de representar suas histórias, passando pelos hieróglifos egípcios, as colunas romanas e tantos outros exemplos, temos uma forma de arte muito antiga de contar histórias, de representar acontecimentos e fatos usando imagens e palavras. Como conhecemos hoje, a história em quadrinhos é uma evolução de uma produção artística nascida final do século XIX, sem muita ligação direta com seus antepassados das cavernas. Eram publicações de cunho cômico que apareciam em jornais com o intuito principal de entreter. Esse tipo de publicação foi alcançando um público cada vez maior, o que resultou na criação de revistas próprias para compreender a necessidade de público e aumentar as vendas. O número dessas revistas foi aumentando e se multiplicando. Mudou-se também a temática. Se no início as publicações limitavam-se às tiras de humor, temos, com o decorrer dos anos, um aumento no número de temas abordados pelas publicações. Surgem as histórias de superheróis, de romance e, na metade do século XX, a criação de obras voltadas para um público adulto, tratando de questões mais sérias, com características mais artísticas. Nos dias de hoje, temos uma grande variedade de temas e formas de abordagem na criação das histórias em quadrinhos, embora tenham o seu valor ainda confundido com a forma, causando, portanto, a permanência da crença de que para publicar história em quadrinhos deve-se limitar a publicar material infantil, histórias de super-heróis, ou, no melhor dos casos, algum tipo de material didático. 82 Histórias em quadrinhos não poderiam, então, falar sobre assuntos políticos, dramas, documentários ou biografias de personagens históricos importantes. Ainda hoje, essa forma de arte enfrenta uma série de preconceitos e reservas do meio acadêmico (e da população em geral) e recebe freqüentemente o título de uma arte marginal, menor ou nem mesmo o título de arte, mas um instrumento meramente introdutório à literatura. Com uma série de características, particularidades e formas de expressão próprias, é possível afirmar que as histórias em quadrinhos se sustentam por si só como uma forma de arte individual e independente. Mais do que o uso de imagens para ilustrar uma prosa, as histórias em quadrinhos vão além dessa função. Não é necessariamente uma história contada por palavras, mas com imagens. Uma justaposição de imagens que usa como recurso (apenas um deles) palavras, criando assim uma nova linguagem de expressão, uma nova sintaxe, enfim, uma forma de arte completamente autônoma. Dois grandes expoentes italianos dessa forma de arte são Hugo Pratt e Andrea Pazienza. Os dois conseguiram, de maneiras distintas, ultrapassar barreiras de preconceitos e elevar o status de suas obras em uma forma de arte marginal. Nesses dois autores existe, de maneira muito presente, o fator das suas vidas influenciando suas obras. Suas biografias influenciando sua bibliografia, por assim dizer. O espírito aventureiro de Hugo Pratt e suas experiências de vida o fizeram criar no seu alter-ego, Corto Maltese, sua imagem idealizada. Um marinheiro errante, sem raízes que vaga pelo mundo vivendo aventuras. Um personagem 83 cosmopolita, em completa sintonia e harmonia com o seu ambiente. Uma espécie de anti-herói, que vive por um código de ética e honra bastante pessoais. Nos quadrinhos de Pratt temos a influência de sua vida na criação de seu protagonista e, ainda, na criação de seu próprio universo. Pratt povoa o imaginário de Corto com as suas próprias experiências de vida. Muitos dos lugares em que Corto vive aventuras são amplamente conhecidos pelo autor, o que dá aos seus romances gráficos, com forte teor histórico, um grande senso de verossimilhança, credibilidade e veracidade as suas histórias. Além disso, o inverso também acontece. Pratt vive sua vida como se fosse uma aventura. Em diversas entrevistas e relatos de amigos é possível encontrar uma série de “aventuras” vivida pelo autor. Até a forma como dá entrevistas se assemelha a uma história de aventuras. Criando mistérios que vão se revelando pouco a pouco com cada pergunta. Pratt consegue criar com maestria uma imagem idealizada de si em Corto. O seu alter-ego apresenta tudo o que gostaria de ser. Tal caracterização é tão forte e bem idealizada que seus romances gráficos, com um intuito primário de se produzir histórias de aventura, ultrapassa seus próprios limites e representa, com todas as suas características, muito mais que isso. Andrea Pazienza tem uma obra fortemente influenciada pela sua biografia. Embora a influência tenha semelhante intensidade, a forma em que é representada em suas obras é de forma completamente diferente. Enquanto Pratt cria em Corto uma versão idealizada de si, Pazienza expressa toda a sua insegurança nos seus personagens, isto é, os personagens de Pazienza 84 representam todos os conflitos, contradições e problemas do autor e do mundo que o rodeia. Ainda diferente de Pratt, que concentra a maior parte das particularidades de seu mundo real em seu protagonista, Paz transmite essa influência através diversos elementos de sua obra. Desde uma Bolonha muito pessoal, vista pelos olhos do autor, passando por temáticas relacionadas com a sua vida pessoal e, obviamente, com personagens. Influenciado pela arte pós-moderna, Pazienza cria um tipo de romance gráfico muito mais relacionado com a produção literária de sua época. Obras com o intuito de representar uma realidade forte e pesada, e, ainda assim, sem estabelecer qualquer juízo de valor. Isso acontece durante a obra de Paz e, principalmente, em ‘Gli Ultimi Giorni di Pompeo – Fino All’Estremo’. Um estudo relacionando vida e obra de autores se torna um tanto arriscado, pois não apenas permite, mas exige um julgamento muito mais íntimo e pessoal de vidas e situações alheias a partir de análises de obras ficcionais. O estudo, então, não pode ter a pretensão de assumir suas interpretações como verdades absolutas, mas apenas como uma forma mais completa de analisar uma obra. Esse tipo de análise faz com que se entenda uma obra além dos limites de suas próprias páginas. Assim, pode-se ter uma noção do porquê o que foi impresso está lá, do porquê as coisas funcionam de uma certa maneira em obras de um determinado autor. 85 REFERÊNCIAS ECO, Umbero. Geografia Imperfetta di Corto Maltese, In:________. Umberto Eco, Tra menzogna e ironia. 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