UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
LUCIMAR ROSA DIAS
No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao racismo
v.1
EDIÇÃO REVISADA
São Paulo
2007
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LUCIMAR ROSA DIAS
No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao racismo
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de doutor em Educação.
Área de concentração: Didática, Teorias de
Ensino e Práticas Escolares.
Orientadora: Profª.Drª Denice Barbara Catani
v.1
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Ficha Catalográfica elaborada pelo serviço de Biblioteca da FE/USP
371.12 Dias, Lucimar Rosa
D541n
No fio do horizonte: educadoras da primeira e o combate ao racismo/ Lucimar
Rosa Dias; orientadora Denice Barbara Catani. – São Paulo, SP: s.n., 2007
2 v.: il. ; tabs.
Tese (Doutorado – Programa de Pós - Graduação em educação. Área de
concentração: Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares) – Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo
1. Formação de professores (Campinas, SP.: Campo Grande , MS) 2. Ensino infantil
3. Relações étnicas e raciais (Educação) 4. Políticas Públicas (Educação) I. Catani,
DeniceBarbara, orient.
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DEDICATÓRIA
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À diáspora africana no Atlântico. Às irmãs e aos irmãos no Haiti,
nos Estados Unidos, em Cuba, no Panamá, na Venezuela, na
Jamaica, na Colômbia, no Equador, na República Dominicana, no
Peru e em tantos outros lugares destas Américas.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço às educadoras Abibatou, Fama, Ken, Fatou e Mariama, de Campo GrandeMS, e às educadoras Mame, Nafissatou, Aicha, Aissatou e Aminata, de Campinas-SP, pela
forma generosa como relataram suas práticas de combate ao racismo na primeira infância.
À Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul em nome do
senhor Hélio de Lima que respondia pela pasta na época da pesquisa e gentilmente colocou
sua equipe à disposição autorizando o fornecimento de dados para nosso trabalho.
À Secretaria Municipal de Educação de Campinas em nome do senhor Hermano de
Medeiros Ferreira Tavares que respondia pela pasta na época da pesquisa e gentilmente
colocou sua equipe à disposição autorizando o fornecimento de dados para nosso trabalho.
Às ex-gestoras da Política de Combate ao Racismo da Secretaria de Estado de
Educação de Mato Grosso do Sul, professoras Dina Maria da Silva, Nilda da Silva Pereira e
Benedita Marques Borges, pelas entrevistas.
Às professoras Ana Lúcia da Silva Sena e Irinéia Lina Cesário, técnicas da equipe de
Mato Grosso do Sul na época da pesquisa, pela disposição em responder a muitas questões
sobre o trabalho.
Agradeço a Sueli Gonçalves e a Lucinéia Crespim Pinho Micaela, por terem
possibilitado o acesso a informações importantes sobre os trabalhos desenvolvidos na
Secretaria de Educação do Município de Campinas.
À Fundação Ford, em nome de Joan Dassin, Diretora Executiva do International
Fellowships Program (IFP, o Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da
Fundação Ford), pela concessão da bolsa e de todos os outros benefícios que permitiram
minha dedicação aos estudos. Ao ser selecionada, tornei-me, como bolsista internacional da
Fundação Ford, parte de um projeto ambicioso de ações afirmativas que assegura a lideranças
dos movimentos sociais a possibilidade de incursionar pelo mundo da academia sem
abandonar o front.
À Fundação Carlos Chagas, em nome de Fúlvia Rosemberg, coordenadora do
Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford no Brasil. Também
agradeço a Márcia, Meire, Raquel e Maria Luiza, da equipe da Fundação.
Agradeço as observações críticas e cuidadosas feitas pelas Profa. Dra. Rosângela
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Gavioli Pietro e pela Profa. Dra. Rachel de Oliveira na qualificação.
Agradeço aos demais membros da banca, Profa. Dra. Marly de Jesus Silveira
Profa.Dra.Nilma Lino Gomes e Prof.Dr. Elizeu Clementino de Souza
pelas
ricas
contribuições .
Especialmente, agradeço à Profa. Dra. Denice Barbara Catani pela interlocução fértil,
pelas trocas constantes e pela generosidade durante a orientação. Seu acolhimento e amizade
foram fundamentais para a realização deste trabalho. Obrigada por ter acreditado em mim
quando eu mesma duvidei que poderia terminar a pesquisa.
Agradeço à professora Regina Pahim Pinto pelo auxílio nas horas de angústia e à
professora Maria Lúcia Zoega pelas muitas sugestões de melhoria no texto inicial.
Agradeço, também, pela ajuda em vários momentos os amigos e amigas: Marlene,
Bartô, Mariete, Elba, Anamaria, Martinha, Ana Lúcia, Ido, Gleide, Waldete, Cidinha, Maria
Pankararu, Patricia, Eliane, Angela, Mafoane, Júlia, Shirley e aos outros e outras que não
foram citados, mas certamente deram sua contribuição.
Agradeço à Profa Dra. Maria Aparecida Silva Bento pelo tratamento profissional e ao
mesmo tempo afetuoso.
Agradeço ao Jucelino Alves Avelino pela formatação do texto em tempo hábil.
Obrigada ao meu pai Geraldo, aos meus irmãos, Gege, Edmar e Paulo, e às minhas
irmãs, Lourdes, Dina e Rose pelo carinho que nunca falta. Aos meus cunhados e cunhadas
pela torcida. Aos meus sobrinhos e sobrinhas pelos sorrisos tão necessários à vida. Aos
sobrinhos-netos Caio e Paulo, que estão a me lembrar que a vida se faz de contínuos. E ao
Otávio que vai chegar.
Agradeço à minha mãe, Maria Odete Rosa, por me ensinar a ter fé na vida e por me
confortar quando eu preciso, com seu afeto sem fim. Você é tudo que se poderia desejar de
uma mãe. Obrigada.
Ao meu sogro, Fabiano, e à minha sogra, Najla, pelo afeto e pela ajuda no dia-a-dia.
A meu marido, Fabiano Maisonnave, que soube com paciência e carinho se afastar e
se aproximar nos momentos certos e trabalhou longas horas na revisão.
Agradeço ao meu filho, Fabiano Dias Maisonnave. Sua existência faz a minha muito
melhor. É a luz no meu caminho. Sorrisos e bravuras, impaciências e canduras, enfim, é tudo!
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Para a infância negra
Construiremos um mundo diferente
Nutrido ao axé de Exu
Ao amor infinito de Oxum
à compaixão de Obatalá
à espada justiceira de Ogum
Abdias do Nascimento
Há um problema que não aparece no fio do horizonte, mas
que poderia muito bem surgir por aí um dia desses, para
melhorar a situação de todos nós. Refiro-me à necessidade
da emergência de um movimento negro, reivindicativo,
estruturado, de escopo nacional, similar ao Movimento dos
Trabalhadores
Rurais
Sem
Terra.
Situados
majoritariamente nas camadas mais desfavorecidas da
população, os negros polarizam todos os itens da dívida
histórica e social do país. A afirmação da identidade negra,
calcada na maioria cultural e na quase maioria demográfica
formada pelos afro-brasileiros, poria em primeiro plano,
com grande força política, todas as mazelas sociais e
culturais do país.
Luiz Felipe de Alencastro
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RESUMO
DIAS, Lucimar Rosa. No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao
racismo. 2007. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Este trabalho teve como principal objetivo compreender os modos pelos quais educadoras da primeira
infância se apropriaram de conhecimentos adquiridos em cursos de formação continuada de
professores, cujo enfoque era o combate ao racismo e a maneira pela qual transformaram, a partir daí,
as suas práticas pedagógicas. Para a realização da pesquisa, foram analisadas as iniciativas
desenvolvidas pela Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul e pela Secretaria
Municipal de Educação de Campinas-SP. Buscou-se estruturar a pesquisa de forma descritiva e
analítica, ressaltando especificidades, aproximações e distanciamentos na concretização das
iniciativas. Os resultados contribuíram para ampliar a compreensão dos movimentos que políticas de
combate ao racismo percorrem para se institucionalizarem e produzirem práticas que se configurem na
construção de uma educação produtiva das relações étnico-raciais. O trabalho se ancora em
concepções da teoria crítica da educação, para a qual as práticas pedagógicas estão relacionadas com
as práticas sociais, sendo tarefa do educador atuar sobre a realidade social para provocar as rupturas
necessárias. Neste caso, para a descontinuidade da produção das desigualdades, sobretudo a racial.
Privilegiamos na análise as contribuições dos autores Henry Giroux, Paulo Freire, Jurjo Torres
Santomé, Petronilha Beatriz Gonçalves, Nilma Lino Gomes e António Nóvoa, entre outros. Na
concretização da pesquisa foram realizadas entrevistas com gestores educacionais dos dois locais e
com educadoras, além de análise documental. Ao final, constata-se que o poder público, no caso de
Mato Grosso do Sul, não investiu o suficiente no trabalho a fim de colaborar para que todas as
educadoras efetivassem um trabalho de qualidade e contínuo, não houve compra de materiais nem
outras iniciativas de formação e ocorreram várias trocas na coordenação da política causando vários
transtornos ao trabalho. Em contrapartida em Campinas várias iniciativas de formação são
empreendidas e há compras de material didático, além da permanência de pessoas na coordenação do
trabalho por vários anos. Tais disparidades ocasionam resultados bastante diferenciados nas práticas
pedagógicas das educadoras. Entretanto constata-se que a maioria delas, após a participação nessas
formações, tornam-se menos tolerantes com qualquer tipo de discriminação, constroem metodologias,
interferem na proposta curricular, influenciam na formulação dos projetos pedagógicos de suas
instituições, produzem material didático-pedagógico e sentem-se fortalecidas para desenvolverem
atividades de caráter anti-racista com as crianças pequenas colaborando na construção de uma
sociedade sem discriminações.
Palavras-chave: Formação de Professores – Relações Raciais – Educação Infantil – Política Públicas
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ABSTRACT
DIAS, Lucimar Rosa. In the wire of the horizon: educators of first infancy and the combat to
racism. 2007. Thesis (Ph.D.) - Department of Education of the University of São Paulo.
This research seeks to understand the way primary school educators absorb and include in its daily
practice the knowledge acquired in courses of continued formation, whose approach is aimed to
challenge racism in school. These initiatives had been developed by two secretaries of education, the
State Secretary of Education of Mato Grosso of Sul (SED), and the City Secretary of Education of
Campinas-SP. The work consisted of description-analytical field study and attempted to interpret both
experiences in their peculiarities and common grounds. The results contribute to understand the black
movements` efforts to fight racism and to produce positive social practices in ethnic-racial relations.
This study is based in premise that pedagogical practices are related to social ones, being the task of
the educator to act on the social reality and to provoke the necessary ruptures. We used in the process
the works of authors such as Henry Giroux, Paulo Freire, Jurjo Torres Santomé, Petronilha Beatriz
Gonçalves, Nilma Lino Gomes, and António Nóvoa, among others. Interviews with educational
managers and with educators were conducted in both experience, as well as the documentary analysis.
In the end, there was evidence that the educators who took part of these courses became less tolerant
with any kind of discrimination, build methodologies, intervene in the proposed curricular, influence
in the planning of pedagogical projects, produce pedagogical material, and fell fortified to develop
anti-racist activities with small children.
Key words: Teachers’ Training - Racial Relations - Primary Education - Public Polices
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Pertencimento racial das educadoras de Campo Grande-MS............................. 140
Quadro 2 - Formação e tempo de atuação das educadoras de Campo Grande - MS............. 146
Quadro 3 -Pertencimento racial das educadoras de Campinas - SP .................................... 226
Quadro 4 - Formação e tempo de atuação das educadoras de Campinas -SP ...................... 229
Imagem 1 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês....................................... 43
Imagem 2 - Site da empresa Johnson & Johnson versão em português.................................. 44
Imagem 3 - Site da empresa Johnson & Johnson versão em português.................................. 44
Imagem 4 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês....................................... 44
Imagem 5 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês....................................... 44
Fotografia 1 - Fatou com seus alunos apreciando obra de arte ............................................ 200
Fotografia 2 - Criança olhando-se no espelho e admirando suas características ................. 204
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Evolução da Taxa de Analfabetismo em Mato Grosso do Sul e Brasil para a
População Acima de cinco Anos de Idade – 1985-2001 (%)............................................... 116
Tabela 2 -Evolução do Número de Matrículas por Depedência Administrativa na Prê-escola,
Ensino Fundamental e Ensino Médio - 1980-2002 ............................................................. 117
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABC - Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano.
ABCDMRP - Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão
Pires e Rio Grande da Serra.
ABREVIDA - Associação Brasileira de Educação Cultura e Preservação da Vida.
ANFOPE - Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação.
ANPED - Associação Nacional de Pesquisa em Educação.
APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.
APNS - Agentes de Pastoral Negros.
BA - Bahia.
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento.
CEAFRO - Centro de Estudos Afro-Orientais.
CECUN - Centro de Estudos e Cultura Negra.
CEDENPA - Centro de estudos e defesa do negro do Pará.
CEERT - Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades.
CEFORMA - Centro de Formação Profissional.
CEI - Centro de Educação Infantil
CEIs - Centros de Educação Infantil.
CEPONE - Comitê de Educação Para a População Negra
CEPPIR - Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial de MS
CNE - Conselho Nacional da Educação
CNEC - Campanha Nacional de Escolas Cenecistas
CONSEPE - Conselho de Ensino e Pesquisa.
COPEED - Coordenadoria de Políticas Específicas em Educação.
DCEER - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
DF - Distrito Federal
DNA - Ácido Desoxirribonucléico
DOT - Diretoria de Orientação Técnica.
EMEIs - Escolas Municipais de Educação Infantil.
EUA - Estados Unidos da América
FAEBA - Faculdade de Educação da Universidade do Estado da Bahia
FCRC - Fundação Centro de Referência da Cultura Negra.
FEUSP - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
FIC - Faculdade de Campo Grande.
FORUNDIR - Fórum de Diretores das Faculdades/Centros de Educação das Universidades
Públicas.
FUMEC - Fundação Municipal para a Educação Comunitária
FUNDEB - Fundo de Manutenção para o Desenvolvimento da Educação Básica.
FUNDEF - Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação.
GELEDÉS - Instituto da Mulher Negra
GRUCON - Grupo União e Consciência Negra.
GT - Grupo de Trabalho
GTI - Grupo de Trabalho Interministerial.
IABA - Instituto Afro Brasileiro Araguainense.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEAFRO - Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros.
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LDBN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
MEC - Ministério da Educação
MG - Minas Gerais
MIPID - Programa Memória e Identidade: Promoção da Igualdade na Diversidade.
MN - Movimento Negro
MNU - Movimento Negro Unificado
MS - Mato Grosso do Sul
NAEDS - Núcleos de Educação Descentralizada.
NEABS - Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros
NEN - Núcleo de Estudos do Negro.
NEPRE - Núcleo de Estudos e Pesquisa de Relações Raciais na Educação.
NUPES - Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP.
OIT - Organização Internacional do Trabalho.
ONGs - Organizações Não-Governamentais.
ONU - Organização das Nações Unidas.
OP - Orçamento Participativo.
PA - Pará
PAC - Programa de Atendimento à Criança.
PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais.
PDT - Partido Democrático Trabalhista.
PENESB - Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira.
PI - Piauí.
PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNDH - Programa Nacional de Direitos Humanos.
PNE - Plano Nacional de Educação
PNE - Portador de Necessidades Educacionais Especiais
PP - Projeto Pedagógico.
ProInfantil - Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação
Infantil.
PT - Partido dos Trabalhadores.
PUC-SP - Pontíficie Universidade Católica de São Paulo.
RS - Rio Grande do Sul
SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
SC - Santa Catarina
SE - Sergipe
SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
SED/MS - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul.
SEDEPRON - Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras.
SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
SETTAS - Secretaria de Estado de Trabalho, Assistência Social e Economia Solidária.
SME - Secretaria Municipal de Educação de Campinas
SP - São Paulo
SUPED - Superintendência de Políticas Educacionais.
TDC - Trabalho Docente Coletivo
TDPR - Trabalho Docente de Participação em Projetos
TEN - Teatro Experimental do Negro.
TEZ - Grupo Trabalhos e Estudos Zumbi
UCAM - Universidade Cândido Mendes.
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UEM - Universidade Estadual de Maringá.
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFBA - Universidade Federal da Bahia.
UFF - Universidade Federal Fluminense.
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
UFMT - Universidade Federal do Mato Grosso.
UFPB - Universidade Federal da Paraíba.
UFSCar - Universidade Federal de São Carlos.
UNAES - União da Associação de Educação Sul-Mato-Grossense.
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
UNIAFRO - Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições.
UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas.
USP - Universidade de São Paulo
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SUMÁRIO
1.
Apresentação
19
2.
Introdução
23
Capítulo I - A Pesquisa: trajetórias e construções
1.
Construindo o objeto, os objetivos e as hipóteses.
31
2.
Metodologia
33
3.
Tratamento das entrevistas
40
4.
Explicitando conceitos: discriminação racial, preconceito, racismo e raça.
41
5.
Formação de Professores: múltiplos olhares.
50
6.
Educação infantil e a questão racial
60
7.
Políticas Públicas e a questão racial - ontem e hoje
67
8.
Apropriação - múltiplas possibilidades
83
Capítulo II - Experiências de Combate ao Racismo: procuras e encontros
1.
Contexto
86
2.
Iniciativas de formação de professores em algumas regiões do Brasil
91
2.1. Região Sudeste
2.2. Região Sul
2.3. Região Centro-Oeste
2.4. Região Nordeste
2.5. Região Norte
3. Instituições que realizaram experiências de formação
91
98
102
104
106
107
4.
110
Considerações
Capítulo III - A experiência da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso do Sul
1.
Introdução
114
2.
Situação educacional de Mato Grosso do Sul
116
3.
Política de Combate ao Racismo na SED/MS
118
4.
Combate ao racismo na escola: o curso analisado
129
5.
4.1. O curso, alguns pressupostos de formação e suas relações com o tema.
Construção da análise: categorias de interpretações
5.1. Profissionalidade
5.1.1. Identidade em construção e pertencimento racial: o que os olhos não vêem
5.1.2.
Ciclos de vida Profissional - o tempo como medida?
5.1.3.
Experiência de Vida - do particular ao social
6. Ações Formadoras
6.1. Metodologias em uso, formação em curso.
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135
138
139
140
144
151
155
157
7.
6.2. Conteúdos do curso: o proposto e o apreendido
Dimensão Político-Administrativa.
159
166
Capítulo IV- Práticas Pedagógicas de combate ao racismo na primeira infância
em MS
1.
Introdução
171
2.
Currículo da educação infantil: implicações nas práticas pedagógicas de combate ao
racismo
172
3.
Visitas aos Ceis: "silêncios" e "barulhos" sobre a questão racial
178
4.
Pressupostos Pedagógicos: nortes para trabalhos com o combate ao racismo
180
5.
Conteúdos trabalhados
183
6.
Atividades com linguagens
185
6.1. Poder do verbo: a utilização de uma linguagem engajada
185
6.2. Literatura infantil: velhos livros e novos olhares
187
6.3. Confecção de livros e reinvenção de histórias: a falta que não resulta em ausência
191
7. Pintando o sete: o fazer artístico como recurso metodológico
193
7.1. Confecção de bonecas
194
7.2. Possibilidade de experimentando ser Outro: dramatização
196
7.3. Imagens refletidas: confecção de cartazes considerando a diversidade étnico-racial
198
7.4. Apreciação de obras de arte: todos os grupos étnico-raciais produzem
199
8. Corporeidade: cada um tem sua beleza, todas têm o seu valor
200
8.1. "Espelho, espelho meu, diga se há no mundo, alguém mais bela do que eu?"
8.2. Momentos de pentear : uma ação pedagógica
9. Considerações acerca das práticas coletadas em Campo Grande
203
205
210
Capítulo V- A experiência da Secretaria Municipal de Educação de Campinas-SP
1.
Introdução
214
2.
Situando a cidade de Campinas e a Secretaria Municipal de Educação
214
3.
Consolidação do espaço para discussão da temática de um combate ao racismo na
Secretarias da Educação de Campinas-SP
216
4.
Formação de educadores para a igualdade racial na escola: o curso
222
5.
A construção da análise: categorias de interpretações.
224
5.1. Profissionalidade
5.1.1.
Pertencimento Racial.
5.1.2.
Ciclo de vida profissional
5.2. Ações formadoras
5.2.1.
Metodologias em uso na formação em curso.
5.3. Questões Político-administrativas: compromissos
5.3.1.
Compromisso da Secretaria
225
226
227
232
234
238
238
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5.3.2.
5.3.3.
Compromisso da escola
Compromisso do educador
240
243
Capítulo VI - As Práticas Pedagógicas de combate ao racismo na primeira
infância em Campinas
1.
Introdução
248
2.
Lugares e encontros com os sujeitos da pesquisa
249
3.
Pressupostos Pedagógicos
251
4.
Dimensão curricular: conteúdos e metodologias
254
5.
Conteúdos trabalhados pelas educadoras de Campinas
259
5.1. Atividades com linguagem - leitura de livro e conversa na roda
5.2. Fazendo arte
5.3. Confecção de bonecas negras
5.4. Confecção de cartazes
5.5. Exposição de objetos
5.6. Trabalho com hip hop e grafite.
5.7. A apreciação da obra de arte
6. Corporeidade: crianças sujeitos das práticas.
6.1. Atitudes: crianças brancas e negras e suas reações
6.2. Meninas negras penteiam o cabelo, meninos negros "perdem" o cabelo
Considerações Finais
Refererências
Apêndice
Anexos
260
263
264
266
267
268
269
271
273
276
282
290
308
317
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Canto interior de uma noite fantástica
Sereno, mas resoluto
aqui estou – eu mesmo! – gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado
Ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
Do lado de cá – pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões
Não quero tudo quanto me prometam aliciantes
Nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro – o meu desejo é antes
o desejo dos muitos com que me pareço
Quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
E se for só – ainda assim prossigo
num mar de tumulto impelido os remos sem galera
Que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiras e viscosos
Que me derrubem e arremessem ao chão
que espezinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda – de novo serei alevantado
E não transporei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
Mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho
Assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e escolhas
e – companheiros – se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!
Antonio Jacinto
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1. Apresentação
Este trabalho quer contribuir para ampliar conhecimentos sobre resultados de
experiências realizadas no âmbito da educação visando a reorganização curricular. Buscou-se
compreender como educadoras da primeira infância se apropriaram de conhecimentos
adquiridos em cursos de formação continuada de professores empenhados no combate ao
racismo e a maneira pela qual transformaram, a partir daí, as suas práticas pedagógicas.
Neste trabalho, o racismo será compreendido como uma construção social constituída
por referências biológicas e culturais utilizadas para estigmatizar grupos humanos e submetêlos a condições de desigualdade econômica, submissão política e inferiorização cultural. No
Brasil, as principais vítimas de racismo são a população negra e os povos indígenas.
A existência do racismo na sociedade brasileira gerou várias reações por parte de
movimentos sociais organizados, que viram na escola um espaço crítico de produção e
reprodução desse fenômeno. Com isso, vêm defendendo a necessidade de os sistemas de
ensino reavaliarem o currículo escolar e as formas de tratamento dessas populações no
ambiente escolar. Esses movimentos articulam-se em diferentes momentos da história
brasileira, com ações mais contundentes em determinados períodos. Por exemplo, na década
de 1970 ocorre uma vigorosa rearticulação desse segmento, tendo seu ápice em 1978, com a
criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Também são marcos históricos importantes
da luta do movimento negro as ações empreendidas no ano de 1988, centenário da Abolição e
no ano de 1995, quando se rememoraram os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, e em
2001, na época da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul.
Tais mobilizações provocaram, em diferentes níveis governamentais, a criação de
programas ou atividades de combate ao racismo e de intervenção no processo de produção da
desigualdade. Embora, em sua maior parte, sejam pontuais, algumas ações de governo
começam a se constituir em políticas públicas, tendo o setor educacional ocupado o lugar de
destaque nesse processo. Várias dessas ações se materializaram na forma de cursos de
formação continuada para professores, daí nossa preocupação em compreender como
educadoras apropriam-se dos conhecimentos adquiridos nesses cursos e a maneira pela qual
transformam suas práticas. Optamos por conhecer duas experiências, ressaltando
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especificidades, aproximações e distanciamentos entre ambas a fim de ampliar nossa
compreensão dos processos de formação de professores. Os cursos investigados
contemplaram a Educação Básica, mas nossa pesquisa centra-se em práticas pedagógicas
desenvolvidas por professores na educação infantil, tendo por base entrevistas com
professoras dessa etapa.
A pesquisa intitula-se No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o
combate ao racismo em alusão à epígrafe deste trabalho, retirada de um artigo do historiador
Luiz Felipe de Alencastro. Para o autor, a desigualdade racial é um problema que se, for
compreendido e priorizado como a grande questão nacional, será a grande transformação
social do século recém-iniciado.
O “fio do horizonte” é uma alegoria do que as educadoras apresentaram nos relatos
sobre seu trabalho em prol de uma educação anti-racista. Suas práticas foram construídas
dentro de um quadro nem sempre favorável, às vezes com oferta restrita de suporte teórico e
de material pedagógico. Ainda assim, as educadoras imbuídas do compromisso assumido vêm
produzindo transformações em suas práticas. Mais: trata-se, no caso dos cursos, de um
trabalho ainda incipiente na educação brasileira, voltado para a primeira geração deste século,
as nossas crianças da primeira infância, e com potencial para se multiplicar pelo Brasil.
Para a concretização de suas práticas, as professoras não só incluíram conteúdos novos
no currículo da educação infantil como também lançaram mão do que já conheciam e faziam,
enriquecendo suas práticas e estabelecendo princípios de uma educação das relações étnicoraciais positivas. Utilizam recursos metodológicos já consagrados no fazer da educação
infantil, tais como a leitura de história, o desenho, a pintura, a música, a dramatização, o
recorte e a colagem, dentre outras, mas os reinventando.
Para relatar como esse processo tem sido construído, organizamos esta pesquisa da
seguinte forma. Na introdução, procuramos estabelecer as relações existentes entre o sujeito
que pesquisa e o objeto pesquisado. Traz parte da minha história de vida, relatando como me
levou a uma ação pautada pelo fim do racismo no exercício da docência e no compromisso de
produzir pesquisas que colaborem na compreensão das relações raciais e educação no Brasil.
No capítulo I, apresentamos o objeto, o objetivo e as hipóteses da pesquisa, bem
como procuramos explicitar os principais eixos com os quais a pesquisa lida: a formação
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continuada de professores, a educação infantil e as políticas públicas, permeadas pelos
conceitos como racismo, preconceito, raça e discriminação, entre outros.
No capítulo II, é apresentado um quadro de algumas expressivas experiências de
educação de professores para o combate ao racismo, desenvolvidas no período de 1979 a
2004. Tal quadro permite constatar a simultaneidade das iniciativas pelo país e as principais
características por elas assumidas.
No capítulo III faz-se a análise do contexto de organização da experiência
desenvolvida pela Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul (SED/MS) em
Campo Grande, procurando compreender os modos como se instituiu uma política de combate
ao racismo neste local. No capítulo IV, apresentam-se as formas como as educadoras dessa
cidade se apropriaram dos conhecimentos apreendidos no curso de formação e as maneiras
pelas quais transformaram suas práticas pedagógicas.
No capítulo V, trazemos a segunda experiência pesquisada, da Secretaria Municipal
de Educação de Campinas (SME), analisando sua trajetória para a instituição de políticas de
promoção da igualdade racial (como preferem chamar) e a oferta do curso de formação
continuada de professores para o combate ao racismo na escola. Já no capítulo VI, do mesmo
modo que na análise de Campo Grande, apresentamos como as educadoras de Campinas
fizeram uso do que foi ensinado e debatido.
Na seqüência, buscou-se enunciar com as Considerações Finais o entendimento ao
qual chegamos pelo desenvolvimento da pesquisa. Com base nesse entendimento, são
apresentadas as perspectivas de ação férteis para o combate ao racismo.
O trabalho ainda se compõe de um volume à parte, onde se encontram os documentos
coletados e as entrevistas.
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ENCONTREI MINHAS ORIGENS
Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
cantos
em furiosos tambores
ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei
Oliveira Silveira
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2. Introdução
Ao me propor contar como surgiu meu interesse por esta pesquisa sou invadida por
imagens da minha infância e adolescência. São recordações um tanto difusas. Seus elos,
talvez, estejam no processo de como a escola, a família, a comunidade de onde vim e o
mundo do trabalho se imbricaram na minha formação acadêmica. Pretendo, ao recorrer a
essas imagens, relatar fatos que explicam o processo pelo qual me constituí pesquisadora das
relações raciais e educação.
Sou a sexta filha de uma ruidosa e grande família mineira, de origem negra, indígena e
branca, formada de sete irmãos – três homens e quatro mulheres. Cada um de nós herdou um
fenótipo diferente. Um de meus irmãos, Gegê, cuidou de mim por um longo tempo. Minha
mãe conta que, quando eu era bebê, enquanto ela e meu pai colhiam café no Norte do Paraná,
onde nasci. Gegê tomava conta de mim. A lembrança mais antiga desses cuidados remete-me
aos meus quatro anos. Morávamos numa minúscula cidade do interior do Mato Grosso do Sul
(MS), Tacuru. A única coisa da qual me lembro dessa cidade é de uma estrada de chão e uma
ponte. Eu parada no meio dessa ponte e meu irmão me chamando “vem, Lúcia, vem”. Imóvel,
a uns 50 passos dele, eu me recusava a sair do lugar sem que ele desse-me suas mãos. Era
sempre assim, não ia a lugar algum sem suas mãos protetoras.
Em outra cidade, Camapuã, não muito maior e no mesmo Estado, lembro-me de quando
meu irmão e eu íamos para a escola. De mãos dadas — é claro. Lembro-me dos meus primeiros
dias na pré-escola e de duas irmãs gêmeas, muito brancas e muito más, vestidas de amarelo.
Todos os dias elas roubavam meu lanche. Meu irmão, então, dividia o seu comigo. Até que um
dia, cansado dessa rotina, ele resolveu guardar consigo meu lanche e me entregar só na hora do
recreio. Já maior, mas não mais que nove anos, em Campo Grande, recordo meninos
importunando-me na escola. Todo dia era uma coisa diferente. Um dia eles me jogavam água,
noutro, era ovo; ou então riam de mim. Não consigo recordar seus rostos, porém me lembro do
riso de escárnio presente nessas cenas e de meu irmão brigando com eles. Havia sempre um fato a
me deixar alarmada, chateada, amedrontada. Meninas roubando, meninos importunando,
deboches... Nada disso tinha para mim uma explicação plausível. Só mais tarde fui compreender
os motivos dessa minha trajetória escolar tão conturbada e por que tive um protetor.
Essa proteção não durou para sempre. Um dia, mais cedo do que esperava, meu irmão
deixou-me. Foi trabalhar numa oficina de carros junto com meu pai. Tinha uns 11 anos e fazia
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a primeira série pela quinta vez. Abandonou a escola que o reprovava continuamente. No
começo, senti-me sozinha. E agora? Quem vai cuidar de mim? Tive que enfrentar aquele
mundo. Contudo guardava um sentimento de proteção: caso precisasse, eu poderia contar com
meu irmão. O tempo passou, outros percalços encontrei, mas nenhum deles me tirou o prazer
de estudar. Eu gostava da escola e sonhava em ser professora.
Ao 15 anos, já no magistério, comecei a namorar um colega da escola: loiro de olhos
verdes. Não entendi a desaprovação de minha mãe. Ele correspondia à descrição que ela fazia
de um bom rapaz: trabalhava, estudava, não bebia. Ao perguntar-lhe por que não gostava dele,
ela me respondeu “gente da cor dele só quer se aproveitar de pessoas pretas". Era a primeira
vez que eu ouvia falar da questão racial. Para mim, as palavras foram duras, mas me deram
consciência de algo fundamental: Eu era negra. Compreendi, finalmente, os motivos de a
minha vida escolar ter sido tão conturbada. Eu tinha sido vítima do racismo.
Entendi de onde vinha o ar de superioridade daquelas irmãs gêmeas, o escárnio dos
meninos, os poucos colegas. As pessoas não gostavam de negros? Como poderia saber disso?
Como uma pessoa negra, numa família de irmãos e irmãs de diferentes matizes, aprenderia a
posicionar-me diante da discriminação? Estava despreparada para lidar com o tema. No
entanto, apesar desse modo silencioso de meus pais lidarem com o tema, entendi finalmente
porque minha mãe havia me designado um protetor: sabendo que eu seria discriminada e não
vislumbrando modos de evitar, ela deu-me um escudo.
Reagi a essa descoberta de meu pertencimento racial assumindo minha condição de
negra. Finalmente soube algo que outros souberam de mim. Ter posse dessa informação deume elementos para minha defesa. Como negra, reagi contra a idéia de inferioridade, o que,
para Manuel Castells (1996), é um dos modos de construção da identidade, caracterizando-a
como uma identidade de resistência, ou seja, quando os sujeitos reagem contra a posição ou
condições não-valorizadas aos quais sua identidade está submetida dentro da lógica da
dominação. Creio que tenha sido esse o processo que ocorreu comigo. Comecei a ler tudo o
que encontrava sobre o assunto. Porém, em plenos ares de reabertura política (1982), a ação
em partido e sindicato ocupou mais meu tempo do que as discussões sobre as relações raciais.
Primeiro participei do movimento estudantil, depois do movimento sindical e cheguei
ao Movimento Negro (MN), que corresponde a uma diversidade enorme de organizações,
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com diferentes concepções, táticas de ação e estratégias de luta. Ele abriga também as
contradições inerentes aos processos complexos, e a luta contra o racismo, é extremamente
intricada. E foi diante dessa diversidade de possibilidades de ação que me fiz militante da
causa negra, sem ainda relacionar-me diretamente com uma organização. Meu percurso foi
demorado até chegar ao MN organizado, mas foi uma caminhada segura que marcou para
sempre meu modo de ver o mundo. Em 1991, cheguei ao Grupo Trabalhos e Estudos Zumbi
(TEZ). Hoje, tenho os pés fincados na discussão das relações raciais no Brasil.
Como profissional, construí na educação meu espaço de atuar. Estava atenta à menina
negra com olhos suplicantes de socorro na sala de aula. Tinha ouvidos abertos para ouvir
xingamentos no recreio entre crianças negras e brancas. Soube apreender o sentido das
palavras de uma coordenadora da escola onde ia trabalhar quando me falava sobre as crianças
e referiu-se a um menino negro do seguinte modo: “Ele é pretinho, mas muito inteligente”.
Em 1996, pude sentir o impacto do racismo na escola. Estava numa nova unidade, no início
do ano letivo, quando um professor de educação física pediu para consultar a minha lista de
chamada e, ao constatar três nomes, disse rindo para os outros professores da escola: “Ela
ficou com os bugres”. Quando entrei em contato com meus alunos, descobri o significado de
ser “bugre” naquela escola. As três crianças indígenas sentiam-se acuadas na sala de aula.
Sentavam-se juntinhas e apenas um deles falava comigo; os outros, quando eu me
aproximava, choravam. Eles não me conheciam, mas conheciam o espaço escolar e como
eram tratados nele.
Cada experiência dessa em minha vida profissional reforçou o desejo de compreender
o fenômeno do racismo e suas manifestações na escola, procurando com isso estabelecer
estratégias de combatê-lo. Por isso, fui para o mestrado, acreditando no papel de resistência da
escola, e realizei a pesquisa: Diversidade Étnico-Racial e Educação Infantil. Três escolas,
uma questão, muitas respostas, no programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Durante três anos, foram investigadas as
decorrências e impactos no currículo escolar da educação infantil, após a aplicação da
metodologia, Combate à discriminação racial na educação infantil, criada pela professora
Ana Lucia Valente, pelo professor Jorge Manhães e por mim, cujo objetivo é possibilitar o
diálogo sobre o tema das relações raciais com crianças na faixa etária de cinco a seis anos.
A pesquisa foi realizada em três escolas com perfis diferentes, que já tinham
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vivenciado a aplicação da metodologia. Nortearam-na sete questões: 1) As escolas
continuaram a trabalhar a questão racial com as crianças? 2) Caso tenham continuado, como
foi o procedimento? 3) Há alguma inovação na proposta a que tiveram acesso? 4) Criaram-se
alternativas? 5) O que levou às escolas a continuarem ou abandonarem os trabalhos? 6)
Diante dos trabalhos desenvolvidos, como as crianças responderam? 7) De que forma o
preconceito se manifesta nessa faixa etária?
Os dados foram coletados por intermédio da observação participante, observou-se uma
sala de aula da educação infantil em cada escola. Acompanhou-se o trabalho desenvolvido
pelas professoras em diferentes dias e também como as crianças se relacionavam no recreio,
as brincadeiras em sala de aula, a realização de atividades propostas pelas professoras em
aulas-passeio. Também foram realizadas entrevistas com professoras, coordenadoras e a
direção. Para os pais, foi enviado um questionário, levantando dados socioeconômicos e
opiniões sobre o tema da discriminação racial no ambiente da escola. Observou-se a estrutura
física da escola e sua proposta pedagógica, enfim, todos os aspectos que pudessem fornecer
dados para responder as questões da pesquisa.
Constatei, no término da pesquisa, que a continuidade do trabalho na escola com a
temática racial depende mais de seu projeto pedagógico do que da clientela que atende, ou
seja, as questões de classe e de raça são variáveis que se imbricam e não se isolam. Dado
importante quando se trata de escola, pois alguns professores argumentam que é necessário
abordar esse tema apenas em locais nos quais há presença negra. Outros afirmam que a
questão não é racial, é social, dando maior importância à questão de classe ao invés de
considerar a discussão sobre preconceitos e discriminações. O trabalho de pesquisa
identificou que não é necessário ter uma criança negra em sala para que o tema seja tratado,
pois a questão das relações raciais é de fato uma temática social e por isso independe da
presença de crianças negras e da classe social as quais pertencem para que o diálogo sobre o
tema seja realizado. Nas escolas particulares, não existiam crianças negras nas salas de aula
observadas, mas houve ricos debates durante as discussões sobre o tema.
Esses debates indicaram que crianças das diferentes classes sociais e de diferentes
origens raciais possuem informações sobre a problemática e discutem-na quando provocadas
a fazê-lo, demonstrando plenas condições de desenvolver opiniões, questionar posições ou
mesmo construir referências sobre o tema na medida em que adultos possibilitem-lhes
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oportunidades para tais reflexões. Outra constatação foi que os professores que apresentam
“boa vontade” em incluir esse tema no seu fazer pedagógico incorrem em equívocos
conceituais devido ao “despreparo”. Alguns, apesar de terem certeza da necessidade de
realizar um trabalho em sala de aula com o tema, não tinham participado de nenhum curso
que os preparassem para essa empreitada, o que os colocou em situações complicadas por não
terem instrumentos para conduzir determinadas situações. A percepção dessa ausência no
preparo do professor tornou-se para mim uma das questões mais desafiadoras.
Ao final da pesquisa, passei a refletir de modo mais sistemático sobre a questão de
como preparar o educador. Isso me levou, após o término do mestrado, a realizar atividades
de formação de professores a fim de possibilitar-lhes condições de atuar sobre a temática das
relações raciais de modo mais qualificado. Por meio da atuação no Grupo TEZ, pude realizar
várias oficinas, principalmente da educação infantil, e também conduzir intervenções em salas
de aulas a convite de instituições, além de ministrar várias palestras em cursos de licenciatura.
Essas ações eram voluntárias e atendiam às demandas das escolas, que eram freqüentes:
quando professores enfrentavam conflitos em sala e não sabiam como agir ligavam para o
Grupo TEZ, pedindo ajuda. A maior demanda era de professoras da educação infantil e das
primeiras séries do ensino fundamental, sendo que as situações eram geralmente de crianças
negras rejeitadas pelas brancas para compor grupos de trabalho ou para participar das
brincadeiras coletivas.
O atendimento, nessa época, dava-se por meio da indicação de um dos membros do
grupo, que realizava uma atividade com as professoras da escola ou fazia a intervenção direta
com os alunos. Mas essas ações eram pontuais, o que não nos satisfazia. Queríamos mais
tempo e espaço para agir na formação do professor. No entanto, apenas em 1999 é que junto,
com outros militantes, conseguimos estruturar um curso de formação de professores. Em
2000, ele foi apresentado à Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul
(SED/MS) para que fosse desenvolvido de modo mais amplo atingindo um número maior de
educadores. Porém as questões acerca da formação e seus resultados permaneciam e se
tornavam cada vez mais latentes para mim.
A atuação militante, a experiência profissional com ações de formação e a
investigação de questões relativas às interações mediadas pela raça no processo educacional
levara-me no doutorado a querer investigar o surgimento de cursos desenvolvidos por
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Secretarias da Educação com o objetivo de combater o racismo em sala de aula e também a
avaliar se os conteúdos desses cursos eram apropriados por educadoras da educação infantil e
como isso influenciava as práticas pedagógicas.
Meu interesse por essa etapa da educação básica se deve ao fato de que, apesar de ter
extrema importância no desenvolvimento do ser humano, não tem sido, até o momento, o foco
principal das pesquisas que tratam das relações raciais e educação no Brasil. Somente, no
final da década de 90 surgiram alguns trabalhos de pesquisa abarcando esta etapa, mas ainda
são poucos e não deram conta de abranger todas as dimensões do vasto campo da educação e
das relações raciais.
Há muito, homens e mulheres dedicados a combater o racismo da sociedade brasileira
apontam a educação escolar, e por conseqüência, a ação dos professores como importantes
para o fomento de valores nos quais a discriminação racial, o racismo e o preconceito não
estejam presentes, porém há muita coisa a ser construída e compreendida. São ricas,
diferenciadas e múltiplas as ações desenvolvidas pelo movimento negro em torno da
educação. Inicialmente no campo da educação não-formal, com as irmandades, os grupos
culturais, religiosos e a imprensa negra, mas à medida que negros e negras conquistam
escolaridade, tornam-se agentes no processo de constituição da educação e fazem crescer as
ações no espaço da educação formal.
Contemporaneamente são muitas as experiências educativas realizadas por
organizações não-governamentais (ONGs), seja em articulação com Secretarias da Educação
ou de forma independente. Essas experiências são ricas e múltiplas. Embora faltem registros
mais sistemáticos sobre elas, sabemos que existem e se consolidam com o passar dos tempos.
E é nesse espaço de constituição de um campo de conhecimento sistematizado sobre a
formação de professores e as relações raciais que minha pesquisa de doutorado se insere.
Ao contar parte da minha trajetória pessoal e profissional, procurei explicitar que a
pesquisa é produzida a partir de um lugar social no qual quem produz está influenciado por
tudo que lhe constitui. Tomo as palavras de Moacir Gadotti: me vejo parte de "[...] um
punhado de pessoas que não perderam a esperança na construção de uma sociedade com
maior liberdade, justiça e eqüidade - não por pura teimosia, mas como um imperativo
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existencial e histórico do nosso tempo".1
A intenção de muitos educadores que atuam na perspectiva de uma educação
multicultural e anti-racista é que esta seja de fato emancipatória. Nossa intenção é de
assegurar para todos a possibilidade de encontrar na escola um lugar no qual se aprenda de
forma sistemática, planejada e organizada que as diferenças raciais e culturais são construídas
socialmente, e que as idéias de inferioridade atribuídas a determinados grupos podem ser
descontruídas. Estamos na luta para construir uma escola na qual as pessoas possam
compreender suas diferenças e se posicionarem contrárias à hierarquização e inferiorização
entre os seres humanos a partir de qualquer tipo de marca.
1
GADOTTI, Moacir. http://www.paulofreire.org,>. Acesso em 18 jan.2006
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A utopia dos olhos escancarados
Se num momento de loucura
acaso arriscares acima do tédio
e afoito sozinho dobrares
a agreste solidão da esquina dos dias,
poderás então entrever
por entre as brumas do tempo
a imensa multidão e o verde prazer
das tuas mais urgentes utopias.
Se depois com ardor escreveres
- ridícula como o poeta a dizia uma simples carta de amor
cuja verdade ofereça fogosa o seu pudor
sinceros significados tão prementes
que a ouro fiquem bordados
no seio nu das palavras inexistentes,
imune farás tombar do muro os pecados
com que este presente impune
procura sarcástico esconder-nos o futuro.
Se porém impossível te for
a sangria das palavras a sério
e ao cansaço sem outra saída
com fúria não conseguires opor
a beleza dum punho bem apertado,
arrepia caminho e não ouses.
Nunca ouses monstro malfadado
dobrar a esquina deste tempo
de cobardias prenhe e silêncios cheio.
Porque só o amor mata a hipocrisia
e reconhece os homens iguais
porque para além deste dia
só de olhos escancarados se sonha a utopia.
Adriano de Alcântara
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Capítulo I - A Pesquisa: trajetórias e construções
1. Construindo o objeto, os objetivos e as hipóteses.
Existe no Brasil uma forte articulação do movimento negro em prol de cursos de
formação de professores para o combate ao racismo. Em quase todas as experiências, há
ativistas que participaram de encontros nacionais e regionais e produziram um modo de
operar em diálogo com outras experiências em território nacional. Como regra, as entidades
do movimento negro se articulam com as Secretarias de Educação invocando a necessidade de
a educação incorporar valores e conhecimentos das culturas africanas e afro-brasileiras,
desencadeando seminários, palestras e cursos de formação de professores. É o caso dos cursos
de formação organizados pela Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul e
pela Secretaria Municipal de Educação de Campinas.
Ao analisar aspectos desses dois cursos, definimos como eixo central as práticas das
educadoras, sob o entendimento de que a compreensão das práticas pedagógicas não se reduz
somente à consideração da ação dos professores mas também o exame de suas relações com
as diversas esferas do sistema de ensino e com o contexto social e cultural no qual a escola, os
docentes e alunos estão inseridos (CATANI, et.al., 2003). Assim, escolhidas as experiências
de Campo Grande e Campinas como os campos de pesquisa, estabelecemos como objeto
identificar as práticas pedagógicas realizadas nessas cidades por educadoras da primeira
infância2 que participaram desses cursos. O objetivo é conhecer as trajetórias pelas quais
experiências com esse caráter se realizam e verificar por meio de entrevistas, os modos pelos
quais as educadoras se apropriam desses conhecimentos e os colocam em prática.
Elegemos quatro hipóteses para investigar, reconhecendo como premissa o fato de o
movimento negro ter a responsabilidade direta pela criação de cursos de formação continuada
de professores que objetivam o combate ao racismo. As experiências das Secretarias de
Educação estudadas, aliás, corroboram tal premissa. O movimento negro é o protagonista
2
O termo "educadoras da primeira infância" será utilizado para designar as profissionais que atuam com crianças
da educação infantil, primeira etapa da educação básica.
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dessas ações, mesmo quando ocorrem no espaço institucional.
Constituiu-se como primeira hipótese a constatação de que os cursos ocupam uma
posição secundária na política de formação de professores nas Secretarias da Educação. Tal
hipótese deve-se principalmente ao reconhecimento de que o combate à desigualdade racial
ainda não possui um tratamento adequado nos órgãos responsáveis por desenvolver as
políticas públicas. Parece haver a necessidade de "remar contra a corrente" para desencadear
ações, em geral com os braços do movimento negro.
A segunda hipótese é que, apesar dos instrumentos disponibilizados pelo curso, os
professores têm dificuldades para incluir o tema do combate ao racismo sob outras
modalidades de ação que superem o chamado “currículo de turistas”. O autor atribui a esse
termo a ação das escolas que tratam temas como o racismo, as questões do mundo feminino
ou dos trabalhadores como “suplementos do currículo escolar” (SANTOMÉ, 1998). Essa
hipótese relaciona-se com o fato de acreditarmos que há uma articulação do movimento negro
no interior do campo da educação, buscando produzir pressupostos teórico-metodológicos
para que sejam utilizados como referência na formação de professores, porém as agências
formadoras não têm levando em conta tal produção ao organizar os programas de formação.
Isso dificulta a apreensão desses pressupostos pelos educadores, pois, em geral, são
apresentados em cursos de curta duração.
Como terceira hipótese está a afirmação de que os cursos têm como objetivo discutir a
situação da população negra, mas contribuem para que o educador perceba outros segmentos
discriminados em sala de aula e na sociedade. Pensamos que essa ampliação do olhar do
educador possa ocorrer, porque, ao discutir os processos discriminatórios pelos quais os
negros3 passam dentro da escola, ele é capaz de identificar mais facilmente os diferentes
momentos e aspectos nos quais esse fenômeno se revela.
Por fim, a quarta hipótese é considerar que um curso desse tipo tem um caráter de
ampliação nos modos de atuar dos professores, causando um impacto benéfico nas suas
práticas em sala de aula e influenciando a dinâmica de ensino-aprendizagem nas diferentes
áreas do conhecimento. O fato de um curso provocar os professores a criar materiais
3
O termo "negro" é utilizado por estudiosos das relações raciais no Brasil. Para análise de dados estatísticos,
representa a junção das categorias pretos e pardos. São equivalentes, em algumas situações, às categorias pretos,
afro-descendentes e afro-brasileiros.
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didáticos, a reinventar a partir do que possuem e a fazer novas leituras de antigos materiais
acaba por viabilizar novos instrumentos pedagógicos que podem ser utilizados em diferentes
áreas do conhecimento, potencializando o fazer pedagógico.
2. Metodologia
Os campos da pesquisa se circunscreveram em duas instituições, a Secretaria de
Estado de Educação do Mato Grosso do Sul (SED/MS) e a Secretaria Municipal de Educação
de Campinas (SME/Campinas), a partir de dois cursos de formação
continuada de
professores: Combate ao racismo na escola realizado, pela SED/MS, na cidade de Campo
Grande/MS, em 2002, e Promoção da igualdade racial, realizado pela SME/Campinas, em
2003.
Inicialmente, foram feitos esforços para conhecer as trajetórias de instituição desses
cursos nas Secretarias. Como são realizados? Quem os realiza? Por que os realizam? Para
apreender tais caminhos, fizemos entrevistas semi-estruturadas com gestores responsáveis
pelo desenvolvimento dos cursos em cada uma das Secretarias.
O contato com as Secretarias deu-se por meio de cartas dirigidas aos titulares das
pastas, nas quais explicávamos o objetivo da pesquisa e solicitávamos a indicação de uma
pessoa que seria o nosso contato, para levantamento dos dados. Tanto na SED/MS, quanto, na
SME/Campinas, as pessoas indicadas são responsáveis por setores que possuem como função
principal trabalhar com a educação e as relações raciais.
Houve dificuldades para receber informações por qualquer um dos meios
estabelecidos. Levamos longos meses, requerendo, em algumas ocasiões, novos contatos com
os dirigentes das pastas. O processo foi bem demorado, pois optamos por realizá-lo
solicitando informações ao dirigente da pasta, e não diretamente aos setores responsáveis.
Isso se deu porque consideramos que a proposição da pesquisa em conhecer os procedimentos
de instalação dos cursos de formação como políticas públicas exigia, também, conhecer e
mesmo "sofrer" os percalços existentes nos modus operandi em geral dos setores públicos.
O caminho para a obtenção de informações ocorreu de modos diferenciados nos dois
locais. Na SME/Campinas, fomos recebidos com amabilidade pela professora responsável,
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apesar de percebermos um certo estranhamento. Atribuímos isso ao fato de termos nos
conhecido, e mesmo assim a opção foi estabelecer contato inicial por meio do secretário.
Porém tal incômodo em nada afetou sua atenção: ela respondeu às nossas questões e nos
deixou à vontade para manipular a documentação.
Na SED/MS, por termos trabalhado lá e conhecermos a maioria das pessoas que atuam
na Gestão de Processos para a Igualdade Racial, como é chamado no momento da pesquisa o
setor responsável pelo curso, a obtenção de informações e documentos foi mais difícil,
exatamente pelo grau de proximidade. Parecia às funcionárias que era desnecessário toda
aquela formalidade e detalhamento, pois havíamos participado do início da implementação do
curso e acompanhado, ainda que à distância, o desenrolar das ações daquele setor. Mesmo
assim, com muito diálogo, conseguimos instituir uma relação formal, e o recebimento de
informações ocorreu de modo mais sistemático.
Em ambas as Secretarias, tivemos à mão várias pastas com documentos para analisar,
transcrever e em alguns casos copiar sem restrições. De todo modo, nos nossos encontros ou
nas trocas de e-mails procuramos manter duas posições, a formalidade necessária nesses
momentos e a atitude de compreensão sobre os limites e avanços das ações desenvolvidas em
ambos os cenários, pois consideramos que foram produzidas por sujeitos comprometidos que
deveriam ser tratados com pleno respeito. Não estávamos em busca das "coisas erradas", mas
de conhecimento das experiências, para a partir delas discutir as práxis compreendendo os
impasses e os avanços desses trabalhos.
Na SED/MS, foram feitas entrevistas com três gestoras, a professora Dina Maria da
Silva, a professora Nilda da Silva Pereira e a professora Benedita Marques Borges. Isso foi
necessário porque a gestão da política esteve sob o comando de seis pessoas. Optamos por
entrevistar a primeira, Dina, que trabalhou quando ainda não havia um setor específico,
depois a segunda, Nilda, gestora após a formalização do setor, e a do momento da pesquisa,
Benedita. Foram realizadas ainda duas entrevistas4 por e-mail com técnicas, as professoras
Ana Lúcia da Silva Sena e Irinéia Lina Cesário, pois, diante de tantas mudanças, pensamos
que era oportuno ouvir os técnicos que passaram pelo projeto.
Foi também importante para a compreensão da experiência entrevistar a professora
4
Entrevistas com as técnicas ver anexos 18 e 19
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Tanea Mariano, que exerceu o cargo de diretora do PAC - Programa de Atendimento a
Educação Infantil no período de 2000 a 2003, sendo a responsável pelas políticas de educação
infantil na Secretaria de Estado de Trabalho, Assistência Social e Economia Solidária
(SETTAS), na época em que o curso foi realizado. Os professores dessa etapa que fizeram o
curso estão nos Centros de Educação Infantil (CEIs), sob a responsabilidade da SETTAS,
numa gestão compartilhada com a Secretaria de Educação.5 Tanea Mariano teve participação
direta em relação à implantação de projetos didáticos resultantes do curso realizado pelas
educadoras naquele período.
Além das entrevistas com as gestoras, foram coletados vários documentos disponíveis
no setor, com informações sobre o curso e sobre a instituição da política de combate ao
racismo na Secretaria de Educação na forma de folhetos, relatórios internos, ofícios, material
de divulgação, livretos, cartas recebidas pela gestão, balanços anuais das ações, material
referente a trabalhos internos, cartilhas e propostas pedagógicas para a educação infantil
produzidas pela SETTAS e pela SED. Enviamos também um questionário para todos os Ceis
com perguntas sobre a prática pedagógica das educadoras6. Por fim, realizamos entrevistas
semi-estruturadas com professoras da educação infantil7.
Durante as entrevistas, as professoras apresentaram alguns registros de suas práticas,
principalmente fotografias, com destaque para uma das professoras de Campinas que tem um
registro bem organizado sobre suas ações desde a época do curso, mas não quis cedê-lo para
compor os anexos da pesquisa. A maioria delas possui fotografias, porém, como isso
envolveria a autorização dos pais das crianças, decidimos por não utilizá-las, exceto no caso
em que as crianças não podem ser identificadas.
Para encontrar professoras dispostas a conceder entrevistas, elaboramos uma carta
explicando os objetivos da pesquisa e os motivos pelos quais gostaríamos de entrevistá-las.
5
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) n.9394 de dezembro de 1996, no Art.89 indica que,
após 1998 as creches e pré-escolas existentes ou que venham a ser criadas deveriam se integrar ao sistema de
ensino. Essa determinação, no entanto, ainda não foi integralmente cumprida no caso dos Ceis sob a
responsabilidade do Estado do Mato Grosso do Sul. Para mais detalhes ver ROSA, Mariéte Félix. O direito da
criança ter direito: a educação infantil em Mato Grosso do Sul (1991-2002). 2005. Tese (Doutorado em
Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
6
Ver Apêndice A.
7
Entrevistas com as Professoras ver Campo Grande - anexos 24, 25, 26, 27 e 28 e Campinas anexos 38, 39, 40,
41 e 42.
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As cartas foram enviadas em conjunto com a SED e endereçadas aos diretores dos centros de
educação infantil8. A condição para participar da pesquisa era que a educadora tivesse
realizado o curso de formação de professores para o combate ao racismo, oferecido pela SED
e atuasse na educação infantil. Após o prazo estipulado, não tivemos nenhuma resposta dos
centros de Campo Grande. Com isso, solicitamos à Secretaria que enviasse outra carta com
novo prazo. Depois desse segundo envio, apenas uma diretora respondeu à solicitação,
indicando duas professoras. Diante dessa resposta positiva, fizemos o contato diretamente
com a diretora marcando as entrevistas, realizadas pessoalmente em Campo Grande.
Na cidade, solicitamos às primeiras entrevistadas que indicassem colegas de curso,
chegando ao final a cinco professoras, o correspondente a 12,5% das participantes do
programa - ao todo, eram 40. As entrevistas foram realizadas em setembro de 2005, no local
escolhido por cada uma das participantes, tendo predominado o ambiente de trabalho. Em
média, os encontros duravam aproximadamente uma hora e meia. De acordo com as
educadoras entrevistadas, suas experiências eram diversificadas em relação à idade das
crianças, desde bebês (seis meses) até seis anos. Com essa variação, foi possível abranger o
trabalho com crianças de todas as etapas da educação infantil.
Para a realização das entrevistas, procuramos estabelecer uma relação sincera e ética
com as educadoras. Explicitávamos os objetivos da pesquisa, solicitávamos autorização para a
gravação e nos comprometíamos em enviar a transcrição para que, se julgassem necessário,
fazer observações e restrições ao material. Cumprimos esse compromisso com todas e, junto
com o material transcrito, foi enviada uma carta de cessão9. Nenhuma das entrevistadas
respondeu à carta. Por isso, fizemos contatos telefônicos para confirmar o recebimento. Foi
possível contatar, inicialmente, três das cinco educadoras, as quais autorizaram o uso do
material e as enviaram por correio.
Em relação às outras duas, falamos com a diretora da creche por diversas vezes ao
longo de sete meses. Porém as educadoras, segundo a diretora, ora estavam fora da creche ora
estavam ocupadas com as crianças. Quando conseguimos o contato, as duas nos apresentaram
preocupações em relação ao resultado das entrevistas, alegando que não gostariam de ver o
8
9
Ver Apêndice B.
Ver Apêndice C.
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material divulgado porque só falaram "besteiras". Após nossa argumentação de que essa é
uma sensação comum em quem lê uma entrevista dada, elas reconsideraram suas opiniões e
concederam o direito de trabalhar com suas entrevistas, enviando a autorização para a
publicação com a condição de não terem seus nomes divulgados.
A preocupação em obter a revisão e a autorização das entrevistas justifica-se pelo fato
de que a fala oral seria utilizada para a confecção de um trabalho escrito, mudando, assim, o
peso das palavras. Procuramos, ademais, seguir o que nos sugere Pierre Bourdieu quando nos
remete ao papel do pesquisador na entrevista. Para o autor, "é o pesquisador que inicia o jogo
e estabelece a regra do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de maneira unilateral
e sem negociações prévias, os objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para
o pesquisado" (BOURDIEU, 2003.p.695). Refere-se o autor, no caso, a uma espécie de
assimetria entre o lugar do pesquisador e do entrevistado na medida que este último não tem
acesso ao conjunto das interpretações no interior das quais suas afirmações ganharão sentido
para a produção do conhecimento.
A objeção feita pelas duas professoras levou-nos a escolher pseudônimos para as dez
educadoras entrevistadas. Contudo não queríamos colocá-las no anonimato o que nos
apresentava um problema. Que nome lhes dar? A ocultação de seus nomes deveria lhes
conceder o benefício de não serem reconhecidas, mas, ao mesmo tempo, gostaríamos de
homenageá-las. Inspirados no trabalho de Patricia M. de S. Santana (2004), Professor@s
Negras: Trajetórias e Travessias, que substituiu os nomes de suas entrevistadas por mulheres
importantes na história da população negra brasileira, as educadoras desta pesquisa trazem
nomes de escritoras senegalesas contemporâneas. São mulheres que escrevem romances,
poemas e contos nos quais a luta pelo lado justo da vida sobressai. Entendemos que as
educadoras entrevistadas também empreendem uma luta por justiça ao se proporem o desafio
de incluir em suas práticas pedagógicas o combate ao racismo.
Portanto, terão a palavra: Abibatou, Fama, Ken, Mariama e Fatou, substituindo os
nomes das educadoras de Campo Grande/MS; e Mame, Aminata, Nafissatou, Aissatou e
Aicha serão os nomes das professoras de Campinas/SP10.
Em Campinas, foram entrevistadas duas gestoras: a professora Lucinéia
10
Crespin
Para mais detalhes sobre as escritoras, consultar Apêndice D.
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Pinho Micaela, que teve papel determinante no estabelecimento de ações voltadas para a
questão étnico-racial quando ocupou o cargo de Assessora para Assuntos Étnicos da
Secretaria Municipal de Educação de Campinas entre 2001 e parte de 2004; e a professora
Sueli Gonçalves, que assumiu a coordenação desse no final de 2004, mas acompanhou o
estabelecimento das políticas desde o início e continuava a fazê-lo até o momento da
conclusão desta pesquisa.
Na SME/Campinas, foram coletados vários documentos, sendo três relatórios sobre o
desenvolvimento do curso Educar para a igualdade racial, em 2003, e seis relatórios sobre
um segundo curso ocorrido em 2004, intitulado Formação Aprofundada para os Educadores
Étnicos da Rede Municipal de Campinas, todos elaborados pela entidade executora, a ONG
do movimento negro Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT),
com sede em São Paulo. Obtivemos um documento intitulado: O processo de criação, breve
histórico do Programa: Memória e identidade: promoção da igualdade na diversidade
(MIPID), elaborado por Sueli em 2004. Tivemos ainda acesso a um modelo de questionário
distribuído aos professores da rede após a execução do segundo curso, cópias de leis
municipais que abrangem a questão étnico-racial, resoluções e comunicados da SME em
conjunto com a Fundação Municipal para a Educação Comunitária (FUMEC) sobre o tema, a
relação de livros da "Biblioteca Étnica” · enviada para todos os Núcleos de Educação
Descentralizada (NAEDS) e materiais produzidos por professores durante oficinas oferecidas
pelo MIPID, além das cinco entrevistas com as educadoras da educação infantil.
Para chegarmos até as educadoras em Campinas, foi o mesmo procedimento utilizado
em Campo Grande: enviamos cartas para a Secretaria de Educação, reencaminhadas a todos
os Centros de Educação Infantil (CEIs) e Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs).
De novo, não obtivemos nenhuma resposta inicial. Consultada a coordenadora da política, ela
argumentou que a rede passava por uma reestruturação, sendo os CEIs e as EMEIs os mais
atingidos. Fizemos nova tentativa enviando cartas para duas escolas de cada NAEDS e
telefonando para as escolas, mas o processo foi inócuo.
Diante dessa dificuldade, novamente consultamos a gestora, que nos disse que poderia
indicar algumas educadoras. Num primeiro momento não aceitamos, tentamos mais uma vez
contato com as escolas enviando e-mails para todos os CEIs e EMEIs. Mesmo com essa
investida, apenas uma professora respondeu. Decidimos, então, ir a Campinas e conversar
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com a gestora para tentar resolver a questão. Consultamos, então, a lista de professores da
educação infantil que participaram do curso. Apenas oito dos quarenta professores se
adequavam a esse critério. Iniciamos, então, o contato telefônico via gestora, que conseguiu as
demais quatro professoras dispostas a ceder as entrevistas.
Porém, ao irmos a campo, descobrimos no momento da entrevista com a única
professora que tinha respondido a nossa carta que ela não havia participado do curso.
Estávamos de novo à procura de uma nova entrevistada. Nesse caso, decidimos usar o método
da indicação: ligamos para duas professoras que concederam entrevista e uma delas nos
indicou o quinto nome, que compôs assim o quadro das entrevistadas.
Os procedimentos em relação aos dois campos da pesquisa, Campo Grande/MS e
Campinas/SP, foram os mesmos no que diz respeito à elaboração das entrevistas. Elaborar
uma entrevista não é processo fácil porque muitas dúvidas nos acometem quando damos
início à formulação das perguntas. Qual é a melhor maneira de perguntar? Será que essas
perguntas poderão auxiliar para compreender o que se pretende? Como serão recebidas?
Como não induzir as respostas que desejamos?
Na definição do roteiro das entrevistas, foram úteis as ponderações de Paul Thompson
(2002, p.254), para quem "a melhor maneira de dar início ao trabalho pode ser mediante uma
entrevista exploratória, mapeando o campo e colhendo idéias e informações". Diante disso,
elaboramos questões que procuravam estabelecer conexões com as nossas hipóteses e
realizamos uma "entrevista exploratória" com o professor Lauro Cornélio, na época assessor
da Diretoria de Orientação Técnica (DOT) da Secretaria da Educação do Município de São
Paulo e um dos responsáveis pelo recorte racial nos projetos da Secretaria.
Após essa entrevista, verificamos a necessidade de elaborar roteiros diferentes, um
para os gestores e outro para as educadoras. Optou-se pela entrevista semi-estruturada, pelas
suas possibilidades de fazer emergir singularidades dos relatos dos sujeitos, abrindo-se para
refazer constantemente os roteiros. Esse tipo de instrumento permitiu também coletar
informações básicas sobre o curso realizado pelas educadoras e as práticas desenvolvidas por
elas depois do mesmo.
Definimos três grupos de perguntas, tanto para os gestores como para as educadoras.
Os grupos de questões dos gestores diziam respeito a aspectos como: a) implementação; b)
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execução e c) continuidade. Para as educadoras, foram: a) formação; b) curso e c) sua prática
pedagógica11.
3. Tratamento das entrevistas
Na interpretação das entrevistas, buscamos como regra a consideração das categorias
arquitetadoras do discurso das professoras tal como elas se evidenciaram nas respostas,
associando-as ao quadro dos eixos apresentados para a condução das mesmas. Não se tratava,
simplesmente, de aplicar às idéias e conceitos dos autores que nos apoiavam, mas de permitir
que essas referências teóricas nos ajudassem a perceber, identificar e procurar explicar como e
por que as respostas estruturavam-se da maneira como o faziam. Desse modo, as referências
teóricas foram múltiplas e construíram formas de auxílio para o processo de análise: as
questões foram construídas e as categorias identificadas nessa perspectiva.
Após as transcrições, realizamos a leitura de cada uma delas, deixando-nos impregnar
pelos depoimentos das educadoras. Elas eram intercaladas por leituras da literatura sobre
questões que emergiam das entrevistas. Simultaneamente, buscou-se apoio para compreender
aspectos das relações raciais no Brasil, da formação de professores e da educação infantil.
Tratava-se de identificar elementos que pudessem ser mobilizados para o entendimento das
formas particulares que os discursos das professoras assumiam, buscando construir elos entre
eles e as configurações sociais brasileiras com a história, na tríplice perspectiva que interessa
à tese: a história do combate ao racismo, as iniciativas de formação de professores e a
educação infantil.
Em seguida, fizemos a leitura em conjunto, buscando similaridades e diferenças no
que foi declarado pelas professoras. Esse processo era acompanhado de registros que
procuraram estabelecer as categorias temáticas apresentadas pelos depoimentos.
Na seqüência, essas categorias foram analisadas, e nesse processo, buscou-se
compreender como foram estruturadas e os determinantes de sua escolha por nós,
compatibilizando-as com as entrevistas. O que desencadeou uma reflexão sobre as possíveis
repetições de categorias, a pertinência e coerência das mesmas, nos fazendo voltar às nossas
11
Consultar Apêndices E e F.
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questões. O que pretendiam? Por que pretendiam? Que categorias estavam ali embutidas?
Ao repensar as questões, um sentimento de insegurança se abateu sobre o fazer da
pesquisa: será que havíamos direcionado demais as entrevistas?
Fizemos as melhores
questões para apreender o que pretendíamos? Tais reflexões nos remeteram às palavras de
Bourdieu (2003, p.706) sobre a realização de uma entrevista. Para ele "[...] é somente quando
se apóia num conhecimento prévio das realidades que a pesquisa pode fazer surgir as
realidades que deseja registrar [...]". Portanto, as questões e as categorias que emergiram dos
depoimentos das educadoras retratam tanto questões das entrevistadas, quanto questões da
entrevistadora e também apresentam o estado atual do problema e de suas configurações
sociais. Relativamente à dinâmica de realização das entrevistas, evidenciou-se que as questões
foram sendo progressivamente redimensionadas a partir das respostas obtidas. Por sua vez, as
entrevistadas sugeriam, de forma constante, novas perspectivas para a entrevistadora.
Bourdieu afirma que a relação entre os sujeitos, na pesquisa, instaura-se na base de um
acordo dos inconscientes. Ainda de acordo com esse autor, não é possível ignorar que nosso
próprio ponto de vista tende a ser um ponto de vista sobre outro ponto de vista. Tal afirmação
não introduz qualquer relativismo na interpretação, mas se esforça por assinalar as
singularidades dos relatos dos sujeitos da pesquisa12.
Ainda é importante ressaltar que procuramos corrigir nas transcrições da entrevistas
citadas alguns erros de concordância e repetições desnecessárias, assim como foram
suprimidos alguns recursos próprios da oralidade, sem com isso descaracterizá-los como
discursos orais.
4. Explicitando conceitos: discriminação racial, preconceito, racismo e
raça.
É fundamental, ao tratarmos das relações raciais e o campo educacional, apresentar os
conceitos-chave nessa discussão. Não é nossa intenção fazer uma incursão aprofundada13, mas
julgamos necessário estabelecer as conexões entre os conceitos relativos ao campo das
12
Ibidem, p.713.
13
Entre os autores que fazem uma discussão conceitual estão Antônio Sérgio A. Guimarães (1999; 2002 e 2004);
Jacques D’Adesky (2001); Edward Telles, (2003) e Nilma Lino Gomes (1995; 2002; 2005 e 2006).
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relações raciais e o campo da educação.
Comecemos pelo que consideramos mais evidente e presente nas escolas, a
discriminação racial. Esse conceito destina-se a explicar práticas que distinguem
negativamente uma pessoa ou um determinado grupo a partir de suas marcas raciais, o que é
considerado crime no Brasil, de acordo com a lei nº. 9.459/9714.
No ambiente escolar, há várias situações nas quais é possível identificar a
discriminação racial. Quando, por exemplo, uma professora escolhe uma criança branca para
ser tocada, em detrimento de uma criança negra, ela pratica uma ação de discriminação racial,
porque faz uma distinção a partir de alguns caracteres para beneficiar uma criança. Nos
depoimentos de algumas educadoras entrevistadas, elas relatam ações discriminatórias
ocorridas nos seus locais de trabalho.
Na educação infantil, a gente já sentiu essa questão da diferença do tratamento dos
profissionais em relação à criança negra e à criança branca. Essa questão do
estereótipo. Do modelo único de beleza, que é branco, loiro dos olhos claros ou
verdes. Essa questão é muito forte na educação infantil. As crianças negras não têm
tanto colo, chamego, aconchego como tem a criança branca. (Educadora Mame, de
Campinas - entrevista concedida em 13/09/06).
Quando aparece um bebê Johnson na escola, todo mundo [diz]; - aí que lindo! Um
bebê Johnson que eu falo é um menino loiro, de olho azul, bem gordo. Gordinho,
bem fofo. Então esse bebê passeia pela escola inteira. Ele passeia com a monitora do
outro setor, com a diretora. Como sente a criança que nunca sai? (Educadora
Aminata, de Campinas - entrevista concedida em 12/09/06).
Os depoimentos acima demonstram que essas educadoras estão alertas. E o segundo
traz-nos um elemento importante, ao citar o “bebê Johnson”, para exemplificar o tipo de bebê
que recebe mais atenção nas instituições de educação infantil. A educadora revela, com esse
exemplo, como o imaginário brasileiro é influenciado pela mídia e como estamos permeados
pela idéia do belo como branco.
Compreendem-se, assim, as razões que sustentam a afirmação da educadora em seu
exemplo. Num exercício exploratório, verificamos em qual quadro referencial aparecem às
imagens do bebê correspondente à referência utilizada pela educadora.
O exercício consistiu em visitar o site brasileiro da empresa Johnson & Johnson15.
Nele, foi possível identificar, em algumas imagens, a preocupação em contemplar os
14
Para mais detalhes ver SILVA JÚNIOR, Hédio Silva. Direito de Igualdade Racial: aspectos constitucionais,
civis e penais, Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora: Juarez de Oliveira, 2002.
15
Site <http://www.jnjbrasil.com.br> Acesso em 26 out. 2006.
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diferentes grupos étnico-raciais. Porém, quando entramos no link intitulado Seu bebê, as cinco
imagens de criança disponíveis eram como as descritas pelas duas educadoras. Os bebês eram
todos brancos de olhos azuis ou verdes.
Tal fato nos estimulou a continuar o exercício, desta vez, visitando o site da empresa
na sua versão em inglês.16 Ao entrar no site, as primeiras imagens que aparecem são, também,
de crianças, brancas. Todas como as descritas pela educadora. Porém, somos convidados a
visitar vários links, inclusive um chamado: “visit.baby.com”. Nele, as imagens apresentadas
se alternam. Ora é uma família negra com seu bebê "gordinho e fofo" - imagem de acordo
com as palavras da educadora do que seria o tipo de bebê preferido por algumas educadoras
da primeira infância, com a diferença que esse "bebê Johnson" é negro. Ora é uma mãe
asiática com seu bebê "gordinho e fofo".
Essa página nos remete a um outro link correspondente ao do site brasileiro: Seu bebê.
A imagem de "bebê Johnson" que esse site apresenta de início é a imagem de uma sorridente
menina negra17, "gordinha e fofa", reproduzida abaixo:
Imagem 1 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês.
Ou seja, o "bebê Johnson", na versão em inglês, pode ser negro. Ou melhor, negra.
Essa diversidade de imagens de bebês, apresentadas pela empresa Johnson & Johnson só pôde
ser encontrada na versão em inglês. Na versão brasileira, as únicas imagens de bebês as quais
temos acesso, mostram apenas um tipo físico, exatamente igual ao descrito pelas educadoras
como o tipo mais valorizado.
16
17
site <http://www.jnj.com/home.htm> Acesso em 26 out. 2006.
site <http://www.jnj.com/home.htm>. Acesso em 26 out 2006.
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2
3
Imagem 2 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em português
Imagem 3 - Site da empresa Johnson & Johnson versão em português
Imagem 4 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês.
Imagem 5 - Site da empresa Johnson & Johnson, versão em inglês.
Esses exemplos ilustram o modo como o imaginário brasileiro é construído
privilegiando o fenótipo branco, alimentando atitudes discriminatórias inclusive nas creches e
pré-escolas, sem nem mesmo os educadores atentarem para o fato, como pôde atestar a
pesquisa realizada por Fabiana de Oliveira (2006).
Na relação entre as pajens e as crianças, ocorria algo que denominamos de
“paparicação”, sendo que as negras estavam na maior parte do tempo fora dessa
prática, a partir de um processo de exclusão que não está sendo entendido como um
ato de segregação, mas se referindo ao recebimento de um carinho diferenciado,
com uma menor “paparicação”. (OLIVEIRA, 2006, p.16)
As educadoras também exemplificaram tipos de discriminações raciais ocorridas nas
instituições relacionadas aos modos pelos quais as crianças interagem entre si.
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Às vezes ele [a criança negra] não é convidado para fazer parte da brincadeira. São
poucos os que chamam, os que convidam. Eles [as crianças brancas] dão preferência
às outras crianças brancas para ficar brincando. (Educadora Mame, de Campinas entrevista concedida em 13/09/06).
As meninas, todas, tinham problemas com o cabelo. Quando iam de trança na
escola, recebiam aqueles apelidos: Assolam, personagens de novela. E sempre que
iam com algum adereço colorido na escola, nossa! Elas viravam piada da escola
toda. (Educadora Aminata, de Campinas - entrevista concedida em 12/09/06).
Para Kabengele Munanga (1998, p.49), a discriminação racial “[...] é produzida
quando se recusa aos indivíduos ou a grupos humanos a igualdade de tratamento a que têm
direito de receber [...]”.
Como vimos nos exemplos das educadoras entrevistadas, a
discriminação racial é uma prática, uma ação concreta, mas a mesma definição não se aplica
ao conceito de preconceito racial, igualmente importante para a discussão das relações raciais.
Segundo o dicionário Houaiss, (2001, p.2282) preconceito é:
1. qualquer opinião ou sentimento, quer favorável, quer desfavorável, concebido
sem exame crítico;
2. idéia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior
conhecimento, ponderação ou razão;
3. atitude, sentimento ou parecer insensato, assumindo em conseqüência da
generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio.
Esses significados apresentados pelo dicionário relacionam-se com a etimologia da
palavra, oriunda do latim praeconceptu, significando conceito ou opinião formados
antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos.
Definições semelhantes a essa têm sido utilizadas por vários pesquisadores que
trabalham com as relações raciais. Nos últimos anos, temos refletido sobre esse termo,
principalmente, após os cursos de formação de professores, quando apresentamos o
preconceito como "um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de
pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social
significativo" (GOMES, 2005 p.54).
As definições como essa agregam-se outros conceitos para entender o preconceito
racial. No estudo realizado por Carolina de Paula Machado (2006), Os sentidos da palavra
preconceito em dicionários: do etimológico ao social, ela indica que o termo vem
apresentando expansões de sentidos, e é nessa perspectiva que queremos problematizar o
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conceito de preconceito racial. Para nós, a afirmativa de que esse preconceito pauta-se em
julgamento negativo e prévio não se aplica à totalidade da realidade na qual constatamos a
manifestação de idéias e atitudes preconceituosas.
Essas atitudes reveladas, geralmente, em momentos de conflitos, não tornam o
preconceito racial, no nosso entendimento, uma idéia impensada, apressada, ou mesmo
pautada apenas por julgamentos prévios sobre membros de um grupo racial ou de uma etnia.
A nós nos parece que se assemelham mais a idéias negativas sobre membros de um grupo
racial ou uma etnia, por exemplo, reveladas nos momentos de conflito. Para que assim seja, as
idéias certamente preexistiram em algum momento da vida do sujeito e freqüentemente se
mantêm nele.
Isto quer dizer que esses sujeitos não apresentam somente um julgamento negativo e
prévio. Ao contrário, algumas pessoas mantêm suas idéias negativas sobre os outros mesmo
após conhecerem membros daquele grupo racial ou uma etnia à qual rejeita. Não se trata,
portanto, de preconceito, mas algo próximo a um "pós-conceito racial".
Na escola, o preconceito é revelado em vários momentos. Num dos depoimentos, a
educadora relata como o preconceito pode revelar-se durante atividades do cotidiano da
educação infantil. Ao fazer as fichas de chamada com o nome dos alunos de quatro e cinco
anos, ela procurou recortar e colar na ficha figuras parecidas com eles. Se a criança tinha
traços negros, ela recortou uma criança negra, e assim por diante. A turma, diante de uma
atividade que, do ponto de vista pedagógico, parece bem simples, teve a seguinte reação:
Quando eu mostrei a ficha do P. Uma criança falou: "- Olha o P. é preto! Ele é feio!"
E Todo mundo riu quando viu a imagem do P. na ficha. Para você ver uma atitude
preconceituosa. Embora, eles sejam bem pequenos, sorriram. "O P.é preto! Ele é
preto!" Teve um que falou. E todas as outras crianças sorriram, aquele sorriso de
deboche. Para você ver, eles são superpequenos. (Professora. Mariana - entrevista
concedida em 23/09/05).
A situação descrita pela educadora caracteriza-se como a manifestação do preconceito
por parte de uma criança. Na concepção dessa criança, o P. é feio porque é preto. Isso se
constitui como uma idéia ou conceito negativo que se tem sobre um grupo ou pessoa, mas não
é algo somente construído previamente. Essas crianças convivem, brincam, interagem entre si.
Portanto, o preconceito revelado por ela é construído socialmente e alimentado
cotidianamente, podendo ser anterior ao contato com pessoas negras, mas também posterior a
ele.
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Contudo ambos, discriminação racial e preconceito racial são decorrentes de algo mais
amplo que se configura como um sistema ideológico: o racismo. Segundo Maria de Lourdes
Teodoro (1996, p.106), o racismo “[…] é um sistema de opressão da diferença marginalizada,
no qual cada etapa se apóia, nutre-se e sustenta-se na outra”. Para a autora, a ideologia racista
compõe-se de quatro etapas: 1) a autoria – refere-se à conotação científica produzida
principalmente pelo campo da medicina, mas legitimada pelo campo da cultura, entre outros;
2) a ambigüidade - resulta de atitudes, idéias e discursos paradoxais envolvendo igualmente
agressor e vítima; 3) a irresponsabilidade – constitui-se na negação dos direitos humanos
traduzidas em políticas institucionais e comportamento social de grupos contra o objeto da
ideologia racista; e, por fim, 4) a oralidade – relaciona-se aos espaços da hierarquia social na
qual quanto mais alto, mais legitimado para desacreditar quem se diz vítima do racismo.
Compreender o racismo passa pelo entendimento da polêmica sobre a pertinência ou
não da utilização do conceito de raça, termo esse que sofre mudanças significativas desde sua
utilização pela língua inglesa no século XVI. No começo do século XIX, o termo raça era
usado principalmente para designar descendentes de um mesmo ancestral, ou então, como
sinônimo de nação. Porém, com base em estudos supostamente científicos de alguns
anatomistas, entre eles George Cuvier (1817), o termo passou a designar espécies, tipos de
seres humanos, indicando capacidade mental diferentes entre seres humanos de acordo com
determinadas características físicas (raças), em cuja concepção se pauta o chamado racismo
científico. Também as descobertas de Charles Darwin (1859) de que as formas da natureza
não são permanentes colaboraram para agregar outros sentidos ao termo raça. Um deles foi a
associação das diversidades físicas entre os seres humanos. Isso transformou os diferentes
tipos humanos em subespécies, sendo um passo para que alguns afirmassem existirem
subespécies inferiores e superiores entre os seres humanos.
A associação do termo raça a teorias que procuravam justificar a hierarquização entre
os seres humanos fez alguns abandonarem o uso do termo, buscando alternativas, Julian
Huxley (1959) adotou a designação "grupos étnicos". Segundo Ellis Cashmore (2000, p.196),
“um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma
agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências
compartilhadas”. Huxley considerou esse termo mais correto para definir os grupos humanos
e desejou que o termo raça caísse em desuso.
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Após o advento da Segunda Guerra Mundial (1939 -1945), a utilização do termo raça
foi contestada por diversas pesquisas na tentativa de extirpar o racismo como ideologia. Mais
recentemente, pesquisas realizadas no Projeto Genoma18 conseguiram demonstrar que, do
ponto de vista biológico, o conceito de raça não existe, pois de 90% a 95% da variabilidade
genética ocorre dentro dos grupos raciais e não entre eles.
Contudo, se do ponto de vista das descobertas científicas é possível chegar ao
consenso da impossibilidade do uso do termo raça, isso não ocorre nas ciências sociais.
Enquanto alguns teóricos buscaram diferentes termos para trabalhar nessa área, outros
trataram de compreender a permanência do termo raça no senso comum e sua pertinência no
sentido social.
De acordo com esses teóricos, entre eles Guimarães (2004), é difícil discutir as
relações raciais no Brasil e não utilizar o termo raça devido ao modo como se constituiu a
identidade nacional. Aqui a diferenciação entre as pessoas ocorre principalmente pelas
marcas, isto é, pelo fenótipo, preponderantemente pela cor da pele, cor dos olhos, tipo de
cabelo. Quanto mais escura for a pele de uma pessoa e quanto mais seus cabelos forem
crespos mais vezes ela será identificada pelos outros como pertencente ao grupo negro
(incluem-se aqui todas as variáveis classificatórias para esse grupo: pessoa morena, morena
escura, afrodescendente, afro-brasileira etc). Inversamente, quanto mais clara a pele e quanto
mais os cabelos forem lisos mais vezes a pessoa será identificada como pertencente ao grupo
branco. Às vezes, classificações como essa (levando-se em consideração fatores biológicos
externos) continuam sendo referências importantes para a atribuição de pertencimento de uma
pessoa a um determinado grupo.
Cabelo e a cor da pele têm seus papéis importantes como definidores do “lugar racial”
das pessoas. A percepção de que a questão racial no Brasil passa por compreender o papel
desses atributos físicos levou teóricos como Thales de Azevedo (1955), a afirmar que no
Brasil não existia preconceito de raça, mas sim de cor. Para Guimarães (1999, p.43-44) essa
18
O Projeto Genoma Humano é um empreendimento internacional iniciado formalmente em 1990 e projetado
para durar 15 anos, com os seguintes objetivos: identificar e fazer o mapeamento dos cerca de 80 mil genes que
se calculava existirem no DNA das células do corpo humano; determinar as seqüências dos 3 bilhões de bases
químicas que compõem o DNA humano e armazenar essa informação em bancos de dados, desenvolver
ferramentas eficientes para analisar esses dados e torná-los acessíveis para novas pesquisas biológicas.
<http://www.geocities.com/~esabio/genoma/projetogenoma3.htm> Acesso em 06 set. 2006.
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afirmação não procede, visto que “[…] a noção nativa de ‘cor’ é falsa, pois só é possível
conceber a ‘cor’ como fenômeno natural se supusermos que a aparência física e os traços
fenotípicos são fatos objetivos, biológicos, e neutros com referência aos valores que orientam
a nossa percepção”. E conclui que “[…] é desse modo que a ‘cor’, no Brasil, funciona como
uma imagem figurada da ‘raça’ ”. Essa dubiedade ao interpretar os mecanismos do racismo à
brasileira produz idéias falaciosas, como a de que somos uma nação miscigenada e, por isso,
todos os brasileiros têm um pouco de “sangue negro”, impossibilitando definir quem é
realmente negro no Brasil e, por conseguinte, negando que o Brasil seja um país racista.
A miscigenação é resultante natural das relações entre os seres humanos. Contudo a
valoração desse resultado e os constructos ideológicos sobre o fenômeno precisam ser
discutidos. O argumento de “nação mestiça”, por exemplo, é utilizado principalmente nas
discussões sobre a aplicabilidade de Ações Afirmativas (AA).19 Consideram os opositores
dessas políticas que, pela maneira como esse fenômeno se desenvolveu no Brasil, fica difícil
definir quem é ou não negro no país, menosprezando estudos estatísticos que demonstram
uma extrema desigualdade racial na distribuição de bens sociais (educação, trabalho, tempo
de vida, etc.) em favor dos brancos 20.
Essas questões levaram alguns estudiosos das relações raciais, como Guimarães
(2004), Oliveira, I. (1999), Munanga (1986), a continuarem utilizando a categoria raça em
seus estudos sobre as desigualdades, pois consideram que é necessário explicitar que as
desigualdades não são apenas produzidas e calcadas no pertencimento de classe, mas que o
pertencimento racial, no Brasil, colabora para que os sujeitos tenham mais ou menos
benefícios em sua trajetória social. Porém, ao utilizar o termo raça, compreende-se que tudo
que se relaciona a ele são atribuições socialmente construídas e não determinantes biológicos,
principalmente o valor social atribuído a tipo de cabelo e cor de pele. Não é ignorado que a
constituição de um sujeito e a construção de seu pertencimento a determinado grupo não
ocorre apenas a partir de sua aparência física. Sabe-se que o processo de construção do
19
Consideramos as Ações Afirmativas como ações empreendidas pelo estado ou por setor privado de uma
sociedade que objetiva romper o círculo vicioso que considera determinados grupos inferiores a outros por
algum tipo de marca seja ela de origem física ou cultural, dando aos últimos, suporte para que possam alcançar
os benefícios sociais e psicológicos já alcançados pelos sujeitos pertencentes aos grupos valorizados.
20
Sobre esse tema Ver HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na
década de 90 - Texto para discussão n.807/IPEIA / Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada.Disponível no site
< http://www.ipea.gov.br> Acesso em 10 de jan.2005.
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pertencimento de uma pessoa a um grupo é mais complexo. Ele se dá por meio de sua
trajetória de vida, sua cultura, suas relações sociais, posição de classe, local geográfico no
qual está inserido, entre outras variáveis, situações que são formadoras de identidade21.
Utilizar a categoria raça, a nosso ver, é, mais do que uma opção, uma necessidade,
pois se trata um conceito que se mantém como categoria nativa. O conceito ajuda na
compreensão das resistências que envolvem as relações raciais no Brasil, principalmente,
quando tratamos da população negra. Pensar nessa população e em suas relações exige que
compreendamos as imbricações entre a biologia - os fenótipos - e as heranças culturais
intrinsecamente relacionadas nesse processo.
Pelo que foi exposto, optamos por utilizar o termo raça e seus derivados nesta
pesquisa. Ao definir que o trabalho de formação de professores deve circunscrever-se na
lógica da luta anti-racista no Brasil, nos colocamos o desafio de observar atentamente as
estratégias de luta construídas pelo movimento negro, para não incorrer num ciclo denunciado
por Guimarães ao dizer que “[…] o grande problema para combater o racismo, no Brasil,
consiste na iminência de sua invisibilidade, posto que é reiteradamente negado e confundido
com formas de discriminação de classe”.
Falamos, portanto, a partir de um lugar que não se pretende isento de posição. Ao
contrário, estabelecemos muito claramente de onde partimos e deixamos aos movimentos da
pesquisa estabelecerem e responderem como políticas desse tipo se instituem nas Secretarias
da Educação e como as educadoras das crianças pequenas se apropriam dos instrumentos
disponibilizados e incluem em suas práticas a perspectiva anti-racista.
5. Formação de Professores: múltiplos olhares.
Nossa compreensão sobre os processos de formação é que eles podem contribuir para
21
Um exemplo disso foi presenciado em Mato Grosso do Sul. Lá há um povo indígena chamado guató - os índios
canoeiros. Em 2001 em virtude da I Conferência Mundial contra o racismo, a xenofobia e outras formas
correlatas de intolerância, organizada pela UNESCO, foram realizadas diversas conferências preparatórias
regionais. Em MS a conferência promoveu o encontro entre negros e indígenas. Estavam presentes os guatós,
sendo uma de suas representantes uma mulher que, considerando apenas a hetero-identificação a partir de seus
fenótipos, seria classificada como negra, mas dona Neusa, de cabelos crespos e pele escura, é uma guató: criada
perto do grupo, casou-se com um deles. Ao se tornar esposa e mãe de guató, ela, como disse [depoimento não
gravado] tornou-se guató. “Eu sou mãe de um guató, esposa de outro. Vivo como um guató. Eu sou guató, mas
amo meus irmãos negros”.
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que as escolas se modifiquem e se transformem em locais mais democráticos e participativos,
nos quais se respeitam as diferentes contribuições culturais para a construção do
conhecimento. Posto isso, faz-se necessário localizar a partir de quais perspectivas teóricas
estamos concebendo tais mudanças.
A discussão sobre formação de professores sempre está presente quando se trata de
educação, seja para discutir a qualidade do ensino, a implementação de alguma reforma ou
qualquer outro tema. Para Jose M. Esteve (1995, p.96), é na “[…] atitude dos professores
perante as reformas e no apoio da sociedade [que] está a chave para as levar a um bom termo.
Sem o seu incondicional apoio não passarão do terreno das disposições legais ao terreno da
realidade: o trabalho quotidiano nas salas de aula”. Apesar dessa importância atribuída ao
papel do professor, o tema da formação não é o mais pesquisado dentre a produção científica
no campo educacional brasileiro. De acordo com dados apresentados por Marli André
(2002)22, essa produção quase dobrou, passando de 460 trabalhos de mestrado e doutorado,
em 1990, para 834 em 1994. Porém as pesquisas que tratam tanto da formação inicial quanto
da formação continuada mantiveram a proporção de 5% a 7% sobre o total.
Essa estabilidade na produção sobre o tema no Brasil não se refere à manutenção das
matrizes teóricas da mesma. Pesquisadoras como Isabel Alice Lelis (2001), Cecília Borges
(2001) e Célia Maria Fernandes Nunes (2001) verificaram que os paradigmas de suporte para
a pesquisa na área de formação de professores ao longo dos últimos 20 anos têm se
modificado com certa nitidez. Se, na década de 60, a centralidade dos estudos sobre formação
estava na compreensão de como o conhecimento das disciplinas (saberes específicos) ocorre,
na década seguinte, os estudos brasileiros apresentavam a valorização dos aspectos
metodológicos do ensino. Nos anos 80, é a dimensão sociopolítica da formação que ocupa o
espaço de preocupação das pesquisas acadêmicas e, por fim, os anos 90 trazem novas
perspectivas para compreender esse processo. Iniciam-se, nesse período, linhas de pesquisa
que hoje buscam valorizar a prática docente e considerar como fundamental no processo de
formação o conhecimento dos saberes do professor. António Nóvoa (2002), Donald Shön
(2000), Philipe Perrenoud (1997 e 1999) e Maurice Tardif (2002), passam a ser referências
importantes no Brasil.
22
ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazzo Afonso de (org.). Formação de Professores no Brasil (1990-1998).
(Série:Estado do Conhecimento). Brasília: MEC/Inep/Comped, 2002.
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Esse movimento de mudanças de abordagens não ocorre de forma unânime e sem
confrontos teóricos. Apesar de haver uma clara predominância dos estudos que valorizam a
“epistemologia da prática”, como defendida por Tardif (2002), ou a ênfase no “professor
reflexivo”, como nos apresenta Shön (2000), ou ainda quando centrada na chamada
“pedagogia das competências” explicitada por Perrenoud (1997), elas estão sob forte
contestação por parte de teóricos que acreditam que essas abordagens trazem em si o
relativismo e o subjetivismo, entendendo tais perspectivas como negadoras da teoria. Apesar
disso, um crítico dessa corrente, Newton Duarte (2003), pondera que
[...] ao chamar a atenção para o equívoco de Schön, meu intuito não é o de
desqualificar esse autor, mas sim o de alertar para a necessidade de análises
rigorosas dos fundamentos filosóficos dos autores que vêm sendo largamente
adotados pela intelectualidade da educação brasileira. Já é tempo de reagirmos ao
“recuo da teoria”, de unirmos os esforços de todos os que não se resignaram perante
a passageira hegemonia do ceticismo pós-moderno e do pragmatismo neoliberal.
(DUARTE, 2003, p.623).
O alerta do pesquisador é importante, porque essas teorias estão se configurando em
novos modos de procedimentos de formação de professores. E de fato não queremos que a
possibilidade de novos aportes para pensar a formação de professores, baseados na crítica à
razão instrumental, se transformem em um superdimensionamento da prática em detrimento
da teoria. Precisamos construir possibilidades para a formação docente que escapem dessa
dicotomia e se configurem no exercício da inter-relação entre teoria e prática. Ou como
especifica, Giroux (1983, p.19), teoria "[...] deve ter como finalidade a prática emancipatória.
Teoria e prática representam uma aliança singular, não uma unidade na qual uma se dissolve
na outra". É fundamental que os processos de formação que partam da valorização dos
saberes docentes oriundos da prática não privilegiem de modo exagerado a realidade intraescolar e micro-social, fazendo com que se perca os contextos nos quais o trabalho docente é
produzido. Nos processos de formação, faz-se necessário considerar o trabalho docente no seu
plano político social mais amplo.
Para Lelis (2001), é necessário proceder à seguinte reflexão: “Como lidar com a
dimensão cognitiva articulando-a à esfera das culturas com seus ritos, símbolos e mitos?”.23
Essa indagação é importante no contexto com o qual trabalhamos, por isso, ao trazer
concepções aparentemente divergentes, não queremos instaurar o ecletismo teórico, mas
23
Ibidem, p.54.
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almejamos problematizar algumas referências no sentido de dialogar com os vários olhares
sobre a formação dos professores e participar desse debate incluindo nossas preocupações
específicas relativas ao nosso objeto de estudo, as experiências que apresentam como meta o
trabalho com a educação das relações étnico-raciais24.
A necessidade de estabelecer esse diálogo deve-se ao fato de que não nos incluímos
entre os pesquisadores que praticam ou defendem “o recuo da teoria”. Ao contrário, cremos
que, para realizar uma política consistente e efetiva de formação de professores para o
combate ao racismo, é imprescindível o conhecimento da teoria, principalmente porque a
educação anti-racista, para ser empreendida e realizada de modo adequado, necessita que se
conheça sobre a organização da sociedade, sobre as relações de poder nela estabelecidas, bem
como os processos pelos quais as dimensões de opressão, superioridade e inferioridade são
concretizadas.
Porém não podemos desconsiderar que alguns pesquisadores formulam críticas nada
condescendentes a esse modo de pensar. Consideram inconciliáveis projetos de
multiculturalidade e projetos de transformação da sociedade. Sem dúvida, é um terreno muito
escorregadio e merece todo o cuidado dos que, como nós, pretendemos passar por ele.
Entretanto não há opção: é necessário atravessá-lo. Nossa experiência - saberes tácitos - como
professora e nossa experiência como pesquisadora - saberes científicos - indicam que a
dimensão raça interfere nos processos tanto de ensino quanto de aprendizagem. Tal
conhecimento impele-nos, portanto, a procurar aportes teóricos que considerem a raça como
uma dimensão importante no universo das pesquisas educacionais e, em particular, nas
discussões sobre os mecanismos de formação de professores.
Por isso, não consideramos que a opção de discutir problemas educacionais gerados a
partir das questões étnico-raciais nos inclua no grupo dos chamados "neoliberais". Ao
contrário, ao debater sobre essa questão, propomos a reflexão sobre como outras dimensões
que constituem os sujeitos para além de sua condição de classe são analisadas e consideradas
como dados importantes na estruturação da sociedade e na constituição dos sujeitos. Nesse
24
O termo educação das relações étnico-raciais encontra-se nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e será
assumido por nós como o que melhor define o tipo de trabalho que inclua as reflexões sobre as relações raciais
no Brasil, contemplando a análise das desigualdades raciais relativas à população negra.
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sentido, tomamos como referência as concepções formuladas por Peter Maclaren (2000),
Paulo Freire (1987 e 1992) e Henry Giroux (1983 e 1986) para fundamentar tanto nossa opção
no campo das teorias educacionais, de modo geral, como para incursionar pelas análises dos
processos de formação de professores e a questão multicultural. Para Giroux (1983),
[…] a base para uma nova sociologia da educação e do currículo deverá derivar de
uma compreensão teoricamente refinada a respeito da forma como o poder, a
estrutura e ação humana funcionam para reproduzir não só a lógica da dominação,
mas também o cálculo da mediação, da resistência e da luta social (GIROUX, 1983,
p.56).
Nossa adesão às concepções relativas a teoria crítica, porém, está ancorada na certeza
de que uma única teoria não responde a todas as necessidades para discutir o processo de
formação de professores no combate ao racismo. Cogita-se, também, que para essa discussão
é preciso acreditar que a escola é um espaço de contradições, de construções e de
desconstruções de concepções. Espaço em que os sujeitos que nele atuam, professores,
técnicos e alunos de todas as idades, sejam capazes, mesmo que de modo conflituoso, a
pensarem suas existências e seus aportes culturais para afirmar alguns e negar outros. Nos
Referenciais para a Formação de Professores, da Secretaria de Educação Fundamental do
MEC, um dos pressupostos para a formação do professor é:
O necessário compromisso com o sucesso das aprendizagens de todos os alunos na
creche e na escola de educação infantil e do ensino fundamental exige que o
professor considere suas diferenças culturais, sociais e pessoais e que, sob hipótese
alguma, as reafirme como causa de desigualdade ou exclusão.(RFP, Pressuposto
nº.05, 1999, p.19, grifos nossos).
Ao incluir nos pressupostos de formação do professor a exigência de que esse
profissional pense sobre as diferenças culturais (e nós compreendemos que essas diferenças
incluem o pertencimento dos alunos a grupos étnicos ou raciais), temos justificada a
necessidade imperativa dos cursos de formação abarcarem a dimensão das relações raciais.
Tal perspectiva nos parece tornar cada vez mais concreta a compreensão de que os saberes
docentes devem incluir percepções sobre as diferenças culturais e raciais de seus alunos e os
modos pelos quais se possa trabalhar pedagogicamente com tais diferenças.
Essa perspectiva deveria fazer-se presente tanto na formação inicial quanto na
continuada. A primeira dimensão, a formação inicial, pode ser entendida como o momento no
qual os futuros professores tomarão posse de um “corpo de saberes e de técnicas e um
conjunto de normas e de valores específicos da profissão docente” (Nóvoa, 1995, p.16). Em
todas as possibilidades que a formação ocorra, deveria contemplar de algum modo saberes
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que permitissem aos professores compreenderem questões relativas a educação das relações
étnico-raciais. Porém esses temas estão sendo abordados, quando o são, na segunda dimensão
do processo de formação, isto é, somente na formação continuada. Por isso, reafirmamos a
necessidade de as agências formadoras reconhecerem que a temática da educação para as
relações étnico-raciais consiste em uma necessidade. Segundo Nóvoa (2002)
A formação contínua deve ser concebida como uma das componentes da mudança,
em conexão estreita com outros sectores e áreas de intervenção, e não como uma
espécie de condição prévia da mudança. A formação não se faz antes da mudança,
faz-se durante, produz-se nesse esforço de inovação e de procura aqui e agora dos
melhores percursos para a transformação da escola. (NÓVOA, 2002, p.60, grifos do
autor).
Nesse sentido, no qual Nóvoa define a formação de professores, ao nosso ver inclui-se
formar professores para atuar sobre o combate ao racismo, já que o desenvolvimento de ações
nessa área colaboraria para a transformação da escola. Porém ainda há uma longa caminhada
até que a formação inicial ou continuada contemplem essa dimensão. E também para que se
realizem pesquisas em quantidade significativa para a melhor compreensão desses processos.
De acordo com André (2002, p.9)25 “[…] às questões voltadas aos saberes e práticas
culturais, gênero e raça raramente são estudadas”. Tal constatação é reafirmada pelo
levantamento realizado por Ana Canen, Ana Paula Arbache e Monique Franco (2000). As
autoras analisaram resumos de dissertações e teses presentes em cd-rom da ANPEd no
período de 1981 a 1998 que de forma direta ou indireta fizeram referências a diversidade
cultural e ao desafio a preconceitos ligados a etnia, gênero, religião, deficiências, padrões
culturais, entres outros. Nesse levantamento, apenas nove trabalhos se relacionam diretamente
com a formação de professores ao longo de 12 anos.
Sabemos que o universo pesquisado não abrange toda a produção científica brasileira,
mas, certamente, como o espaço da ANPEd é privilegiado para difusão de conhecimentos e
para a mobilização de novas pesquisas, o que se apresenta não é um quadro muito alentador.
Se considerarmos ainda que, desses nove trabalhos, somente dois se referem à etnia/raça, o
impacto é maior e nos leva a perguntar os motivos pelos quais o lugar desses trabalhos é tão
25
A afirmação resulta do exame de dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação em
educação no período de 1990 a 1996, sobre o tema Formação de Professores e da consulta em artigos publicados
em dez periódicos da área no período de 1990 a 1997 e das pesquisas apresentadas no Grupo de Trabalho
Formação de Professores, da ANPEd, no período de 1992 a 1998. Mais detalhes consultar o trabalho de
ANDRÉ. Marli Eliza Dalmazzo Afonso, citado na página 50.
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restrito. Será que as pesquisas relacionadas com a temática da diversidade não têm chegado ao
espaço da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd), e se não, por que não
chegam? Ou o interesse por esses temas continua restrito às próprias pessoas que vivem as
experiências de discriminação como sujeitos? Ou ainda, será que o espaço da educação se
recusa a abrir-se para essa perspectiva devido a sua forte tradição de interpretar as diferenças
sociais apenas como questão de classe?
Outro levantamento, realizado por José Flávio Moreira (2001), buscou identificar as
temáticas tratadas em estudos que focalizam teorias, práticas e propostas pedagógicas e
curriculares no período de 1995 a 2000. Para tanto, centrou sua atenção em artigos publicados
nos Cadernos de Pesquisa, Revista Brasileira de Educação, Educação & Realidade,
Educação e Sociedade e Educação em Revista. Foram analisados 46 textos e desses, apenas,
quatro trataram diretamente de multiculturalismo26 e formação de professores. Ao observar
essa baixa quantidade, o autor ressalta:
A necessidade de professores bem preparados para enfrentar os desafios provocados
pela pluralidade cultural da sociedade e das escolas, como já afirmei, é realçada em
muitos artigos. No entanto, são pouco numerosos, no conjunto examinado, os
estudos que procuram verificar se e como os currículos dos cursos de formação
docente evidenciam uma orientação multicultural. Trata-se, penso, de uma lacuna a
ser preenchida. (MOREIRA, 2001, p. 70).
A constatação do autor sobre a necessidade de mais estudos relativos a formação de
professores e o multiculturalismo está em consonância com os outros levantamentos
apresentados. Apesar de ser consenso entre alguns pesquisadores e gestores da área de
educação que o papel do professor é importante para a realização de práticas pedagógicas
emancipatórias na escola, isso não tem se refletido nas pesquisas que tratam da formação de
professores de modo significativo. A diversidade, de forma ampla, não está presente nas
preocupações dos pesquisadores quando tratam da formação de professores, sendo ainda mais
difíceis trabalhos relacionados à etnia ou à raça. A ausência desses temas nas pesquisas não
26
O multiculturalismo tem sido divulgado no Brasil, principalmente, a partir da produção de Peter Mclaren, com
destaque para sua obra, Multiculturalismo Crítico (2000). Nessa obra o autor apresenta quatro tipos distintos de
multiculturalismo: o conservador - modelo assimilacionista − defende uma unidade nacional e a convivência
harmoniosa na diversidade, porém atribui valores diferenciados as culturas indicando que uma são melhores que
outras. O humanista liberal − acredita numa igualdade natural entre todos os povos e nas diferenças como
decorrência de características que podem ser superadas. O multiculturalismo liberal de esquerda - enfatizada às
diferenças culturais reivindicando as especificidades de comportamento, valores, entre outras. E por fim, o
Multiculturalismo crítico e de resistência ao qual ele se filia - compreende as diferenças e suas representações
(gênero, raça e classe) como resultantes de lutas sociais enfatizando a necessidade de transformar as relações
sociais nas quais os significados sobre essas representações são produzidos. Ver na obra páginas 110 a 135.
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faz jus nem ao espaço que essa temática ocupa em outras áreas do conhecimento como as
ciências sociais, a sociologia e antropologia ou nas reivindicações do movimento negro.
Contudo, apesar de termos visto que não são muitas as pesquisas que analisam esse
campo, a identificação que fizemos de experiência de formação indica que há uma existência
concreta de cursos de formação de professores com esse objetivo, o que demanda um
investimento de pesquisa nessa área. Foram identificadas várias iniciativas, realizadas em
todas as regiões do país e também com diferentes organizadores (Secretarias estaduais e
municipais, ONGs e Universidades), constituindo-se num excelente campo de investigação: é
necessário superar essa dicotomia entre a produção acadêmica e a produção do campo
empírico. Segundo Moreira
[…] quer rejeitemos ou aceitemos a diferença, quer pretendamos incorporá-la à
cultura hegemônica, quer defendamos a preservação de seus aspectos originais, quer
procuremos desafiar as relações de poder que as organizam, não podemos, em
hipótese alguma, negá-la. Ela estará presente, em todos os cenários sociais,
empobrecendo-os e contaminando-os, segundo alguns, enriquecendo-os e
renovando-os, segundo outros. Em síntese, queiramos ou não, vivemos em um
mundo inescapavelmente multicultural. (MOREIRA, 1999, p.84).
Regina Pahin Pinto (2002) ao analisar os resumos dos trabalhos que apresentaram a
articulação entre educação e diferenças étnico-raciais publicados nos cd-rom da ANPEd no
período de 1981 a 1998, observa que, das 8.273 pesquisas defendidas na área de educação
nesse período, apenas 148 tratam de alguma forma sobre as diferenças étnico-raciais (cerca de
1,8%). Entre elas, as que tratam do negro ocupam o sétimo lugar com (7,4%) representando
0,133% do total do universo pesquisado. Esses dados indicam que os estudos das relações
raciais na educação ainda não se constituíram como um campo consolidado da pesquisa. De
um lado essa constatação é estimulante para os que pretendem adentrar por esse campo, pois
há muito que se investigar. Por outro, revela-se um espaço permeado de dificuldades, já que
estamos sempre com a dura tarefa de produzir dados, constituir grupos de estudos, encontrar
orientadores, estabelecer parâmetros e testar metodologias.
Outro estudo de Pinto (2004) analisou 59 números de periódicos, compondo um
universo de 559 artigos27 publicados na década de 90, em três revistas educacionais, Educação
27
De acordo com a autora, esse total inclui os artigos propriamente ditos, as entrevistas, os depoimentos, os
relatos de experiências, os dossiês e as sessões "estudos e pesquisas", "segunda leitura" e "temas em destaque".
Mais detalhes ver: PINTO, Regina Pahin. Educação e diferenças Étnico-Raciais: a visão das revistas da área de
educação, mimeo, [data informada pela autora], julho, 2004.
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e Realidade, Educação em Revista e Revista da Faculdade de Educação da UNEB (FAEBA).
Pretendia-se identificar os artigos que abordassem a questão das diferenças étnico-raciais.
Desse total, aproximadamente 56 tratavam da questão (10%), sendo poucos os que se referiam
a pesquisas. Alguns, segundo a autora, abordavam a formação de professores. Tal fato nos
indica que há nas revistas acadêmicas uma reflexão sobre o tema, ainda que pequena. A
autora observa que:
A formação de professores numa perspectiva que contempla o tema é tratada sob
vários prismas. Há os que se debruçam sobre os fatores que impedem ou dificultam
a sua abordagem por parte do professor e, nesse sentido, remetem aos preconceitos e
discriminações que enfrentam ou introjetam no decorrer da sua vida. Menciona-se o
quanto o mito da democracia racial está entranhado na maneira como os professores
conduzem a sua prática pedagógica e o quanto não estão preparados para lidar com a
questão racial. Uma das questões cogitadas pelos estudiosos é que, a despeito dos
avanços da reflexão sobre a diversidade cultural, a formação do professor nessa área
necessita de muita investigação (PINTO, 2004, p.7).
É, portanto, inadiável incrementar a produção nesse campo, pois há um enorme
descompasso em relação ao número de iniciativas, como a desenvolvida durante a existência
da Secretaria Extraordinária da Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras
(SEAFRO), criada em 1991 pelo governo estadual do Rio de Janeiro e dirigida pelo histórico
ativista Abdias do Nascimento. A SEAFRO colaborou com a realização de um curso de
extensão universitária intitulado SANKOFA: Conscientização da Cultura Afro-Brasileira,
cujo objetivo era contribuir para a integração dos assuntos afro-brasileiros no currículo
escolar carioca e fluminense e para a preparação de quadros no magistério aptos ao ensino
dessas matérias. Outras iniciativas vêm sendo implementadas por sistemas educacionais em
parceria com o movimento negro em diversos pontos do país.
Segundo artigo publicado em 19/01/2004 na “Folha de São Paulo”, as ações em
educação concentram 44,2 % das iniciativas de ações afirmativas voltadas à população negra
brasileira. Num distante segundo lugar, aparecem as iniciativas de geração de trabalho e renda
(18,7 % do total), projetos mistos de educação e trabalho representam 1,75%. Também,
existem iniciativas nas áreas de direitos humanos (13,3%), informação (7,2%), cultura (5,5%)
e legislação (4,5%).
Podemos ainda citar o curso Escola Plural, criado em 1999 e executado pelo Centro de
Estudos Afro-asiáticos da Bahia (CEAFRO/BA), em parceira com a Secretaria Municipal de
Educação de Salvador. Em 2001 a Secretaria Estadual do Pará e a Secretaria Municipal da
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Educação de Belém, criaram setores responsáveis para trabalhar junto aos professores com
este recorte. Não é surpresa que as discussões sobre a necessidade de a educação contribuir
com a minimização dos preconceitos na sociedade produzisse várias iniciativas na formação
de professores. O que é surpreendente é que tais iniciativas sejam tão pouco pesquisadas.
Canen (1997a) realizou um estudo de caso no Reino Unido sobre as dificuldades
enfrentadas por uma instituição superior de formação de professores que incluía em sua
proposta o objetivo de formar docentes para atuarem em sociedades multiculturais. Segundo
ela,
[...] a sensibilidade à diversidade cultural parecia depender pouco do tempo de
formação, estando mais ligada aos seguintes fatores: o modelo de professores
adotado, as formas pelas quais tal modelo era implementado nas práticas
pedagógicas da instituição e as percepções e expectativas dos sujeitos com relação à
relevância do tema na formação de professores (CANEN, 1997a, p.89).
As observações da autora de que o modelo de professor, as percepções e as
expectativas em relação ao tema são elementos importantes que devem ser considerados nos
programas de formação relativos à diversidade para que possam produzir "uma sensibilidade"
nos professores sobre temas relativos as diversidades são muito importantes para os
organizadores de cursos com esse caráter.
Tal indicativo evidencia a necessidade de estudar as experiências realizadas de
formação de professores e as relações raciais. Precisamos investigar quais as metodologias
mais eficazes, que tipo de conteúdo, de fato, modifica as estruturas do pensamento do
professor, como ele incorpora os conhecimentos adquiridos na sua prática e quais mudanças
são possíveis a partir disso. Somente estudos aprofundados sobre as experiências produzidas
no Brasil serão capazes de proporcionar conhecimentos que nos levarão a práticas mais
abrangentes sobre o tema e quiçá mais próximas de cumprir os objetivos de afirmarem a
escola como espaço de reflexão na construção de uma sociedade menos discriminadora.
Recentemente, a pesquisa de doutorado de Wilma Baía Coelho (2006), que trata da formação
de professores da educação básica ocorrida no Pará, nas décadas de 1970 e 1980, também
trouxe contribuições significativas para a reflexão desse campo.
Ainda nesse campo a produção teórica da professora Regina Pahim Pinto (2002 e
2004) e das professoras Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (1997 e 2002) e Nilma Lino
Gomes (1995; 2005 e 2006) sobre a formação de professores e as relações raciais são
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importantes contribuições e foram tomadas como referência para a elaboração da análise do
material. Contudo a escolha dessas pesquisadoras não impediu o recurso a outros autores para
embasar discussões específicas e/ou a incorporação de temáticas afins quando necessário.
Para Pinto (2004), as pesquisas realizadas nesse campo se desenvolvem em torno de
três eixos: 1) a ênfase na cultura e a importância da presença desses elementos produzidos
pelos segmentos minoritários (negros, índios e outros grupos étnicos) no currículo escolar, 2)
o estudo da discriminação e do preconceito no contexto escolar e as conseqüências disso na
construção da identidade dos sujeitos pertencentes a esses grupos e 3) a abordagem sobre as
especificidades da educação desenvolvida ou proposta por esses grupos. Levando em conta
essas considerações, esta pesquisa pretende contribuir na organização de um quarto eixo,
pouco delineado, sobre a formação de professores e as relações raciais.
6. Educação infantil e a questão racial
Apesar de pequeno o número de pesquisas que trabalham com a formação de
professores e as relações raciais, é ainda menor as que abordam nessa discussão a educação
infantil. Por isso, um de nossos principais objetivos aqui é perceber como os cursos de
formação impactam a prática pedagógica de professores que atuam nesse nível educacional.
Abaixo, tecemos algumas considerações sobre essa etapa da educação.
Ao tratarmos da educação infantil, buscamos apreender as particularidades desse tema
e as relações raciais. Sabemos que há muitas questões postas em pauta sobre essa etapa da
educação, sendo uma delas a função dessa etapa da educação básica. No entanto, não
entraremos no mérito de algumas delas por não ser o objetivo central desta proposta e porque
há várias pesquisadoras que se dedicam a essas reflexões, tais como: Sônia Kramer (1999;
2004; 2005 e 2006); Maria Malta Campos (1999), Fúlvia Rosemberg (1996, 1999), Ana Lucia
Goulart de Faria (2005a; 2005b), entre outras.
Pretendemos apenas apresentar nossa posição sobre o caráter da educação infantil. O
debate sobre esse tema põe em questão o tipo de atividade educacional que deve ser realizada
com as crianças nessa etapa da educação básica. Alguns pesquisadores sustentam que esse
tempo não deve ser escolarizado. Com isso, questionam as metodologias de aprendizagem, de
leitura e de escrita destinadas a essa etapa. Problematizam, também, os modos como se
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denominam os espaços freqüentados por essas crianças, argumentando que não devem ser
considerados escolas, salas de aulas etc.
Outros defendem que o atendimento educacional nessa etapa deve organizar espaços
de convivência e de socialização, nos quais estejam presentes a ludicidade (canal principal de
comunicação das crianças pequenas), a produção e a apropriação dos conhecimentos
socialmente produzidos, proporcionando espaço para a investigação, para momentos de ler e
escrever, estabelecendo que as crianças deverão ter respeitados seu desenvolvimento, mas
que, ao mesmo tempo, provoquem-nas, pois são sujeitos ativos, curiosos e investigativos.
Há, portanto uma rica reflexão, com diferentes pontos de vista, que está buscando o
melhor formato para o atendimento das crianças pequenas, garantindo-lhes o direito de serem
crianças.28 Tudo isso porque se pretende protegê-las de propostas educacionais que "roubem
suas infâncias", preocupadas em demasia com a alfabetização no sentido estrito.
Nossa posição em relação à educação infantil é que as mais diversas linguagens devem
ter espaço: a corporeidade, a musicalidade, os desenhos e por conseguinte o desenvolvimento
do gosto pela leitura, as descobertas sobre escrita e tantos outros conhecimentos mais forem
possíveis. Por isso, os espaços que atendem/recebem as crianças pequenas nesta pesquisa
serão chamadas de instituições, entidades, creches, Centro de Educação Infantil (CEI), Escola
de Educação Infantil (EMEI), sala de aula ou ambientes educativos. Também, para nos
referirmos às profissionais entrevistadas utilizaremos, eventualmente, os termos professoras
ou educadoras, predominando este, porque as entrevistadas de Campinas manifestaram a
preferência por ele.
Independentemente das denominações dadas aos lugares que freqüentam e as pessoas
que convivem com as crianças pequenas, reiteramos que elas devem ser atendidas/ recebidas
de acordo com suas peculiaridades, possibilitando que se expressem nas multilinguagens. O
jogo, a brincadeira, os brinquedos, o aprender a estar com o outro diferente e igual a mim têm
de fazer parte desse cotidiano. Nossa perspectiva, ao pensar em espaços educativos formais
para crianças pequenas, está em consonância com o desafio apresentado por Peter Moss:
Hoje uma tarefa importante diante da primeira infância é como criar um ambiente
democrático, crítico que possa confrontar as forças hegemônicas. Esse ambiente irá
28
Consideramos que "ser criança" é uma construção histórica e se relaciona com o tipo de cultura na qual os
sujeitos estão inseridos.
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reconhecer e celebrar uma multiplicidade de perspectivas, uma diversidade de
conceitos e práticas e a constestabilidade de todos os conhecimentos e
reivindicações de verdade. (MOSS, 2002, p. 237).
No Brasil, a Educação Infantil, com aprovação da LDBN 9394/96, passou a ser um
direito da criança independentemente de sua condição social. Todos os meninos e meninas de
0 a 5 anos devem ter garantido o seu direito ao acesso à educação básica. Essa premissa é
vitoriosa do ponto de vista legal, mas a inclusão da educação infantil como uma etapa da
educação básica ainda está longe de ser concretizada. Em 2001, de acordo com estudos de
Maria Dolores B. Kappel (2001), apenas 10,6% das crianças entre zero e três anos de idade e
57,1% das crianças entre quatro e seis anos de idade estavam matriculadas em creches e préescolas. Essa realidade torna-se mais precária quando se considera o atendimento dos filhos
das famílias que recebem até meio salário mínimo.29
Quando agregamos a esses dados o componente racial, o quadro agrava-se mais. De
acordo com pesquisa desenvolvida por Fúlvia Rosemberg (1999), o índice de retenção de
crianças negras é maior que o das brancas desde a pré-escola. A pesquisa mostra que a
predominância absoluta de crianças, com sete anos ou mais, ainda na pré-escola é de negras,
chegando a 63,5%. Já em relação às crianças brancas nessa mesma situação, o percentual cai
expressivamente para 36,5%. Há um claro desfavorecimento para as crianças de famílias com
baixa renda, em especial as negras.
Em relação à desigualdade racial apresentada pela pesquisa, as causas econômicas
sozinhas não dão conta de explicar a retenção maior das crianças negras. Para Rosemberg
(1999), ao componente econômico agrega-se o "pessimismo racial". Segundo a autora, esse
processo consiste na descrença no âmbito institucional, por parte dos que executam a
educação infantil, do gestor ao professor na capacidade intelectual da criança negra.
Esse "pessimismo racial" pode sofrer rupturas se professores e gestores que atuam na
educação infantil incorporarem atividades que tratem das relações étnico-raciais. Meninos e
meninas dessa faixa etária são ativos pensadores sobre a vida nos seus mais diferentes
29
Dados apresentados no relatório do Grupo de Trabalho instituído pela Portaria Interministerial nº 3.219, de 21
de setembro de 2005, formado por integrantes do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do
Ministério da Educação, e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Disponível
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf> Acesso em: 28 out. 2006.
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aspectos, fazem perguntas sobre si mesmos, sobre os fenômenos naturais, sobre as
descobertas tecnológicas, sobre a vida e a morte, se perguntam sobre as diferenças de cor e
cabelo, opção política e tantos outros temas. Também formulam e encontram respostas sobre
esses mesmos temas a partir do que vêem, ouvem e sentem ao seu redor. Com as respostas
obtidas por diferentes meios, organizam seus modos de pensar sobre si mesmos e sobre os
outros, construindo nesse processo, conceitos como superioridade inferioridade, igualdade e
desigualdade, ente outros.
Questões como: quem sou eu? Quem é ele/ela? Por que ele/ela é diferente de mim?
Em que ele/ela é diferente de mim? Por que meu amigo/a tem essa cor? Aparecem nessa etapa
como parte do processo de construção da sua identidade que será sempre uma construção
relativizada pelo Outro. Nesse processo de pensar a si mesmo, pensa-se o outro e a sociedade.
Sendo assim, os professores, o diretor, o funcionário da limpeza, e todos que lidam com a
criança pequena têm um papel de grande importância. Em alguns casos, é a educadora quem
ouve a primeira palavra dita pela criança em sua vida. Vê o primeiro passo, ajuda a tirar a
fralda, colabora na aprendizagem sobre os modos adequados de comer, entre outras
atividades. Às vezes, a educadora conhece melhor a criança do que os próprios pais, porque é
com ela que a criança passa as longas horas do dia.
Com tantas perguntas a serem respondidas, o papel da educadora na construção da
identidade é bastante influente. Um exemplo é o relato da educadora Mariama.
Havia um menino [...], bem negro, negro, negro! Eu fui dar banho [nele] e na hora
do banho eles tiram a roupa, ficam nus. Tirei toda a roupa dele e tinha um menino
bem branquinho, branquinho, branquinho, branquinho, branco mesmo.! Ele não era
do nivel 2. Era do nível 4. Eu estava dando banho no nível 2. Ele entrou no banheiro
para fazer xixi. Como era menino, pediu licença. Eu falei que podia entrar. Ele
entrou e parou. Ficou olhando para o menino [que estava no banho].
Eu falei: "Porque você está olhando o P. L.?".
Ele falou assim: "Ah! Tia porque ele é assim?".
Eu falei: "Assim? Assim como? ".
Ele respondeu: "Assim!". Então eu falei: "Assim como?".
Ele respondeu: “Ele é preto, a cor dele é preta, ele é preto...".
Eu falei: "Ele é assim porque nasceu assim. É a cor, ele é negro...".
Eu já tinha alguma informação que não deveria falar preto tinha de ser negro, que
era a raça, eu reforcei.
"Ah! Ele é negro, você quer dizer a cor dele é negra. Ele é assim, porque ele nasceu
assim é a raça. Tem raça branca... tem raça negra".
Ai ele falou assim: "Mesmo se ele tomar banho e você esfregar muito com a bucha e
com o sabão ele não vai ficar branco?".
Eu falei: “Não porque ele nasceu assim, ele é assim”.
Então, o L. me perguntou: “E se ele pegar e arrancar tudo o courinho dele” - ele
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usou a palavra courinho – “E se ele pegar e arrancar tudo o courinho dele não
vai nascer outro branco?”.
Eu respondi: “Não vai nascer outro branco porque ele é negro”.
Ai que ele foi entender que a criança tinha aquela cor. O que eu achei engraçado é
que eles já convivam. E o L. não havia percebido a cor do P. pelo rosto, ele só
percebeu quando o menino estava nu, aí ele percebeu. (Professora Mariama entrevista concedida em 23/09/06, grifos nossos).
O depoimento ilustra fatos corriqueiros do cotidiano da educação infantil. Apesar de
corriqueiro, não deixa de ser complexo. Uma criança olhando para a outra, percebe-a
diferente de si mesmo. Em seguida, há a sensação de estranhamento do menino branco diante
da visão do menino negro. Por fim, está a ação da educadora. Atenta, utiliza esse momento
como um espaço de ensinar e aprender sobre as diferenças raciais. Fato esse não tão
corriqueiro assim. Nem sempre a educadora possui instrumentos para perceber que ali está um
conteúdo fundamental a ser trabalhado. Seu procedimento é exemplar do ponto de vista
pedagógico. Ela considerou o estranhamento do menino branco em relação ao menino negro
como uma questão que deveria ser refletida e, por isso, faz perguntas ao menino branco. Com
isso, ela não só permite que o menino branco dialogue com ela sobre suas impressões e tenha
a oportunidade de refletir sobre as diferenças raciais existentes entre os seres humanos.
Convida-o a expressar seus sentimentos e permite-lhe que manifeste o que está pensando, ao
mesmo tempo apresenta-lhe outras referências para compreender a "negritude" que lhe causou
tanta estranheza.
Ela poderia, simplesmente, considerar que uma criança de quatro anos estava falando
bobagem, atrapalhando o seu trabalho e encerrar o assunto com uma bronca ou pior ignorando
a atitude do menino branco. No entanto, ela percebeu um rico momento de ensinoaprendizagem e de educação das relações étnico-raciais e não o dispensou. Certamente, o que
deu à educadora essa percepção relaciona-se ao fato de que ela já tinha alguma informação
sobre o tema das relações raciais, mesmo antes de participar do curso de formação da
SED/MS, como fica claro em outro trecho da sua entrevista:
E porque no bairro onde eu moro, existe uma comunidade, eu fazia parte dessa
comunidade, comunidade religiosa, né, na época... católica, e lá havia uma
associação de ... uma associação de... para...trabalhos... trabalhos sociais e dentro
dessa associação sempre havia palestrantes que ia lá falar uma coisa assim … que ia
falar. Palestras sobre esse assunto.(Professora Mariama - entrevista concedida em
23/09/06)
Na educação infantil, está estabelecido que a função da educadora é de cuidar e
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educar30. Entendemos que uma dimensão não existe sem a outra ao cuidar, educa-se ao
educar, cuida-se. Com isso refletiremos sobre a simultaneidade dessas dimensões: quando se
educa, se cuida.
O cuidar não se restringe tão-somente à manutenção das condições básicas de higiene,
alimentação e segurança. Essa dimensão contém as necessidades de o educador cuidar da
criança, também, nos aspectos relativos a sua subjetividade e individualidade. Se as
educadoras têm responsabilidades com os aspectos objetivos da dimensão cuidado, devem ter
na mesma medida com os aspectos subjetivos. Um desses é o processo de construção da
identidade das crianças. Ele ocorre na interação social, entre as crianças e seus pares e entre as
crianças e os adultos, sendo na escola mediado pelos modos como a professora cuida/educa.
Para ser comprometida com uma educação séria, de qualidade e democrática, a
educadora tem de estar atenta a essas subjetividades. É sua responsabilidade proporcionar às
crianças momentos nos quais referências positivas relativas a todos os grupos humanos
estejam presentes, possibilitando-lhes que aprendam a importância da diversidade. Os marcos
legais já indicam essa tarefa. Os Referenciais Curriculares da Educação Infantil (RCNEI,) de
1998, recomenda que:
O desenvolvimento da identidade e da autonomia está intimamente relacionado com
os processos de socialização. Nas interações sociais se dá a ampliação dos laços
afetivos que as crianças podem estabelecer com as outras crianças e com os adultos,
contribuindo para que o reconhecimento do outro e a constatação das diferenças
entre as pessoas sejam valorizadas e aproveitadas para o enriquecimento de si
próprias. (RCNEI, vol.02, 1998, p.11).
A partir de 2003, temos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(DCEER)31, advindas da Lei nº.10.639 de 9 de janeiro de 2003. Essa Lei altera a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, (LDBN) nº.9394 de 20 de dezembro de 199632 no
seu artigo de nº.26 tornando obrigatória a inclusão no currículo oficial do ensino da temática
30
Não entraremos no mérito de porque e como essas dimensões, tornaram-se o estabelecido para a educação
infantil.
31
A partir desse momento, nos referiremos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, como DCEER.
32
A Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003, será a partir daqui referida como Lei 10.639/03. Assim como, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9394, de 20 de dezembro de 1996, será LDBN 9394/96.
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“História e Cultura Afro-brasileira” no seu artigo 79, quando estabelece que o dia 20 de
novembro, deve ser incluindo no calendário escolar como o "Dia Nacional da Consciência
Negra". Alguns argumentavam que a Lei 10.639/03 tratou apenas do ensino fundamental,
mas, com a publicação das DCEER, essa ausência foi superada. No Art.1º. da resolução que
institui as Diretrizes estabelecendo que “[...] a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições
de ensino que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por
Instituições que desenvolvam programas de formação inicial e continuada de professores”.33
Apesar desses marcos legais serem importantes, é preciso assegurar que sejam
pedagogicamente abordados no dia-a-dia pelas educadoras.
Evidentemente, a educação não pode eliminar todas as desigualdades, principalmente,
as que têm por base estrutural a economia. Pode, no entanto, colaborar na construção do que
chamamos de percepção da igualdade entre os seres humanos.
É papel fundamental da educação como um todo e da educação infantil em particular,
possibilitar que as crianças vivenciem um ambiente escolar igualitário na sua concretude,
exatamente, porque nele se respeita e se discute as diferenças. Para isso, não adiantará as
educadoras usarem frases de efeito muito comuns no meio educacional, tais como, “Para mim
as crianças são iguais”, “Eu trato todos do mesmo jeito”, “Aqui na sala não tem diferença de
cor” ou “Eu nem percebo a cor dos meus alunos”, “Eu não presto atenção se tem preto ou
branco na sala”.
Essas frases estão imbuídas de um princípio de democracia, no sentido em que
Maclaren (2000, p.42), critica, segundo ele “uma das perversões sub-reptícias da democracia
tem sido a maneira pela qual os cidadãos têm sido convidados a se esvaziarem de toda a sua
identidade racial e étnica, de forma que, aparentemente, eles se apresentam nus diante da lei”
- atitude que essas frases revelam. Longe de serem pronunciados por educadoras
comprometidas com uma educação igualitária, tais comentários são próprios de pessoas que
agem como se não vissem as diferenças raciais, colaborando, no caso das educadoras, para
que as crianças naturalizem suas percepções sobre a desigualdade racial.
O velho ditado “quem cala consente” é muito verdadeiro neste caso. Calarmos diante
33
CNE/CP Resolução 01/2004, Art.1º. Grifos nossos.
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das questões que as relações raciais suscitam entre as crianças pequenas é colaborar para que
de um lado, crianças negras, em sua maioria, cresçam tímidas, temerosas e envergonhadas de
si mesmas. E a escola continue sendo um ambiente que não as acolhe, negando
insistentemente sua história e cultura, sem protegê-las contra a violência da discriminação e
do preconceito raciais. De outro lado, colabora para que crianças brancas cresçam acreditando
na superioridade que a brancura lhes possibilita. O ambiente escolar hostil e desigual para
crianças negras e brancas é estabelecido desde a mais tenra idade. Como pode ser constatado
em pesquisa realizada por Oliveira (2005), da qual trazemos um exemplo emblemático.
[...] estávamos no refeitório, e V. (negro) estava sentado à mesa com as outras
crianças, aliás, coisa rara de se ver. No entanto, antes de o menino terminar de
comer, Marli o colocou no cadeirão, não entendi por que, pois ele estava
comportado, ao contrário de I. (branco), que tirou o tênis e jogou em cima da mesa,
em seguida, se levantou e correu pelo refeitório, Marli foi atrás dele e só disse para
ele ficar quieto; diante da situação, Raquel (pajem/negra) veio e sentou ao lado de I.
(branco) dizendo: “Vamos ficar quieto, que negócio é esse de ficar correndo, não me
deixa ficar brava”, só assim, para ele ficar sentado. Marli nem cogitava a
possibilidade de colocá-lo no cadeirão. E o cadeirão era uma forma de castigar as
crianças pelos seus atos, mas I. (branco) estava sempre livre de tal castigo,
parecendo ser uma questão de pele diante desse tratamento diferenciado
(OLIVEIRA, 2005, p.38).
O episódio sugere que dois bebês muito cedo percebem que ambos podem coisas
diferentes e que essas possibilidades estão diretamente relacionadas ao seu pertencimento
étnico-racial.
7. Políticas Públicas e a questão racial - ontem e hoje
A educação, como todas as outras formas de organização de um povo, não traz
questões para o seu interior que não decorram da sociedade na qual está inserida. Por isso é
importante localizar historicamente como o combate à discriminação, à intolerância, ao
racismo e à xenofobia adentra o território da educação como uma questão fundamental dos
tempos atuais.
A preocupação com a discriminação racial e questões correlatas a ela há muito tem
sido foco dos organismos internacionais. Na liderança desse processo encontra-se a
Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, mesmo antes da ONU, iniciativas de caráter
internacional já tinham empreendido seus esforços no sentido de garantir a paz mundial ou
mesmo estabelecer parâmetros nas relações de convivência entre os países objetivando
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atitudes mais pacíficas.
A Conferência de Haia para a Paz (1899)34 tinha como principio básico o
estabelecimento de regras para a resolução pacífica de controvérsias internacionais. No
documento, não há nenhuma referência específica às questões étnico-raciais ou mesmo às
questões mais gerais da discriminação, mas indica a necessidade da constituição de uma
“cultura da paz” como, contemporaneamente, a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tem chamado os princípios relacionados ao
respeito e convivência entre os diferentes grupos étnico-raciais e religiosos.
Em 1919, criou-se a Liga (ou Sociedade) das Nações, logo após o término da I Guerra
Mundial (1914-1918), com o objetivo de preservar a paz e assegurar o cumprimento das
normas de direito internacional, consubstanciando-se em princípios tais como a diplomacia
aberta, a arbitragem, a segurança coletiva e a cooperação econômica. Contudo não foi uma
ação bem sucedida, gerando conflitos intensificados pela assinatura do Tratado de Versalhes
(1919)35 que desembocaram na II Guerra Mundial (1939-1945). Esta, por sua extensão de
tempo, pela quantidade de países envolvidos, pelo número de mortos e feridos deixou marcas
profundas em sociedades do mundo inteiro.
É nesse período que ocorrem alguns dos crimes mais brutais contra a humanidade.
Com a ascensão de Adolf Hitler (1933), na Alemanha, estabelece-se um dos mais aviltantes
processos de perseguição e extermínio de seres humanos, judeus, eslavos, ciganos,
comunistas, deficientes físicos e homossexuais são as vítimas potenciais dessa cruzada.
Também a morte de japoneses provocada pela explosão da bomba atômica em Hiroshima e
Nagasaki (1908) e a catástrofe de Leningrado (1941)36 foram eventos que tornaram aqueles
tempos sombrios e impuseram ao mundo do pós-guerra a tomada de uma posição mais
contundente em relação à proteção dos povos.
Tornou-se premente o estabelecimento de regras para fazer deste tempo uma era mais
34
Para mais detalhes ver < www.pca-cpa.org/PORTUGUESE/POBD-1899.pdf.> Acesso em 04 set. 2006.
35
GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 2000.
36
“Dos seus três milhões de habitantes existentes em 1941, um terço sucumbiu pelas bombas e, principalmente
pela fome. […] No julgamento de Nuremberg falou-se de 632 mil vítimas, enquanto outras fontes indicam 900
mil mortos. Seja qual for a correta, o fato é que Leningrado possui o maior cemitério de vítimas civis da Segunda
Guerra Mundial”. Disponível <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/segunda_guerra8.htm>. Acesso em
20 set. 2006.
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contida e mais cuidadosa com a vida. Nesse contexto, a ONU é constituída37 como uma nova
tentativa de estabelecer parâmetros positivos de relacionamento entre os povos.
No
documento a Carta das Nações Unidas38, consta no capítulo I, Art. 1º, que uma de suas
funções será:
Realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o
respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião. (Carta das Nações, 1945, Art. 1º, item 3)
Tal proposição deixa claro que o investimento em ações promotoras do respeito às
diferenças será uma diretriz desse novo organismo. É também um diferencial seu em relação
aos tratados anteriores (Haia e Liga das Nações) que não citavam raça, sexo ou língua de
modo explícito.
A UNESCO, braço das Nações Unidas responsável pela questão educacional, da
ciência e da cultura, estabeleceu marcos importantes no sentido de comprometer os paísesmembros com a assinatura de tratados que visem ao estabelecimento de políticas para cercear
as práticas da intolerância em diferentes países. Essa ação da UNESCO teve reflexos
fundamentais para os estudos das relações raciais no Brasil.
Os empreendimentos desse organismo na constituição de instrumentos internacionais
foram basilares para os países-membros no que tange a produção de políticas para minorias
étnicas, raciais e religiosas. Um dos primeiros instrumentos com este caráter foi a Convenção
relativa à luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, adotada pela UNESCO, na sua
11ª sessão, em Paris, a 14 de Dezembro de 1960 que entrou em vigor na ordem internacional
em 22 de Maio de 1962. O artigo 5º. prevê
a) tornar obrigatório e gratuito o ensino primário: generalizar e tornar acessível a
todos o ensino secundário sob suas diversas formas; tornar igualmente acessível a
todos o ensino superior em razão das capacidades individuais; assegurar a execução
por todos da obrigação escolar prescrita em lei. (Convenção relativa à luta Contra a
37
Há uma extensa produção problematizando esses objetivos. Para uma visão geral sobre o assunto
recomendamos a leitura do artigo de CAMBESES, Manuel. A Organização das Nações Unidas e a paz mundial.
Disponível em < www.esg.brasileiro/publicacoes/artigos/a024.html > Acesso em: 07 set.2006.
38
A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, a 26 de Junho de 1945, após o encerramento da
Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele
mesmo ano.
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Discriminação no Campo do Ensino, 1960, Art. 5º, item a).39
O caráter firme do texto indicando o papel fundamental da educação ainda é reforçado
em vários outros instrumentos da entidade que abordam o tema. Entre eles estão a Declaração
sobre Racismo e Preconceito Racial (1978), a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Declaração sobre os direitos das
pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e lingüísticas (1992), a
Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995), a Declaração Universal sobre a
Diversidade Cultural (2002), e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade
das Expressões Culturais (2005).
Ainda nesse contexto temos a Convenção da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), nº111, relativa à Discriminação no Trabalho e Ocupação, de 25 de junho de 1958, e a
Convenção nº169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Nações Independentes (1989). São
também marcos neste processo de indução de diálogos e de promoção de políticas para a
igualdade entre os povos a 1ª. Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Genebra
(Suíça), em 1978, que teve como objetivo principal à condenação ao regime de apartheid na
África do Sul; a 2ª. Conferência Mundial contra o Racismo, também em Genebra, em 1983,
que reavaliou a primeira, indicando medidas para a ONU a fim de contribuir para a
eliminação do racismo e do apartheid; e a última, ocorrida em Durban, África do Sul, em
setembro de 2001, que teve forte repercussão entre os ativistas da questão racial no Brasil,
envolvendo setores do movimento negro e indígena brasileiro. Esta produção de instrumentos
se define como tentativas importantes na construção de sociedades nas quais o respeito mútuo
seja a tônica. A quantidade de convenções e declarações indica-nos a enorme dimensão e
complexidade dessa questão em âmbito internacional e, por conseguinte, em âmbito nacional.
No caso brasileiro, a UNESCO, teve papel marcante no empreendimento dos estudos
das relações raciais, inicialmente para investigar a existência ou não de conflitos e
desigualdades baseados na raça. Sua principal ação foi financiar nos anos 50, pesquisas no
Brasil para compreender suas relações raciais, pois considerava o país um exemplo para o
mundo pós-guerra de convivência ente povos, culturas e raças diferentes. Esse financiamento
39
Mais detalhes ver <http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/convdiscensino>. Acesso em: 20 set.
2006.
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proporciona uma intensificação do estudo dessa temática em várias regiões brasileiras,
principalmente, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco, e também investe no
intercâmbio de diferentes áreas como a Sociologia, a Antropologia e a História na
compreensão das relações raciais no Brasil.
Estas pesquisas marcam um novo modo de interpretar as relações raciais no Brasil que
se diferenciará radicalmente das explicações vigentes, como por exemplo, as de Donald
Pierson (1942). O pesquisador não considerava que existisse preconceito de raça no Brasil,
para ele o que existia era um preconceito associado à cor. Também serão diferenciadas das
interpretações de Gilberto Freyre (1933), para quem no Brasil as relações raciais eram mais
harmoniosas se comparadas com os EUA.
Os novos pesquisadores, como Roger Bastide e Florestan Fernandes (1955) e Abdias
do Nascimento (1968), discordam tanto de que no Brasil o preconceito é de cor como do fato
de que vivemos numa sociedade menos desigual. Para os primeiros, a questão articula-se com
o desenvolvimento das relações de trabalho e apóia-se para justificar o fenômeno em
conceitos da teoria marxista produzindo uma nova explicação para a desigualdade entre os
brasileiros, considerando a perspectiva de raça. Já Nascimento (1968) defendeu que, para
acabar com o racismo, era necessário fortalecer os valores da cultura tradicional africana no
Brasil, de forma a fazer parte da consciência e da cultura das instituições brasileiras,
dedicando-se assim a uma produção relacionada à área cultural, tendo como principal via de
suas idéias a organização do Teatro Experimental do Negro (TEN) e a luta por políticas
públicas a favor dos negros.
Entre os pesquisadores que produziram a partir do projeto UNESCO destacam-se
Bastide e Florestan (1955), Oracy Nogueira (1955), Thales de Azevedo (1953), Guerreiro
Ramos (1954), Fernando Henrique Cardoso (1962) e Otavio Ianni (1960), entre outros.
Diferentemente do que esperava a UNESCO, os resultados das pesquisas apresentam a
sociedade brasileira permeada pelo preconceito de raça/cor. Algumas delas defendiam que os
preconceitos de raça e cor seriam superados na medida em que a sociedade de classes se
organizasse de forma mais consistente. Outras que o preconceito era decorrência da
escravidão. Estas pesquisas, mesmo que contraditórias entre si configuram-se em suportes
utilizados tanto pela academia quanto pelos agentes do movimento negro que se apropriam
dos resultados para criticá-los ou reiterá-los, o que dá à questão racial uma certa visibilidade,
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contribuindo para que o debate aumente e prossiga.
Nos anos 70, o entendimento sobre as relações raciais apresenta novas interpretações,
com ênfase no modo estruturante das relações sociais. Carlos Hasenbalg (1979, p.85), por
exemplo, argumenta que “[…] as práticas racistas do grupo dominante branco que perpetuam
a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão funcionalmente
relacionadas com os benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da
desqualificação dos não brancos”.
A ampliação do debate sobre a situação da população negra brasileira prossegue,
ganhando importância com o passar do tempo. A nova Constituição Federal (1988) traz
alguns avanços em relação ao tema, estimulando o poder público a atuar de modo mais
contundente neste campo. Antes de 1988, governos estaduais e municipais foram
pressionados pela rearticulação do movimento negro pós-reabertura política. Um dos
principais resultados é a criação dos Conselhos de Participação da Comunidade Negra, com
destaque para o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de São
Paulo, criado em 1984, paradigma para outros estados e municípios. Ainda nessa trilha de
políticas governamentais, o então presidente José Sarney, em 1987, instituiu o Programa
Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura em razão dos 100 anos da Lei Áurea,
também em reação a mobilizações das organizações negras.
Contudo são os anos 90 que trouxeram para o poder público a visibilidade do empenho
para com a temática das desigualdades raciais como um fato a ser reconhecido e que impõe a
necessidade de ações que visem a sua superação. É o Rio de Janeiro o pioneiro, onde foi
criada, em 1991, a Secretaria Estadual de Defesa e Promoção das Populações Negras. Ação
semelhante ocorreu em Belo Horizonte-MG, em 1998, com a criação da Secretaria Municipal
para Assuntos da Comunidade Negra (SMACON).40 Apesar de a criação de secretarias estar
limitada a duas, multiplicaram-se as experiências de criação de órgãos intitulados
Coordenadorias do Negro em governos municipais e, depois de 2000, em alguns governos
estaduais.
É importante destacar que a história em prol de ações afirmativas para população
negra no Brasil se realiza com recuos e avanços. Nesse campo de luta, os defensores da idéia
40
Anexo 62.
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de que o Brasil é um país “democrático racialmente” estão sempre prontos a reafirmar,
quando necessário, essa tese. Ao mesmo tempo tem-se cada vez mais presente a idéia de que
essa “igualdade abstrata” não se sustenta. Essa disputa configura-se numa luta política, e
nesse movimento instaura novos modos de atuar sobre o tema das relações raciais, em alguns
casos resultando em mudanças na sociedade, refletindo no interior das instituições escolares.
Esses ideais, às vezes, não se realizam ou demoram a sair das letras das convenções,
tratados e conferências para se tornarem medidas concretas. O Brasil só se tornou signatário
da Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, em 1968, em
plena ditadura militar. A partir do decreto nº. 63.233 assinado pelo então presidente Costa e
Silva, que traz em seu artigo V, item a:
Os Estados Partes na presente Convenção convêm em que: a) a educação deve visar
ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito
aos direitos humanos e das liberdades fundamentais e que deve favorecer a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e a todos os grupos
raciais ou religiosos, assim como o desenvolvimento das atividades nas Nações
Unidas para a manutenção da paz.
Presume-se, com isso, que desde 1968 o Estado brasileiro deveria ter empreendido
políticas públicas no campo educacional para tornar realidade a proposição desse artigo.
Porém, nas leis educacionais do país que se seguiram a essa convenção, a concepção não
estava presente. Tanto na lei nº.5540/68, de 28 de novembro de 1968, que fixou normas de
organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, quanto
na Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus nº.5692/71 de 11 de agosto de
1971, a idéia de favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
todos os grupos raciais ou religiosos são tratados apenas tangencialmente. Essas leis tiveram
grande importância para a educação brasileira, porém foram leis de ajustes àquele momento,
de repressão política por parte do Estado.
O salto qualitativo só ocorreu na LDBN nº.9394/96. O seu artigo 26, § 4º determina
que “o ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
européia” 41.
Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso instituiu o Grupo de Trabalho
41
Ler DIAS. Lucimar Rosa, Quantos passos já foram dados? A questão de raça nas leis educacionais. Da LDBN
de 1961 a lei 10.639, revista on-line www.espaçoacademico.com.brasileiro/038/038cidas.htm
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Interministerial (GTI), respondendo às reivindicações de ativistas negros que participaram da
Marcha Zumbi dos Palmares42, realizada em novembro daquele ano. A partir do
estabelecimento desse grupo, algumas ações são empreendidas em âmbito do governo federal,
estabelecendo um marco nas políticas afirmativas. Em 13 de maio de 2002, ainda sob o
comando do presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo federal lançou o Programa
Nacional de Ações Afirmativas, objetivando promover “os princípios da diversidade e do
pluralismo no preenchimento de cargos da administração pública federal e na contratação de
serviços por órgãos do governo”. No mesmo dia, é lançado o Plano Nacional de Direitos
Humanos II, que inclui medidas de combate à discriminação. E no dia 14 de maio é lançado o
Programa de Ação Afirmativa do Instituto Barão do Rio Branco, que busca apoiar candidatos
afrodescendentes para que se preparem para o concurso da carreira diplomática.
Para responder às pressões do MN resultantes de mobilizações para a participação na
III Conferência Mundial contra o Racismo, o então ministro da Educação, Paulo Renato de
Souza, procurou divulgar as publicações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para
o Ensino Fundamental (1997) como ação afirmativa na educação, porque o volume nº.10
intitula-se Pluralidade Cultural e Orientação Sexual e apresenta como um dos objetivos
gerais:
[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro bem
como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra
qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças,
de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais (PCN, v.20, 1997,
p.4).
Ao lado dos PCNs, Souza também incluiu a produção de material publicitário federal
no qual contempla a diversidade racial brasileira entre seus maiores feitos no campo das ações
afirmativas. Outra ação do MEC, de grande repercussão foi o um acordo feito com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o desenvolvimento do Projeto Diversidade na
Universidade, do qual decorreram várias ações educativas, como o apoio a cursos pré-
42
“A Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida, que aconteceu ontem em Brasília, nas comemorações
dos 300 anos da morte de Zumbi, reuniu cerca de 4.000 pessoas entre as 12h e 13h, de acordo com a estimativa
da PM. Entre os organizadores do evento não havia um consenso sobre os participantes. Foram mobilizados 600
policiais para a segurança. O equivalente a um policial para cada 18 manifestantes. Normalmente, a PM do DF
mantém um policial para cada mil habitantes”. Este movimento foi acompanhado da entrega de um documento
reivindicatório ao Presidente Fernando Henrique Cardoso. Folha de São Paulo SP Cotidiano p. 1-3 ,21/11/95
reportagem de Daniela Pinheiro e Alexandre Secco.
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vestibulares realizados por instituições negras43.
Em 2003, um dos primeiros atos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006),
foi a instituição da Lei nº 10.639/03, que institui a obrigatoriedade da história e cultura
africana nos ensinos fundamental e médio. E, em 2004, o Conselho Nacional de Educação
aprova as DCEER.
Outro fator que se constituiu como marco das lutas reivindicatórias do movimento
negro e propulsor de experiências no âmbito da educação, entre outras áreas, foi a criação da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)44, criada por
medida provisória nº. 111, em 21 de março de 2003, convertida em Lei 10.678/03 em 23 de
maio. Sua missão prevê "acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros
órgãos do governo brasileiro para a promoção da igualdade racial [...].45
O primeiro governo Lula (2003-2006) institucionalizou alguns espaços para a atuação
em políticas, chamadas de promoção da igualdade racial. No âmbito da educação, cria-se a
Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), em julho de
2004, no Ministério da Educação (MEC). Nela estão reunidos temas como alfabetização e
educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação escolar
indígena e diversidade étnico-racial, temas antes distribuídos em outras Secretarias. De acordo
com o site do Ministério, "A criação da SECAD marca uma nova fase no enfrentamento das
injustiças existentes nos sistemas de educação do país, valorizando a diversidade da
população brasileira, trabalhando para garantir a formulação de políticas públicas e sociais
como instrumento de cidadania”.46
43
O Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, dia 04 de setembro de 2002, em evento realizado em São
Paulo, a inauguração da primeira etapa do projeto "Diversidade na Universidade", que tem o objetivo de facilitar
o acesso de camadas menos favorecidas da sociedade, principalmente negros e indígenas, ao ensino superior. O
programa, criado pela Medida Provisória 63, publicada no DOU (Diário Oficial da União) em agosto desse ano,
receberá U$ 9 milhões, U$ 5 milhões do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e U$ 4 milhões do
Tesouro Nacional, para utilizar em três anos. Para começar o programa foram selecionados seis projetos de
cursos pré-vestibular de ONGs (Organizações Não-Governamentais) de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, que
vão receber, juntos, R$ 342.438,00 em 2003, quando 820 estudantes que estão concluindo ou que já concluíram
o
ensino
médio
serão
beneficiados.
<http://www.lppuerj.net/olped/cined/banco/exibir_noticias.asp?codnoticias=971>. Acesso em 17 jan.2007
44
Anexo 63.
45
BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Política Nacional de Promoção da
Igualdade Racial. Material de divulgação, data provável [2003?], p. 4.
46
<http://portal.mec.gov.br/secad>. Acesso em: 09 maio 2006.
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A SECAD é composta por quatro departamentos: Departamento de Educação de
Jovens e Adultos, Departamento de Desenvolvimento e Articulação Institucional,
Departamento de Avaliação e Informações Educacionais e Departamento de Educação para a
Diversidade e Cidadania. Neste departamento, encontram-se quatro coordenações: a
Coordenação-Geral de Ações Educativas Complementares, a Coordenação-Geral de Educação
Ambiental, a Coordenação-Geral de Educação do Campo, a Coordenação-Geral de Educação
Indígena e a Coordenação-Geral de Educação de Diversidade e Inclusão Educacional. Esta
tem as seguintes atribuições:
Elaborar e implementar políticas educacionais que favoreçam o acesso e a
permanência de afrodescendentes em todos os níveis da educação escolar e por
fortalecer e valorizar a diversidade étnico-racial brasileira e o fortalecimento de uma
rede de profissionais de educação para implementação e a valorização da
diversidade étnico-racial, da formação anti-sexista e o combate à intolerância
religiosa.47
Ainda, de acordo com informações do site, em 2004 foram realizados mais de 20
fóruns estaduais em todo país para discutir a desigualdade no cotidiano escolar. O objetivo
dos fóruns foi colocar na agenda de discussão dos gestores públicos, dos educadores e dos
movimentos sociais as estratégias de reflexão, conhecimento e intervenção sobre a presença
do racismo e seus derivados nos sistemas de ensino em seus diversos níveis, além de discutir a
implementação da lei nº 10.639/03. Pretendeu-se ainda o mapeamento de experiências de
sucesso no ingresso e na permanência de alunos e alunas negros nas escolas.
A partir de junho de 2004, foram organizados 20 fóruns em diferentes Estados,
coordenados pela Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD)48. Esses fóruns são compostos por Secretarias da Educação de municípios e
Estados, Conselhos de Educação e entidades do movimento negro regionais. O objetivo é
pensar estratégias de implementação das diretrizes. Por fim, o governo federal realizou, em
maio de 2005, a Conferência Nacional para a Igualdade Racial, na qual as propostas
referentes à educação tiveram destaque.
47
Ibidem
48
Na direção da Coordenação Geral de Diversidades e Inclusão Educacional, órgão da SECAD, esteve a
profa.dra. Eliane Cavalleiro (2004-2006), pesquisadora das relações raciais. O secretário, sociólogo Ricardo
Henriques, ex-coordenador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA que teve papel de destaque
em atividades do MN por conta dos dados levantados pela instituição que comprovam a desigualdade racial e
fizeram parte do relatório da III Conferência contra o racismo em Durban, 2001.
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A identificação das políticas institucionais que de algum modo podem ser
consideradas ações afirmativas, sobretudo no campo educacional, é uma tentativa de
demonstrar que elas refletem a tensão presente na sociedade. Porém o fato de serem políticas
focais e pouco articuladas entre os setores de governo nos permite afirmar que o resultado
dessa tensão ainda é tênue e frágil para dar conta do tamanho da desigualdade a ser
enfrentada, principalmente quando o princípio das reformas governamentais, inclusive as
educacionais, centra-se na universalidade, e não na focalização. Para Henriques,
A década de 90, evidentemente, apresenta uma trajetória de melhoria nos
indicadores educacionais, [...] os avanços são, por vezes, tímidos e, em geral, não
interferem de forma significativa na estrutura de discriminação racial e de gênero.
Assim, apesar dos avanços nos indicadores quantitativos, as desigualdades raciais e
de gênero continuam significativas e sinas relevantes de transformação nos padrões
de discriminação ainda não são detectáveis com nitidez. O desafio estrutural de uma
reforma educacional implica, portanto, a construção de bases efetivas para
implantação de um ensino norteado pela qualidade e eqüidade, que enfrente os
contornos da desigualdade racial que atravessa, de forma contundente, o sistema
educacional brasileiro (HENRIQUES, 2002, p.47).
Henriques, no exercício como secretário da SECAD (de 2004 até o momento de
conclusão desta pesquisa), parece disposto a enfrentar o desafio de constituir políticas eficazes
no combate às desigualdades: vários programas federais provêm de sua pasta. No entanto, em
relação a esse enfrentamento, parece haver duas frentes complementares: a primeira são as
leis; a segunda, o estabelecimento de políticas públicas que as efetivem. A quantidade de
tempo entre um passo e o outro será definido pela capacidade de intervenção e pressão dos
movimentos.
A identificação das experiências de cursos de formação de professores, apresentada no
capítulo dois, indica que governos de diferentes partidos já se propuseram a enfrentar esta
demanda e nos parece inequívoco que há um movimento internacional e nacional pela
implementação de políticas de promoção da igualdade racial, indicando para o sistema
educacional brasileiro a necessidade de repensar a idéia de um Brasil mestiço cultural e
racialmente, um Brasil de “morenos”, isto é, um país que gerou uma “raça brasileira” e com
isso eliminou o racismo, o preconceito e a discriminação. Essa concepção, embora predomine
entre os formuladores de políticas públicas, tem sido tensionada pela ação dos ativistas, pela
produção de pesquisas e pelas ações de alguns setores, como foi a produção pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do relatório brasileiro apresentado na III Conferência
Internacional Contra o Racismo, a Xenofobia e outras formas correlatas de intolerância, em
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2001.
Pressionado, o Estado Brasileiro tem tratado das desigualdades raciais, ainda que de
modo tenso, vagaroso, com idas e vindas. O que gera uma ambigüidade: ora temos um Estado
que reconhece essa desigualdade e ora temos um Estado que deslegitima as reivindicações do
MN ao não admitir sua urgência e centralidade. Há um conflito permanente nesse campo,
porém, com indicativos de que o reconhecimento da desigualdade racial está conquistando
espaço na medida em que o Estado institui políticas específicas para contribuir na superação
das desigualdades que afetam a população negra. Talvez, essa afirmação seja um pouco
otimista, pois Ana Lúcia Valente (2000) vem discutindo que é grande a capacidade de o
Estado absorver algumas demandas de setores excluídos do poder político e ainda assim não
alterar substancialmente as condições de subalternidade devido à correlação de forças.
Nas escolas, um exemplo de que essa temática ganha espaço formal tem sido as
edições do Prêmio Educar para a Igualdade Racial: experiências de promoção da igualdade
racial/étnica no ambiente escolar, coordenado pelo CEERT e realizado em 2002, 2004 e
2006. Esse concurso recebeu quase mil experiências realizadas por professores da educação
infantil, do ensino fundamental e do médio, provenientes das cinco regiões do país. Em geral,
essas estratégias pretendem reorganizar o currículo para proporcionar aos alunos momentos
em que possam adquirir a compreensão de que a diversidade racial encontrada na escola é
algo positivo.
Isso mostra que a discussão sobre a formação de professores para atuar nessa área é
uma necessidade concreta da educação, pois ações voltadas para essa temática já são
encontradas dentro das escolas, necessitando que investiguemos mais essa variável do
processo ensino-aprendizagem. Para Maclaren (2000, p.145). “reformar o currículo significa
afirmar as vozes das pessoas oprimidas: as educadoras precisam dar aos marginalizados e aos
sem-poder uma opção preferencial”. Ele aponta o multiculturalismo crítico e de resistência
como o arcabouço teórico que orientaria esse tipo de atitude. O autor caracteriza o
multiculturalismo como
[...] movimento que, fundamentalmente, argumenta em favor de um currículo que
seja culturalmente inclusivo, incorporando as tradições culturais dos diferentes
grupos culturais e sociais. Pode ser visto como resultado de uma reivindicação de
grupos subordinados - como as mulheres, as pessoas negras e as homossexuais, por
exemplo: - para que os conhecimentos integrantes de suas tradições culturais sejam
incluídos nos currículos escolares e universitários. Mais criticamente, entretanto,
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também pode ser visto como uma estratégia dos grupos dominantes, em países
metropolitanos da antiga ordem colonial, para conter e controlar as demandas dos
grupos de imigrantes das antigas colônias (MACLAREN, 2000, p. 81).
Segundo Canen (1997a), trabalhar com temas como tolerância, respeito e apreciação
da diversidade cultural é contrapor-se a uma educação monoculturalista, ou seja, é quebrar a
homogeneização cultural presente na escola. Por isso, falar em diversidade cultural implica
falar em relações de poder na sociedade. Para essa autora, esse é um dos compromissos de
uma educação que seja de fato transformadora, em uma sociedade multicultural como a nossa,
onde a diversidade de grupos étnico-culturais e sociais é reconhecida. “Há que promover uma
sensibilização em professores e futuros professores para a necessidade de trabalhar currículos
e práticas pedagógicas que levem em conta esta realidade”, (CANEN,1997,p.481).
A afirmação da autora demonstra que merecem uma atenção cuidadosa os fenômenos
que vêm ocorrendo nos sistemas educacionais, principalmente, a partir da segunda metade dos
anos 90. Tais ações têm pautado algumas pesquisas, tanto qualitativas, Eliane Cavalleiro
(1998), Lucimar Rosa Dias (1997), Iolanda Oliveira (1999), como quantitativas, caso de
Ricardo Henriques (2002) e de Marcelo Paixão (2003), os quais, com dados estatísticos,
revelam que a idéia da democracia racial sobrevive apenas como mito. Os resultados dessas
pesquisas comprovam a permanência do racismo e de suas decorrências, a desigualdade
racial, o preconceito e a discriminação. No entanto, estabelecem possibilidade da educação
colaborando na construção de uma sociedade democrática racialmente, como nos apresenta
Tomaz Tadeu da Silva (2004):
Analisar a educação e trabalhar na educação de uma perspectiva culturalista implica
prestar atenção às formas e processos pelos quais as histórias e narrativas que são
contadas no currículo estão implicadas em relações de poder. [...] Uma das mais
importantes tarefas da crítica e da intervenção cultural em educação consiste
precisamente em perguntar quais grupos e interesses não apenas estão representados
no currículo, mas têm o poder de representar outros. E, inversamente, quais grupos e
interesses deixam de estar representados ou são representados por outros. É
importante também se perguntar quais posições de poder são fortalecidas nesse
processo e quais são enfraquecidas. (SILVA, 2004, p.201-202).
Um dos objetivos apresentados pelo parecer das DCEER é que ocorra uma
apropriação por parte da sociedade civil das propostas contidas nas diretrizes, pois, apesar de
produzidas no interior das instituições de Estado, foram escritas por pessoas oriundas do
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movimento negro.49 Ao nosso ver, esses instrumentos estão cumprindo suas funções como
balizadores de ações com esse propósito. Eles são, no momento, recursos que amparam a luta
de algumas organizações empenhadas em modificar a perspectiva de um Estado que nega o
racismo para um Estado que paulatinamente o assume e opera para atuar sobre essa realidade.
Já há algumas décadas, pesquisadores procuram discutir e refletir para entenderem as
formas pelas quais as relações raciais no Brasil se manifestam no campo educacional. As
pesquisas que discutem educação e raça começaram a ser produzidas com maior relevo a
partir da década de 80. Embora as iniciativas de combate ao racismo sejam anteriores a esse
período e que também antes delas algumas pesquisas educacionais foram realizadas
previamente, o trabalho de Luiz Alberto Gonçalves (1985) constitui-se em um marco dessa
produção. Entre as várias conclusões a que chegou, aponta o silêncio dos educadores diante
da discriminação sofrida pelas crianças negras na escola. Para ele, essa atitude dos educadores
só será modificada na medida em que a escola considere a cultura negra como tema
importante a ser introduzido na escola.
Ainda na década de 80, surgiram trabalhos como o de Ana Célia da Silva (1988),
denunciando estereótipos e preconceitos em relação ao negro nos livros didáticos. Esse
trabalho tem particular importância, pois solidifica uma questão já apontada por muitos que
trabalham com a questão racial desde a década de 50 e mostra que ainda naquele momento
eram produzidos livros com tais conteúdos. Outra pesquisa importante e reveladora do que
existe dentro da escola é o trabalho de Vera Moreira Figueira (1990). A autora buscou
demonstrar a existência do preconceito na escola, relacionando alunos, professores e livros
como formadores e sustentadores de um ciclo inculcador-reprodutor do preconceito.
A década de 90 começa promissora em termos de trabalhos que vinculam raça e
educação. Luiz Cláudio Barcelos (1993) demonstra a articulação existente entre o índice de
freqüência, permanência e evasão escolar com as raças, possibilitando uma leitura na qual a
raça e a classe se articulam, sem o determinismo econômico. Rachel de Oliveira (1992)
também realiza um trabalho investigativo sobre as manifestações de preconceito racial na
49
Em 2002/2006, o Conselho Nacional de Educação teve entre seus membros representantes de índios e negros,
indicados por seus respectivos segmentos. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, destaque da
comunidade negra, e Francisca Novantino Pinto de Ângelo, pelos indígenas. Esse fato ocorreu no segundo
mandato de Fernando Henrique Cardoso.
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escola e articula essa investigação a um trabalho de avaliação de intervenções realizadas no
ensino, via Estado, na década de 80. A sua conclusão, como Barcelos (1993), é que as
relações raciais que ocorrem na escola têm significativa importância no nível de escolaridade
das crianças negras e vão além da questão de classe.
Consuelo Dores Silva (1995), por sua vez, investigou como a interação interfere na
construção da identidade étnica e na auto-representação dos alunos não-brancos, incluindo,
portanto, não apenas negros. A autora conclui que existe uma ambigüidade por parte das
crianças negras em aceitar o próprio corpo e, por conseguinte, em se aceitarem como negras,
gerando reações como timidez, melancolia, depressão e agressividade, interferindo no
processo de educação das mesmas. Constatou também que, apesar de a maioria das crianças
investigadas ter introjetado o preconceito antinegro, há uma minoria construindo uma autorepresentação positiva. Além disso, é de suma importância a afirmação da autora de que o fato
de discutir o assunto durante sua pesquisa com as crianças suscitou, mesmo entre as que já
tinham introjetado o preconceito, reações de contrariedade em relação à discriminação racial,
reforçando nossa premissa de que o diálogo sobre o assunto tende a obter resultados positivos.
Outra contribuição importante nos estudos atuais é o trabalho de Nilma Lino Gomes
(1995). Diferentemente de Silva, C.D, que trata da construção da identidade dos alunos e suas
conseqüências, a autora vai desvendar a construção da identidade étnica das professoras
negras e a influência desse processo na relação pedagógica estabelecida entre elas e seus
alunos, ou seja, articula raça, educação e gênero. Os depoimentos coletados pela autora
mostraram
[…] a difícil trajetória da mulher negra em nossa sociedade que rompe com o
“lugar” a ela destinado pelo racismo. Este [o preconceito] atua de tal forma junto à
construção da identidade racial dessa mulher que negar a existência do preconceito e
da discriminação racial torna-se uma estratégia adotada por muitas para
sobreviverem em meio a tantos conflitos. (GOMES, 1995, p.269)
Juntos, os trabalhos de Silva, C.D. e de Gomes nos permitem ter uma visão de como a
discriminação racial afeta todos os componentes do processo educativo e apontam para a
necessidade dos cursos formadores de professores incluir reflexões sobre a diversidade étnicoracial da população com a qual irão trabalhar.
Em meio à produção sobre raça e educação, são raras as que tratam da Educação
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Infantil. Em geral, os estudos abordam a partir da 1a série. Um trabalho muito significativo é
o de Eliete Aparecida de Godoy (1996), que constatou que as crianças na faixa etária de cinco
a seis anos, ao realizarem descrições de si mesmas ou dos colegas, referem-se à cor da pele de
maneira mais marcante do que as outras características. Também foi possível captar que, já
nessa idade, as crianças negras se sentem desconfortáveis quando necessitam verbalizar ou
assumir sua condição étnico-racial. Demonstram interiorização da ideologia negativa em
relação às diferenças étnicas e procuram se assemelhar fisicamente ao branco. Essas atitudes
foram observadas apesar de a autora fazer uma ressalva de que na relação entre as crianças
não havia nenhuma discriminação perceptível, sugerindo que o racismo, para existir e se
perpetuar, prescinde de manifestações explícitas e agressivas.
Cavalleiro (1998) aborda a questão do preconceito e da discriminação racial na
educação infantil, pesquisa que, de certa forma, complementa o mestrado desta pesquisadora.
Enquanto Cavalleiro demonstra a manifestação do preconceito, principalmente por parte dos
professores e em muitos casos de forma inconsciente, buscamos em nossa pesquisa (Dias,
1997) discutir intervenções pedagógicas em sala de aula para a superação dessas situações.
Em 2004, Oliveira, F., realizou sua pesquisa sobre uma creche da rede municipal de
ensino de São Carlos (SP). Ela analisou as práticas educativas que ocorrem na creche,
verificando as maneiras pelas quais essas práticas produzem e revelam a questão racial,
constituindo um marco nos trabalhos que tratam da educação infantil porque investiga
práticas desenvolvidas com bebês (seis meses a dois anos), faixa etária ainda menos
investigada em relação ao tema.
Também trabalhou com o tema da infância em outra faixa etária a pesquisa de I.
Oliveira, publicada em 1999, sob o título Desigualdades Raciais: construções da Infância e
da Juventude. O estudo verifica o que crianças e jovens entre 6 e 15 anos reelaboram sobre as
desigualdades raciais na sociedade. Já a pesquisa de doutorado de Rita de Cássia Fazzi
(2004), sob o título, O Drama racial de crianças brasileiras-socialização entre pares e
preconceito, busca descobrir, em termos sociológicos, como crianças de oito a dez anos de
idade de duas escolas públicas de Belo Horizonte elaboram suas próprias experiências raciais
e se existem manifestações comportamentais de preconceito racial contra negros no grupo
investigado.
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Apesar do visível crescimento da produção de pesquisas com essa temática, os
trabalhos esquadrinhados não tocam diretamente na formação dos professores. Trata-se,
portanto, de um campo rico de investigação entre, por um lado, os estudos acadêmicos que
apontam a necessidade de táticas pedagógicas sobre a discriminação racial e, por outro lado,
as inúmeras iniciativas práticas de governos e do movimento social para lidar com o
problema.
8. Apropriação - múltiplas possibilidades
Para analisar como as educadoras se apropriaram dos conteúdos dos cursos de
formação freqüentados por elas, faremos uso da noção de apropriação, de acordo com Roger
Chartier (1988). Sabemos que a questão desse autor era compreender, em primeira instância,
as diferentes apropriações em relação à leitura de textos, mas consideramos ser possível
estender o conceito de modo a pensar e explicitar peculiaridades da apropriação de conteúdos
formadores em geral. A noção é aqui utilizada para dar conta das múltiplas possibilidades de
combinação entre as propriedades socioculturais e psicológicas dos sujeitos e as
especificidades dos objetos com os quais entram em contato.
De acordo com Chartier, ao se apropriarem de um texto, os sujeitos mobilizam suas
histórias, suas culturas, seus valores, o que resulta em formas diferenciadas de interpretação.
Ele considera o consumidor de textos apto a "reapropriar, desviar, desconfiar ou resistir"
àquilo que está colocado para ele. Usamos esses mesmos pressupostos para analisar como as
educadoras incluem em suas práticas pedagógicas os conteúdos trabalhados nos cursos.
Esse processo de apropriação ocorreu quando as educadoras foram colocadas em
contato com os conhecimentos do curso. Para se apropriarem deles, mobilizaram suas
histórias pessoais com o tema da discriminação, às vezes situações nas quais elas mesmas
tinham sido vítimas. Também recorreram a situações em que se viram envolvidas com o tema
por diferentes motivos: porque estavam trabalhando numa comunidade de origem negra ou
porque constataram que entre seus alunos havia discriminação. Enfim, as educadoras
recorreram aos seus capitais culturais50 e seus saberes experienciais, apropriando-se dos
50
O conceito liga-se às concepções de Bourdieu e refere-se ao conjunto de propriedades ou bens vinculados à
formação e cultura que os sujeitos possuem associados à sua posição de classe, adquiridos no meio familiar ou
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conteúdos do curso para potencializá-los e transformá-los em práticas pedagógicas
profundamente influenciadas pelos valores individuais das educadoras.
Percebemos que a escolha se dá por elementos mais subjetivos do que os relacionados
à importância científica e acadêmica consagrada. Ao contrário, suas apropriações relacionamse às curiosidades, ao momento histórico e às suas próprias necessidades, permitindo “[...]
compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o
conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo” (CHARTIER, 1988,
p.24). Contudo, se é verdade que há especificidades nas apropriações de cada uma das
educadoras, também é pertinente falar de convergências, pois elas vivem sob o mesmo
constructo ideológico. Isso confere às praticas analisadas semelhanças nos princípios e
objetivos e, às vezes, nas estratégias, como é o caso da confecção de bonecas negras e da
inclusão da literatura que valorizam o universo das culturas de origem afro-brasileira e
africana. Considera-se que o estudo acerca das diferentes formas de apropriação é útil para
compreender os movimentos pelos quais os saberes pedagógicos ou a formação docente são
incorporados, nas diferentes situações, pelo professores de forma geral.
Essas convergências também resultam da longa mobilização realizada pelo movimento
negro, que, de diferentes modos, têm influenciado a sociedade brasileira, procurando romper
com a lógica da exclusão racial e social. A seguir, apresentaremos um pouco da história do
combate ao racismo na educação construída por ativistas, professores da escola básica,
professores universitários e algumas iniciativas de Secretarias da Educação. A história desse
combate é o solo sobre o qual se constrói a formação de professores nas formas pelos quais
são desenvolvidos e aqui analisados.
escolar, por exemplo.Sobre a questão ver: Bourdieu, Pierre. Os três estados do capital cultural. Trad. Magali de
Castro. In: NOGUEIRA, Maria Alice, CATANI, Afrânio. (Orgs.).Os três escritos de Educação. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
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Se cada dia cai
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda
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Capítulo II - Experiências de Combate ao Racismo: procuras e encontros
1. Contexto
Este capítulo apresenta experiências de formação continuada de professores.
Inicialmente, queríamos encontrar as experiências originárias desse tipo de ação, o que logo
foi descartado. Em conversas com militantes e pesquisadores de longa data, concluímos ser
impossível, num país das dimensões do Brasil e com a pluralidade de ações desenvolvidas
pelo movimento negro afirmar qual experiência era a originária. Se é correto afirmar que há
uma mobilização antiga para a educação formal no combate ao racismo, também é verdade
que não há registros e sistematizações o suficiente para afirmações desse tipo.
Portanto, o que ora apresentamos nesse capítulo não pretende dar conta da história
brasileira das experiências de formação de professores e a luta contra o racismo na escola,
mas parte dela. História que não deve ser pensada de modo linear, talvez a imagem mais
correta para pensá-la seja a de um quebra-cabeça. Estamos, aqui apresentando uma pequena
peça desse material que é complexo e múltiplo. Temos certeza de que várias experiências
significativas não estão aqui. Ainda assim, acreditamos que essa pesquisa seja uma
contribuição no sentido de registrar mais um ponto nesse conto, gestado pelo movimento
negro e incorporado por inúmeros educadores: tem muitas mãos, muito suor, muita coragem,
como diz uma de nossas entrevistadas:
Esse trabalho é uma coisa muito dolorosa para o professor. Se você trabalha num
determinado local, você encontra barreira com os próprios colegas de trabalho. As
pessoas não entendem que você quer algo melhor, quer um cidadão. As coisas só
vão mudar se os professores da educação infantil mudarem a cabecinha das crianças,
porque, com o adulto é mais difícil, então, a gente ouve: tá fazendo isso porque?
Quer se aparecer quer se mostrar? Não é isso; o professor que tem compromisso, ele
quer fazer. Um professor, para trabalhar com esse tema, tem que ter muita coragem,
porque tem gente que não acredita no trabalho, não vê importância. (Professora
Abibatou - entrevista realizada em 22/09/2004)
O empreendimento deste capítulo será demonstrar que a professora Abibatou não está
sozinha. Delimitamos 1979 como o período a ser considerado inicialmente, pois foi um marco
da reestruturação do MN. A reabertura política significou para os ativistas a tentativa de
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rearticulação em nível nacional das ações anti-racistas no Brasil, em meio à reconstrução de
outros movimentos, como o sindical, ou no aparecimento de novos atores, como o movimento
gay. O fim do período é o ano de 2004, um ano após o sancionamento da Lei 10.639/03
nº.10.639, de 9/01/2003. Também contribui para a ampliação de experiências como essa
aprovação em 10/03/2004 pelo Conselho Nacional da Educação (CNE), das DCEER. Elas
detalham como a lei deverá ser aplicada, ampliando a abrangência desta e indicando ações
para toda a educação básica e o ensino superior. Por isso, após 2004, surgem várias iniciativas
no campo da formação de professores, objetos de pesquisas desenvolvidas em alguns
programas de pós-graduação.
Um dos desafios para mapear as experiências foi a distância. Também encontramos
dificuldades para obter material de registro ou sistematização dessas iniciativas. Nem mesmo
a Fundação Cultural Palmares, do governo federal, possui um banco de dados público e
ordenado sobre essas iniciativas, em mais uma demonstração da falta de coordenação entre as
várias iniciativas do ponto de vista do poder público.
O processo de investigação teve início com a formulação de um roteiro para coleta de
dados51. Primeiro fizemos um pré-teste com a historiadora Maria Aparecida (Cidinha) da
Silva52. Ela o fez com tamanha riqueza de detalhes que, ao ler o material, a professora Denice
concluiu que tínhamos em mãos o “modelo ideal” e que não seria a média do que
receberíamos. Foram sábias suas previsões.
Após esse processo, verificamos se as questões eram suficientes para formar um
quadro das experiências brasileiras e definimos o roteiro-modelo para coleta de informações.
Uma primeira chamada foi feita por internet e correio a fim de verificarmos quem conhecia
alguma experiência do tipo. Para isso, enviamos a solicitação abaixo:
Estou pesquisando cursos de formação de professores e a questão racial. Tenho
interesse em qualquer informação que tenham sobre esse tipo de atividade. Já houve
em sua cidade algum curso com professores da rede estadual, municipal ou privada
que tratasse da questão racial? Era específico para isso ou entrou como um adendo?
Conhece os promotores? Quem eram? Tem o telefone ou e-mail para que eu possa
entrar em contato? Se em sua cidade não teve, mas já ouviu falar sobre um curso
51
Ver apêndice G.
52
Cidinha da Silva coordenou um dos projetos pioneiros em ação afirmativa no Brasil, chamado Geração XXI.
Ações Afirmativas no Brasil: experiências brasileiras. São Paulo: Summus, 2003, organizado por ela. A autora
possui larga experiência com formação de professores e a questão racial. O roteiro preenchido por ela encontrase no anexo 65.
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desse em outro lugar, por favor, me indique. Espero respostas mesmo que não
tenham todas as informações. Forte Abraço Lucimar Rosa Dias/ Faculdade de
Educação-FE/ Universidade de São Paulo-USP
Essa solicitação foi enviada a 35 Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs)53,
sendo 31 em universidades públicas e 4 em universidades privadas. Enviamos também para
cinco listas de discussão on-line: [email protected], [email protected],
[email protected], [email protected] e [email protected]. Além
disso, utilizamos como fonte secundária: publicações, folder, sites das Secretarias da
Educação verificando a existência ou não de um departamento que tratasse da temática,
notícias de jornais, cartazes e consulta às pessoas de entidades do movimento negro. Nesse
processo, recebemos 49 respostas com indicação de uma experiência ou a informação de que
o próprio informante fez parte de um projeto do tipo.
Outra fonte de grande importância para apreendermos tanto a produção de um
pensamento negro sobre educação, quanto registros sobre experiências de formação de
professores com a temática do combate ao racismo foi o livro Pensamento Negro em
Educação no Brasil, (1997), organizado pelas professoras Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva e Lucia Maria de Assunção Barbosa. A obra reúne textos apresentados no Seminário de
Estudos: O Pensamento Negro em Educação, no Brasil: expressões do Movimento Negro,
realizado de 05 a 09 de julho de 1995, na cidade de São Carlos. Segundo as organizadoras, os
relatos reunidos no livro são:
Experiências educativas [...] [que] indicam muito mais do que desejo de romper com
o discurso sobre o negro que o marginaliza, rejeita. Denotam a organicidade de
ações de diferentes grupos, que, mesmo partindo de concepções distintas, estão
longe de posturas e atitudes dispersas. Trata-se de ações deliberadamente concebidas
e executadas que vêm ao longo dos tempos erigindo a história do povo negro,
gestando sua educação. As primeiras referências estão nas civilizações africanas
anteriores à colonização européia e a elas seguem-se novas referências criadas nas
diferentes circunstâncias históricas. Das escolas de iniciação das culturas
tradicionais africanas, dos terreiros das religiões afro-brasileiras, das irmandades,
grupos de congada junto à igreja católica, às associações beneficentes e recreativas,
à impressa negra, aos sindicatos, aos grupos do atual Movimento Negro, às escolas,
vai a população negra em busca do saber e do poder. (GONÇALVES E SILVA,
BARBOSA, 1995, p.11).
Além desse livro, foram utilizados como fontes os anais do VIII Encontro de Negros
do Norte e Nordeste, cujo tema foi “O negro e a Educação”, realizado em Recife no período
de 29 a 31 de julho de 1988. A escolha do tema
53
Anexo 64.
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“Thank you very much! I can use Acrobat Distiller or the Acrobat PDFWriter but I consider your
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[...] fundamentou-se na compreensão de que a educação é a base sobre a qual se
estrutura a forma de pensar e agir de um povo. Na verdade, desde a abolição, a
educação tem sido um instrumento de subjugação da raça negra, na medida em que a
acorrenta a um padrão educacional branco, europeu, que a marginaliza. O que se
conhece é um currículo escolar alienante, produto de uma história forjada pelos
vencedores, pela civilização que impôs seu domínio político, econômico e cultural
do País - a civilização branca. Assim o VIII Encontro teve como preocupação
central questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira
através dos meios oficiais de educação do País. Ao mesmo tempo, procurou-se
evidenciar estratégias de atuação dos movimentos negros, que possibilitem resgatar
os papéis históricos, econômicos e culturais da raça negra no Brasil, norteadas pelo
fortalecimento de sua identidade étnico-cultural.(ANAIS, VIII Encontro de Negros
do Norte e Nordeste, 1988, p.5).
De modo geral, as informações recebidas foram pouco detalhadas e dispersas.
Algumas pessoas citaram já ter ouvido falar de alguma experiência, mas não possuíam
informações sobre a mesma; entidades que relataram já terem realizado atividades com esse
caráter não possuíam registros. Enfim, foi possível perceber que há experiências em todas as
regiões brasileiras, porém são precários os registros. Mesmo assim, o levantamento indicou
diferentes modalidades de experiência de formação continuada de professores para combater
o racismo na sala de aula: a palestra, o seminário e os cursos propriamente ditos, cuja
presença é uma realidade recente e crescente no Brasil.
A formalização dessas experiências na modalidade curso é algo novo, mais presente
na década de 90 e ainda realizados em pequena escala, com clara tendência de crescimento
após 2003, pois a partir desse ano os sistemas educacionais brasileiros, municipais, estaduais
e federal foram chamados a trabalhar com a “História e Cultura Afro-brasileira”.
Ter uma educação que incorpore a contribuição e a história e cultura afro-brasileira e
africana é uma antiga reivindicação do movimento negro, que há anos produz experiências
nesse sentido, sendo o Estado da Bahia um dos pioneiros. Essa realidade também é
confirmada pelo número de pessoas que relataram trabalharem com experiências como essa
ou indicaram uma experiência conhecida, antes de 2003 e 2004. Isso sugere que a função da
lei foi consolidar, ampliar e legitimar uma demanda apresentada pelo movimento negro.
Tanto é assim que leis com textos semelhantes existem em Salvador (BA) em 1989; Belo
Horizonte (MG) em 1990; Porto Alegre (RS), em 1991, Belém (PA) em 1994; Aracaju (SE)
em 1995; São Paulo (SP) em 1996; Teresina (PI) em 1998; Diadema (SP) em 1994, Criciúma
(SC) em 1997; Distrito Federal (DF) em 1996, entre outros municípios brasileiros.
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Mesmo antes da institucionalização de espaços do governo federal para efetivar ações
relacionadas à educação e a questão étnico-racial havia muitas ações efetivadas pelo MN em
parcerias com Secretarias da Educação Estaduais e Municipais, principalmente, seminários e
palestras antes de 2003. As palestras, em geral, são iniciativas individualizadas de professores
que procuram responder à necessidade de tratar pedagogicamente o tema do racismo na sala
de aula. Elas ocorrem com maior freqüência no mês de maio - especialmente no dia 13 - e
fazem parte das atividades relacionadas às chamadas datas comemorativas escolares. A partir
da década de 80, cada vez com mais intensidade o dia 20 de novembro – dia da morte de
Zumbi dos Palmares, líder negro - ocupa as salas de aula. Tal acontecimento se deu por
iniciativa do movimento negro brasileiro, que almejava contrapor-se ao 13 de maio,
considerado pouco representativo da luta negra.
As palestras têm seu valor no sentido de provocarem pequenas mudanças na
organização curricular, mas não se constituem em orientações gerais dos sistemas de ensino,
ao contrário se caracterizam por ações isoladas e indiretas de formação. Jurjo Torres Santomé
(1998) chamou esse modelo de organização de currículo de “currículo de turistas”. Segundo o
autor, “trata-se de propostas de trabalho desligadas das programações vigentes no centro
escolar, temáticas que não cabem nos recursos didáticos mais usados, os livros-textos.’’
(SANTOMÉ, 1998, p.148).
Apesar de as palestras ainda se constituírem na principal forma da escola brasileira
abordar o tema do racismo em sala de aula, seja dirigida para alunos ou como formação
continuada de professores, surgem no cenário educacional na década de 90 os cursos de
formação de professores com enfoque no combate ao racismo em sala de aula.
A partir do material coletado, foi possível extrair várias informações sobre
experiências de formação de professores e o combate ao racismo. Para melhor detalhamento,
foram organizadas em três grupos: A - Regionalidade. Interessava-nos verificar se as ações
estavam focadas em determinadas regiões brasileiras ou ocorriam em todo o território
nacional; B - Tipos de instituição, sobre os diferentes atores no desenvolvimento dos cursos; e
C - Focos dos cursos, sobre os tipos de conteúdo trabalhados nos cursos identificados.
Na regionalidade, a maioria das respostas por e-mail – e não necessariamente referente
a cursos - veio da região Sudeste, correspondendo a aproximadamente 51% do total de
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respostas. Em segundo lugar, aparece a região Sul, com a participação de todos os Estados.
Em seguida, com 13%, está o Nordeste. O Centro-oeste aparece com apenas duas respostas de
Mato Grosso do Sul e uma de Mato Grosso, e o Norte, com nenhuma. Onze respostas não
tinham origem, correspondendo aproximadamente a 20% do total.
Após a obtenção dessas respostas, fizemos novas consultas aos lugares indicados pelos
respondentes. Nessa nova consulta, enviamos via e-mail e correio uma carta na qual
explicávamos a pesquisa e encaminhávamos o roteiro solicitando seu preenchimento.
Pretendíamos, assim, receber maior detalhamento das experiências indicadas ou realizadas de
acordo com as respostas. Isso nem sempre aconteceu, no entanto, esses procedimentos nos
permitiram chegar aos dados que apresentaremos abaixo. Também nessa etapa
complementamos as informações obtidas cruzando com outras fontes.
Abaixo, apresentamos o resultado final da busca de informações sobre experiências de
cursos de formação de professores com enfoque no combate ao racismo. Os dados obtidos
nem sempre foram alcançados com o detalhamento desejado. Por isso, algumas experiências
apresentadas contêm mais detalhes do que outras. Apesar de o ano de 2004 ser o fim do
período esquadrinhado, incluímos informações sobre ações realizadas após este ano por
considerarmos relevante o seu registro como um modo de facilitar a compreensão de como se
institucionalizaram tais demandas.
2. Iniciativas de formação de professores em algumas regiões do Brasil
2.1. Região Sudeste
Da Região Sudeste obtivemos informações dos estados do Espírito Santo (Vitória),
São Paulo (São Paulo, São Carlos e Campinas), do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro e Niterói) e
de Minas Gerais (Belo Horizonte, Uberlândia e Ituiutaba).
Em relação ao Espírito Santo, da cidade de Vitória recebemos informações do Centro
de Estudos e Cultura Negra (CECUN)54, fundado em 1983, sendo seu responsável Luiz Carlos
Oliveira. A experiência descrita por esta entidade tem caráter diferenciado das demais, pois se
constitui em um curso à distância, tendo, segundo os dados apresentados pelo professor,
54
Anexo 43.
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atingido 2.269 educadores de diferentes Estados, sendo 1.000 do Paraná, 797 do Espírito
Santo e o restante de outros Estados. Os professores eram de diferentes áreas do
conhecimento com forte presença dos pedagogos, seguidos de professores que possuíam
apenas o magistério, depois os formados em letras e história. Desse total de educadores
inscritos, apenas 800 receberam o certificado de finalização do curso, realizado em parceria
com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e a SEPPIR. A
experiência foi realizada de janeiro a dezembro de 2004.
Sobre a cidade de São Paulo, sua prefeitura desenvolveu atividades de formação na
área de gênero/raça/etnia. Em material produzido pelo Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades (CEERT),55 há referências de ações realizadas pela administração
municipal. No entanto, em que pese serem ações que privilegiam a formação, a maioria delas
não se configuram como cursos.
A informação obtida sobre curso realizado pela Secretaria da Educação do Município
de São Paulo em 2004 incluiu uma iniciativa realizada em parceria com o CEERT intitulado
Construindo uma prática de promoção da Igualdade Racial a partir da Bibliografia AfroBrasileira da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, gerado pela compra de 40
títulos enviados para escolas do ensino fundamental da rede. Tivemos oportunidade de
acompanhar uma oficina desse processo de formação. Também houve um curso realizado em
2002, intitulado História negra no Brasil, ministrado pelo professor Lourenço Cardoso com
apoio do Centro Cultural Afro-Brasileiro: Francisco Solano Trindade56. Porém não foi voltado
especificamente para professores.
Houve também um curso realizado pela historiadora Maria Aparecida (Cidinha) da
Silva, por iniciativa da ONG Geledés - Instituto da Mulher Negra, com apoio institucional da
Fundação Bankboston. Ocorreu em 1999 e tinha por objetivo "promover elementos para que
os/as profissionais do ensino pudessem compreender melhor a conformação das relações
raciais e de gênero na cultura brasileira e interferir no cotidiano da cultura escolar".57
55
CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES-CEERT. Políticas de
Promoção da Igualdade Racial: exercitando a definição de conteúdos e metodologias. São Paulo, SP. Data
provável [2004?].p.38.
56
57
Anexo 60.
Cidinha da Silva - trecho retirado do roteiro enviado pela autora em 26/05/2004. Anexo 65.
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Outro curso, Escola e Professores na luta contra o preconceito racial, foi realizado
pelo Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (NUPES)58 da USP. Os dados obtidos sobre
o curso constam de folder de divulgação, mas não conseguimos maiores detalhamentos do
curso. Seu caráter foi de extensão e tinha a previsão de oito encontros de abril a junho de
2004.
Nem só de iniciativas recentes são os registros do trabalho educacional em São Paulo e
em seu entorno, que inclui Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema,
Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Segundo informações do livro Pensamento
Negro e Educação no Brasil, foram realizado em Santo André no ano de 1989 o seminário O
papel da educação no combate ao racismo e também de palestras e debates com os temas O
negro na educação e Identidade Cultural do Negro na Educação, dirigidas para escolas da
educação infantil. Em 1990, foi realizado o 1o. Encontro do Negro do ABCDMRP, com o
tema A educação e o negro. O relato destaca palestras, visitas e oficinas realizadas em
diferentes instituições de ensino de caráter privado e público, em todas as etapas de ensino, da
educação infantil ao ensino superior, ocorridas também nesse período. Atribui-se como marco
impulsionador dos trabalhos realizados pelo MNU e as escolas o fato do governo Franco
Montoro criar em 1986 o Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros na Secretaria da
Educação do Estado, responsável pelo Projeto Salve 13 de Maio, executado pela maioria das
escolas estaduais do Estado de São Paulo, nos anos 1986 a 1988.
Outra narrativa no mesmo livro, de Miriam Expedita Caetano, comenta ações
realizadas pela Associação Brasileira de Educação Cultura e Preservação da Vida
(ABREVIDA), em São Paulo-SP, fundada em 1990. A autora destaca trabalhos realizados por
membros fundadores da entidade desde 1989 na área educacional, em especial nos dias 13 de
maio e 20 de novembro, "ministrando aulas dialogadas" para alunos das diferentes etapas da
educação básica, "diálogos orientados" para professores e o 1º. Seminário Consciência Negra
(1989), reunindo 60 educadores e 150 alunos. Em 1990, cita a realização de um curso de 60
horas com 535 participantes, mas não fica claro se são alunos ou educadores. O curso foi
realizado com o apoio da Secretaria Municipal da Educação de São Paulo.
Em comparação com as demais regiões do país, conclui-se que a grande São Paulo
tem uma experiência mais densa e mais dinâmica na formação de professores para combater o
58
Anexo 44
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racismo na escola.
Também recebemos informações de São Carlos por meio de uma aluna do mestrado
em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)59, professora Ione da
S.Jovino, segundo a qual o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros dessa instituição desenvolveu
cursos com o tema. De acordo com o site desse núcleo, foram desenvolvidos
[...] seis cursos sobre direitos humanos e combate ao racismo destinado a professores
da rede Pública da região de São Carlos, abrangendo os municípios de São Carlos,
Ibaté, Ribeirão Bonito, Descalvado, Rio Claro, Limeira, Araras, Americana, Santa
Bárbara de Oeste, Nova Odessa. Foram atingidos em torno de 290 professores. 60
A inclusão do tema combate ao racismo por meio de cursos de direitos humanos
aparece em mais de uma situação e nos remete a cursos financiados pela Secretaria de
Direitos Humanos do Ministério da Justiça, via Programa Nacional de Direitos Humanos
(instituído pelo Decreto no 1.904, de 13 de maio de 1996 e revisado pelo Decreto nº. 4.229,
de 13 de maio de 2002, conhecido como Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH
II).
Nesse programa revisado, aparecem temas relativos ao racismo, discriminação,
preconceito e intolerância em relação à população negra61 no quadro que trata dos cultos e
credos e no intitulado "afrodescendentes", sendo que neste há referências diretas sobre
educação. Acreditamos que isso explique a influência dessa política no financiamento de
ações de formação de professores que implicam os direitos humanos e a questão do combate
ao racismo. Também vale registrar que, no momento de implementação dessa política, a
Secretaria contava com Ivair Augusto dos Santos, reconhecido nacionalmente como um
ativista do movimento negro e atual secretário-executivo do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.
Ainda sobre atividades desenvolvidas pelo NEAB da Universidade de São Carlos,
temos o registro do programa “Educando pela Diferença para a Igualdade”. Desenvolvido em
parceria com a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo e o Conselho de Participação e
59
60
Anexo 45.
Site <http://www.ufscar.br/%7Eubuntu/>. Acesso em 05 abr. 2006.
61
Itens: 189 a 216. 214 e 215. Programa de Direitos Humanos II. <http://www.presidencia.gov.br/sedh>. Acesso
em: 09 de jun.2006.
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Desenvolvimento da Comunidade Negra. Ele teve início em novembro de 2004, está
organizado em 40 horas de atividades. Envolvendo cerca de 3.200 professores. O objetivo do
programa é desenvolver ações de formação, acompanhamento e avaliação de um curso para
professores do Ensino Fundamental (Ciclo I) e Ensino Médio com ênfase especial na
diversidade étnico-racial. Com ênfase na introdução da história da cultura afro-brasileira e
história da África no currículo escolar.
Na primeira fase de 2004, foram capacitados
professores das Diretorias de Ensino Leste 4, na capital, e Barretos, São José do Rio Preto e
Ribeirão Preto, no interior. O projeto abrangerá um total de 42 Diretorias de Ensino do
Estado. Em 2003, 160 professores de Ensino Fundamental (Ciclo I) da capital e interior foram
formados em um projeto-piloto.
Outra cidade da qual obtivemos informações foi de Campinas, a informação, também
via CEERT foi sobre o curso Projeto de Formação de educadores da Rede Municipal de
Educação de Campinas sobre o tratamento da temática racial-étnica, realizado em parceria
com a prefeitura o qual será objeto de análise nos capítulos IV e V. Em 2004 tivemos a
oportunidade a convite da instituição de passar uma tarde ministrando oficina para professores
e gestores. Esse era um segundo curso de formação, chamado Formação aprofundada para
educadores étnicos da rede municipal de Campinas. Em relação aos municípios de Sorocaba,
Caraguatatuba, Presidente Prudente e Araraquara, que responderam à nossa primeira consulta,
não conseguimos obter nenhuma informação adicional sobre cursos desenvolvidos nestas
cidades.
A cidade do Rio de Janeiro nos surpreendeu pelo baixo número de respostas às nossas
solicitações. Entre as que estabeleceram contato está o Instituto de Pesquisas e Estudos AfroBrasileiros (IPEAFRO)62, por meio de Elisa Larkin Nascimento. Ela fez um breve relato
histórico do instituto e das atividades em São Paulo desde 1984, em parceria com a Pontíficie
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Relatou especificamente sobre o curso
Sankofa 63, desenvolvido no período de 1985 a 1995 em parceria com as Secretarias Estadual
e Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Esse curso deu origem a uma publicação de mesmo nome, consistindo num material
62
Anexo 46.
63
NASCIMENTO, E. L. (Org.) Sankofa: Matrizes Africanas da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v. 1, 1997.
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didático importante para o movimento negro, a ponto de virar uma referência. Outra
publicação de destaque foi o Relatório do 1º. Fórum Estadual sobre o Ensino da História das
Civilizações Africanas na Escola Pública, ocorrido no Rio de Janeiro, de junho a agosto de
1991. Foi publicado pelo gabinete do senador Abdias do Nascimento e organizado por Elisa
Larkin Nascimento e é decorrência de uma das primeiras ações da Secretaria Extraordinária
de Defesa e Promoção das Populações Negras (SEDEPRON), criada pelo então Governador
Leonel Brizola, juntamente com IPEAFRO.
A Universidade Cândido Mendes (UCAM) também desenvolve um curso em nível de
especialização sobre História da África e do Negro no Brasil com os objetivos de
“aperfeiçoar, atualizar e especializar profissionais da área das Ciências Humanas no tema;
contribuir para a superação da reconhecida carência dos professores da educação básica no
trato com os conteúdos dessa temática e suscitar vocação de pesquisa em temas africanos e
afro-brasileiros”. O curso tem como público-alvo professores das redes pública e privada de
ensino, pesquisadores, profissionais liberais e ativistas sociais.64
Outra cidade da qual obtivemos informação foi Niterói. Por meio de material
(programa do curso) enviado pela professora Iolanda Oliveira, tivemos conhecimento do
curso realizado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB)65 e outros parceiros.
O desenvolvimento do referido curso foi em 2004 e 2005. Houve um outro curso oferecido
pela UFF em nível de especialização nos mesmos moldes.
Sobre Minas Gerais, obtivemos respostas de Belo Horizonte, Uberlândia e Ituiutaba.
Na solicitação de detalhamento, Belo Horizonte respondeu por meio da professora Patrícia
Santana, em nome da Fundação Centro de Referência da Cultura Negra/Grupo de Educadores
Negros.66 Santana apenas cita a realização de cursos como uma das modalidades trabalhadas
pela Fundação. Recebemos, também, do professor Luiz Carlos Felizardo Jr. o registro de uma
experiência desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)67. Contudo
relacionava-se a oficinas culturais, modalidade fora do nosso levantamento. Ainda em Belo
64
Informações retiradas do site <http://www.ucam.edu.br/cursos/posgraduacao/detalhe.asp?id=59>. Acesso em:
17 mai. 2006.
65
Anexo 47.
Anexo 48.
67
Anexo 49.
66
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Horizonte temos informação da realização de um projeto de formação de professores com
participação de alunos intitulado Projeto Cantando a História do Samba. Esse projeto
[...] é desenvolvido nas escolas da rede pública e particular, buscando o
envolvimento dos professores das diversas áreas do conhecimento com oficinas
interativas de sensibilização com alunos, possibilitando as crianças e aos jovens o
acesso a esta genuína manifestação da cultura negra brasileira. O projeto tem sua
sustentação legal baseado nos Novos Parâmetros Curriculares Nacionais que
afirmam [...] “para que a aprendizagem da música possa ser fundamental na
formação de cidadãos é necessário que todos tenham a oportunidade de participar
ativamente como ouvinte, intérpretes, compositores e improvisadores, dentro e fora
da sala de aula, envolvendo pessoas de fora, no enriquecimento do ensino e
promovendo interação com os grupos musicais e artísticos das localidades.68
Vale registrar ainda que a Secretaria Municipal da Educação de Belo Horizonte
estabeleceu desde 200369 uma parceria com a UFMG e com a Fundação Centro de Referência
da Cultura Negra (FCRC) para desenvolver ações de formação de professores com o enfoque
na promoção da igualdade racial. Em 2004, criou na sua estrutura o Núcleo de Relações
Étnico-Raciais e de Gênero para desenvolver uma política educacional de valorização da
diversidade. Minas Gerais e em especial Belo Horizonte.
Em Uberlândia70, houve um curso sobre a questão racial, mas não havia informações
mais detalhadas. De Ituiutaba71, recebemos da professora Luciane Ribeiro Dias Gonçalves a
resposta com todos os dados da cidade, porém a experiência estava sendo realizada, em 2006,
durante a redação desta tese. É um curso de formação continuada com 40 horas, divididas em
cinco módulos de oito horas. Os objetivos são: "Implementar política de formação continuada
tendo como pano de fundo o desafio que a diversidade étnico-cultural traz para a formação
docente, que exige dos educadores terem posições diante dos educandos reconhecendo e
valorizando tanto as semelhanças quanto às diferenças como fatores imprescindíveis para
qualquer projeto educativo e social que se pretende democrático; debater sobre a prática
pedagógica lúdica como forma de superação da discriminação racial no contexto da escola;
adquirir material pedagógico apropriado para implementação da Lei 10.639/03".
68
Site < http://projetohistoriadosamba.org > Acesso em: 08 abr. 2006.
69
Folder de divulgação das atividades do Núcleo de Relações Étnico-Raciais e de Gênero da Secretaria
Municipal de Educação, distribuído em 05-05-2006 na II mostra de Literatura Afro-Brasileira.
70
Anexo 50.
71
Anexo 51.
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2.2. Região Sul
Da Região Sul nos enviaram informações dos três Estados.
Da cidade de Maringá72, no Paraná, nos foi enviada a informação pelo professor
Antonio Ozaí da Silva sobre um curso de especialização em Ciências Sociais oferecido pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM). O professor Walter Praxedes nos detalhou
informando que a universidade promove há vários anos eventos com esse teor, citando cursos
de extensão, palestras, seminários e fóruns. De acordo com o professor Walter Praxedes, os
eventos contavam com a participação de educadores. Ele destacou o I Fórum Regional
História e Cultura Afro-Brasileira: A Questão Racial na Educação, ocorrido em 14/05/2003,
com a parceira da Secretaria da Educação do Município de Maringá, com o Núcleo Regional
de Educação e com a Coordenadoria de Apoio ao Ensino Infantil, Fundamental e Médio da
UEM. Apontou como resultado dessa trajetória de discussões o curso Especialização em
Ciências Sociais: sociologia, reflexões sobre as relações interétnicas e a questão racial no
Brasil, oferecido pela UEM desde agosto de 2002. Também coordenada pelo professor
Antonio Ozaí há uma revista on-line intitulada Espaço acadêmico, que publica mensalmente
artigos sobre as relações raciais no Brasil. Não tivemos nenhuma informação sobre ações
desenvolvidas em outras cidades do Paraná.
A cidade de Porto Alegre enviou a informação sobre a entidade Maria Mulher Organização de Mulheres Negras, que tem promovido diferentes atividades de formação para
professores. Segundo o breve relato enviado, as atividades de formação são voltadas para a
rede municipal e estadual de educação, e as ministrantes são da própria organização ou
convidadas de outros estados, como Maria Aparecida (Cidinha) da Silva.
Apesar de não obtermos de forma direta dados de experiências de formação de
nenhuma outra cidade do Rio Grande do Sul, no livro O Pensamento negro em Educação no
Brasil, há o relato de Vera Regina Santos Triunpho (1997) sobre duas experiências. A
primeira, ocorrida em 1987, foi iniciativa da Secretaria de Educação do Estado. Nesse
período, segundo a autora, a Secretaria construía "uma proposta pedagógica voltada para os
marginalizados: índios, negros, meninos de rua e assentados”.(TRIUNPHO, 1997, p.75).
72
Anexo 52.
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Triunpho cita a articulação com o trabalho que vinha sendo realizado pelos Agentes de
Pastoral Negros (APNs), por meio do Projeto Pedagógico Alternativo, iniciado em 1984 nas
periferias de meio urbano e rural de Porto Alegre. Um dos objetivos principais era possibilitar
a crianças e jovens negros "aprender a refletir e a perceber que pertencem a uma cultura
diferente, a debater com outras crianças de sua comunidade sobre as culturas de origem
africana, sobre discriminação e o processo histórico de empobrecimento e marginalização do
povo negro".73
De acordo com a autora, a Secretaria de Educação solicitou que esse grupo elaborasse
um projeto nos mesmos moldes para rede estadual de ensino. No entanto apenas duas das 41
delegacias optaram pelo curso. Apesar do fracasso, segundo a autora, esse movimento serviu
para a articulação entre o movimento negro e as ações das delegacias para discutir uma
proposta pedagógica. Segundo Triunpho, "pouco a pouco as Delegacias de Ensino foram
compreendendo que o projeto Negro e Educação não era um projeto racista, como muitos
pensavam inicialmente, e sim um caminho de luta contra o racismo na busca da identidade
plena do povo brasileiro".74
A segunda experiência relatada por Triunpho (1997) ocorre a partir de 1991, quando
as APNs organizam uma comissão estadual de educadores, passando a realizar vários
encontros de educadores negros com o "objetivo principal de atualizar os educadores de nossa
comunidade". Até a data do artigo, seis encontros estaduais tinham se realizado. O relato da
autora é muito rico trazendo informações sobre uma trajetória de organização da perspectiva
de educadores negros para educadores negros. Pretendiam, assim, instrumentalizar os negros,
sejam crianças, jovens ou educadores.
Essas experiências indicam um outro modo de ação na formulação de experiências de
formação de professores. Apesar de não serem cursos, apresentam conteúdos programáticos e
fortes postulações políticas em relação ao currículo. Segundo Triunpho, "os educadores
negros instrumentalizados nesses encontros estão tendo a grande possibilidade de construir
práticas pedagógicas que estão auxiliando a transformar a escola brasileira eurocêntrica em
73
Ibidem, p.72.
74
Ibidem, p.76.
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uma escola verdadeiramente pluricultural”75.
Santa Catarina apareceu com informações de Criciúma, Itajaí e Rio do Sul. Em 10 de
maio de 2004, recebemos de Joana Célia dos Passos, coordenadora do Programa de Educação
do Núcleo de Estudos do Negro (NEN)76 informações sobre curso realizado em Criciúma pela
entidade em parceria com a prefeitura. Além disso, conseguimos levantar informações sobre
outras experiências da mesma entidade.
Na cidade de Criciúma, em 1997 foi aprovada pela Câmara Municipal a Lei nº 3.410,
de 04 de Abril de 1997, do então vereador Manoel Satiro Bitencourte, a qual institui A
Inclusão do Conteúdo História Afro-Brasileira nos Currículos das Escolas Municipais. O seu
Art. 4º. Diz que "Os professores passarão por cursos de qualificação sobre os conteúdos a
serem ministrados, organizados pela Secretaria Municipal de Educação com assessoria do
movimento negro". Segundo informação no site da Secretaria de Educação acessado em
12/04/2005, este projeto "se manteve engavetado até o início de 2002, quando foi realizada
audiência com o prefeito Décio Góes, que se mostrou muito interessado em pôr em prática a
referida lei”.
Ainda segundo o site, para efetivação da lei, várias etapas se seguiram com
mobilização da sociedade civil, até que foi criado no interior da Secretaria de Educação um
espaço intitulado Projeto Afro, o qual coordenou diferentes ações voltadas para
implementação da lei, desembocando no curso relatado pela professora Joana Célia Passos.
A professora Joana informa que o NEN realizou, em parceria com a Secretaria da
Educação de Criciúma, o curso intitulado Pedagogia multirracial e popular na escola em
2003, atingindo aproximadamente 600 educadores, entre professores e outros profissionais
que desenvolvem alguma atividade sistemática em escolas. Não há maiores detalhamentos do
curso tais como conteúdo trabalhado e carga horária completa. Porém a professora relata que
o curso durou todo o ano letivo e consistiu de um primeiro encontro de 16 horas, seguidos de
encontros mensais de oito horas. Em artigo publicado por Joana Célia Passos (2002), a autora
esclarece o significado da Pedagogia multirracial e popular na escola para o NEN,
[...] a ênfase da Pedagogia Multirracial e Popular está em desencadear a construção
75
Ibidem, p.78.
76
Entidade do Movimento Negro de Florianópolis fundada em 06/11/1986. Anexo 57.
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de uma proposta pedagógica que tenha a igualdade racial como princípio curricular,
o que significa considerar o currículo escolar como instrumento capaz de contribuir
com a erradicação de todas as práticas racistas”.(PASSOS, 2002, p.41)
O NEN tem forte atividade em Florianópolis. Seu Programa de Educação surgiu
inicialmente como Comissão de Educação, em 1986, ano de sua fundação. O objetivo era
capacitar os educadores para a compreensão das relações raciais na escola e as conseqüências
do racismo, principalmente com relação aos aspectos do acesso, evasão, repetência e exclusão
no sistema de ensino. Segundo o seu site, "no começo de suas atividades, o programa
pretendeu introduzir o tema das relações raciais entre os educadores. Com o tempo, a meta
passou a ser apresentar propostas para o desenvolvimento de políticas públicas para a
população afro-brasileira na educação".
Ivan Costa Lima (1997), também componente do NEN, cita, em artigo do livro O
Pensamento Negro em Educação no Brasil, outra experiência, em Itajaí em conjunto com
outras entidades negras. De acordo com o autor, o NEN buscou nessa experiência a
"reformulação curricular". Cita como uma das ações dessa busca a promulgação da lei
municipal 4446/94, apresentada pelo vereador Márcio de Souza, que instituiu a inclusão do
conteúdo "História Afro-brasileira" nos currículos das escolas municipais de Florianópolis e
contou com a colaboração da entidade.
Lima cita ainda a execução do Projeto Escola, Espaço de Luta contra o Racismo, com
o apoio da Fundação Ford, realizado no município de Rio do Sul. Segundo o autor, o
município foi escolhido pelas "condições políticas, através da articulação entre o movimento
negro local e a Prefeitura". De acordo com o autor,
O projeto tinha como pressuposto básico a discussão da marginalização do negro
ocasionada pelas práticas de exclusão das instituições públicas; a necessidade de
fundamentação e instrumentalização do educador; a rediscussão do papel da escola e
seu discurso de igualdade; a necessidade de buscar relação entre competência
técnica e compromisso político. (LIMA, 1997, p.87).
O projeto de formação contou no inicio com 75 professores e finalizou com 25. As
oficinas ocorreram aos sábados por nove meses. Os conteúdos tratados no curso
pressupunham o embasamento teórico dos professores e atividades práticas e se articulavam
em torno:
1. dos conteúdos referentes aos negros como mito, e não como ciência;
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2. da necessidade de integrar conteúdos referentes aos negros ao currículo;
3. da falta de referências bibliográficas e didático-pedagógicas;
4. do reconhecimento de práticas discriminatórias e as formas de combatê-las.77
As informações encontradas sobre experiências de formação de professores para o
combate ao racismo em Santa Catarina demonstram uma forte influência do NEN e uma
tendência de interiorizar, além da procura de estabelecer marcos teóricos para suas
experiências, o que nem sempre contatamos em outras experiências. Seus cursos são
postulados pela Pedagogia multirracial e popular, que, segundo Lima, tem sua primeira
inspiração na chamada Pedagogia Interétnica. Tal formulação foi elaborada em 1978 a partir
de uma pesquisa coordenada pelos sociólogos Roberto Santos e Manoel de Almeida Cruz,
ambos do departamento de Ciências Sociais do Núcleo Cultural Afro-brasileiro de Salvador,
em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA)78.
2.3. Região Centro-Oeste
Da Região Centro-Oeste, recebemos informações de Mato Grosso do Sul, via
Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul (SED), cuja experiência é objeto de
análise deste doutorado, e pela ONG Grupo Trabalho e Estudos Zumbi (TEZ). O Mato Grosso
informou que a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), de Cuiabá, em parceria com a
Secretaria da Educação do Estado, realizou um curso de formação de professores.
De Campo Grande, as experiências que chegaram são muito conhecidas por nós79, pois
ambas contam com a nossa participação, conforme detalhado adiante, no capítulo IV.
A experiência do Grupo TEZ com atividades de formação remonta a sua fundação, em
1985. O formato inicial eram palestras e/ou seminários. Somente em 2000 o grupo organiza
77
Ibidem, p.87.
Mais detalhes ver: LIMA. Ivan Costa.Uma proposta pedagógica do movimento negro no Brasil:
pedagogia interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo. 2004. Dissertação ( Mestrado em
Educação). Universidade Federal de Santa Catarina, 2004.
79
Para mais detalhes deste processo ler: DIAS, Lucimar Rosa, PEREIRA, Nilda da Silva. Formação de
Professores para o combate ao racismo em sala de aula. A experiência do GRUPO TEZ -Trabalhos e Estudos
Zumbi. P. 45-47 In: Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul. Caderno de diálogos pedagógicos.
Combatendo a intolerância e promovendo a igualdade racial na educação sul-mato-grossense, 2005. Disponível
em site <http://www.sed.ms.gov.br - publicações>. Acesso em: 15 set 2005.
78
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um curso de formação de professores. Em janeiro de 2002, outro curso é realizado e, em
2003, foi feita mais uma edição do curso, intitulado Ibaa.xé (significa que isso possa ser
aceito, em iorubá). O primeiro curso foi realizado em parceria com a Secretaria de Estado de
Educação do Mato Grosso do Sul, mas não é o objeto do nosso estudo.
De Cuiabá, obtivemos informação do Núcleo de Estudos e Pesquisa de Relações
Raciais na Educação (NEPRE)80 da UFMT, coordenado pela professora Maria Lúcia Müller.
Em parceria, com a Secretaria Municipal de Educação e o Grupo União e Consciência Negra
(GRUCON)81, foi realizado um curso de formação de professores com este caráter, visando
profissionais da educação interessados em realizar curso de especialização Relações Raciais e
Educação na Sociedade Brasileira. Ocorreu em junho de 2004, com a carga horária de 370
horas e 50 vagas.
Em 2005, um outro curso foi realizado, Trabalhando as diferenças em Mato Grosso
Foram oferecidas 300 vagas, na modalidade à distância, como curso de extensão. Esse curso
foi financiado pelo Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições
Públicas de Educação Superior (UNIAFRO), sob a responsabilidade da Secretaria Superior de
Educação do MEC. Esse programa, de acordo com o site,
[...] tem a finalidade de apoiar propostas desenvolvidas pelos NEABs e grupos
correlatos que visem a articular a produção e difusão de conhecimento sobre a
temática étnico-racial e o acesso e permanência da população afro-brasileira no
ensino superior de modo a: Incentivar ações de mobilização e sensibilização de
instituições de ensino superior com vistas à implementação de políticas de ações
afirmativas; Contribuir para a formação de estudantes afro-brasileiros nas
instituições de Educação Superior, em especial as que adotam sistema de reserva de
vagas. Estimular a integração das ações de implantação das diretrizes curriculares
étnico-raciais, conforme o Parecer CNE/CP 003/2004 e a Resolução CNE/001/2004,
em todos os níveis de ensino.(Portal do MEC, 19/06/06)82.
O programa estabelece três eixos de atuação, sendo um deles o investimento na
formação de profissionais da educação que devem contemplar "prioritariamente as seguintes
áreas: História do negro no Brasil; Literatura afro-brasileira; História da África; História do
80
Anexo 53.
81
Esta denominação (GRUCON) é encontrada em várias regiões do Brasil, contudo os grupos não se constituem
como um movimento único, são entidades juridicamente diferenciadas.
82
Site <http://portal.mec.gov.br>. Acesso em: 19 jun. 2006.
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negro nas Américas; Educação das Relações Étnico-Raciais”.83 (Portal do MEC, 19 jun.
2006).
Um fato muito significativo para a instituição de políticas na área de formação de
professores vem da Universidade de Mato Grosso, que teve aprovada no dia 16 de janeiro de
2006, pelo Conselho de Ensino e Pesquisa (CONSEPE), uma disciplina cujo conteúdo estão
baseados na Lei nº.10.639/03 e nas DCEER. Tal medida está de acordo com as
recomendações das atuais Diretrizes Curriculares para o Curso de Pedagogia, que, no artigo
5º, diz que o egresso do curso de pedagogia deverá estar apto a: "demonstrar consciência da
diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de
gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas
sexuais, entre outras”. Além de saber "identificar problemas socioculturais e educacionais
com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, com
vistas a contribuir para superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais,
religiosas, políticas e outras."84
No Distrito Federal, não obtivemos nenhum dado sobre cursos de formação para
professores de combate ao racismo desenvolvidos em Brasília (DF). Do Estado de Goiás,
tivemos a informação sobre um curso com esse caráter desenvolvido em 2003 pela
Associação Pérola Negra, em parceria com a Secretaria da Educação do Estado, mas não há
informações disponíveis sobre a iniciativa.
2.4. Região Nordeste
Já na Região Nordeste, não foram muitas as informações obtidas: tivemos da Bahia
(Salvador), da Paraíba (João Pessoa) e de Pernambuco (Goiana), apesar de pressupor
iniciativas em outros Estados, como o Maranhão, onde há forte atuação do movimento negro.
Na Bahia, Salvador tem um forte e tradicional protagonismo negro no
desenvolvimento de ações no campo da educação e relações raciais. A ONG Ilê Aiyê Associação Cultural Baiana, fundada em 1974 e com forte conteúdo político anti-racista em
83
Ibidem.
84
Parecer CNE/CP n.º 5, de 13 de dezembro de 2005. Resolução CNE/CP Nº 1, de 15 de maio de 2006. Instituiu
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia.Grifo nosso.
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suas ações culturais, possui uma escola na qual o currículo incorpora conhecimentos relativos
às relações étnico-raciais e, em especial, à história e cultura dos afro-brasileiros e africanos.
O Projeto de Extensão Pedagógica (PEP) do Ilê Aiyê foi criado em 1995 com o
objetivo de sistematizar e ampliar, inicialmente, para as escolas da Liberdade, as
ações educacionais que o Ilê Aiyê já realizava desde a sua fundação. Para
concretizar esse ideal, o Ilê Aiyê foi buscar parcerias com diversas instituições, que
passaram a apoiar e a acompanhar as ações realizadas. Nas escolas da rede pública,
são oferecidos cursos onde professores, supervisores e orientadores educacionais
aprendem sobre a história e a cultura afro-brasileira, desenvolvem o pensamento
crítico sobre questões como etnia, pluralidade cultural e análise do livro didático e se
preparam para abordar esses temas com seus alunos. A capacitação é realizada por
educadores do próprio Projeto de Extensão Pedagógica85.
Em Salvador, há ainda a Escola Plural: a diversidade está na sala de aula. Este
projeto teve início em 2000 a partir de uma proposição do CEAFRO (Centro de Estudos AfroOrientais)86 de implementação do tema Pluralidade Cultural, previsto nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs). Objetivavam “formar especialistas e, assim, contribuir no
aprofundamento de estudos, pesquisas e leituras sistemáticas sobre o racismo na sociedade
brasileira, seu impacto na educação e nas relações pedagógicas, apresentando proposições
para a superação do problema”.87
Essa experiência vem se ampliando com o decorrer do tempo: de sete escolas com a
carga horária de 150 horas, modificou-se para 70 horas e atingiu 73 unidades, formando por
volta de 200 educadores. Além disso, provocou a organização de um curso de especialização
lato sensu na Universidade Federal da Bahia, em parceria com o CEAO/CEAFRO, chamado
Curso de especialização em Desigualdades Raciais e Educação.
De Pernambuco, veio informação da cidade de Goiana88. Em 2004, realizou-se ali o
curso Pedagogia Afirmativa: educação, cultura e história na perspectiva afro-brasileira, uma
iniciativa da ONG Djumbay, de Pernambuco, da Faculdade de Formação de Professores de
Goiana e da Secretaria Estadual da Educação de Pernambuco.
Da Paraíba, recebemos a informação de que, em João Pessoa, a Secretaria de
85
86
< http://www.ileaiye.com.br/pep.htm>.Acesso em: 17 jul. 2006.
Anexo 54.
87
Fonte: Folder de divulgação do projeto/ 2003. Mais detalhes, ver LIMA, Maria Nazaré Mota de (org.). Escola
Plural: a diversidade está na sala de aula, São Paulo: Editora Cortez, 2005.
88
Anexo 55.
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Educação, em parceria com o Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB)89, desenvolveu um curso de direitos humanos, em 2002, no qual foi abordado o tema
do preconceito racial, enquadrando-se no mesmo caso de São Carlos-SP.
Nos Estados de Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e
Sergipe, esta pesquisa não conseguiu localizar registros de experiências. De acordo com o
professor Henrique Cunha Junior, de Fortaleza (CE), militante do movimento negro com forte
produção na área, não havia em seu Estado nenhuma experiência que se enquadrasse na
solicitação.
2.5. Região Norte
No Norte a avaliação feita para a região Nordeste também se aplica: obtivemos poucas
e vagas informações do Pará (Belém), de Tocantins (Araguaína) e de Roraima (Ji-Paraná) e
nenhuma de Rondônia, Amapá, Amazonas e Acre.
Em Belém, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), criado em
1980, desenvolveu várias atividades relacionadas ao tema desta pesquisa, por meio de seu
programa educação formal90. A entidade foi proponente da criação do Núcleo Social de
Relações Raciais na Secretaria da Educação do Estado e também do Núcleo de Educação,
História e Cultura Afro-brasileiras, dentro da estrutura da Secretaria Municipal de Educação.
Da cidade de Ji-Paraná, recebemos a informação que experiências com esse caráter
tiveram início em 2006.
O curso Formação Continuada em História e Cultura Afro
Brasileira e Africana formou 90 professores e trabalhou a dança afro, a sala de aula como
espaço de construção de identidades e a presença negra no mundo da literatura infantil e
infanto-juvenil.
De Araguaína, recebemos a informação da professora Fátima Aparecida da Silva
segundo a qual desde 1997 foram desenvolvidos vários cursos abordando a questão racial.
Esses cursos foram propostos pelo Instituto Afro-Brasileiro Araguainense (IABA)91, fundado
89
Anexo 58.
90
Informações obtidas por meio de palestra da professora Zélia Amador de Deus, realizada em 2002, em São
Paulo, durante o II Prêmio Educar para a Igualdade Racial.
91
Anexo 59.
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por professoras para organizar cursos de formação e a questão racial. Esse grupo fez
articulações com diversas entidades e pessoas, realizando cursos em parceria com a Secretaria
da Educação do Estado de Tocantins, inclusive com a liberação de pontos desses
profissionais.
3. Instituições que realizaram experiências de formação
São as entidades do movimento negro as universidades e as Secretarias de Educação
as instituições envolvidas na produção de experiências de formação de professores que
objetivam o combate ao racismo. Vimos que esse tipo de experiência varia de cursos
realizados por entidades do movimento negro sem nenhum vínculo com Secretarias da
Educação ou qualquer outra instituição àqueles realizados por universidades com ou sem
centros especializados de estudos do negro e ainda cursos realizados apenas por Secretarias.
Há, ainda, cursos destinados à educação não-formal, realizados como regra por
ativistas do movimento negro. Durante os encontros de 2002 e 2003 da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), ocorreram cursos sobre a questão racial, indicando que
essa ação está ocupando novos espaços. Também foram indicados cursos realizados por
Sindicatos de Professores, registrados em Mato Grosso do Sul e no Estado de São Paulo.
As listas organizadas, a seguir, exemplificam e confirmam nosso argumento de que as
experiências de formação de professores para o combate ao racismo têm seu protagonismo no
movimento negro, visto que a maioria das experiências encontradas é de iniciativa desse
segmento.

ILÊ AIYE - Salvador/BA - Realizou o Projeto de Extensão
Pedagógica (PEP), criado em 1995.

CEAFRO - Salvador/BA – Realizou em 2000, em parceria com a
Secretaria da Educação do Município de Salvador, o projeto
Escola Plural: a Diversidade Está na Sala de Aula.

IPEAFRO - Rio de Janeiro/RJ - Cita várias ações desenvolvidas
desde 1985, com destaque para o curso Sankofa.

Fundação Centro de Referência da Cultura Negra/ Grupo de
educadores negos. Belo Horizonte/MG-Não há referência sobre
datas, cita vários cursos desenvolvidos na cidade.

IABA - Araguaína/TO - Cita vários cursos para professores com
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temas abordando a questão racial desde 1997.

Grupo TEZ - Trabalhos e Estudos Zumbi - Campo Grande/MS Realizou cursos de formação de professores em 2000, 2002 e
2003.

CEDENPA - Belém/PA - Realizou várias atividades com
professores na rede municipal, inclusive uma pesquisa com
grande repercussão: Escola e Racismo: Aspectos da Questão do
Negro em Belém, 1997.

GELEDÉS - Instituto da Mulher Negra, São Paulo/SP - Realizou
curso de formação de professores em 1999, com apoio
institucional da Fundação BankBoston

CEERT - Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades, São Paulo/SP - Participação em ações em
Campinas (2003 e 2004) em São Paulo/SP (2004) e em outros
locais.
Em seguida às entidades do movimento negro estão as universidades e faculdades de
Educação, que realizam experiências de formação de professores. Porém essas atividades não
estão nos programas dos cursos de formação inicial: são atividades pontuais, no campo da
extensão e sob a coordenação dos NEABs.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS -SP - Em
São Carlos já houve várias atividades de formação de professores
envolvendo a questão racial na rede municipal promovidas pelo
NEAB da UFSCar e pela Secretaria Municipal da Educação;

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES-RJ - O Centro de
Estudos Afro-Brasileiros tem ministrado cursos de História da
África para professores da rede pública em nível de
especialização;

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - RJ - O
PENESB (Programa de educação sobre o negro na sociedade
brasileira/UFF) realiza cursos de especialização e de extensão
sobre educação e afro-brasileiros

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
GOIANA-PE - O curso foi desenvolvido em 2004.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - PR Desenvolve cursos em nível de especialização para professores.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - SP/ O NUPES (Núcleo
de Pesquisas sobre Ensino Superior da Universidade de São
Paulo) realizou em 2003 o curso Escola e Professores na Luta
contra o Preconceito Racial, em nível de extensão.
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As Secretarias de Educação são espaços retardatários nesse processo. Há poucas
iniciativas no período pesquisado, e todas tiveram suas ações impulsionadas e/ou coordenadas
por ativistas do movimento negro.

Secretaria Municipal de São Paulo - A Prefeitura de SP
desenvolve várias atividades de formação na área de
gênero/raça/etnia.

Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul - A
Secretaria de Estado de Educação de MS realiza desde 1999
cursos com esse caráter.

Secretaria Municipal da Educação de Uberlândia - MG.

Secretaria Municipal da Educação de Salvador - Curso
realizado por iniciativa do CEAFRO, teve seu início em 2000.

Secretaria Municipal da Educação de Ituitaba -MG - curso
realizado em 2006

Secretaria Municipal de Educação de Campinas - Realizou em
2003 várias ações com a temática da superação das desigualdades
raciais.
Apesar de verificarmos uma aparente preponderância de entidades negras na
realização destes cursos, não é possível estabelecer de modo rígido esta distinção, pois boa
parte dos relatos indicava experiências realizadas sempre em parceria entre as ONGs e as
Secretarias de Educação ou ONGs com alguma universidade. No entanto é possível afirmar
que a existência desse tipo de ação se deve ao protagonismo do movimento negro.
Procuramos, ao longo desse levantamento, identificar os objetivos dessas experiências.
Obtivemos três grupos que chamamos de focos dos cursos, tendo se sobressaído a História do
Negro no Brasil e a História da África, coincidindo com os termos da Lei nº.10.639/03 e
refletindo o que o movimento negro passou a defender a partir da década de 70. As ações
movidas por esses pressupostos, segundo Munanga (1996, p.225), se explicam porque:
A questão fundamental é simplesmente esse processo de tomada de consciência da
nossa contribuição, do valor dessa cultura, da nossa visão do mundo, do nosso 'ser'
como seres humanos; e valorizar isso, utilizar isso como arma de luta para uma
mobilização; isso é que é importante.
Por isso, o que vemos como focos centrais dos cursos correspondem a esse modo de
compreender a luta política da população negra nesse momento histórico, mas também
apontam novos modos de interpretá-la, principalmente, quando o foco sai da questão
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diferencialista para ocupar o espaço dos direitos humanos. O que, talvez, seja fundamental
compreender nesse processo de luta da população negra pelo rompimento com a idéia de
inferioridade é que esse caminho é múltiplo e se transforma com o tempo na medida em que:
Essa identidade passa pela cor da pele, pela cultura, ou pela produção cultural do
negro; passa pela contribuição histórica do negro na sociedade brasileira, na
construção da economia do país com seu sangue; passa pela recuperação de sua
história africana, de sua visão de mundo, de sua religião. Mas isso não quer dizer
que para eu me sentir negro assumido eu precise necessariamente freqüentar o
candomblé; não quer dizer que eu precise escutar o samba ou outro tipo de música
dita negra. Trata-se apenas de um processo de consciência. A partir do momento em
que se valorize essa religião, essa música, essa arte como cultura diferente e não
inferior às outras culturas, isso basta para construir uma identidade
positiva.”(MUNANGA, 2005, p.225)”.
Na apreciação dos focos centrais dos cursos, percebe-se a busca pautada no que
Munanga (2005) aponta como necessidade de construir uma identidade positiva negra. Foram
encontrados como focos centrais dos cursos três grupos. No primeiro destacam-se os cursos
com foco na História do negro no Brasil ou da África, enfatizando temas como: 1) História
Negra no Brasil e 2) o Ensino de História das civilizações africanas. No segundo grupo,
aparece o foco nas Relações raciais e o cotidiano escolar, preponderando os temas: 1)
Relações raciais e educação no Brasil; 2) Pedagogia multirracial e popular; 3) Raça, etnia e
educação no Brasil; e 4)Inclusão da temática racial/étnica na proposta da educação municipal.
No terceiro e último grupo destaca-se o foco nos Direitos humanos, sendo que a
questão racial não é o foco central, mas está contida em outros eixos ou conteúdos de forma
secundária, como ética e cidadania nas escolas. Como já assinalado, esses cursos nascem a
partir do Plano Nacional de Direitos Humanos II, que inclui medidas de combate à
discriminação racial, sendo financiados pelo governo federal.
4. Considerações
O registro das experiências mostra um rico mosaico de ações, ocorridas em várias
regiões brasileiras. Com os dados obtidos é possível afirmar que essas experiências são
desenvolvidas, pelo menos, desde o início dos anos 80. Portanto, antes da Lei 10.639/03 e já
com forte ênfase na história e cultura afro-brasileira e africana.
Também constatamos diferentes estruturas - cursos de 20 horas ou mais, dirigidos para
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professores de todos os níveis de ensino, às vezes concentrados em níveis específicos e com
variadas abordagens de conteúdo. Ressalta a variação no uso das denominações dos cursos.
Alguns se propõem a combater o racismo em sala de aula, outros a promover a igualdade
racial na educação e outros ainda querem desenvolver o sentimento de respeito à diversidade.
Talvez essas opções não indiquem apenas uma mera mudança vocabular, mas apontem para
definições de paradigmas diferentes para tratar do universo das relações raciais e educação.
Outra marca presente é o fato de os cursos não se referirem às pedagogias elaboradas
pelos ativistas que lidam com a temática das relações raciais como referências teóricas de seus
trabalhos, apesar de a mais antiga datar de 1978, intitulada Pedagogia Interétnica, e de já
existirem mais duas em processo de consolidação: a Pedagogia Multirracial e Popular do
NEN, elaborada em 2001, e a Pedagogia Multirracial, elaborada no Rio de Janeiro, em 1986,
por Maria José Lopes da Silva. Elas poderiam ser marcos teóricos ou pelo menos serem
citadas na formulação das experiências de formação, porém parece que a abrangência dessas
formulações foi localizada em suas regiões. Quais motivos levam os ativistas a não se
reportarem essa produção realizada no seu próprio interior? Seria conseqüência da
desvalorização da academia sobre a produção destes intelectuais negros que não apenas
reivindicaram a educação formal para a população negra como pensaram os modos pelos
quais essa educação deveria acontecer? Ou as disputas internas dentro do movimento negro
impedem o reconhecimento dos trabalhos uns dos outros?
Além desses dados, chamou-nos a atenção que as parcerias entre as entidades do
movimento negro e as Secretarias da Educação existem deste os anos 80. Vários dos cursos
identificados foram realizados desse modo e, apesar disso, a descrição indicava que a ação era
de autoria das entidades, e não das instituições públicas. O que essas parcerias produziram no
interior das Secretarias? Algum germe de política pública ficava sedimentado após esses
trabalhos? De que tipo eram as parcerias?
Diante da riqueza de questões possíveis de serem investigadas após esse levantamento,
era necessário que tomássemos decisões para constituir a pesquisa propriamente dita. A
intenção inicial da pesquisa para o doutorado era investigar o curso realizado pela Secretaria
de Estado de Educação do Mato Grosso do Sul e como as educadoras da educação infantil se
apropriaram dos conhecimentos disponibilizados por ele e os incluíram em suas práticas.
Mantivemos essa intenção inicial e incluímos a análise de um outro curso, realizado pela
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Secretaria Municipal de Educação de Campinas. A inclusão de mais um curso foi sugestão da
orientadora, que julgou ser produtivo olhar para uma experiência, na qual nós não
estivéssemos tão imbricados na sua constituição. Decidimos investigar um curso realizado em
nível estadual e outro em nível municipal, optando, portanto, por um caminho que nos desses
elementos para analisar as experiências também com o sentido de instituição de política
pública.
Nossa intenção, nos próximos capítulos, será analisar como e quais foram os caminhos
percorridos por essas duas Secretarias de Educação ao instituírem cursos de formação
continuada de professores para o combate ao racismo em sala de aula e como as educadoras
se apropriaram dos conteúdos trabalhados nos cursos para desenvolver práticas de combate ao
racismo. Começaremos por conhecer a história do curso Ibaa.xe, realizado pela SED/MS.
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Tocando em Frente
Ando devagar porque já tive pressa
e levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei.
Conhecer as manhas e as manhãs
o sabor das massas e das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir (refrão)
Penso que cumpri a vida seja simplesmente
compreender a marcha ir tocando em frente
como um velho boiadeiro
levando a boiada eu vou tocando os dias
pela longa estrada eu vou, estrada eu sou
Refrão
Todo mundo ama um dia, todo mundo chora
Um dia a gente chega no outro vai embora
cada um de nós compõe a sua história
cada ser em si carrega o dom de ser capaz
e ser feliz
Refrão
Ando devagar porque já tive pressa
levo esse sorriso porque já chorei demais
cada um de nós compõe a sua história
cada ser em si carrega o dom de ser capaz
de ser feliz
Composição: Almir Sater e Renato Teixeira
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Capítulo III - A experiência da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso do Sul
1. Introdução
Este capítulo procura retratar as condições históricas e conjunturais nas quais o curso
de formação continuada de professores para o combate ao racismo na sala de aula foi
instituído como política de formação da SED/MS. Também procura compreender como
profissionais da educação infantil que realizaram um dos cursos oferecidos pela Secretaria se
apropriam desses conhecimentos e como os inscrevem em suas práticas pedagógicas.
Para investigar a trajetória da instituição do curso, em primeiro lugar, buscamos
localizar o estado do Mato Grosso do Sul, mostrando suas características populacionais e
econômicas. Em seguida, nos detemos no perfil da Secretaria de Educação, em particular na
Coordenadoria de Políticas Específicas em Educação (COPED), para depois adentrarmos nos
desenvolvimentos dos cursos.
O Estado de Mato Grosso do Sul foi constituído a partir do desmembramento do Sul
do antigo Mato Grosso. Sua criação se deu em 1979, respaldada pelo governo militar, com o
compromisso da instalação de um Estado modelo em gestão organizacional e administrativa.
Nesse contexto, o jovem Estado de Mato Grosso do Sul necessitava firmar-se dentro da
Federação como uma nova unidade territorial capaz de atender às demandas de investimentos
em infra-estrutura que o habilitasse como uma alternativa emergente de ocupação e expansão
econômica.
Entretanto, já nos primeiros anos de sua existência, teve de enfrentar indefinições e
incertezas no campo político, em razão das dificuldades de entendimento de suas lideranças.
As dificuldades enfrentadas inicialmente no campo político, além de levar o Estado a ter
quatro governadores no período de 1979 a 1985 - três nomeados pelo Governo Federal -,
produziram instabilidades de conjuntura política que influenciaram negativamente na
negociação de recursos financeiros para investimentos na modernização da infra-estrutura de
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apoio produtivo, o que exigiu esforços que superavam a capacidade do Tesouro Estadual,
gerando desequilíbrios nas suas finanças públicas.
Sua economia se baseia na agricultura, na pecuária e na extração mineral. A pecuária
conta com rebanho bovino (20,3 milhões), enquanto a maior produção agrícola é cultura de
soja. No Estado, esse arranjo econômico, extremamente concentrador de renda, é conhecido
como o “binômio boi-soja”. No período de 1980/2002, o Estado experimentou fases que
poderiam ser classificadas de avanços econômicos, principalmente no setor agropecuário,
com a modernização e incorporação tecnológica na pecuária e aumento expressivo na
produção de grãos, notadamente na década de 1980, com crescimento anual superior a 8%.92
Destacam-se outras potencialidades ainda pouco exploradas, como oportunidades para o
turismo e ecoturismo em áreas da região do Pantanal, do entorno de Coxim e Costa Rica,
além do turismo rural em todo o Estado.
O Estado de Mato Grosso do Sul possui, atualmente, 77 municípios e uma população
de cerca de 2,26 milhões habitantes sendo que a capital, Campo Grande, tem pouco mais de
660 mil. Desse total, 1,7 milhões vivem em regiões urbanas, e 330 mil em regiões rurais,
apresentando uma taxa de 84,08% de urbanização - tendência que veio crescendo nas últimas
décadas, passando de 67%, em 1980, para 79,4% em 1991 e chegando a 84,08% em 200293. A
comparação do resultado do último Censo com os anteriores mostra que ainda não cessou o
deslocamento do homem em direção às áreas urbanas, embora venha diminuindo a velocidade
em razão do já reduzido contingente populacional no meio rural e com alguma melhoria de
vida no campo.
Seus habitantes, segundo o censo populacional de 2002, são 51,7 % de brancos, 3% de
pretos, 41,1% de pardos, 3,7% de amarelos ou índios e 0,5 % não declarou cor. Mato Grosso
do Sul corresponde a 18% da região Centro-oeste, com extensão territorial 318.158,7 km2,
sendo que 25% desse total formam o Pantanal94.
92
Dados baseados nas informações disponibilizadas pela Fundação Candido Rondon por meio do
<http://www.msemnumeros.com.br/msemnumeros3/public/informacoes/arquivo_informacao164.pdf >. Acesso
22 maio 2006.
93
Censo realizado em 2002.
94
Ibidem
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2. Situação educacional de Mato Grosso do Sul
O atendimento aos serviços de educação no ensino básico em Mato Grosso do Sul
está, na sua grande maioria, a cargo do poder público, que em 2002 respondia por mais de
88% da demanda por vagas. Dos 657.579 alunos matriculados, apenas 11% pertenciam à
educação mercantil. O maior número de matrículas realizadas estava sob a dependência
administrativa do poder público estadual, com 319.948, (48,7%,) seguido pelas escolas
municipais, que matricularam 264.188 alunos, representando 40,2%. A rede federal
matriculou 951 alunos, representando 0,15% do total. Do contingente de alunos matriculados
nas escolas do Estado, em 2002, 73,9% pertenciam ao ensino fundamental, alcançando
486.134 alunos, e 15,2% no ensino médio com 99.808 alunos.95
O grau de alfabetização vem alcançando ganho contínuo, demonstrado pelas
avaliações das taxas de analfabetismo no Estado, que nos últimos 16 anos declinaram em mais
de nove pontos percentuais, passando de 21,4% em 1985 para 11,9% em 2001 representando
uma redução de 44,1% no coeficiente de analfabetos entre a população com mais de cinco
anos de idade. Embora o Estado tenha uma taxa menor que a apresentada pelo Brasil, de
14,6% em 2001, os dados da PNAD apontam que na média nacional o coeficiente de
analfabetos recuou em 45,1%, o que representa 12 pontos percentuais em relação a 1985,
demonstrando uma maior velocidade na redução do analfabetismo no restante do Brasil,
conforme dados da tabela abaixo:
Tabela 1 - Evolução da Taxa de Analfabetismo em Mato Grosso do Sul e Brasil para a População Acima
de cinco Anos de Idade – 1985-2001 (%)96
Anos
Mato Grosso do Sul
Brasil
1985
21,36
26,59
1990
19,52
23,30
1996
14,48
17,38
2001
11,93
14,59
Outro aspecto que se destaca é o crescimento apresentado no número de matrículas e
95
Dados baseados nas informações disponibilizadas pela Fundação Candido Rondom por
meio
do
http://www.msemnumeros.com.br/msemnumeros3/public/informacoes/arquivo_informacao16
4.pdf. Acesso em 22 maio de 2006.
96
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostragem /PNAD
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de salas de aulas. De 1980 até 2002, enquanto a quantidade de alunos matriculados cresceu
106,2%, a oferta de salas ampliou em 192,5%. Em ambos os casos, houve maior crescimento
entre 1980 e 1995, quando o contingente de alunos cresceu 72%, e as salas mais que
dobraram, 105,8%.
A partir de 1995, tanto o número de alunos como o de salas de aulas cresceram numa
velocidade menor, ampliando em 19,8% o número de estudantes nas escolas e 42,2% a
construção de novas salas de aulas. As redes de ensino particular e municipal foram as que
tiveram os maiores aumentos de alunos matriculados, 105% e 202% respectivamente, bem
como de salas de aula, 728% e 196,8% respectivamente, no período de 1980-2002, conforme
os dados da tabela 02.
No que se refere ao atendimento à população estudantil, as escolas municipais foram
as que mais ampliaram o atendimento relativo, evoluindo de um atendimento de 27,4% das
matrículas ocorridas em 1980 para 40,2% em 2002. Porém ainda é a rede estadual que atende
a maior parcela de estudantes nos níveis de pré–escola e ensino fundamental e médio, onde se
encontram 48,6% de um total de 657.579 alunos de Mato Grosso do Sul.
Tabela 2 -Evolução do Número de Matrículas por Depedência Administrativa na Prê-escola, Ensino
Fundamental e Ensino Médio - 1980-200297
Anos
Municipal
Estadual
Federal
Particular
Total
1980
194.718
87.417
1.420
35.340
318.895
1985
237.882
93.455
1.104
46.938
379.379
1990
290.003
123.652
1.386
64.774
479.815
1995
297.974
171.958
853
77.857
548.641
1998
301.491
210.293
837
69.857
582.478
1999
304.788
229.352
978
68.995
604.113
2000
296.987
214.549
993
70.099
582.628
2002
301.357
248.519
961
70.159
620.996
A rede física escolar do Estado, em 2002, contou com 15.175 salas de aula,
distribuídas em 1.525 escolas urbanas e rurais nos 77 municípios sul-mato-grossenses. Da
oferta de salas, 73% são de responsabilidade do poder público, com 33,1% na rede estadual, e
39,8% sob responsabilidade municipal. Já a esfera federal representa apenas 0,25%. Em 2002,
a rede de ensino mantida pelo governo estadual contou com 398 escolas e 5.023 salas de aula,
97
Fonte: Secretaria de Estado de Educação/SED/MS
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das quais 384 escolas urbanas e 14 escolas rurais. A educação da população estudantil rural é
mantida basicamente pelas prefeituras.
No que se refere ao quadro de recursos humanos, em 2002, existiam 34.434
professores atuando nas séries fundamentais e ensino médio, distribuídos por todas as redes
de ensino do Estado. As escolas de responsabilidade do governo estadual concentram a maior
parcela, 15.548 docentes, o que representa 45,15% dos profissionais de educação atuando no
Estado. Já a rede de ensino particular contava com 19,1% dos docentes. No confronto dos
dados de docentes e alunos, o Estado atendia em 2002 um total de 657.579 alunos, incluindo
pré-escola e os ensinos fundamental e médio, com uma média de 19,1 alunos por professor no
conjunto das redes educativas. A rede particular apresentou a menor relação aluno/professor,
11 alunos matriculados para cada professor. Nas escolas municipais, eram atendidos 21,7
alunos por professor.
Do universo de alunos atendidos pelo governo do Estado, não há muitos da educação
infantil porque, após LDBN nº.9394/96, as escolas estaduais gradualmente repassaram seus
alunos dessa etapa para as redes municipais, restando poucos alunos oriundos das creches que
ainda estão sob a responsabilidade do sistema estadual, em regime de gestão partilhada entre a
SETASS e SED/MS. Do universo total de alunos sob a responsabilidade do Estado, 3.752
eram da educação infantil, distribuídos em 29 centros de educação infantil (CEI), todos
sediados em Campo Grande.
3. Política de Combate ao Racismo na SED/MS
É adequado iniciarmos este item localizando nossa participação no processo de
implantação da política de combate ao racismo da SED/MS. Sabe-se que uma pesquisa
sempre nasce de interesses, às vezes, muito próximos do pesquisador. No caso em questão,
estamos diretamente envolvidos com a criação da política na Secretaria e indiretamente
ligados ao desenvolvimento do curso de formação de professores para o combate ao racismo
em sala de aula.
Em 1999, militávamos no Partido dos Trabalhadores (PT) e trabalhávamos como
professora da rede municipal de educação de Campo Grande. Tínhamos uma ação em duas
frentes dentro do partido, na comissão de educação e no núcleo de negros e negras. Nas
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eleições estaduais de 1998, o PT saiu vitorioso, dando início ao primeiro mandato do
governador José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT (1999-2003).
O professor Pedro Kemp foi nomeado secretário de Educação e compõe sua equipe
com pessoas oriundas de três forças representativas do setor educacional dentro do PT. Os
sindicalistas, ligados ao deputado Antonio Carlos Biffi; pessoas que compunham o grupo
intitulado Articulação de Esquerda, ao qual Kemp era ligado; e nós, que atuávamos no PT no
grupo político do então deputado federal negro Ben-Hur Ferreira. Como força política, tanto
nós como os sindicalistas estávamos no mesmo campo dentro do PT, mas tínhamos mais
ligação ideológica com Ferreira por conta de sua atuação no movimento negro.
Kemp, durante a transição, organizou um grupo de trabalho para discutir um
documento no qual apresentaríamos à sociedade sul-mato-grossense e aos profissionais da
educação nossa proposta de ação. Já nesse momento se instala uma certa tensão na discussão
sobre como a questão da educação étnico-racial deveria ser abordada devido à forte filiação
teórica do grupo às análises que privilegiavam a classe. Mesmo assim, foi possível incluir na
proposta final um item referente à questão. O documento, publicado após a posse com o título
Proposta de educação do governo popular de Mato Grosso do Sul, 1999-2002,
98
, (Série
Cadernos da Escola Guaicuru99), era dividido em três eixos, Democratização de Acesso,
Democratização da Gestão e Qualidade Social da Educação. Nosso modelo para organizar a
proposta foram as ações desenvolvidas no Rio Grande do Sul pelo governo do também petista
Olívio Dutra.
Para cada eixo se estabeleceram programas, projetos e metas. A educação das relações
étnico-raciais ficou contemplada no programa Democratização de Acesso Escolar, sendo o
Projeto 15 intitulado Educação Escolar e as Diferentes Etnias, cuja meta estabelecida foi a de
número oito que pretendia: “Construir participativamente a Política Educacional da
98
Anexo 1.
99
Escola Guaicuru – refere-se ao título dado a política educacional estabelecida naquele momento pelo governo
petista. Os governos do PT em sua cultura administrativa criavam títulos que designavam as gestões
educacionais. Porto Alegre, por exemplo, criou A escola Cidadã; o Distrito Federal tinha A escola Kandanga; e
Belo Horizonte tem a Escola Plural. Não nos parece que o hábito se mantém, mas a pretensão era criar marcas de
administração. No caso do MS, a justificativa para a escolha do tema – “Escola Guaicuru - vivendo uma nova
lição” foi que o termo Guaicuru, resgata o processo histórico do povo sul-matogrossense, por fazer referência
aos grupos indígenas “que ocuparam e dominaram, com exclusividade, quase todo o território correspondente a
Mato Grosso do Sul, dando origem à Nação Guaicuru.” Nota de rodapé p. 9, Cadernos da Escola Guaicuru (Série
fundamentos político-pedagógicos) 1a. ed. 1999.
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diversidade étnica, proporcionando o resgate da história e identidade dos grupos que
compõem a população indígena e afro-descendente e valorizando suas culturas”.100
Apesar do enunciado, nesse Projeto não se incluía a educação escolar indígena: para
ela foi criado um outro, de nº. 10, intitulado Educação Escolar Indígena: uma questão de
cidadania. A inclusão destes itens demandou um processo de convencimento dentro da
própria equipe dirigente que compôs a Secretaria, pois não havia um consenso inicial sobre a
necessidade de destacar as questões de diversidade racial, exceto quando na questão indígena.
Mato Grosso do Sul tem a terceira maior população indígena do país, atrás apenas do
Amazonas e de São Paulo.
Embora houvesse mais aceitação para a desigualdade de gênero e a questão indígena, a
questão referente à população negra foi vista com mais ressalvas, ainda que não tenha sido
negada101. Foi na vivência entre conflitos e contradições que os itens relativos ao tratamento
do combate ao racismo foram assegurados. A despeito da garantia, poucas ações foram
empreendidas durante o primeiro ano de governo (1999). E as que foram necessitaram de
forte intervenção de nossa parte com o apoio da professora Bartolina Ramalho Catanante,
pois, as nossas atribuições não incluíam o programa. Exercemos, em 1999, o cargo de
Diretora do Ensino Médio, que após 2000 passou a ser Diretoria da Educação Básica, no qual
ficamos até o final de 2001.102 A Professora Bartolina foi Diretora de Gestão Educacional de
1999 a 2001. No final de 2001, ela assumiu a Superintendência de Educação.
Nosso argumento para cobrar a implementação do Programa pautava-se em um
documento apresentado pelo movimento negro ao governador logo que assumiu o cargo. O
governador encaminhou para todas as Secretarias solicitando cumprimento. Na Secretaria de
Educação, Kemp, ao recebê-lo, remeteu às diretoras, solicitando análise e imediato
encaminhamento das propostas apresentadas.103
100
Ibidem p.22
101
Essa contradição também pode ser verificada In: Entrevista do prof. Pedro Kemp, p.133 no trabalho de
CONCEIÇÃO, Beatriz Helena Teixeira. O Programa de Superação das Desigualdades Raciais de Mato Grosso
do Sul e Educação, dissertação de mestrado, UFMS, 2003.
102
No final de 2001, saímos da SED/MS e fomos para a Secretaria de Estado de Governo, assumindo o cargo de
Interlocutora do Governo para Assuntos da População Negra, no qual fomos responsáveis pela implantação do
Programa de Superação das Desigualdades Raciais (cópia da minuta do Programa. Anexos 2).
103
Uma cópia do documento do MN que o governador encaminha para as secretarias. Anexo 3.
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Ainda em 1999, conseguimos incluir na série Calendário da Cidadania - subsídios para
aulas especiais o caderno nº.2, com o tema [email protected] novas lições de etnia.104 Essa
série era distribuída para todas as escolas da rede. O número foi lançado em 20 de novembro,
Dia Nacional da Consciência Negra, por Kemp na Escola Estadual Zumbi dos Palmares,
localizada numa comunidade remanescente de quilombo, Furnas dos Dionísios.
Nessa mesma data, realizamos na Secretaria de Educação um evento que contou com a
participação de técnicos de todos os setores e com a presença de vários militantes do
movimento negro. Nesse evento, tivemos manifestações culturais (capoeira, dança afro e
poemas), discursos do secretário se comprometendo com o cumprimento das metas e de
ativistas cobrando que assim o fosse e parabenizando a iniciativa da Secretaria. Essa atividade
foi um marco importante na consolidação e legitimação do trabalho com gestores e técnicos.
Como estávamos ocupando cargos na Secretaria, nossa estratégia de ação foi realizar
cobranças internas fortes, sem com isso deixar de assumir perante o movimento negro, do
qual éramos oriundas, a co-responsabilidade pela implementação das políticas. Quando
necessário fortalecer nosso poder interno para cobrar a efetivação das ações, recorríamos ao
movimento negro. Isso gerou algumas tensões internas, como revela Kemp:
[…] houve uma confusão, eu diria assim, no começo por parte dos técnicos da
secretaria de qual era o papel deles naquele momento, porque o pessoal tinha vindo
do movimento social, do movimento negro e não conseguia entender que lá na
secretaria eles eram representantes do governo, da Secretarias da Educação e que
tinham que elaborar uma política e apresentar para a sociedade. Elas iam à minha
sala cobrar do secretário qual era a política, como se o secretário tivesse de ditar
todas as políticas e o papel dos técnicos seria então só executar. (Entrevista com
Pedro Kemp Gonçalves In: CONCEIÇÃO, 2003, p.129 -130).
Na época, solicitamos a contratação de uma pessoa especificamente para esse objetivo,
já que outras políticas, como a Educação no Campo, tinha tido esse procedimento.
Recebíamos sempre a garantia de que isso seria encaminhado, o que não ocorria. Até que
decidimos tomar a frente dessa ação. Falamos diretamente com o secretário sobre a
necessidade de iniciar o trabalho para que fôssemos coerentes com nossas propostas, no que
fomos finalmente atendidos. O secretário designou-nos a tarefa de resolver essa questão.
Resolvemos todos os problemas burocráticos para a contratação de uma professora para
desenvolver essa tarefa. A pessoa escolhida foi a professora Dina Maria da Silva, membro do
Grupo TEZ desde 1988, da qual também faziam parte Bartolina Ramalho Catanante e nós.
104
Anexo 4.
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Resolvida essa questão, novos problemas surgiram porque, na verdade, o que
chamávamos de política não estava detalhada, era apenas o texto do programa número 15 e a
meta número oito da Proposta de Educação do Governo Popular de MS. Diante dessa
dificuldade, acordamos que a auxiliaríamos nessa fase inicial, porém nossa contribuição foi
esporádica por conta de nossas atribuições dentro da Secretaria e também porque não
pretendíamos estabelecer uma “concorrência” com a diretora responsável pela Coordenadoria
de Políticas Específicas, na qual a Política de Combate ao Racismo se encontrava. Esse
quadro trouxe muitas dificuldades para o estabelecimento da política, segundo Silva, D.
Quando eu fui para a Secretaria, entrei na Coordenadoria de Políticas Específicas.
Eles trabalhavam com a Educação Básica do Campo, com a Educação Indígena e a
Educação Especial. Depois que [a Educação sobre] o negro foi para lá, ficou meio
desajustado, essa coordenadoria não sabia como encampar o trabalho. Fiquei
praticamente sozinha dentro dessa equipe, fazendo os primeiros nortes, elaborando,
mas a equipe não se envolvia. Mesmo porque eles não tinham conhecimento da área
e toda a Secretaria desse período não acha que era importante. Então, depois do
convencimento, ele foi aceitando aos poucos e liberando um pouco mais o acesso.
(Professora Dina - entrevista concedida em 22/09/05)
Algumas dificuldades eram de ordem básica, como a escolha do nome pelo qual a
política seria identificada. Detalhe que, de acordo com a professora, prejudicou o trabalho.
[…] Ninguém sabia o nome que o trabalho receberia… era uma contradição geral,
não sabia se era afro, ser era educação afro, se era educação para o negro, se era
comunidades negras. Fiquei um período com o nome comunidades negras, depois
isso não foi legal, aí partimos para populações negras, depois, usamos outro nome.
Eu sei que o negócio não tinha nome e isso dificultava para pedir diária, para
mandar ofício.(Professora Dina - entrevista concedida em 22/09/05)
A situação descrita evidencia que, apesar de termos pessoas oriundas do movimento
negro no processo, as dificuldades não eram apenas de cunho burocrático ou de discordância
de encaminhamentos entre os gestores - também havia a inexperiência dos militantes
encarregados de instaurar esse processo. Ao nosso ver, esse fato revela a complexidade que é
para o movimento negro traçar linhas gerais que auxiliem seus militantes na instituição de
políticas públicas, mesmo na área de educação, tão cara a ele, ainda que se considere o fato de
o movimento negro nacional possuir propostas de certo modo sistematizadas, com os anais do
VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste - O negro e a Educação (1988) e da Marcha
Zumbi dos Palmares (1995)105. Esses documentos e outros semelhantes apontam diretrizes,
propostas, mas não são suficientes como orientação no momento em que é preciso de
caminhos concretos para implementar políticas públicas em um determinado governo, até
105
Anexo 61.
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mesmo para definir o nome.
Para tentar superar o impasse, foram estabelecidos contatos com a Secretaria de
Estado de Educação do Rio Grande do Sul (SED/RS). Tratava-se de uma referência em 1999,
a ponto de a SED/MS implantar processo semelhante ao construir o Plano Estadual de
Educação com a participação dos professores da rede, a chamada Constituinte Escolar.106
Entretanto, em relação à questão racial, não conseguimos nenhuma contribuição relevante: a
pessoa indicada como responsável por essa política na Secretaria gaúcha nos disse que
também estava buscando respostas para as mesmas questões. Procuramos também, membros
da ONG NEN, de Florianópolis. Apesar da solidariedade, houve pouca ajuda concreta.
Decidimos buscar nosso próprio caminho, contando com as discussões de anos no movimento
negro para nos orientar.
Em março de 2000, constituiu-se um espaço específico dentro da Diretoria de Políticas
Específicas em Educação com o nome de Equipe de combate ao racismo, se bem que a
"equipe" continuava contando com uma única pessoa. O objetivo do trabalho foi “contribuir
para o conhecimento e a valorização da diversidade étnica cultural bem como para a
superação das desigualdades raciais”.107 A despeito do reconhecimento, não houve avanços
estruturais para a realização do trabalho.
Uma das primeiras ações foi a elaboração do Caderno Temático nº.02 - Educação:
Etnias Indígenas e Negros108, para subsidiar o processo da Constituinte Escolar. O caderno era
106
A Constituinte Escolar foi um movimento instituído pela Secretaria de Educação com o objetivo de elaborar o
Plano Estadual de Educação. Compôs-se de quatro momentos. O primeiro, voltado para a mobilização e
esclarecimento do processo. O segundo organizou estudos e debates sobre a conjuntura econômica e política
nacional articulada à política educacional, o que apontou vários temas pelos quais se expressaram os principais
problemas vivenciados pelos sujeitos na escola. Para discuti-los, a Secretaria elaborou 16 cadernos temáticos que
subsidiaram o terceiro momento, este realizado nos meses de fevereiro a abril de 2001. Discutiam-se os temas
tendo os cadernos como subsídios, registravam-se emendas ao texto e/ou apresentavam-se propostas bem como
se elegiam os delegados ao Congresso Estadual da Constituinte Escolar. Depois de sistematizado, esse material
resultou na publicação do texto-base (jun.2001) para ser discutido durante o Congresso, realizado de 26 a 28 de
julho de 2001. Entre os temas a serem analisados pelos professores encontrava-se, na página 32 do documento, o
combate ao racismo nas escolas da rede pública Estadual. Mato Grosso do Sul. Secretaria de Estado de
Educação. 1o. Congresso Estadual da Constituinte Escolar. Texto Base do Plano de Educação para a Rede de
Ensino - Junho de 2001. Anexo 5 - partes que se referem ao tema desse trabalho.
107
Documento produzido pela SED/MS, fornecido à pesquisadora em 05/01/05, no qual estão os principais
objetivos, as atribuições, as ações realizadas pelo grupo técnico responsável pelas políticas de combate ao
racismo da SED, com destaque para o curso ibaa.xe que foi renomeado como AW DE! (“aqui estamos” em oriá)
108
Mato Grosso do Sul. SED. Educação: Etnias Indígenas e Negros. Caderno n.02. 3º. Momento - Constituinte
Escolar - construindo a escola cidadã. nov.2000 [Série Consituinte Escolar]. Anexo 7.
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composto por duas discussões, sobre indígenas e negros. Dentro do caderno, a Política de
Combate ao Racismo se apresenta com o nome de Educação Afro-brasileira, pois, quando foi
produzido, essa discussão não estava suficientemente amadurecida, mas era necessário ter
uma resposta rápida para esta questão da identificação porque o trabalho com esse tema, na
Constituinte Escolar, estava atrasado em relação aos outros grupos. Kemp explica a ausência
desta política no segundo momento da Constituinte109 do seguinte modo:
O problema é que nós não tínhamos uma proposta elaborada pelo partido na área de
educação. Na campanha eleitoral, não tínhamos feito essa discussão específica para
a área de educação. Quando o governador nos convidou para a Secretaria, nós não
tínhamos uma proposta elaborada, clara. Ela foi sendo construída nessa relação com
o movimento negro. Então eu acho que os outros movimentos já tinham suas
propostas claras. Tinham algumas políticas mais elaboradas, mas ficava parecendo
que a Secretaria dava prioridade para essas outras e não dava importância para a
equipe de combate ao racismo que ela merecia, mas, na verdade, o que aconteceu é
que a equipe demorou a entender que ela mesma deveria construir essa proposta,
porque a Secretaria não tinha isso pronto, era uma coisa totalmente nova. (Entrevista
com Pedro Kemp, em 25 de junho de 2003, IN. CONCEIÇÃO, 2003, p.127).
O secretário tinha razão, faltava à equipe uma proposta clara, e era a isso que se devia
o atraso. Mas também é fato que a Secretaria, como espaço institucional de formulação de
políticas públicas, deveria ter colocado sua infra-estrutura para apoiar esse segmento na
construção de uma proposta. Esperava-se que a própria "equipe", por ser oriunda do
movimento negro, construísse a política sozinha. Essa solidão e falta de apoio levou a
professora a buscar parceiros em outras equipes para conseguir fundamentar a proposta.
Segundo ela isso se deu por meio de
Uma vontade própria e a ajuda de algumas pessoas, no momento, eu acho que esse
primeiro passo em 2000 foi assim. Houve solidariedade de algumas pessoas da
educação básica do campo, como o Marcelo, na época, a Bartolina, que era de outro
setor, sempre que eu tinha dificuldade eu corria lá para ela me ajudar, mas assim,
organizado e sistematizado, não tinha essa equipe. Foi tudo muito perdido
(Professora Dina - entrevista concedida em 22/09/05).
Apesar dessas dificuldades, Silva, D. instituiu a Política de Combate ao Racismo na
SED/MS com as seguintes ações:

Elaboração de carta comunicando a todas as escolas sobre o novo
espaço;

Distribuição de textos para as escolas como subsídio para
trabalhar a temática, produzidos pela professora;
109
No anexo 8 apresentamos o sumário do documento enviado às escolas para subsidiarem as discussões no qual
constata-se a ausência do tema sobre o combate ao racismo.
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
Participação nas discussões da Constituinte Escolar;

Atendimento às comunidades quilombolas Furnas dos Dionísios e
Furnas de Boa Sorte;

Atendimento a professores sobre a questão racial;

Formação de grupo de estudos, com 30 professores, para tratar de
Formação Política e questão racial110;
Dessas ações, Silva, D. destaca como um momento crucial o processo instituído na
Constituinte Escolar, para problematizar essa questão com os professores
O primeiro retorno foi na Constituinte, em 2000, onde foram reunidos os professores
representantes do Estado aqui na capital. Houve uma discussão boa. Eu acho que o
debate foi muito bom, a princípio ninguém aceitava, ninguém aceitava interessante
discutir isso, mas com o desenrolar do trabalho eles foram entendendo a proposta e
depois saiu todo mundo convencido de que era preciso ter esse trabalho.(Professora
Dina - entrevista concedida em 22/09/05).
De acordo com ela, a Constituinte também ajudou no processo de convencimento
interno dos profissionais da Secretaria sobre a importância do tema.
Eu acho que, depois dessa Constituinte, diversos municípios mandaram oficio para o
secretário pedindo que fosse uma pessoa da Secretaria. Aí começaram a aparecer os
casos de racismo, acho que isso convenceu o próprio secretário de que era
necessário ter este trabalho dentro da Secretarias da Educação. No entanto, ele não
ampliou a equipe, eu fiquei em 2000 perdida ainda no meio daquele emaranhado de
trabalhos, fiquei sozinha, embora houvesse o convencimento de que era importante,
não houve a distribuição de material, de uma sala, de computador, de qualquer
espécie de recurso. Se eu fosse fazer qualquer trabalho, eu tinha de pedir em outro
local, emprestar o computador de alguém, emprestar material de alguém, porque não
havia recurso financeiro nem equipamento disponível. Naquele momento, durante o
ano de 2000 inteirinho, não houve destinação de recurso nenhum, eu trabalhei 2000
inteiro sem nenhum centavo. (Professora Dina - entrevista concedida em 22/09/05).
De fato, a Constituinte Escolar ampliou o processo de discussão sobre o tema.
Sobretudo porque, durante o seu desenvolvimento, os movimentos sociais foram chamados a
tomar parte nesse processo. O movimento negro se faz presente, destacando-se representantes
do Grupo TEZ111, que se dispuseram a auxiliar na discussão com os professores em torno do
Caderno nº.02 e defrontando-se com depoimentos como o abaixo, descrito em carta:
O diretor da escola Marechal Cândido Rondon, de Nova Andradina-MS, recebeu no
segundo semestre deste ano uma redação dramática de uma adolescente negra da 7a
110
Informações obtidas durante a entrevista concedida pela profa Dina em 22/09/05 e também, por meio de
consulta ao documento "Ações desenvolvidas - Gestão de Processos em Educação para a Igualdade Racial",
fornecido pelos técnicos da SED/MS em 05/01/05. Anexo 9.
111
A participação do historiador e jornalista Fabiano Maisonnave, representante do Grupo Tez nessas atividades
foi fundamental pois sua experiência de pesquisa na área qualificou o debate e possibilitou o registro para que
posteriormente, resultando na Carta-abaixo assinado (Anexo 10) com reivindicações apresentadas à Secretaria.
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série. No texto, a autora, de apenas 13 anos, pedia a direção da escola a ajudasse a
trocar seu cabelo, seu sangue e sua pele. A menina ainda conta que estava cortando
seus braços para que dessa forma o sangue negro se esvaísse de seu corpo, ato
confirmado por feridas e cicatrizes. O senhor P. disse que procurou a adolescente e,
após uma longa conversa, decidiu ajudá-la levando-a a um cabeleireiro que pudesse
alisar seu cabelo.
Essa carta, enviada ao secretário pela entidade acompanhada de um abaixo-assinado
de entidades e ativistas do movimento negro, recomendava as seguintes medidas:
1) Contratação de mais quatro funcionários dedicados à formulação e à
implementação de políticas específicas à questão racial na rede estadual;
2) Implementação, já para o ano letivo de 2001, de cursos de capacitação para
professores e funcionários sobre a questão racial em geral e dentro da escola;
3) Instituição, para todo o sistema estadual de ensino, da Semana da Consciência
Negra, rememorada entre os dias 13 e 20 de novembro;
4) Criação imediata de um fórum permanente de discussão;
5) Implementação, em 2002, de políticas de ação afirmativa para negros, índios e
mulheres nas unidades da UEMS.112
Essa movimentação produziu efeitos. Em 2001, a equipe se ampliou e, apesar da saída
da Silva, D., o grupo reúne as professoras Ana Lúcia da Silva Sena, Nilda da Silva Pereira e,
mais tarde, Irinéia Lina Cesário, todas negras e com histórico de militância.
Em 18 de setembro de 2001, foi criado o Comitê de Educação Para a População Negra
(CEPONE/MS)113, órgão colegiado de natureza consultiva voltado para o estudo e para a
elaboração de diretrizes e programas de políticas educacionais afirmativas para a população
negra. Esse conselho era composto por membros da Secretaria, militantes de entidades
negras114 e representantes de universidades e do Conselho Estadual de Educação.
Outras mudanças de ordem política ocorrem na Secretaria. Durante o congresso de
encerramento da Constituinte Escolar Kemp (1999-2001), foi substituído por Antonio Carlos
Biffi, que ficou na Secretaria somente em 2002, quando assumiu Elza Aparecida Jorge (2002)
para secretária. De acordo com Cesário, as mudanças não alteram os rumos da Política de
Combate ao Racismo.
Quando a mudança era na gestão da equipe, os trabalhos continuaram a acontecer de
acordo com o planejamento. A diferença era no uso político do trabalho. No período
em que estive na Secretaria também passei por mudanças de gestor da CoordenaçãoGeral, o então coordenador que assumiu em 2003 dinamizou os trabalhos, cobrando
da então gestora da equipe um planejamento exeqüível, bem como uma carta de
112
113
Ibidem.
Resolução SED n. 1506 de 18/09/01. Publicado em Diário Oficial n.5596 19/09/01.Anexo 11.
114
Tomamos este termo emprestado de Maria Aparecida Bento, que o tem utilizado para designar instituições
brasileiras relacionadas ao combate ao racismo nas quais a direção é de ativistas do movimento negro.
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apresentação dos trabalhos oferecidos pela equipe para a comunidade escolar
estadual e municipal de ensino. Essa carta fez com que chegassem ao gestor as
solicitações de cursos em diversas escolas estaduais da capital e do interior.
(Professora Irinéia - entrevista por e-mail, em 17/01/06).
Além das mudanças de dirigentes ocorreram também outras alterações na
denominação da Política. O nome consolidado após 2001 foi Política de Combate ao Racismo
e é assim que ela é designada até o final do primeiro mandato do governador Zeca do PT. Na
sua segunda gestão, assumiu a Secretaria o professor Hélio de Lima (2003-2006), que nomeia
o professor Giovani José da Silva para Coordenador de Políticas Específicas em Educação
(2003-2004). É ele quem recomenda a mudança do nome da equipe para Gestão de Processos
em Educação para a Igualdade Racial. Para a professora Benedita Borges Marques,
responsável pelo desenvolvimento da Política no momento da pesquisa, a mudança de nome
deveu-se a
[...] uma questão bem política, para a gente ficar em consonância com a questão
federal. Como já estava tomando corpo essa questão da igualdade racial e surgiu a
Secretaria Especial de Políticas Específicas para a Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) em Brasília com status de ministério, o nosso coordenador falou: "A
questão da gestão é para a gente poder ficar em consonância, assim a gente vai
ganhar força com esse nome”. E surgiu aqui115 a nossa Coordenadoria também,
agora é Coordenadoria de Política para a Promoção da Igualdade Racial, que fica na
governadoria. Também trocou de nome nessa direção. (Professora Benedita,
entrevista concedida em 20/09/05).
Na SED/MS, no ano 2005, essa política se localiza na COPEED, que, por sua vez,
estava submetida à Superintendência de Políticas Educacionais (SUPED), cuja finalidade é
auxiliar o secretário na coordenação e definição da política educacional. Para as ações
relativas à Promoção da Igualdade Racial, foram definidas as seguintes atribuições:




elaborar ações educacionais capazes de superar as desigualdades raciais
no Estado de Mato Grosso do Sul, como também contribuir para o
conhecimento e valorização da diversidade étnica cultural da população
brasileira nas escolas;
elaborar e implementar a Proposta Político-Pedagógica de Combate ao
Racismo para a rede estadual de ensino;
capacitar e subsidiar os professores da rede estadual para o
desenvolvimento e a aplicação da Política de Combate ao Racismo e de
superação das desigualdades raciais;
acompanhar as escolas estaduais e as comunidades remanescentes de
quilombos, fornecendo subsídios teóricos aos professores;
115
A professora Benedita se refere ao órgão criado em 2001 na Secretaria de Governo anteriormente chamado de
Coordenadoria de Combate ao Racismo e que conduzia o Programa de Superação das Desigualdades Raciais,
envolvendo todas as Secretarias. Durante a redação desta tese, chamava-se Coordenadoria de Promoção da
Igualdade Racial de MS (CEPPIR/MS) e era dirigida pela professora Ana Lúcia da Silva Sena (2003-2006).
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



assessorar na elaboração da proposta político-pedagógica específica das
escolas pertencentes às comunidades negras;
elaborar, desenvolver e divulgar projetos específicos para a superação
das desigualdades raciais;
incluir a temática de superação das desigualdades raciais em todas as
políticas desenvolvidas pela Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso do Sul (SED);
propor a implementação de ações afirmativas, garantindo a superação
das desigualdades raciais em programas específicos do governo
estadual, como: Bolsa Escola, MOVA- Movimento de Alfabetização de
Jovens e Adultos e cursinho pré-vestibular para carentes. 116
O desenvolvimento das políticas para o tratamento das relações raciais e educação foi
crescente dentro da SED/MS. Além da organização de cursos, outras ações foram
implementadas nesse período. A equipe parece ter ganhado cada vez mais espaço devido à
demanda. Mesmo quando ocorrem as mudanças de secretário como foi em 2002, com fortes
rupturas nos programas, inclusive no logotipo e no perfil das ações da Secretaria, a Política de
Combate ao Racismo se manteve, tendo sido finalmente incorporada nos folhetos de
divulgação institucional sobre os trabalhos realizados pela SED/MS.
Outra ação importante foi a audiência pública realizada em maio de 2005 pelo
Conselho Estadual de Educação em parceria com a SED/MS e fórum de entidades do
movimento negro para discutir as DCEER e apresentar o parecer orientativo para a aplicação
das diretrizes em nível estadual.117 Houve ainda o lançamento, também naquele ano, do
Caderno de Diálogos Pedagógicos: Combatendo a intolerância e Promoção da Igualdade
Racial sul-mato-grossense, material enviado para todas as escolas do Estado e disponibilizado
no site da Secretaria118. A equipe, no momento desta pesquisa, contava com cinco pessoas, das
quais três realizavam pesquisa em nível de mestrado com temas relacionados às relações
raciais.
No momento em que finalizamos a pesquisa, ocorria uma nova transição de governo.
O governo Zeca do PT passou seu cargo para André Puccinelli (PMDB), ex-prefeito de
Campo Grande. Segundo informações da assessora da Superintendência de Educação,
professora Deise Centurion, os trabalhos não serão interrompidos, mas não há propostas, pois
116
Informações retiradas do site < www.educar.ms.gov.br/Sed/SedMS>. Acesso em: 15 out 2005.
117
Parecer Orientativo do CEE/MS nº 131/2005, de 10 de maio de 2005. Disponível em site
<http://www.sed.ms.gov.br - publicações>. Acesso em: 15 set 2005
118
Disponível em site <http://www.sed.ms.gov.br - publicações>. Acesso em: 15 set 2005.
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a nova equipe optou por primeiro conhecer as atividades desenvolvidas.119
4. Combate ao racismo na escola: o curso analisado
O movimento em relação à implementação de políticas afirmativas e, em particular, o
anseio dos ativistas do movimento negro pela instituição de cursos de formação de
professores era crescente, e os acontecimentos indicavam essa necessidade. Em novembro de
2000, um episódio ocorrido entre a Escola Pública Estadual Antonio Delfino Pereira,
localizada na comunidade negra São Benedito120, e uma escola privada121 criou as condições
para o Grupo TEZ organizar o primeiro curso de formação de professores com o objetivo de
combater o racismo na escola.
Duas ocorrências, durante a visita da escola privada à escola Delfino, levaram a
diretora da escola estadual a procurar o Grupo TEZ. A primeira circunstância foi quando uma
criança branca visitante, ao tocar uma criança negra da comunidade, limpou as suas mãos. De
acordo com a diretora, essa atitude não provocou qualquer reação por parte das professoras
visitantes. A segunda foi durante o lanche, que havia sido combinado, ainda segundo o
mesmo relato, com todas as crianças, visitantes e visitadas. Entretanto na hora do lanche as
crianças visitantes formaram uma roda e não convidaram as outras. Essa atitude incomodou as
professoras da comunidade, que decidiram levar seus alunos para a sala de aula.
Ao final da visita, as professoras da escola privada ofereceram "o que sobrou" para a
diretora distribuir entre as crianças da comunidade. Esses episódios foram considerados
extremamente ofensivos pela diretora da escola Delfino que procurou o Grupo TEZ para
orientá-la sobre quais procedimentos deveria ter, pois considerou que as professoras da escola
privada se omitiram na preparação das crianças para visitarem a comunidade negra. A
entidade, diante dessa solicitação, organizou uma proposta de capacitação de professores e a
propôs a escola privada para ser desenvolvida no próximo ano, já que estávamos no final de
119
Informações obtidas com a professora Deise Centurion, assessora da Superintendência de Educação, por
telefone em 18/01/2007.
120
O bairro São Benedito, fundado em 1905, organizou-se em torno da história de sua fundadora, Tia Eva, exescrava. Mais informações Ler MORAIS, Vanda. Tia Eva, negraeva: história da comunidade São Benedito.
Campo Grande, MS: NEGRAEVA/Projeto de apoio a afro-descendentes para acesso ao ensino superior, 2003.
121
Como o caso foi tratado sigilosamente pela entidade, decidimos preservar o nome da escola.
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2000122.
O curso123 implicava alguns custos, como pagamento aos ministrantes. A entidade
compreendia que a escola não deveria ser denunciada como permissiva com a prática de
discriminação racial, mas deveria demonstrar seu compromisso com a discussão do tema,
investindo no processo de formação de seus professores. Essa via foi plenamente aceita pela
escola. Todavia, depois que os ânimos "se acalmaram", constatou-se que o entusiasmo
demonstrado pela escola era apenas estratégico, e o Grupo TEZ não foi chamado para realizar
o curso. O Grupo TEZ tentou fazer contato com a diretora da escola por diversas vezes, sem
sucesso.
O episódio serviu para amadurecer a idéia: em seguida, o TEZ propôs à Secretaria
Estadual a realização de cursos de capacitação de professores baseados em sua formulação. A
SED/MS aceitou, convidando alguns membros da entidade para ministrar a primeira versão
do curso, que recebeu o nome de Ibaa.xe (que isto possa ser aceito, em iorubá). O curso,
apresentado pelo Grupo TEZ, previa 20 horas de trabalho a partir dos seguintes módulos:
MÓDULO I - As idéias racistas, os negros e a educação







Raça como conceito biológico vs raça como fenômeno social;
Brasil e o mundo: a hierarquia racial nas diversas construções históricas
do "negro";
Especificidades do racismo brasileiro: o embranquecimento e o mito da
democracia racial;
Situação do negro no Brasil contemporâneo;
Resistência negra no passado e no presente;
Entendendo os conceitos: preconceito, discriminação, racismo, afrobrasileiro e afro-descendente;
Ação afirmativa como proposta de combate às desigualdades raciais.
MÓDULO II - Os negros, os conteúdos escolares e a Diversidade
Cultural



Identificando o racismo, o preconceito e a discriminação racial na
escola e na sala de aula;
os estereótipos racistas e sexistas;
a representação do negro pelas educadoras e pelos alunos - construindo
estratégias de combate ao racismo, ao preconceito e a discriminação
racial por meio de projetos específicos;
122
Informações retiradas da ata número dez, de 11 de novembro de 2000. Cópia cedida pelo Grupo TEZ.
Participaram da formulação dessa proposta Nilda da Silva Pereira, Dina Maria da Silva, Fabiano Maisonnave e
Lucimar Rosa Dias. Anexo 12
123
Informações retiradas da Carta enviada à escola particular. Cópia cedida pelo Grupo TEZ, Anexo 13.
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


Ambiente escolar;
Discussão do currículo;
Material pedagógico.
A primeira edição do curso foi oferecida em 2001 para educadores da rede estadual e
teve 87 inscritos oriundos de diferentes pontos da cidade. Além de Campo Grande, foi
realizado paralelamente na cidade de Aquidauana, a 100 km da capital, um outro curso. As
técnicas da equipe se revezaram para ministrar os módulos nas duas cidades. A organização
do curso empenhou-se para atender as reivindicações apresentadas pelo Grupo TEZ e demais
entidades que subscrevem o abaixo-assinado, organizado após o 3º momento da Constituinte
Escolar.
O curso desenvolvido pela Secretaria, parte do modelo apresentado pelo Grupo TEZ,
mas foi reelaborado pela equipe, até porque, como a equipe era composta por educadoras
oriundas do movimento negro, também possuíam a experiência de ministrar palestras e
oficinas. A professora Ana Lúcia da Silva Sena nos relata em sua entrevista
Quando entrei para a equipe, já havia se iniciado um grupo de estudos voluntário
entre professores do Estado, em Campo Grande, sobre a temática racial, porém a
informação que tínhamos era que havia pouco interesse ou participação. A
professora Nilda e eu pensamos como estratégia, ao invés de dar continuidade no
grupo de estudos, transformá-lo num curso com entrega de certificados para atrair
mais professores. Cheguei a elaborar e digitar as dúvidas mais freqüentes que os
professores geralmente tinham em relação ao racismo na educação, baseada em
experiências que já tinha desenvolvido anteriormente numa escola privada em
Campo Grande, para então montar os temas a serem abordados no curso.
Coincidentemente o Grupo TEZ, também havia elaborado uma proposta de curso
para formação de professores cujos objetivos e conteúdos eram praticamente o
mesmo, porém o do Grupo TEZ já se encontrava de forma mais sistematizada.
(Professora Ana Sena - entrevista concedida por e-mail em 24/10/06)
Na avaliação da professora-técnica Irinéia Lina Cesário, os cursos de formação se
constituíram na principal atividade desenvolvida pela equipe.
Foram realizadas palestras em várias comunidades escolares da capital e do interior,
cursos de sensibilização para os técnicos da Secretaria de Educação, entre outros.
Porém, na minha opinião e na opinião de vários cursistas, o Curso de Formação de
Professores “O Combate ao Racismo na Escola” foi o mais relevante, pois abordava
conteúdos sobre a História do Negro desde a diáspora ate a sua chegada no Brasil,
relações raciais cotidianas na escola e fora dela e culminava com um projeto que
cada cursista deveria aplicar em sua escola ou em seu ambiente de trabalho. Durante
o período de realização do curso, de 60h, percebia nitidamente a mudança dos
participantes com relação ao tema. No curso no Município de Mundo Novo, que
arcou com as despesas das palestrantes, a abertura foi feita com uma grande
solenidade com a presença do prefeito, de representantes da Câmara de Vereadores e
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, além de alunos e pais. Outro
momento muito rico deste curso foi feito com as profissionais dos Centros de
Educação Infantil. Para esse público específico, a equipe que ministrava o curso
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teve de fazer diversas alterações e aplicar uma metodologia diferenciada. Um outro
ganho inquestionável foi a inclusão do tema de diversidade étnico-racial no curso de
formação para os professores do Mova (Projeto Brasil Alfabetizado, que recebeu o
nome de MOVA MS Alfabetizado). (Professora Irinéia - entrevista concedida por email, em 17/01/2006, grifo nosso).
As atividades de formação não contavam mais com a participação de membros do
Grupo TEZ, e a equipe da Secretaria de Educação havia feito várias alterações na estrutura
apresentada pelo grupo. As alterações mais significativas foram na carga horária e na
organização dos conteúdos dos módulos. Houve maior investimentos de tempo na
apresentação de metodologias, tendo como ponto alto a oficina de confecção de bonecas
incorporada pela professora Sena, que tinha experiência em trabalhar o tema da educação das
relações étnico-raciais com crianças pequenas124. Com isso, formularam-se os objetivos
estabelecidos pela SED/MS para a Política125:





Formar professores e educadores sobre a questão racial;
Entender como se dá o processo de discriminação racial no Brasil e seus
reflexos na sociedade e na escola;
Combater a discriminação racial em sala de aula, valorizando as
diferentes culturas resgatando a auto-estima dos povos que compõem a
sociedade brasileira;
Instrumentalizar os professores e educadores para lidar com a
diversidade no cotidiano escolar;
Superar as desigualdades raciais existentes na sociedade.
O curso passou a ter 60 horas, organizado em cinco módulos: 1- Idéias e conceitos
(definição); 2. Auto-estima e a questão racial; 3. Educação x Racismo (como acontece na
escola); 4. Cultura e resistência negra e 5. Políticas Afirmativas.
Os conteúdos eram
distribuídos na seguinte estrutura.
MÓDULO I - Idéias e conceitos (definições)






Conceitos
A evolução dos conceitos de raça
História do negro no Brasil e no mundo
O negro e a história (conhecer para combater)
A luta dos negros no Brasil, a resistência negra, chegada dos negros no
Brasil, os quilombos.
A história da libertação dos escravos
MÓDULO II - Auto-estima e a questão racial


Construção da identidade étnica
Mito da democracia racial (o processo de embranquecimento)
124
Um de seus projetos, desenvolvido na escola CNEC - Escola Cenecista Oliva Enciso, foi premiado pelo I
Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promovido pelo CEERT, Anexo 14.
125
Objetivos retirados de documento fornecido pela SED/MS em 05/01/2005, Anexo 15.
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

Relações interétnicas
Auto-estima
MÓDULO III - Educação x Racismo (como acontece na escola)




Como se dá a reprodução do racismo na educação:
Escola como agente reprodutor do racismo
A imagem do negro nos meios de comunicação, nos livros didáticos e
na literatura
Estratégias pedagógicas de combate ao racismo (buscando a igualdade
racial)
MÓDULO IV -Cultura e Resistência negra




O negro na formação da sociedade nacional (contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do
Brasil/ Personalidades negras no Brasil e no mundo)
Movimento negro no Brasil e em MS
Políticas públicas de combate às desigualdades raciais (construindo
estratégias para combater as desigualdades raciais, políticas afirmativas,
compensatórias e sistema de cotas)
Datas e personagens significativos para a população negra
MÓDULO V- Elaboração de Projetos didáticos relacionados à questão racial



Projeto pedagógico126 (informações teóricas 4h)
Elaboração e execução do projeto
Apresentação de resultados
O curso que será analisado foi realizado pela equipe da SED/MS em Campo
Grande/MS, no ano de 2001 para aproximadamente 40 profissionais da educação infantil dos
Ceis. O trabalho direto com os centros está sob a responsabilidade da SETASS em gestão
compartilhada com a SED/MS. Por isso, além das três entrevistas com as gestoras da política
na SED/MS, realizamos uma entrevista com a professora Tanea Mariano, na época do curso
pessoa responsável pelo acompanhamento dos Ceis na estrutura da SETASS.127
Mariano teve uma posição rigorosa com as profissionais que participaram do curso,
gerando, de algum modo, a idéia de imposição. A educadora Fatou pondera essa maneira de
agir da Secretaria:
Quando o PAC, o Programa de Atendimento à Criança, passou para nós,
professores, que seria oferecido esse curso, já houve uma cobrança imediata de que
era obrigatória a sua aplicabilidade na instituição. O que de fato não é de todo ruim,
talvez caiba discutir os termos dessa imposição. (Professora Fatou - entrevista
concedida em 21/09/05).
Questionada sobre essa imposição, a professora Mariano explica que ocorreu por conta
126
O Projeto Pedagógico é um documento que define as intenções da escola e deve ser construído coletivamente
porque precisa que a comunidade escolar interaja para alcançar as metas estabelecidas. É um documento para
muitos anos, que se modifica após sistemáticas avaliações. Está prescrito na LDBN 9394/96, no Art. 14, item I,
porém é concomitantemente tratado no texto da lei como Proposta Pedagógica.
127
Gestoras ver Campo Grande - anexos 20, 21, 22, 23. E Campinas - anexos 36 e 37.
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de alguns aspectos. O primeiro relacionava-se à sua própria trajetória como profissional.
Durante sua formação inicial no curso de pedagogia, ela teve a oportunidade de atuar em um
projeto de extensão de educação de jovens e adultos numa comunidade negra.
Essa experiência a fez aprender sobre a questão do negro no Brasil. Depois, como
diretora de uma creche, em 1999, ela percebeu a ausência de crianças negras no local,
localizado em um bairro de alta densidade negra. Outra motivação para a sua exigência
relacionava-se com o fato de que, como diretora do Programa de Atendimento à Criança da
SETASS (1999), almejou interferir numa prática dos professores por ela percebida: a maioria
dos professores não costumava incluir em suas práticas as aprendizagens dos cursos de
formação dos quais participavam.
A minha preocupação era com a formação, com o trabalho. Eu comecei a investir
muito, buscar parceria, na época fizemos uma parceira com a UNAES128[...] ela
fazia mini-cursos para as atendentes,129 para as professoras, mas [..] foi terrível! O
que eu via? O professor ia lá, estudava bons cursos, voltava e guardava o negócio
tudo lá e continuava a fazer o que ele estava fazendo. Isso me incomodava muito,
sempre me incomodou demais. Então, quando [...] se falou especificamente desse
curso, foi uma questão que eu ... Eu quero projeto, eu quero ver o projeto, eu quero
ver... quer dizer, não foi só em relação a este curso, mas é claro que essa temática
me chamava a atenção de maneira especial. Acho que esse marcou porque eu fui
muito assim, muito enfática. (Ex-diretora do PAC Tanea Mariano - entrevista
concedida em 23/09/05).
Dos questionários enviados aos 29 Ceis em novembro de 2005130 solicitando que as
150 profissionais respondessem sobre práticas de combate ao racismo, nos chegaram 57
respostas de 27 Ceis. Do total de respostas, 25 citaram a participação em formação com o
tema, mas com uma variação grande no tempo de duração. Algumas, pelas declarações, não
se referiam ao curso em questão. Ao todo, 15 declarantes participaram do curso Combate ao
Racismo na escola, e 51 realizaram algum tipo de atividade em sala de aula abordando o
tema.
Duas pessoas disseram não ter realizado nenhuma atividade com o tema da educação
das relações étnico-raciais, justificando que não sentiram necessidade de abordar esse tema.
Uma dessas respondentes participou, em 2004, de um mini-curso com 8 horas sobre o tema e
128
União da Associação de Educação Sul-Matogrossense (UNAES), mantenedora da Faculdade de Campo
Grande (FIC).
129
As atendentes atuam nos Ceis sob a responsabilidade da SETTAS em parceria com a professora. Geralmente
possuem o ensino médio, mas algumas têm apenas o ensino fundamental.
130
Ver apêndice H.
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a outra não respondeu se já havia participado de alguma atividade oferecida pela Secretaria
que abordasse esta discussão. Uma respondente declarou que o tema nunca foi abordado no
Cei em que trabalha. Outra educadora disse não ter realizado nenhuma prática por ter
dificuldade em encontrar uma metodologia para tratar da discriminação racial com crianças de
dois anos.
A análise dos questionários fortalece o depoimento de Mariano sobre a exigência de
projetos, pois o número de profissionais que fizeram algum tipo de atividade relacionada ao
tema das relações raciais supera o de profissionais que participaram do curso. Entretanto os
questionários também indicam ser necessário dar continuidade ao processo de formação em
serviço, porque algumas concepções apresentadas tinham deficiências.
4.1. O curso, alguns pressupostos de formação e suas relações com o tema.
Um olhar mais detido nos módulos e objetivos do curso realizado pela SED/MS
confirma nossa percepção sobre um certo consenso entre os ativistas em relação ao tipo de
conhecimento necessário para que professores atuem de modo qualificado em sala de aula.
São semelhantes os conteúdos identificados nos relatos de experiências de ONGs, Secretarias
ou universidades. Predominam a discussão dos conceitos (preconceito, discriminação,
racismo), a desconstrução do mito da democracia racial, a história de resistência da população
negra, o movimento de ações afirmativas e questão do currículo. Enfatizam-se a construção de
metodologias e o papel do professor como transformador da realidade. Para Sena:
Focar na formação dos professores sempre foi para mim o mais importante, porque
entendia que era o meio mais eficaz de atingir em maior escala a escola e os alunos
com uma política de combate ao racismo em sala de aula e com uma proposta
política pedagógica que passasse a promover uma educação anti-racista. Para mim,
era e é fundamental que consigamos fazer com que os professores façam uma
releitura do processo histórico sobre o negro, da escravidão ocorrida no país,
conhecendo os verdadeiros fatos que empurraram a população negra para os piores
índices de pobreza e miserabilidade e que mantêm essa população numa enorme
desigualdade em relação à população branca do país. (Professora Ana Sena entrevista concedida por e-mail em 24/10/06).
Em que pese essa apreensão dos ativistas sobre determinados conteúdos importantes
no trabalho, dificilmente os cursos apresentam uma referência teórica norteadora nem
manifestam suas filiações às correntes teóricas. O que se apreende é que consideram a escola
como espaço de conflitos e construção de novos paradigmas. Para a professora Sena, “não
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havia uma definição clara e objetiva enquanto equipe, mas as professoras em sua maioria
tinham uma abordagem sócio-construtivista”.
Essa não é uma realidade apenas da SED/MS. Os informantes com os quais
recolhemos informações sobre as experiências, ao serem consultados sobre as referências
bibliográficas, não respondem a esse item ou apresentam uma ampla variação, incluindo
Paulo Freire, Henry Giroux e Peter Maclarem. Ou seja, apóiam-se nas teorias críticas ou na
sociologia crítica da educação, porém sem explicitá-las.
Tal filiação sustenta-se no fato de que os objetivos e conteúdos declarados enfatizam
as denúncias do currículo como transmissor de ideologias que pretendem a permanência das
relações sociais hierarquicamente estabelecidas. Também há a preocupação de demonstrar
que as desigualdades operam por meio de instrumentos simbólicos (por isso a ênfase, na
mídia e na literatura), reproduzindo-se na cultura. Por isso, os cursos almejam incluir nos
conteúdos curriculares as contribuições das diversas culturas, em particular das culturas
negras. Todos esses elementos estão de algum modo presentes na organização do conteúdo do
curso, nos depoimentos das técnicas e gestores, embora falte uma elaboração mais sistemática
dessas idéias.
É provável que a ausência clara das referências teóricas fragilizam o trabalho de
formação. Essa falta, em grande medida, transforma os cursos em espaços de discussão de
metodologias para o combate ao racismo na sala de aula, mas fornece aos professores poucos
elementos para que possam incorporar de modo consistente e reflexivo esse recorte no seu
fazer pedagógico. É necessário trabalhar com professores referências teóricas que lhes
permitam uma apropriação teórica sobre o tema bem como trabalhar a dimensão da sua
própria subjetividade, para que compreendam que os processos de produção e reprodução do
racismo na escola atingem também a eles, e não só os alunos.
Nesse sentido, parece faltar ao curso de Mato Grosso do Sul essa dimensão: não há
metodologias que atinjam inicialmente o professor como sujeito principal do processo. É
preciso reconhecer que eles constroem seus saberes a partir de suas experiências em diferentes
lugares sociais, formando a partir da trajetória de vida suas noções sobre as relações raciais.
Uma rica experiência nesse sentido tem sido desenvolvida por Catani et al (2003) quando
introduz os relatos autobiográficos como técnica de abordagem. Para a autora, a estratégia
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visa
[...] estimular que as professoras ao contar, por meio da escrita, como se percebem a
si mesmas no trabalho escolar, nas suas relações com as alunas, com as colegas de
profissão, com a administração da escola, mas, para mais além, a reconstituir seu
passado, desde a infância, suas relações com pais, irmãos e com a família mais
ampla, o tipo de influência exercida por eles, momentos marcantes da sua vida de
criança; a entrada na escola, as primeiras professoras e as primeiras amizades, as
decepções, os castigos e punições, os desejos frustrados, as metas atingidas, as
vitórias e as derrotas, as formas de convivência com os outros sujeitos sociais, até o
momento presente.(CATANI et al. 2003, p. 41).
Os relatos autobiográficos não descrições sobre questões íntimas da vida de uma
pessoa, mas possibilitam o acesso a um discurso construído num contexto pleno de
significados sociais. Nesse aspecto, o indivíduo é a expressão singularizada do social. Ao
contar sobre sua vida, o sujeito procura estabelecer conexões entre os acontecimentos vividos
por ele e a realidade social. Relembrar e relacionar esses acontecimentos ou eventos
marcantes do ponto de vista histórico e pessoal é um exercício que possibilita ao sujeito
interrogar-se sobre suas próprias ações nesse contexto e sobre os motivos que a geraram. Essa
história, que a princípio é pessoal, contém o tempo histórico em que foi vivida, as variáveis de
classe, de gênero e, obviamente de pertencimento racial, mesmo quando este não é percebido.
Falar de si mesmo pode ser um modo fecundo para compreender a realidade social, pois toda
a descrição encontra-se permeada de uma práxis social.
No curso realizado pela SED/MS, estão presentes algumas dessas considerações, mas
de modo não-sistematizado. Durante o curso, houve espaço para o professor refletir sobre o
seu trabalho, o seu compromisso político e o cuidado que se deve ter no trato com tema.
Todavia essas reflexões não foram acompanhadas de um processo mais efetivo que permitisse
aos professores "dizer de si próprios e a si próprios”. Defendemos que essa dimensão seja
parte intrínseca do processo de formação. Do mesmo modo, acreditamos que, para mobilizar
essas subjetividades, é necessário recorrer aos variados modos que a humanidade construiu
para expressar suas concepções, seus valores, seus modos de viver, tais como: filmes,
músicas, livros, artes plásticas, etc, como tem sido apresentado por Sousa et al (2005):
[...] a literatura, o cinema e a música são fontes valiosas para destacar a importância
dos relatos autobiográficos e as formas pelas quais eles remetem as questões
relativas à constituição do indivíduo e da sociedade. Além disso, textos literários,
filmes e músicas falam da história de determinadas pessoas e podem motivar a
escritura da própria história (SOUSA et al, 2005, p.19, grifos dos autores).
Como se procura demonstrar adiante, mesmo nas categorias nas quais as educadoras
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entrevistadas são os sujeitos principais, as questões relacionadas ao racismo e à discriminação
foram pensadas por elas em relação aos seus alunos, e não a elas próprias. Um exemplo disso
é quando tratamos do pertencimento racial e das dificuldades advindas dele. Suas
preocupações voltaram-se para a produção de estratégias que fizessem as crianças negras
aceitarem-se como negras e serem aceitas pelo grupo como tal, considerando as diferenças
étnico-raciais como um valor. Essa dimensão do trabalho é importante, principalmente
considerando que elas atuam com crianças da primeira infância. No entanto é indispensável
que esses cursos fomentem o conhecimento de todas as dimensões sociopolíticas que
sustentam a permanência do racismo na sociedade brasileira, e a percepção subjetiva dos
educadores é uma dessas dimensões.
5. Construção da análise: categorias de interpretações
Procuramos neste item dialogar com as categorias construídas a partir das entrevistas.
Destacamos os elementos que se repetiam, os que eram semelhantes ou divergentes e aspectos
únicos. Incluímos os depoimentos das educadoras sempre que necessário para explicitar os
temas debatidos na análise a partir da nossa questão de investigação, isto é, as apropriações
dos conteúdos do curso pelas educadoras e o desenvolvimento de suas práticas. Depois da
análise das entrevistas, chegamos a quatro categorias.
A primeira categoria, chamada de profissionalidade, trata da educadora como sujeito.
Nela, aparecem questões relativas à identidade e ao pertencimento racial das educadoras, o
ciclo de vida profissional e as experiências vividas com o tema. Na segunda categoria, ações
formadoras, consta o processo de formação em si, metodologias e conteúdos do curso, a
relação dos conteúdos do curso e o contexto histórico de onde se originam e o que foi gerado
a partir do curso. A terceira categoria, a dimensão político-administrativa, inclui os
compromissos da Secretaria, da escola e do educador com a política. A quarta categoria,
práticas pedagógicas, compôs um capítulo à parte. A seguir trazemos a análise das três
primeiras categorias.
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5.1. Profissionalidade
Aprendi a fazer bonecas com minha avó que veio do Marrocos, ela contava muitas
histórias. Depois do curso, eu fiquei mais conhecida, ensinei muita gente a fazer
bonecas, era Abibatou, me ajuda aqui, Abibatou, me ajuda ali...Abibatou
Nesta análise, nos interessa questões da profissionalidade que abrangem os saberes e
como essas questões se relacionam com o nosso tema. Para Jacques Therrien (2002), o saber
docente caracteriza-se por três dimensões: os saberes disciplinares e curriculares, adquiridos
por meio da formação pedagógica, nas instituições legalmente destinadas a isso; os saberes
advindos da experiência profissional, construídos no exercício da profissão; e os saberes da
cultura, esses adquiridos na vivência da prática social.
Essas dimensões se coadunam com o que Nóvoa (2002) tem chamado de "famílias de
competências", isto é, aspectos que devem ser desenvolvidos nos cursos de formação de
professores a fim de contemplar as necessidades urgentes do momento em que vivemos. Para
Nóvoa, os professores precisam saber relacionar e saber relacionar-se, saber organizar e saber
organizar-se, saber analisar e saber analisar-se. Essas "competências” apresentam sempre a
dimensão pessoal e social do professor, que é de nosso interesse abordar aqui.
Para iniciar, investigamos como as educadoras que realizaram o curso se posicionam
em relação ao seu próprio pertencimento racial e sua identidade. Pertencimento racial e
identidade racial são duas dimensões de um mesmo fenômeno. A identidade é fonte
importante de significação das pessoas, ou seja, ela se realiza por meio de um processo de
construção de significados a partir de algum atributo cultural internalizado pela pessoa, e se
sobressai diante de outros atributos, sendo fontes importantes de autodefinição. (CASTELLS,
1996).
Não há identidade sem que se perceba o seu pertencimento. Ela se realiza na definição
de si, sendo histórica e também política, e considera na sua constituição aspectos culturais,
políticos e psicológicos. Em seguida, analisaremos como e se o tempo de formação
influenciaram suas concepções, os modos como receberam os conteúdos do curso e a forma
como reagem ao serem sujeitos de uma pesquisa que trata de tema tão cercado de
peculiaridades. Depois, tentamos verificar como as experiências das educadoras anteriores ao
curso as levam a atuar sobre o tema - ou não.
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5.1.1. Identidade em construção e pertencimento racial: o que os olhos não vêem
A composição dessa categoria deve-se aos tipos de respostas que as educadoras deram
ao serem solicitadas a se incluir em uma das categorias de raça/cor utilizadas pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Havia, desde o início, a intenção de captarmos
esse aspecto das entrevistadas. No entanto a pergunta nem sempre era feita diretamente, nossa
experiência tem indicado que a simples solicitação para que as pessoas se incluam nas
categorias de cor/raça organizadas pelo instituto podem causar constrangimentos, e por isso,
iniciávamos a entrevista, aguardando um momento oportuno para tratarmos desse aspecto – e
quase sempre ele surgia.
Em algumas situações, quando estávamos discutindo algum tema, a educadora
espontaneamente se colocava dentro de uma categoria; em outros casos, a entrevistada nos
abria uma oportunidade na qual cabia a pergunta. Nossa intenção, ao colocarmos a identidade
racial como questão, decorre do fato de acreditarmos que o processo de construção da
identidade é contínuo. Nesse sentido, caberia compreender se a participação em um curso de
formação que trata do tema das relações raciais de algum modo influencia as educadoras em
relação a esse quesito. E também porque cremos que é fundamental a um educador que
trabalha com a construção da identidade da criança pequena refletir sobre a sua própria.
O resultado encontrado foi diferente do que tem sido apontado por pesquisas que
revelam a dificuldade das pessoas em se identificarem como negras. Entre as educadoras o
fenômeno da negação de ser negro não aparece: ao serem convidadas a se incluírem numa
categoria de cor/raça reagem de diferentes modos, mas ao final possuem um movimento
semelhante entre si, de valorização do negro. Ao serem solicitadas a escolher uma categoria
de cor/raça de acordo com o IBGE, primeiro vemos uma tentativa de rompimento com essas
categorias e uma aproximação da categoria preto. Vejamos o resultado abaixo:
Quadro 1 - Pertencimento racial das educadoras de Campo Grande-MS
NOME
AUTO-ATRIBUIÇÃO
HETEROATRIBUIÇÃO
Abibatou
Pardo/ cor do bronze
Parda
Fama
Negra/ Preta
Branca
Ken
Branca
Branca
Mariama
Negra/ Preta
Branca
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Nota-se na tabela que há uma predominância pelo uso da categoria negra em
detrimento da categoria preto ou pardo definidas pelo IBGE, revelando uma apropriação do
termo utilizado pelo movimento negro e por boa parte das pesquisas que tratam do tema.
Além disso, um outro fenômeno perceptível é a opção das educadoras por identificarem-se
como negras, mesmo quando têm a aparência branca, como pode ser verificado nos
"conflitos" entre a auto-atribuição, na qual cada uma escolheu a categoria que lhe pareceu
mais adequada, e a hetero-atribuição, feita por esta pesquisadora, levando em conta apenas o
fenótipo.
Isso nos levou a pensar que as educadoras, seja porque estavam diante de uma
pesquisadora negra seja porque sabiam que a pesquisa tratava do tema, optaram por se
identificarem como negras buscando o pertencimento a esse grupo. Pertencimento esse
definido como o sentimento de uma origem comum que une os indivíduos. De acordo com
Ana Lúcia Amaral, pertencimento é quanto "os indivíduos pensam em si mesmos como
membros de uma coletividade na qual símbolos expressam valores, medos e aspirações. Esse
sentimento pode fazer destacar características culturais e raciais”.131
Essa opção não é realizada sem explicitar os conflitos neles presentes, oscilando ora
em definir-se pelas origens ora pelo fenótipo. A educadora Abibatou, ao ser indagada sobre
qual categoria pertence, fala dos avós e dos pais, sem deixar muito evidente a categoria de
pertencimento:
Minha origem é portuguesa, o negro meu é o marroquino. Do Marrocos, meu avô
veio de lá, são da cor do bronze, meu pai tinha a cor do bronze.(Professora Abibatou
- entrevista concedida em 22/09/05)
Ao ser indagada, novamente, para que se enquadre nas categorias disponibilizadas
pelo IBGE, preto, pardo, indígena, branco e asiático, ela novamente toma como referência
principal sua ascendência, e não a sua cor de pele.
O pardo, né. Porque meu pai era da cor do bronze. (Professora Abibatou - entrevista
concedida em 22/09/05)
Já a educadora Mariama procura utilizar-se das informações que o curso lhe trouxe
para estabelecer seu pertencimento racial. Isso é feito de modo confuso, porque, para
apresentar-se como negra, ela também busca sua ascendência, desconsiderando sua aparência.
131
AMARAL, Ana Lúcia. Dicionário de Direitos Humanos <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tikiindex.php?page=Pertencimento> Acesso em 31 out. 2006.
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Nesse caso, porém, há uma evidente contradição entre suas marcas (fenótipo) e a opção
escolhida, revelando uma certa dificuldade em definir o que seja negro ou branco e também
evidenciando que o conteúdo do curso não conseguiu explicitar para essa educadora como
chegar a uma definição de seu próprio pertencimento racial.
Eu me colocaria como negra porque aprendi no curso que tem três raças, o negro, o
indígena e o branco. O negro e o amarelo, dentro desse amarelo seriam os indígenas
e os orientais. E, de acordo com as pesquisas do curso lá, o negro seria a pessoa que,
embora tenha a pele clara, não possui os olhos azuis, nem... Não possui olhos azuis,
o cabelo claro, teria de ser a pessoa loira, branca, né? Eu teria de ter olhos claros,
cabelos claros e pele clara. E eu sou uma mistura, né? Como eu sou uma mistura,
embora meu cabelo seja liso, ele é escuro, meus olhos são escuros, a minha pele é
clara, mas eu não sou de... De origem clara. Minhas outras, meu pai, minha mãe, não
são claros, eu estaria no negro, dentro do negro ou dentro dessa outra amarela,
poderia ser. (Professora Mariama - entrevista concedida em 23/09/05)
Mariama expressa sua dificuldade em encontrar um lugar que lhe dê ao mesmo tempo
a garantia de ser negra e ter a pele clara, por isso radicaliza o conceito de ser branco - é
preciso ter olhos azuis, cabelos lisos e claros. Entretanto, sabe que algo está fora do lugar, por
isso, aventa a possibilidade de ficar entre os amarelos – mas branco, jamais.
A educadora Fama apresenta a mesma contradição: suas características físicas indicam
um pertencimento e ela reivindica outro. Ela tenta "fugir" da questão, argumentando que:
Eu nunca fui, para ser sincera com você, eu nunca fui entrevistada pelo IBGE. O
IBGE nunca foi à minha casa fazer esse tipo de entrevista, eu deixaria em branco por
conta de indefinição. Mas seu eu fosse escolher, eu acho que eu escolheria negra, eu
acho não, eu escolheria negra. (Professora Fama - entrevista concedida em 21/09/05)
Em outro momento da entrevista, a educadora ocupa outro espaço de pertencimento, o
da mulher branca discriminada porque namora um homem negro.
A minha família, eu não posso dizer para você que é 50% de negros, mas eu tenho
um namorado negro, então às vezes, quando você vai a determinado lugar, as
pessoas te olham, olham para ele, olham para você, falam, puxa uma mulher... Né?
Namorando um negro? Uma loira namorando um negro, mas nunca questionam,
quer dizer questionam sempre a loira com um negro, mas o negro com a negra, não.
(Professora Fama - entrevista concedida em 21/09/05)
É possível apreender desses discursos contraditórios que, embora as educadoras
apresentem características que as coloquem em lugares diferentes, quando tratamos do tema,
há uma busca por aproximar-se do negro, estabelecendo assim um vínculo, e não uma
interdição. Também evidencia que as categorias pertencimento e/ou identidade não são
estáticas, o sujeito mobiliza diferentes referências para construir sua identidade quando
necessário.
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Fica explicitado ainda que a questão de marca apontada por Oracy Nogueira (1955)132
para a constituição do pertencimento racial ainda é uma referência importante, mas não
prescinde da origem, argumento utilizado pelas educadoras.
Do grupo de entrevistadas, duas educadoras não apresentam esse processo conflitante
para considerar o seu pertencimento: a educadora Fatou se diz negra e é vista como negra, e a
educadora Ken, se diz branca e é considerada branca. Ambas possuem características
fenotípicas que demarcam com facilidade seus pertencimentos raciais, não abrindo, portanto,
possibilidades de pertencer a outros grupos.
O que parece ser novo, captado aqui, é a busca pouco organizada das três primeiras
educadoras em procurar o seu lugar de pertencimento entre os discriminados, e não o
contrário, mesmo com dificuldades para sustentar essa opção. Por outro lado, elas não
reapresentam essa mesma dificuldade para declarar a cor/raça de alunos ou colegas.
Nesse processo identificado nas intervenções das educadoras está dado exatamente o
contrário do que vem sendo identificado na construção da identidade negra, como dito por
Clóvis Moura (1988) ao comentar resultados do Censo de 1986, que registra 136 termos
utilizados pelos brasileiros para definir sua cor.
A identidade étnica do brasileiro é substituída por mitos retificados, usados pelos
próprios não-brancos e negros especialmente, que procuram esquecer e/ou substituir
a concreta realidade por uma enganadora magia cromática na qual o dominado se
refugia para aproximar-se simbolicamente, o mais possível, dos símbolos criados
pelo dominador. (MOURA, 1888, p.64).
O que se constata entre as educadoras é exatamente o contrário, o que podemos
atribuir, sem dúvida como um dos efeitos do curso. Segundo um dos depoimentos:
No primeiro dia do curso, eu achei que estava havendo uma valorização... Assim no
começo, no primeiro dia eu achei que o curso colocava o direito do negro, os negros
e os direitos. Por falta, talvez, de entendimento, achei que quem estava sendo racista
era o negro, e não o branco, a impressão que me passou é que o racista era o negro, e
não o branco. Porque ele que se sentia menos, tudo para ele, tudo em torno dele, ele
se sentia muito ofendido, eles se desvalorizavam. Tipo assim, se chamasse ele de
negro, ele se ofendia, dependendo da forma que você conversasse com ele, ele se
ofenderia. Por estar falando que ele era na verdade, não era negro, né, falava preto,
essas coisas assim, chamar ele de preto, ele se ofendia. E tudo isso, então, dava a
impressão de que ele era o preconceituoso, mas no decorrer do curso eu gostei,
porque depois eu vi que na verdade o intuito do curso era chamar a atenção para esse
tipo de preconceito. E o negro, na verdade ele, se sente ofendido, porque tudo para
132
Segundo Nogueira o racismo no Brasil configura-se num racismo de marca e não de origem como é em
outros países. No Brasil as marcas fenotípicas são indicadores do pertencimento racial dos sujeitos.
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ele é mais difícil, desde o início para ele foi mais difícil, ele está apenas lutando
pelos seus direitos, para ter direitos iguais.(Professora Mariama - entrevista
concedida em 23/09/05)
Essa escolha, por enfatizar apenas a questão no negro, se por um lado provoca adesões
do tipo que percebemos, por outro pode não produzir reflexões sobre as relações raciais de
forma mais ampla, impossibilitando uma reflexão aprofundada dos diferentes papéis no
processo de construção, sustentação ou desconstrução do racismo na escola. É necessário, a
nosso ver, considerar os dois pólos desse processo, negro e branco, pois problematizar as
relações é possibilitar a compreensão de que, se há racismo, há um racista, e nesse jogo há
grupos "herdeiros beneficiários e herdeiros expropriados".133
Essa necessidade de refletir sobre os pólos, branco ou negro, traz o risco de infligir
dores, constrangimentos e dificuldades durante uma atividade de formação, no entanto, notase uma disponibilidade por parte das educadoras brancas em compreender o lugar do Outro,
do discriminado. Por isso, a discussão sobre a branquitude poderia ter sido mais aprofundada,
ocupando um espaço específico dentre os conteúdos trabalhados no curso.
A branquitude ou branquidade é um conceito que problematiza a negação da
racialidade ou etnicidade do branco, naturalizando-o como padrão de humanidade: os outros é
que são grupos étnicos, culturais ou raciais. Para Maria Aparecida Silva Bento (2002, p.41),
"os estudos silenciam sobre o branco e não abordam a herança branca da escravidão nem
tampouco a interferência da branquitude como guardiã silenciosa de privilégios".
5.1.2. Ciclos de vida Profissional - o tempo como medida?
Talvez se eu tivesse ficado preocupada só com aquilo que eu estava fazendo, em dar
banho e levar para a sala, eu não teria passado para essa criança, porque com
certeza, a criança aprendeu que, não tinha como mudar a cor dele, que era a raça,
não era sujeira, era a raça, com certeza ela aprendeu. Mariama
A formação e o tempo de escolaridade pode ter sido um dos fatores decisivos nos
modos como as professores se apropriaram dos conteúdos disponibilizados pelo curso. De
acordo com os estudos de Michaël Huberman (1995), os professores vivenciam ciclos na sua
vida profissional, cujas características podem favorecer ou dificultar os processos de mudança
133
Maria Aparecida BENTO, 2002. p. 55
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de atitude, geralmente requisitadas nesses cursos. Conforme elaborado no depoimento de
Sena:
[Os professores] demonstravam desconhecimento em relação aos dados da
desigualdade racial no Brasil e se posicionavam contra as políticas afirmativas,
especificamente contra cotas para negros nos concursos públicos e nas
universidades. Conforme o curso ia se desenvolvendo os professores iam mudando
de opinião e de postura. O que os professores mais questionavam era acerca de como
desenvolver na prática as metodologias para combater o racismo ou para uma
educação não-racista. É claro que havia professores com posturas muito fechadas
que não mudaram nem de opinião e nem de postura e ainda tentavam desqualificar
todas as argumentações possíveis sobre o racismo no Brasil e era inevitável não
jogar a “culpa” no próprio negro, aflorando o preconceito internalizado de alguns
professores que não cediam nem diante de dados estatísticos incontestáveis.
(Professora Ana Sena - entrevista via e-mail em 24/10/06)
Diante da expectativa das ministrantes do curso, é pertinente verificar, utilizando os
ciclos definidos por Hubermam (1995), em quais as educadoras entrevistadas poderiam ser
circunscritas. Para o autor, a primeira fase desse ciclo relaciona-se à fase inicial da carreira, na
qual a maior ênfase dada pelos professores nesse período corresponde aos seus investimentos
na sobrevivência e na descoberta. É a fase de experimentar e explorar o exercício da
profissionalidade. A segunda fase, entre os quatro e seis anos, vem marcada pelo
comprometimento definitivo ou a estabilização na carreira. Nesse período, se destacam
sentimentos de independência e pertencimento ao grupo de profissionais.
A terceira fase é a da diversificação e ocorre por volta dos 7 aos 25 anos, sendo a fase
mais longa. Estaria marcada por uma afirmação das possibilidades individuais que os
profissionais conquistam no exercício de sua profissão, podendo esse processo ser atravessado
por uma atitude de segurança em si mesmo, provocada pelo domínio da rotina e por certa
estabilidade, ou pela possibilidade de crises e questionamentos dessas certezas adquiridas pela
rotina profissional. Por fim, a última fase está entre os 25 e 35 anos, quando a carreira,
próxima da aposentadoria, seria marcada pela serenidade e distanciamento afetivo ou pelo
conservadorismo ou ainda pela fase do desinvestimento, podendo ser sereno ou amargo.
A durabilidade da carreira de magistério no Brasil é diferente da realidade analisada
por Huberman (1995)134. Todavia se pode inferir pelos muitos trabalhos brasileiros e
134
No Brasil, após a última reforma da previdência social a aposentadoria de professores do ensino infantil,
fundamental e médio se dá aos 25 anos de contribuição e 55 anos de idade (mulheres). O benefício foi mantido
por ocasião da promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988, bem como pela Emenda
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portugueses135 que as situações são muito próximas das descritas por Huberman. Essas fases
correspondem não ao tempo/quantidade de anos trabalhados, mas ao tempo/processo, no qual
a profissionalidade se constitui. Sendo assim, olhemos para o quadro que se segue,
identificando os ciclos nos quais as educadoras participantes da pesquisa se encontram, de
acordo com essa perspectiva apresentada.
Quadro 2 - Formação e tempo de atuação das educadoras de Campo Grande - MS
NOME
Abibatou
FORMAÇÃO/ESCOLARIDADE
TEMPO DE ATUAÇÃO
NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Magistério, curso de habilitação em
educação infantil, cursava pedagogia.
(EF e EI)
Pedagogia, cursava especialização em
educação lúdica.
12 anos
Ken
Magistério, licenciatura em história,
especialização em educação lúdica.
5 anos
Mariama
Magistério em nível médio, cursava 7º.
semestre de letras (inglês).
5 anos
Fatou
Magistério e pedagogia.
13 anos
Fama
5 anos
Preponderam, portanto, as educadoras com cinco anos de carreira. Numa aplicação
mais livre das fases de Huberman (1995), elas estariam na transição entre a primeira e a
segunda fase, isto é, deixando a fase de se concentrarem mais em si mesmas para uma fase na
qual a estabilidade na profissão conta mais. Estariam propensas a pensarem nos desafios
pedagógicos da profissão. O que, talvez, seja um dos motivos que explicam a presença
majoritária dessas professoras nos cursos de formação para o combate ao racismo, já que a
inscrição foi um convite, e não uma imposição (ao contrário da aplicação) da Secretaria, como
relata Sena:
A participação no curso era de forma voluntária, nenhum professor era obrigado a
fazê-lo, os que se propunham a participar demonstravam interesse e colocavam suas
dúvidas e dificuldades em abordar o tema com seus alunos. (Professora Ana Sena entrevista via e-mail em 24/10/06)
O fato de as professoras irem ao curso respondendo a um convite as coloca numa
Constitucional n. 20 de 15 de dezembro de 1998, tanto aos servidores públicos, quanto aos segurados do Regime
Geral de Previdência.
135
Como, por exemplo, dos estudos feitos por Rosane Cardoso ARAÚJO (2006); Maria Helena CAVACO
(1990) e Maria Odete Emydio SILVA (2000)
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posição mais tranqüila na recepção dos conteúdos. Porém isso não impediu os conflitos e as
dificuldades para as ministrantes trabalharem, como já revelado no depoimento de Sena. E
também, como registra a professora Cesário, para quem "a maioria dos professores dizia que
na escola onde trabalham não existe racismo e preconceito".
Essa dificuldade em reconhecer a existência do racismo no Brasil, mesmo por
professores que voluntariamente buscaram o curso, sugere uma dificuldade em romper com a
nova lógica da democracia racial. Se antes era um despróposito falar que no Brasil existia
racismo, atualmente, se admite esse fato, porém o racismo nunca está presente no ambiente da
pessoa questionada. Numa pesquisa de grande abrangência sobre preconceito no Brasil,
realizada pelo jornal “Folha de São Paulo” e pelo Instituto Datafolha, em 1995, 89% dos
brasileiros concordaram que no Brasil havia racismo, mas só 10% admitiam ter algum tipo de
manifestação desse fenômeno.
É nesse movimento contraditório que se encontram as nossas entrevistadas: buscam
estudar questões importantes do ponto de vista pedagógico que são relativos ao racismo, mas
nem todas conseguem admitir que as manifestações racistas estão no seu local de trabalho.
Isso ocorreu de modo mais evidente com duas educadoras. Ao serem indagadas sobre a
existência de situações de discriminação ou de outro tipo de manifestação do preconceito em
sala, elas disseram:
Não. É incrível, é incrível porque... Como eu te falei, entre eles não existe aquela
coisa: - ah, mas você é negro! - ah, você é branco! ... Não, por mais que você queira
enxergar você não acha, você não vê. (Professora Fama - entrevista concedida em
21/09/05)
Às vezes, as pessoas me questionam por que é que eu namoro um negro. Ah, porque
o negro é bonito, porque o negro é lindo, porque o negro é tudo de bom, não é só
pelas características físicas dele, o que diferencia a gente das outras pessoas é o que
a gente tem por dentro, por fora todo mundo é igual.(Professora Fama - entrevista
concedida em 21/09/05)
Fama diz que nunca percebeu nada entre as crianças, e, às vezes, até se questiona
sobre isso, mas, quando sai do plano da escola para dimensões de sua vida pessoal, ela
consegue apresentar de modo preciso situações de discriminação e preconceito.
Já para a educadora Ken, a dificuldade em perceber que a escola na qual atua é espaço
no qual o racismo e o preconceito raciais se manifestam é ainda maior. Primeiro, ela diz que
nunca passou por situações em que as crianças com as quais trabalha tenham manifestado
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algum tipo de preconceito ou uma criança negra tenha apresentado algo em relação a isso.
Eu nunca passei por isso, mas, seu eu tivesse essa situação, por exemplo, uma
criança se sentido rejeitada, eu procuraria conversar com ela. Levantar a auto-estima
dela, trabalhar. Eu penso que primeiramente trabalhar a auto-estima dela.
(Professora Ken - entrevista concedida em 21/09/05)
Depois ela relata um acontecimento,
Eu acho que eu aprendi até com algumas crianças, no caso as minhas pequenas, às
vezes no início eles tinham... O cabelo, ele tinham mania de ficar pegando no meu
cabelo, penteando. Eu tinha o cabelo comprido, Um dia uma criança chegou e falou
assim para mim: - Eu queria um cabelo igual ao seu. Então, eu acho que eu aprendi a
lidar com ela, mostrar pra ela que o dela também por ser diferente do meu, também
era bonito, não tinha de ser lisinho igual ao meu para ser bonitinho. Então eu acho
que aquilo lá eu soube lidar com ela, falar com ela, sem problema nenhum para ela,
estava lidando para trabalhar a auto-estima dela. (Professora Ken - entrevista
concedida em 21/09/05)
Mesmo com essa atitude de desvalorização apresentada pela criança negra, a
educadora, durante toda a entrevista, fez questão de afirmar a ausência de situações nas quais
crianças negras reagiam de forma diferenciada das crianças brancas. A reafirmação da
ausência de conflitos raciais entre as crianças aparentemente é a sua salvaguarda para
justificar a fragilidade de sua prática com o tema. Ela sustenta a idéia de igualdade, mas seu
relato comprova que percebe a desigualdade entre as crianças. Só que a estratégia definida foi
a do disfarce, da desqualificação dessas manifestações como racismo.
Esse procedimento a impede de estabelecer estratégias bem definidas de trabalho com
o tema e a faz titubear sempre que questionada sobre ações concretas que desenvolve. A
educadora, apesar de ter feito o curso, não aceitou que o caminho para evitar o racismo é
discuti-lo com seus alunos em seu conjunto. Ela reconhece a importância de abordar o tema,
porém confere a ele o tratamento de "currículo de turistas". Não poderíamos lhe atribuir
desconhecimento sobre a situação do negro na sociedade brasileira, pois trabalha há cinco
anos numa escola que fica dentro de uma comunidade negra e pôde ver bem perto como vive
a maioria dessa população.
O fato de as educadoras negarem a existência de situações discriminatórias pode
também ser parte de um ambiente contraditório do qual fazem parte. Vale a pena situá-lo para
que conheçamos o contexto no qual essas educadoras trabalham.
A construção do Cei onde trabalham Ken e Fama resulta de ações reivindicatórias do
movimento negro de Mato Grosso do Sul. No momento da instalação dessas unidades (creche
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e escola), a diretora, da creche no momento da pesquisa, foi indicada pelo movimento negro
para assumir a direção da escola, que tem uma história bem particular.
O terreno foi doado por uma mulher negra da classe média alta da cidade de Campo
Grande/MS. Há vários anos, a comunidade almejava a construção de uma escola. O governo
estadual anterior, do PMDB, deu início à construção de uma escola nesse terreno, mas a obra
ficou parada por dois anos. Quando o governo do PT iniciou a sua gestão, a construção da
escola foi retomada. Para os responsáveis pela Política de Combate ao Racismo da Secretaria,
era uma ação simbólica que indicaria seu compromisso com a temática. Por isso, exercia
internamente uma pressão para que essa obra fosse priorizada.
A decisão da Secretaria de dar continuidade às obras instala na comunidade uma
disputa política. Alguns moradores ligados ao governo anterior não querem que o Estado
continue a construção da escola e pedem que ela passe para a responsabilidade do município,
naquele momento administrado pelo prefeito André Puccinelli, do PMDB. Esses moradores
enviaram abaixo-assinado, alegando que a construção era uma parceira entre Estado e
município.
Por outro lado, os moradores da comunidade ligados ao PT e os técnicos da Secretaria
não admitem tal possibilidade. Esse impasse demanda que Secretaria realize um estudo
aprofundado sobre a obra e suas responsabilidades, concluindo ao final que a obra é ação
exclusiva do Estado, retomando a construção.
Esse histórico ajuda a compreender o modo contraditório apresentado pelas
educadoras para tratar do tema das relações raciais. Mais que as outras entrevistadas, elas
procuram reafirmar a inexistência de conflitos raciais, nos levando a inferir que, por
conhecerem as disputas políticas da comunidade e também por saberem que o movimento
negro tem uma ação profunda naquela comunidade, optam pela negação de conflitos raciais
para, quem sabe, "se protegerem". As declarações da educadora Ken são emblemáticas desse
processo contraditório que elas vivenciam.
Essa diferença que o povo diz que existe, e eu não vejo que existe, assim na minha
concepção não vejo diferença, quanto à pessoa, aprendi muito aqui, cresci muito
profissionalmente. (Professora Ken - entrevista concedida em 21/09/05)
O depoimento da educadora denota uma preocupação com a sua imagem e com a sua
sobrevivência na comunidade, de modo que fica difícil para ela produzir um discurso isento
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de todas as peculiaridades do espaço onde atua. Se considerarmos o estágio em que ela se
encontra em seu ciclo profissional, é compreensível o modo como se situa em relação ao
tema.
Nesse grupo de educadoras que se encontram na transição entre a sobrevivência, o
comprometimento efetivo e a estabilização, apenas Mariama parece não se orientar pela
sobrevivência. Ela apresenta um olhar mais crítico e coerente sobre o tema, mais próximo dos
sentimentos de comprometimento efetivo e de estabilização. Ousou citar várias situações nas
quais identifica conflitos de ordem racial sem medo de que possam elas colocar em
julgamento sua capacidade profissional.
Embora seja educação infantil e a gente ache que não exista preconceito, ele existe,
mas não que a criança em si seja preconceituosa. Ela reproduz as atitudes dos
adultos. Então, era assim: às vezes, na hora das rodas: ciranda, cirandinha; atirei o
pau no gato. Tinha criança branca que não aceitava pegar na mão de criança negra.
Isso com um, dois [anos]... Lá no berçário! Você não sabe o porquê. Parece que
assim... Ou negra ou escurinha, elas sentem dificuldades. Como também tem criança
que se apega demais [à outra], uma criança negra, por exemplo, você vê muito, uma
criança negra, se apega muito à criança de pele clara. Não sei se é porque chama
muita a atenção dela. Tinha criança que não aceitava. (Professora Mariama entrevista concedida em 23/09/05. Grifos nossos)
A percepção de Mariama a aproxima das educadoras Abibatou e Fatou, que, de acordo
com Huberman (1995), estariam na próxima fase do ciclo profissional. Isto é, com 12 e 13
anos, respectivamente, tempo que representa a metade da carreira e as situam no ciclo de vida
profissional no qual a diversificação e a experimentação são os sentimentos principais. Tal
fato lhes dá uma certa maturidade para olhar o universo escolar, com suas positividades e
negatividades, sem que isso abale as concepções de si mesmas como profissionais. Segundo a
educadora Abibatou:
Em 1984. Foi quando eu comecei a trabalhar, com o tema de racismo, lá no Arnaldo.
E você até nem podia falar muito, porque que era uma coisa assim... Meio que todo
mundo achava que você estava ficando louca, então, você não podia falar. Depois
passaram os anos, teve esse curso de capacitação, eu vim pra cá, foi quando eu fui
fazer o projeto. Dai já estava assim... Aqui eu já encontrei uma outra [situação].
(Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
E da educadora Fatou:
Na época eu fiquei entusiasmadíssima com o tema, me encontrei, achei a brecha
para trabalhar. Porque toda vez que há uma proposta de trabalhar com as questões
das diferenças, o que mais se ouve na sua experiência é: “Cuidado, é um assunto
muito polêmico. Política, religião, futebol e discriminação racial não se discutem”.
Então é um assunto muito polêmico, mas, como a Secretaria estava endossando,
estava esperando um resultado daquilo, a aplicabilidade foi muito tranqüila, daí
consegui transitar no tema, consegui envolver duas turmas na instituição, consegui
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fazer articulação com pessoas envolvidas com a questão racial com pessoas daqui de
Campo Grande, foi muito legal. (Professora Fatou - entrevista concedida em
21/09/05)
Essas diferenças encontradas nos depoimentos das três educadoras, Mariama,
Abibatou e Fatou, estão marcadas não apenas pela experiência que adquiriram no curso mas
também as que vivenciaram anteriormente a ele, mediante a participação em palestras
realizadas em grupos de igreja, por meio da família que discutia essa questão ou por sua
atuação como educadora.
Com isso, podemos inferir que os cursos de formação com esse enfoque possuem um
papel fundamental no desenvolvimento de atitudes e de compreensão do tema, porém não são
suficientes para influenciar de modo decisivo os modos de pensar e agir das educadoras.
Conectam-se vivamente a esses depoimentos as três dimensões dos saberes propostos
por Thierren (2002). Os saberes disciplinares e curriculares, adquiridos por meio da formação
pedagógica, nas instituições legalmente destinadas a isso; os saberes advindos da experiência
profissional, construídos no exercício da profissão; e os saberes da cultura. Essas conexões
constatadas entre os ciclos de vida das educadoras e os modos como elas articulam os
sentimentos e atitudes, articuladas aos seus saberes nas três dimensões, nos levam a analisar
nas entrevistas essa outra subcategoria encontrada, os seus saberes experienciais.
5.1.3. Experiência de Vida - do particular ao social
Até por eu ser negra, família de negros, papai negro, mamãe negra e irmãos negros,
esse assunto sempre foi discutido em nível familiar, no nosso núcleo familiar e eu já
tinha algumas leituras anteriores sobre a questão racial no Brasil, como se deu como,
como é que isso aparece na escola, até porque eu vivi, ninguém precisou me dizer,
eu vivi algumas questões de preconceito racial dentro da escola. Fatou
Ao discutirmos as experiências de vida, temos duas intenções, a primeira se refere ao
nosso posicionamento sobre ela e a segunda pretende apresentar experiências diferenciadas
que as educadoras destacam como importantes em relação ao tema. Procederemos a uma
análise sobre como essas diferentes experiências anteriores ao curso se conectam aos
conhecimentos nele trabalhados e produzem um modo particular em cada uma das educadoras
no desenvolvimento de sua prática pedagógica.
Todos nós, professores ou não, temos uma vivência com o tema das relações raciais,
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seja pela verificação concreta de sua existência na realidade, seja pela tentativa de sua
negação. Isso se deve ao fato de que o racismo brasileiro não ser problematizado nos mesmos
moldes dos Estados Unidos da América (EUA), ou da África do Sul, nos quais a racialização
dessas sociedades foram basicamente o que as definiram, sobretudo ao longo do século 20,
quando houve o embate contra as leis segregacionistas implantadas nos dois países.
No Brasil, essa presença se dá mais principalmente pela tentativa da negação,
fundamentada, em parte no mito jurídico de que, a rigor, todos são iguais perante a lei. É
como se fosse uma presença ausente, algo que não gostaríamos que existisse, mas sua
concretude não nos permite ignorá-la, então, a negamos o tempo todo. É nesse embate de
negação e explicitação que as vivências das educadoras ganham importância.
Das cinco entrevistadas, duas trazem em suas histórias vivências do racismo de modo
mais próximo. Fatou se lembra de momentos na escola, um na infância e outro na
adolescência, nos quais considerou que o fato de ser negra (como ela mesma se classifica) foi
preponderante para explicar os processos de humilhação e desrespeito pelos quais passou.
Na quarta série, eu lembro que estávamos todos sentados enfileirados. E um
amiguinho que sentava na minha frente tinha feito... A professora estava de costas
no quadro, e ele tinha provocado um outro, que reclamou para a professora:
"Professora, alguém bateu a régua em mim". E a professora de imediato chamou a
minha atenção, literalmente. E eu sempre fui muito tímida. Agora, eu não sei se por
característica pessoal ou porque a própria condição racial me fez tímida mesmo. E
de pronto a professora se virou e chamou a minha atenção. Essa é a que eu me
lembro mais fortemente. (Depoimento 1- Professora Fatou - entrevista concedida em
21/09/05)
No meu magistério, eu lembro que nós estudávamos em uma escola que locava uma
escola privada maravilhosa com piscina, quadras cobertas, enfim. E eu tinha uma
amiga, Adriana, com quem, não sei por qual motivo, ficava lá no horário de almoço.
Estudávamos em período integral e em um horário de almoço ela tirou a roupa e
pulou na piscina. Coisas de adolescente. E...Engraçado, o guardinha viu se
aproximou e eu falava para ele: "Dá licença, ela vai sair, vai pôr roupa, o senhor não
precisa ficar olhando ela nua". Enfim, quando a direção tomou ciência do fato, eu
era a ameaçada de ser expulsa da escola, e não a Adriana, que pulou na piscina.
Disseram que eu agredi o vigia. Não foi o ato de pular na piscina... E realmente só
não deu essa expulsão porque a mamãe esteve na escola, falando... E mamãe sempre
foi muito clara. "Vai expulsar porque é negra? Como é que é isso?" Só por isso eu
não fui expulsa, o único motivo. Agradeço à minha a mãe ter concluído o
magistério. Eu sempre fui muito instigada a estar trabalhando a questão da diferença
na escola, porém nem sempre fui respaldada por onde eu passei, pela Direção, pelas
gestoras, enfim. (Professora Fatou - entrevista concedida em 21/09/05)
As experiências são elementos importantes no exercício profissional, porque
colaboram na formação do docente. As memórias apresentadas pela professora Fatou sobre
sua experiência negativa talvez sejam elucidativas sobre o modo como ela disponibiliza os
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conteúdos apreendidos no curso para desenvolvê-los na sua prática pedagógica. Essas
recordações se coadunam com os aspectos que Nóvoa tem enfatizado como importantes no
processo de formação do professor. Para ele, "estar em formação implica um investimento
pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os seus percursos e os projetos próprios, com vista
à construção de uma identidade que também é profissional" (NÓVOA, 2002, p.23). O autor
ainda indica que "na verdade, a teoria fornece-nos indicadores e grelhas de leitura, mas o que
o adulto retém como saber de referência está ligado à sua experiência e à sua identidade".136
Isso não quer dizer que somente educadoras negras vivenciam experiências que
facilitem as apreensões sobre cursos dessa natureza. A educadora Abibatou, que se classificou
como parda, mobiliza sua experiência como educadora para explicar como as experiências pessoais e profissionais - se entrecruzam nos espaços da escola. Os professores, como Nóvoa
(2002) tem nos indicado, são capazes de transformar conhecimentos e experiências de âmbito
individual num processo de desenvolvimento profissional.
Eu sempre trabalhei [contra o racismo] na minha sala. Eu sempre trabalhei porque
em Centro da Educação Infantil tem uma desigualdade muito grande entre as
crianças. E onde eu trabalhava, [os alunos] eram filhos de funcionários públicos que
trabalhavam no Tribunal de Contas, no Tribunal de Justiça e [também] crianças de
onde? Do Jardim Noroeste, do Dalva de Oliveira e do Tiradentes. E o que me
despertou, quando eu comecei a trabalhar, lá no Arnaldo, com o tema do racismo foi
quando, o meu aluno... O pai era branco...Branco...A mãe era negra. Ela tinha uma
filha loira, loira e tinha um filho negro, e o pai rejeitava. Falava que não era filho
dele. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
No depoimento da educadora, percebe-se seu empenho em trabalhar a educação das
relações étnico-raciais antes do curso de formação específica. Ao identificar que um de seus
alunos é rejeitado pelo pai por conta do seu pertencimento racial, mobiliza-se para
intervenções no âmbito da ação pedagógica. E a questão da mestiçagem137 estará sempre
presente em seu depoimento como a questão que mais lhe chama a atenção.
Para Abibatou, a questão da mestiçagem como processo de valorização irá constituirse na abordagem privilegiada sobre o tema na escola. Certamente, parte do movimento negro
condenaria esse tipo de abordagem, considerando-a perpetuadora da discriminação racial.
136
Ibidem
137
Compreendemos mestiçagem a partir da definição de Munanga (2004, p.21-22). "Neste trabalho,
utilizaremos o conceito de 'mestiçagem' para designar a generalidade de todos os casos de cruzamento ou
miscigenação entre populações biologicamente diferentes, colocando o enfoque biológico enquanto tal, mas sim
sobre os fatos sociais, psicológicos, econômicos e políticos-ideológicos decorrentes desse fenômeno biológico
inerente à história evolutiva da humanidade."
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Todavia queremos relativizar essa perspectiva, não para defendê-la como a abordagem mais
adequada, mas para compreender como as experiências e as memórias dos profissionais se
incorporam aos processos de produção das suas práticas como elementos fundamentais para
pensarmos os conteúdos dos cursos de formação de professores.
Nas descrições de Abibatou, fica evidente como sua abordagem é marcada pela
questão da miscigenação mesmo após o curso, pois a questão que mais a toca é o desprezo de
famílias mestiças em relação aos seus filhos negros:
As crianças confeccionaram tudo de jornal e pintaram. Aí, colocamos o branco,
negro e o índio e a mistura do branco que casou com o negro que teve o filhinho
daquela cor [...]. O que elas falavam? Elas ficavam felizes. Ai eu peguei e falei: "Oh,
às vezes, o pai é negro, e a mãe é branca, nasce um filho que não é nem negro nem
branco, mas é filhinho". E pode nascer um irmãozinho bem negro. Aí eles falavam
assim: “Ah, o meu avô é negro. A minha avó é branca”. Eles começavam a
identificar a sua família. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
É importante compreendermos o contexto no qual atua a professora. Ela se esforça
para dar às suas crianças a possibilidade de construir uma identidade racial afirmativa, como
podemos verificar quando se refere às falas das crianças. Não nos pareceu que sua abordagem
da mestiçagem vise dar continuidade ao ideal de branqueamento físico ou ideológico,
largamente difundido na sociedade brasileira.138 Ao contrário, nos parece que seu objetivo
principal é garantir ao mestiço seu espaço dentro do ambiente escolar sem que com isso haja a
idéia de inferioridade ou de hierarquia racial, como podemos ver em outra parte de seu
depoimento:
Eu falo muito das famílias, o pai é negro, a mãe que é branca. Eu fiz bonecas negras.
A criança montava a sua família, pegava um pai branco, uma mãe negra, ele que não
era nem negro nem branco. Ele se identificava com aquela família, não sentia
vergonha. Teve um menino que me falou: "Professora, o meu pai é da cor da noite!"
Com alegria, ele não tinha mais vergonha. (Professora Abibatou - entrevista
concedida em 22/09/05)
Ao lado dessa escolha evidenciada pela educadora durante toda a entrevista, também
foi possível apreender que ela conhece o lugar no qual se situa a discussão da mestiçagem e
apresenta aonde quer chegar ao abordar o tema.
É assim como nós. Tem a nossa cor... Mas o pai é branco, aí ele olha para o filho e
acha que ele é branco. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
Hoje eu só uso a palavra racismo, dentro dela estão todos os itens. Eu gosto dos
138
O embranquecimento como categoria sociológica relaciona-se com a idéia de que por meio da miscigenação
entre brancos e negros a sociedade brasileira poderia um dia se constituir por uma população na qual não se
reconheceria a herança negra nem física e nem cultural. Para mais detalhes ler D’ADESKY, Jacques. Pluralismo
étnico e multiculturalismo: racismo e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
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poetas negros. E mostro para as crianças, olha são poetas negros que escreveram
essas coisas tão bonitas...(Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
A eloqüência e o compromisso que emanam do depoimento da educadora não querem
dizer que sua escolha tenha sido acertada. O conceito de mestiçagem e suas decorrências na
instauração do racismo brasileiro é uma questão importante a ser refletida. Por mais que o
depoimento da educadora revele que não utiliza a mestiçagem para defender a diluição da
população negra, seria interessante se, ao trabalhar com as crianças o tema da identidade,
usasse outros elementos. Porém voltamos a enfatizar que é compreensível sua escolha, na
medida em que conhecemos sua história e suas experiências. O trabalho realizado por
Abibatou configura-se numa luta autêntica de superação do racismo.
Outra experiência bem significativa é a da educadora Mariama. Sua iniciação na
discussão sobre relações raciais dá-se em atividades da Igreja Católica. Quando relata seu
conhecimento sobre o tema destaca que na igreja tinha palestras com essa abordagem. Isso
teve grande importância para ela, pois é algo lembrado em vários momentos da entrevista.
Por outro lado, temos as duas educadoras que atuam na comunidade negra, sem
nenhuma discussão anterior sobre o tema. Elas não reconhecem suas experiências no âmbito
familiar nem nas relações sociais como locais de aprendizagem sobre o assunto. A educadora
Ken diz que tudo que aprendeu foi dentro da comunidade. E a educadora Fama afirma que sua
primeira discussão com o tema ocorreu no curso.
O reconhecimento de experiências anteriores das educadoras Mariama, Fatou e
Abibatou lhes dá um diferencial positivo na apropriação dos conteúdos trabalhados. Elas
parecem mais seguras do trabalho realizado e ao avaliar o curso de formação. Inversamente,
Ken e Fama titubeiam para falar das práticas e dos modos como o curso lhes ajudou na ação
com as crianças.
6. Ações Formadoras
Você descobre nesses encontros os questionamentos das pessoas, coisas que elas não
têm coragem de questionar, mas, quando a gente se depara dentro de um encontro,
as pessoas tomam coragem para perguntar e, às vezes, aquilo que ela ouve, é o que
ela precisava ouvir para que possa tirar de dentro dela como vai lidar com esse tipo
de coisa. Abibatou
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A categoria Ações Formadoras refere-se ao curso propriamente dito, mas também
procura abranger suas decorrências em outros âmbitos. O curso do qual essas educadoras
participaram possuía como objetivo "contribuir para o conhecimento e a valorização da
diversidade étnico-racial bem como para a superação das desigualdades raciais [e produzir
uma] intervenção consciente e efetiva no processo de reprodução do racismo no ambiente
escolar".139 Havia, portanto, a proposta de possibilitar a compreensão teórica da construção
histórica da discriminação racial e estimular as educadoras para elaborarem modos de
intervenção pedagógica.
De acordo com Santomé (1998), é necessário, para realizar uma política educacional
antidiscriminatória, ir além de lições ou unidades didáticas. Julgamos que esse “ir além”
sejam as condições apresentadas pelos cursos de formação para envolver os professores e
possibilitar-lhes que vençam as dificuldades iniciais de constrangimento ou dor ao discutirem
o assunto. Tarefa difícil de ser concretizada. De acordo com a identificação das experiências e
em particular pelas análises dos cursos aqui destacados, para atingir essa condição, os
professores necessitam de outros investimentos, e a própria estrutura curricular do curso
precisa incorporar outras linguagens, além de leituras de textos acadêmicos.
Cynthia Pereira de Sousa et al. (2006), ao explicitar a opção metodológica de um curso
para professores da rede municipal de São Paulo, cujo tema foi A Diversidade e o Trabalho
Escolar, coordenado por professoras da USP, indica a importância de incluir várias
linguagens:
O conhecimento teórico das questões não seria suficiente para permitir aos
professores implementar o trabalho com esses temas em sala de aula e foi por essa
razão que se investiu na sensibilização dos docentes, utilizando a ampliação do
relacionamento com diversas expressões culturais (filmes, músicas, livros, artes
plásticas, etc). (SOUSA, et al, 2006, p.7)
Organizamos a análise da categoria Ações Formadoras a partir de três momentos. O
primeiro compreende algumas metodologias utilizadas pelas ministrantes. O segundo trata dos
conteúdos trabalhados, e o terceiro reflete sobre as atitudes das professoras para além do
curso. O objetivo é delinear o que as professoras destacaram em relação a esses aspectos.
139
Roteiro de registro de experiência da SED/MS, Anexo 16.
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6.1. Metodologias em uso, formação em curso.
Um aspecto importante de um curso de formação são as estratégias utilizadas pelos
ministrantes ao desenvolver o tema pretendido. No curso estudado, as educadoras são
unânimes em responder que gostaram da maneira como os conteúdos foram trabalhados.
Consideramos que o curso utilizou acentuadamente a leitura de textos acadêmicos,
carecendo da incorporação de outras linguagens. A despeito desse modo mais tradicional de
trabalho, as educadoras avaliaram positivamente a metodologia do curso, destacando as
“discussões provocantes”, o “estímulo à participação” e a “troca de experiências” como
estratégias de sucesso. Ainda que bem avaliada a metodologia do curso, defendemos que os
processos de formação de professores e em especial com temas desta ordem devem utilizar
múltiplas linguagens, tais como filmes, literatura, música, dança, artes plásticas e fotografia.
O tema das relações raciais atinge o ser humano em diferentes aspectos, mobiliza os
conhecimentos adquiridos pelos mais vários meios de modo consciente ou não. Por isso, o
diálogo deve incorporar os sentidos. O tato, por exemplo. Desde muito cedo, se aprende a
relacionar a cor preta e a raça negra à sujeira. Tal associação induz as crianças a evitar o
contato com o corpo negro nos relacionamentos cotidianos. É habitual nas escolas que
crianças negras sejam evitadas por crianças brancas. Não querem pegar na mão na hora das
brincadeiras de roda, não querem dançar quadrilha nas festas juninas, enfim, não querem tocar
o corpo negro.
Por meio da visão aprendemos o que é belo, o branco, o "bebê Johnson" brasileiro. A
brancura é representada e absorvida pela visão das mais variadas imagens ao nosso dispor
como sinônimo de pureza, de paz, de algo a ser alcançado, desejado. O imaginário brasileiro
valoriza a imagem, seja na televisão, nos panfletos, ou nos livros didáticos. Traz uma
mensagem direta "seja branco", o "branco é bom", com a visibilidade quase sempre negativa
do negro.
A questão da representatividade do negro e do branco no livro didático é uma questão
de fundamental importância, pois se colocam nas mãos de crianças e jovens livros que nos
acostumam com uma representação dos lugares que podem ser ocupados por brancos, negros
e indígenas, disseminando uma informação na qual os dois últimos grupos estão sempre
subalternizados. Há muito essa questão tem sido posta por pesquisadores, como Dante
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Moreira Leite (1950), que constata, ao analisar livros voltados para o primário que, a imagem
é sempre de um ser inferiorizado.
Outro trabalho importante para as discussões dessa área foi realizado por Regina Pahin
Pinto (1981), que indica alguns parâmetros de análise para os livros didáticos, postulando que
os professores rejeitem os livros sem personagens negros e que tenham somente o branco
como padrão. Marca definitivamente essa área de pesquisa o trabalho de Ana Célia da Silva
(1988), que identifica negros assemelhados a animais e imagens descontextualizadas de
pessoas negras em funções subalternas. Por fim, um dos trabalhos mais atuais sobre o tema é
de Paulo Vinicíus Baptista da Silva (2005). Ele investiga as relações raciais em livros
didáticos de língua portuguesa, verificando que os livros continuam produzindo e veiculando
um discurso racista.
Essa permanência não quer dizer que nada tenha se modificado, é perceptível a
crescente presença positiva, embora ainda pequena, da população negra em várias peças
publicitárias.
Nesse sentido, consideramos importante que os cursos de formação de professores de
combate ao racismo discutam o processo de construção das imagens na sociedade e
possibilitem aos professores refletir sobre as imagens que recebem e as que disponibilizam
aos seus alunos. Esse tema foi abordado no curso, mas poderia ter incluído, além das
discussões e leituras, recursos como filmes, peças publicitárias e apreciação de obras de arte,
já que as educadoras vivenciam a questão da construção da imagem e seus valores no seu diaa-dia, como revela Fatou:
Eu lembro que uma criança falou assim: "Profe, eu até gosto que você é negra, mas
eu não gosto do seu cabelo". E aí eu questionei a criança: "Mas por que você não
gosta do meu cabelo? "Eu nunca vi um cabelo igual o seu na revista, nem na
televisão!". (Professora Fatou - entrevista concedida em 21/09/05)
Quem lida com crianças de cinco anos sabe que elas são capazes de observações desse
tipo. A criança branca está do mesmo modo sendo colocada a pensar sobre o tema e a tirar
suas conclusões. Ela portadora, da brancura, “até gosta que a professora seja negra”. Ou seja,
ela até aceita esse dado. Mas uma professora ter um cabelo daqueles? Que nem aparece na
televisão que é território das coisas bonitas, postas para serem desejadas? Isso já era demais.
Assim como, de forma inversa, a criança negra rejeita seu cabelo e a cor da sua pele, entre
outros atributos.
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O diálogo permitiu que Fatou refletisse sobre sua prática para redimensioná-la.
Era uma criança branca. E a criança negra fala assim: "É mesmo, eu não gosto do
meu cabelo". Então, assim, você percebe as referências que a criança tem e que ela
vai trazendo e que, se não tivesse sido questionada, talvez não teria dito. Depois de
questionada e depois desse elemento que ela me ofereceu, é claro que eu passei a
selecionar muito melhor o que eu estava levando para a sala. Porque na verdade eu
também era co-agente daquele acesso à questão da comunicação, porque eu levava
as revistas, levava os livros, também deixava que eles vissem programa de TV.
Então, eu me coloquei também como autora naquele processo de formação da
criança, eu também não estou dando oportunidades àquela criança para que ela veja
pessoas negras com cabelo de trança, cabelo sem trança, cabelos mais crespos.
(Professora Fatou - entrevista concedida em 21/09/05).
Além da metodologia, nos interessava saber que tipo de conteúdo o professor elegia
como importante. Apesar de termos o conteúdo programático, foi muito frutífero verificar
quais conteúdos as educadoras priorizavam, pois cremos que as experiências anteriores ao
curso foram peças elucidativas das escolhas de abordagem das educadoras.
Daqui para frente a análise se afunilará até chegarmos às práticas pedagógicas
desenvolvidas com as crianças, as quais permitem compreender a forma como se deu a
apropriação do curso. Antes, porém, são necessárias a identificação das metodologias
utilizadas no curso e as destacadas pelas educadoras.
6.2. Conteúdos do curso: o proposto e o apreendido
Para tratarmos dos conteúdos apreendidos pelas educadoras, foi importante, ainda que
pontualmente, examinar documentos institucionais que tratam da formação de professores.
Empenhamo-nos em observar se os conteúdos previstos no curso e os lembrados pelas
educadoras encontravam-se, de algum modo, em consonância com as bases legais. O que nos
interessa é verificar se os documentos que tratam da formação de professores orientam o
trabalho com as relações raciais e como o curso em análise incorpora tais postulações.
Na leitura dos documentos, buscou-se identificar referências sobre a questão das
relações raciais e como essas poderiam indicar conteúdos a serem trabalhados em eventuais
cursos com esse enfoque. Apesar de o movimento negro não ter documentos nacionais únicos
sobre o tema, possui uma produção significativa de indicativos sobre os aspectos que devem
ser abordados em cursos dessa natureza, assim como há iniciativas de formulação de
propostas pedagógicas para subsidiar esse tipo de ação. Também constatamos que, apesar
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dessas iniciativas e de uma certa similaridade de conteúdos nas iniciativas encontradas pelo
Brasil, ainda falta uma pedagogia que oriente essas experiências, reconhecida como tal por
seus protagonistas - o movimento negro - com abrangência nacional e legitimada pelas
instituições que possuem a função da formação de professores. Não queremos com isso
defender ou propor um único modo de atuação, mas partimos do pressuposto que processos
desse tipo precisam de diretrizes.
Os documentos que elegemos como referências foram: Referenciais Para Formação
de Professores, (MEC,1999)140; ProInfantil - Programa de Formação Inicial para professores
em exercício na educação Infantil, (MEC, 2005)141; as Diretrizes Curriculares Nacionais para
o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura, (Resolução CNE/CP 1/2006)142, e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Resolução CNE/001/2004)143. A
escolha desses documentos deve-se ao fato de estarem diretamente relacionados com a
questão da formação e no caso do ProInfantil, ao da formação do professor de educação
infantil, especificamente. Na análise dos documentos, priorizamos três aspectos, as
referências sobre o conceito de formação inicial e continuada, as referências diretas sobre
relações raciais e referências diretas a conteúdos essenciais a formação.
Os Referenciais para a Formação de Professores deveriam ser levados em conta para a
política de formação de professores em diferentes níveis. Esse documento, ao tratar da
formação inicial, destaca que os objetivos e conteúdos desse processo devem considerar as
novas demandas em relação à função social da escola e também em relação à formação de um
professor reflexivo. Quanto à formação continuada, o documento atribui a esse processo a
função de possibilitar ao professor atualizações, aprofundamentos e reflexão sobre a prática
educativa. Entre os objetivos está o que prevê o desenvolvimento da competência144 do
140
Disponível no site: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=557. Acesso em
05 jan. 2007.
141
Disponível no site: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=442&Itemid=426.
Acesso em 05 jan. 2007.
142
Disponível no site: http://portal.mec.gov.br/cne/index.php?option=content&task=view&id=228&Itemid=227.
Acesso em 05 jan.. 2007.
143
Disponível no site: http://diversidade.mec.gov.br/sdm/objeto/legislacao/download.wsp?tmp.legislacao=10.
Acesso em 05 jan. 2007.
144
Na pág. 61 está explicitado que competência nesse documento é entendida como “à capacidade de mobilizar
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professor para
fazer escolhas didáticas e estabelecer metas que promovam a aprendizagem e
potencializem o desenvolvimento de todos os alunos, considerando e respeitando
suas características pessoais, bem como diferenças decorrentes de situação
socioeconômica, inserção cultural, origem étnica, gênero e religião, atuando contra
qualquer tipo de discriminação ou exclusão (RFP, 1999, p. 83)
Em outro momento, quando trata das dimensões da atuação dos professores, reconhece
que a formação é decisiva para que ocorra "a afirmação dos princípios da ética democrática,
da superação das discriminações de ordem étnica, cultural e socioeconômica [...]". Apesar de
os referenciais destacarem esses aspectos como decisivos na formação do professor, o
documento não traduz esses princípios em conteúdos concretos.
Ao explicar o que seria um currículo de formação de professores que considere cada
um dos âmbitos apresentados, há a reafirmação de que é uma necessidade que o professor
compreenda “as problemáticas relacionadas à ética, ao meio ambiente, à saúde, à pluralidade
cultural, à sexualidade, ao trabalho e ao consumo, entre outras”. (RFP, 1999, p.101)145,
conheça os debates que as envolvem, tenha um posicionamento pessoal a respeito e saiba
como trabalhá-las com seus alunos.
Observa-se que há referências para as questões raciais, mas com a opção teórica do
documento ao não incluir o conceito “raça”, evitando a controvérsia que o cerca. Há
estudiosos das relações raciais, da qual fazemos parte, optando por manter o conceito de raça
por seu conceito sociológico. O melhor, acreditamos, é a utilização dos dois termos - etnia e
raça -, já que para os diferentes povos indígenas o termo etnia aplica-se de modo mais
adequado. Mas o mesmo não se aplica para a população negra. Desenraizada de modo tão
incisivo na sua separação com a África, a população negra brasileira perdeu quase tudo que se
refere a seus grupos étnicos de origem: jejes, achéschés, bantos, uzazes, iorubás, sudaneses,
haussás etc. Trata-se, portanto, de uma identidade de pertencimento racial.
Portanto, uma proposta educacional que vise contemplar as particularidades de
pertencimento, ao nosso ver, deve incluir a problematização do termo raça, sob pena de
incluírem o tema na perspectiva do "currículo de turista". Isto é tratá-lo, como um remorso
múltiplos recursos, entre os quais os conhecimentos teóricos e experienciais da vida profissional e pessoal, para
responder às diferentes demandas das situações de trabalho”.
145
A importância de o professor considerar no seu trabalho essas dimensões e em particular, a etnia/raça aparece
em diversos momentos, nos Referenciais, destacamos as páginas:19;56;57;82;83;91;101.
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histórico sem ligação com o presente brasileiro ou um catálogo exótico.
No segundo documento consultado, o guia geral do Programa de Formação Inicial
para Professores em Exercício na Educação Infantil (ProInfantil) do MEC não há nenhuma
referência aos conceitos de formação inicial ou continuada, mas explicita os conceitos de
educação, criança, prática pedagógica, avaliação e interdisciplinaridade. Para o programa, "a
educação é entendida como um processo permanente que acontece dentro e fora da escola,
articulando conhecimentos formalmente estruturados e saberes adquiridos com a prática"
(2005, p.26). Ele também estabelece como meta que os professores desenvolvam as seguintes
habilidades:
1. Reconhecer-se como profissional da educação;
2. promover a educação para a cidadania, para a paz e a solidariedade humana;
3. compreender a Instituição de Educação Infantil como espaço coletivo, em parceria
com a família e a comunidade, de educação e cuidado de crianças com idade entre 0
e 6 anos;
4. promover ações que assegurem um ambiente saudável, higiênico e ecológico na
instituição de educação infantil;
5. comprometer-se com o bem-estar e o desenvolvimento integral das crianças;
6. dominar o instrumental necessário para o desempenho competente de suas
funções de cuidar/educar as crianças;
7. dominar estratégias de acesso, utilização e apropriação da produção cultural e
científica do mundo contemporâneo.
Cada domínio previsto tem definidos os seus objetivos específicos. A questão da
educação das relações étnico-raciais está contida no item VIII do domínio, o qual indica que o
professor deverá “reconhecer a diversidade de gênero, etnia e religião, além das necessidades
especiais das crianças”
146
. Nesse texto, também, o termo constante ao tratar a questão do
pertencimento racial é a etnia, e não raça, mantendo a lógica dos textos produzidos pelo MEC
e consolidando um modo de legislar sobre a questão das desigualdades raciais.
Outro aspecto a considerar é o fato de que gênero, etnia, religião e as necessidades
especiais são apresentadas nos dois documentos do mesmo modo: todas juntas, sem explicitar
perspectivas específicas de trabalho para cada uma. Essa apresentação não ocorre com outros
temas, reforçando o argumento de que, apesar de essas dimensões constarem nos documentos
que tratam dos conteúdos formativos do profissional da educação, a perspectiva ainda se
constitui como um "currículo de turistas", sem aprofundamento mais sistemático.
Essa característica é um pouco diferenciada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para
146
Guia Geral, ProInfantil, p. 33.
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o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Esse documento foi alvo de discussão
veemente entre as entidades organizadas que tratam da formação de professores, destacandose a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a
ANPEd e o Fórum de diretores das faculdades/centros de educação das Universidades
públicas do país (FORUNDIR). Desde 1998, essas entidades vêm debatendo a formação do
professor, produzindo documentos e apresentado-os ao CNE, mas somente em 2006 as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia foram aprovadas.
Nas versões das diretrizes defendidas pelas entidades, em separado ou conjuntamente,
desde 1998 até 2001147, não há referências sobre os conhecimentos que esse profissional deva
ter em relação às questões de raça. Aparece, apenas, a questão das necessidades especiais,
deixando de fora também gênero, etnia e religião. Essa chamada às especificidades só foi
contemplada no documento final, de junho de 2005, quando chama a atenção para que os
egressos sejam capacitados a atuar na educação indígena e na educação em remanescentes de
quilombo e ao tratar da organização curricular, indicando que deve ter vivências em educação
inclusiva, educação indígena e educação em remanescentes de quilombos, entre outras.148
Esse acréscimo indica que, ao longo desses anos de intensas discussões, essas
entidades foram influenciadas, também, pela pertinência desses temas no processo de
formação dos profissionais em educação, um significativo avanço para a instituição de
políticas afirmativas. Não deixam, porém, de ser menções tímidas e restritas, principalmente
porque se trata de documento elaborado pelas entidades que abrigam a intelectualidade
brasileira em educação. Revelam, ademais, uma dissonância com boa parte da produção
teórica sobre currículo produzida no Brasil e no mundo.
O documento final apresenta avanços mais significativos quando supera a utilização
do termo etnia. A formulação constante em vários momentos do texto traz a terminologia
“étnico-racial” (termo utilizado nas DCEER e adotado por esta tese). O Art.5º, item X e IX,
prevê que o egresso do curso deverá estar apto a “demonstrar consciência da diversidade,
respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas
geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras”.
147
Disponível no site http://lite.fae.unicamp.br/anfope/menu2/links/doc_aocne_posicionamento.htm Acesso em
09/11/2006.
148
Disponível no site http://lite.fae.unicamp.br/anfope. Acesso em 09/11/2006.
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Determina, ainda, “identificar problemas socioculturais e educacionais com postura
investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, com vistas a
contribuir para superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais,
religiosas, políticas e outras”.
De forma geral, esse três documentos incluem o tema étnico-racial, embora seja uma
incorporação ainda tímida e periférica. Nesse sentido, o grande diferencial é o documento do
Conselho Nacional de Educação (CNE) Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(DCEER), que enfatiza, entre as tarefas dos sistemas educacionais, a obrigação de prover
"apoio sistemático aos professores para a elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos
e métodos de ensino, cujo foco seja História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a
Educação das Relações Étnico-Raciais". (DCEER, 2004,p. 09).
Essas recomendações apontam para uma ampliação dos conteúdos que devem ser
abordados nas formações iniciais e mesmo na formação continuada dos profissionais em
educação. Resta acompanhar, nos próximos anos, qual será o seu impacto nas experiências de
formação continuada realizadas a partir desses encaminhamentos.
Feita a análise desses documentos, vamos aos conteúdos citados pelas educadoras.
Podemos incluí-los em três âmbitos: 1) releitura dos conteúdos clássicos e recorrentes no trato
do tema, sobretudo a escravidão; 2) incorporação de conteúdos recentes na discussão do tema,
como políticas compensatórias; e 3) aprendizado de metodologias pedagógicas.
Segundo as educadoras, a partir dos conteúdos trabalhados, “você descobre o outro
lado da história”, “coisas verdadeiras sobre o negro”. A posse do acesso a esses
conhecimentos possibilitou-lhes, de acordo com elas, descobrir que “o negro não é uma
pessoa sem cultura, que eles tinham família e eram organizados”. Uma das educadoras disse
que foi uma novidade conhecer o texto da Lei Áurea. Ela se surpreendeu ao descobrir que o
documento só possuía dois artigos. E conclui: “Por causa da lei, eles [os negros] foram
jogados na marginalidade, sem emprego, sem profissão, sem lugar para morar, se sujeitando a
ganhar um salário bem mais inferior do que os brancos da época”.
Essas descobertas explicitadas pelas educadoras, de formulação óbvia e simplória,
revelam que, da educação infantil à pedagogia, falta acesso a conteúdos que possibilitem
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compreender as relações raciais no Brasil. Ou seja, a enorme e crescente produção sobre a
questão racial, seja na pedagogia, na história ou em outras áreas, não chega aos cursos de
pedagogia, refletindo no trabalho em sala de aula e nos livros didáticos.
Em relação à segunda dimensão, novos conteúdos, as educadoras disseram que
aprenderam o que é política compensatória, com destaque para a discussão sobre cotas, e
tiveram acesso aos índices de desigualdades raciais. Esses conteúdos refletem o crescente
debate público sobre políticas voltadas à população negra, a partir de notícias polêmicas,
como a implantação do regime de cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
e, por outro lado, a resistência da USP em fazê-lo.
Por último, estão os conteúdos que dizem respeito ao trabalho pedagógico. São os
conhecimentos adquiridos pelas educadoras para aprimorar seu cotidiano. A referência à
metodologia de projeto é recorrente. “Nós aprendemos como montar um projeto”, disse uma
delas. “A elaboração do projeto foi um processo riquíssimo, muito rico”, aponta outra. O
destaque das professoras ao aprendizado sobre projetos reflete a ampla difusão desse tipo de
metodologia, principalmente, na educação infantil. Os projetos de trabalho, na escola, são
considerados uma estratégia de ensino que dificulta a fragmentação dos conteúdos, porque
envolve mais de uma área do conhecimento no seu desenvolvimento, partindo sempre de
situações-problema, com objetivos claros, tendo como meta um produto final.149
Os depoimentos indicam que o curso lhes deu condições de reavaliar os conflitos
raciais na sala de aula de ampliar o seu repertório pedagógico tanto para evitá-los com para
superá-los. Mesmo as educadoras que já possuíam experiência com o tema afirmam que foi o
curso quem possibilitou trabalhos mais qualificados. É na busca por uma prática que
possibilite uma relação mais igualitária na realidade escolar que se assentam as perspectivas
das educadoras. O fio do horizonte. Além disso, os testemunhos apontam que os novos
conhecimentos colaboraram para agir em outros espaços, o que analisaremos a seguir.
149
A organização do currículo por projetos tem sido disseminada no Brasil, a partir da década de 80, principalmente
por meio do livro de HERNANDEZ, Fernando, VENTURA, Hernandéz. A organização do currículo por projetos de
Trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. Porto Alegre: Artmed, 1998.
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7. Dimensão Político-Administrativa.
Os procedimentos desenvolvidos no curso procuram mobilizar no profissional de
educação um compromisso em trabalhar o tema das relações raciais em suas práticas
pedagógicas. Alguns conseguem ir além da sua sala de aula ou da escola. Nesses casos, o
aprendizado conduz as professoras a se posicionar sobre o tema em outros ambientes.
A maioria transfere seus conhecimentos a espaços relacionados ao processo de ensinoaprendizagem: informando outros colegas sobre os conhecimentos apreendidos, organizando
atividades interdisciplinares, participando de eventos nos quais apresenta suas experiências. A
professora Abibatou relatou que, depois do curso, passou a ensinar a suas colegas em outras
escolas a confeccionarem bonecas negras. Conta que foi solicitada por outras unidades para
desenvolver oficinas de confecção de bonecas, e isso lhe deu um "lugar" especial nesse
universo educacional e a deixou honrada de poder colaborar.
Outro modo de extrapolar a escola foi a participação das professoras e das crianças em
atividades culturais promovidas pelas Secretarias do governo. Para a professora Tanea
Mariano, fazia parte de sua política como administradora dos Ceis valorizar o trabalho das
professoras por meio desses convites para que elas apresentassem suas atividades em espaços
públicos.
Eu penso que não tem outra nomenclatura, ele [o professor] também quer ser
valorizado, ele também quer que seu trabalho apareça. E às vezes é isso que
acontece, ele faz coisas lindas, coisas maravilhosas, mas ele está ali naquele contato
só com a criança, não que isso seja menos importante, claro que não. Eu falo que a
importância do trabalho dele é no processo de desenvolvimento com a criança, mas
é claro que, como ser humano, ele também quer seu trabalho valorizado, então eu
sempre priorizei muito isso, de assistir, de participar, de assistir a uma aula. E
também por isso que eu fazia tanta questão de que eles aparecessem nestes espaços,
ia ter um ciclo de palestras sobre drogas, não tinha nada a ver com a educação
infantil, mas tem espaço para uma atividade cultural, então a gente pagava ônibus,
para você ter uma idéia nós abrimos o desfile de 7 de setembro, pensa o que é isso
na educação infantil ! Tinha mãe que chorava, tinha professor que falava nossa a
educação infantil nunca foi tão divulgada! (ex-diretora do PAC Tanea Mariano entrevista concedida em 23/09/05)
Esse tipo de iniciativa proporcionava visibilidade do trabalho da educadora e, ao que
parece, era valorizado dentro da categoria. Abibatou diz sobre o seu reconhecimento:
Eu sou sempre convidada pela APAE150 para relatar minha experiência. Você tem
150
APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.
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que ter disposição para trabalhar e se você não sabe como fazer, você tem que correr
atrás, pedir ajuda. As meninas lá da Secretaria151 sempre falam do meu trabalho. Eu
fui chamada para fazer uma apresentação lá na SED. Eu ensaiei com as crianças a
música “A Linda Rosa Juvenil”. No lugar da rosa, que é sempre uma menina branca,
eu coloquei uma menina negra, mas cada um teve seu lugar, o vento... Tinha o
negro, o branco, o PNE152. Eu sou conhecida como Abibatou, a professora das
bonecas negras. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
Esse empenho e a visibilidade proporcionada pela coordenadora do programa
constituem-se duas faces do processo pelo qual participaram os professores. Mesmo que
tenhamos no início uma certa "imposição" por parte da Coordenação, era necessário realizar
os projetos após o curso, episódio criticado por uma das educadoras. A obrigatoriedade gerou
ações muito produtivas, e a instituição empenhou-se em valorizar os professores que deram
boas respostas à solicitação. Nenhuma das entrevistadas relatou dificuldades de caráter
burocrático-administrativo para realizar o projeto, indicando que o caráter impositivo veio
acompanhado de um certo respaldo administrativo.
Porém a atividade não foi vista sem críticas. Para Fatou, participaram do curso mais
atendentes do que educadoras, o que a fez questionar a imposição de aplicabilidade:
Essa atendente não tem autonomia da sala da professora. Ela não tem, então, a
professora deixou de fazer, mas a atendente foi. Se ela não tem autonomia, como é
que se deu esse trabalho na sala de aula? De aplicabilidade. Como é que se deu?
Acho que nesse sentido se perdeu um pouco. (Professora Fatou - entrevista
concedida em 21/09/05)
Em que pese o pequeno período de duração do curso (60h), as educadoras
conseguiram realizar várias atividades, possibilitando que outros agentes da escola e fora dela
estabelecessem contato com o tema. Também houve mudanças nas relações entre as
educadoras porque conseguiram estabelecer momentos de troca e de compartilhar saberes.
São resultados positivos, mas é necessário que as dimensões político-administrativas sejam
objeto de reflexão para que discutamos alguns problemas identificados.
A questão que nos parece mais difícil nesse processo de formação de professores
relaciona-se às condições oferecidas para os professores. Em geral, o professor opta por
participar de um curso de formação porque se sente motivado a proceder a mudanças em suas
práticas. Porém a volta para a escola é muitas vezes frustrante e pouco receptivo.
Segundo a professora Tanea Mariano, para a viabilidade do curso foi necessário um
151
A professora está se referindo as técnicas da gestão de processos para a igualdade racial da SED/MS.
152
PNE - Portador de Necessidades Especiais Educacionais.
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acordo entre SETTAS e SED/MS, pois partilham as responsabilidades na administração dos
Ceis. No entanto esse acordo deveria ter incluído um pós-curso, pensando em como os
professores pudessem desenvolver um trabalho coletivo, integrado. Pelo que vimos, cada
professor cumpriu a determinação de aplicar/desenvolver um projeto, mas sem uma
articulação pedagógica entre eles. A educadora Abibatou, ao referir-se ao seu trabalho, não
deixa claro se foi coletivo ou individual. É como se houvesse uma incerteza de sua parte sobre
a coletividade do procedimento:
Montamos um projeto aqui no Cei, mas cada professor trabalhou de acordo com o
nível de sua sala e o nível de criança que tinha dentro da sala, então eu montei o
projeto, montamos o projeto, e, dentro do meu projeto, eu o fiz muito mais extenso
para poder trabalhar. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
Essa ambigüidade expõe diversas dificuldades no exercício do trabalho, pois, além das
questões administrativas, fazem falta a ausência de coordenadores e de reuniões de estudos. O
professor enfrenta dificuldades entre os seus pares; o ambiente escolar é um espaço de
conflitos e de disputa de idéias. Há colegas que, refletindo argumentos correntes no debate
mais amplo sobre ações afirmativas, consideram esse tipo de demanda uma cisão no ethos
brasileiro, pois fere a idéia de harmonia racial.
Tampouco tivemos nenhum indicativo de que a participação das professoras em cursos
dessa natureza viesse acompanhada de algum tipo de benefício financeiro ou que incidisse em
melhoria na carreira profissional. O curso emitia um certificado que poderia ser usado pelas
professoras para comprovação de aprimoramento profissional, mas sem nenhuma aplicação
imediata. Além disso, não foi citada nenhuma aquisição de material didático para a execução
dos projetos, ficando a cargo das professoras negociar com as diretoras dos Ceis onde
atuavam.
A iniciativa de promover um curso desse tipo é fundamental dentro da política de
formação continuada dos educadores, mas, segundo a orientação das DCEER, deve vir
acompanhada de outras medidas que viabilizem um trabalho de qualidade:
Caberá aos administradores dos sistemas de ensino e das mantenedoras prover as
escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais
didáticos, além de acompanhar os trabalhos desenvolvidos, a fim de evitar que
questões tão complexas, muito pouco tratadas, tanto na formação inicial como
continuada de professores, sejam abordadas de maneira resumida, incompleta, com
erros. (DCEER, 2004, p.7)
Essa responsabilidade dos sistemas é fundamental para o sucesso do trabalho. Tarefa,
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ao nosso ver, ainda a ser realizada pela SETTAS/MS e pela SED/MS. O gestor, aqui
compreendido como o diretor do Cei e os responsáveis pela implantação dos cursos no
interior das Secretarias, deve coordenar e administrar os trabalhos possibilitando que o
professor indique suas demandas. No caso da direção da escola ou Cei, deveria ser sua
atribuição abrir espaços para a temática étnico-racial por meio de recursos financeiros, apoio
às iniciativas dos professores e compromisso com a inclusão do tema, principalmente fazendo
contato com a comunidade escolar. As DCEER estabelecem:
Em outras palavras, aos estabelecimentos de ensino está sendo atribuída
responsabilidade de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a contribuição dos
africanos escravizados e de seus descendentes para a construção da nação brasileira;
de fiscalizar para que, no seu interior, os alunos negros deixem de sofrer os
primeiros e continuados atos de racismo de que são vítimas. Sem dúvida, assumir
essas responsabilidades implica compromisso com o entorno sociocultural da escola,
da comunidade onde esta se encontra e a que serve, compromisso com a formação
de cidadãos atuantes e democráticos, capazes de compreender as relações sociais e
étnico-raciais de que participam e ajudam a manter e/ou a reelaborar, capazes de
decodificar palavras, fatos, situações a partir de diferentes perspectivas, de
desempenhar-se em áreas de competências que lhes permitam continuar e
aprofundar estudos em diferentes níveis de formação. (DCEER, 2004, p.7).
Não queremos, com isso, diminuir a tarefa que cabe ao professor nas mudanças
educacionais. Sem o envolvimento do professor, pouca coisa ocorre de fato na escola. É o
professor quem dá vida aos procedimentos pedagógicos, mas eles podem ser articulados num
Projeto Pedagógico (PP) da escola a fim de superar a individualização desses processos. Nas
entrevistas, há um compromisso efetivo com o tema por parte de cada educadora, mas parece
que, em vários momentos - não todos, ressalte-se -, o trabalho encontra-se na dimensão
individual. Não vimos nenhum indicativo de que suas práticas pedagógicas tomavam uma
dimensão mais ampla, sendo incorporado pelo PP da escola, por exemplo.
A constatação de que os conhecimentos adquiridos no curso extrapolaram a sala de
aula exige, por outro lado, que se reconheça que essa extrapolação não teve a amplitude que
se poderia desejar. As instituições que oferecem os cursos deveriam estar atentas para, de
algum modo, favorecer a continuidade da ação dos professores e propiciar que essas ações
sejam concretizadas de maneira articulada em todo o espaço escolar. Antes de passar a
análise das ricas experiências relatadas pelas educadoras, vale observar que foram realizadas a
partir de um curso de 60 horas.
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Poema enjoadinho
[...]
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los . . .
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
Vinicíus de Moraes
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Capítulo IV- Práticas Pedagógicas de combate ao racismo na primeira
infância em MS
1. Introdução
Neste capítulo, nos deteremos nas práticas pedagógicas desenvolvidas pelas
educadoras com as crianças pequenas. Interessa saber sobre suas atividades didáticas e de
como a partir da sala de aula conseguem estabelecer relações com outras esferas do ambiente
escolar e fora dele. Esse interesse é intrínseco à nossa concepção de que as práticas
pedagógicas devem abranger a escola na sua totalidade, envolvendo as relações que se
estabelecem entre os diferentes profissionais e inaugurando novos modos de relacionarem-se
entre si e com o tema das relações étnico-raciais.
Sendo assim, ao tratarmos das práticas pedagógicas, nos deteremos em questões
referentes à organização curricular da educação infantil e nas diferentes concepções acerca
dessa etapa. Também queremos analisar como o tema da educação das relações raciais
aparece no Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI), documento do
MEC, propiciando a inclusão ou não do tema no currículo da educação infantil. Em seguida,
relatamos nossa visita ao Ceis, discorrendo sobre esses espaços físicos.
Apresentamos ainda as atividades relatadas pelas educadoras como integrantes de suas
práticas pedagógicas, identificadas em três grupos. No primeiro, estão as atividades
relacionadas com as linguagens, delineadas nos seguintes eixos: linguagem engajada;
literatura infantil: confecção de livros; e realização de entrevistas. No segundo grupo,
arrolamos as que tratam de atividades artísticas, organizadas em quatro eixos: confecção de
bonecas, dramatização, confecção de cartazes e apreciação de obras de arte. E por fim, o
quarto grupo liga-se as atividades com o corpo, com um único eixo: apreciação das
características físicas, destacando-se os momentos de pentear os cabelos.
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2. Currículo da educação infantil: implicações nas práticas pedagógicas
de combate ao racismo
Refletir sobre o currículo implica pensar em conteúdos e na maneira pela qual as
escolas operacionalizam suas atividades práticas e como elas dialogam com o contexto
econômico, com a cultura local e, ainda, como ocorrem as lutas em torno dos conhecimentos
que devem ser privilegiados nos currículos. Em geral, resultam de disputas e conflitos, já que
a organização dos conhecimentos curriculares é também expressão de poder.
No Brasil, a discussão curricular teve influência de várias correntes teóricas, entre
elas, as críticas, das quais destacamos alguns representantes. Louis Althusser (1976) analisou
como as idéias favoráveis à manutenção da sociedade capitalista são produzidas e
disseminadas por diferentes instituições, enfatizando o papel da escola ao estabelecer
conteúdos escolares. Já Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1970) destacaram o papel de
"reprodução cultural" da escola que privilegia o código cultural dominante como a expressão
da "verdadeira cultura" e oculta essa imposição ao naturalizá-la.
Michael Young (1971) apresentou a necessidade de revelar que a escolha de um
currículo escolar é histórica e arbitrária. Também é importante citar a influência da produção
de Samuel Bowles e Herbert Gintis (1976) quando destacam que os alunos aprendem também
por meio das interações sociais que se estabelecem na escola. De acordo com os autores,
essas vivências incutem e adaptam os alunos a um modo subordinado de atuação na sociedade
sem que isso seja explicitado. Tais análises sobre os processo de construção e
desenvolvimento do currículo culminam nas reivindicações atuais de que o currículo escolar
deva incorporar a história dos grupos étnico-raciais na construção do conhecimento social.
Essas variações de concepção também influenciaram as discussões sobre o currículo
da educação infantil. Ricos debates sobre seu caráter, sua função, a concepção de infância e
de criança que devem prevalecer ocupam os pesquisadores dessa etapa. E não cremos que eles
se esgotem algum dia, pois representam concepções diferentes sobre criança e infância e são
construções históricas, refletindo debates das sociedades em que estão inseridas. Mas alguns
poucos pontos de partida parecem ser consensuais: a compreensão de que a criança é um
sujeito ativo, com um modo de se comunicar próprio, que tem autonomia intelectual e se
expressa por meio de linguagens estéticas e emocionais específicas.
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Concordar com esses pressupostos não implica desconsiderar que todos somos sujeitos
das condições históricas e culturais nas quais vivemos. Por isso, uma cultura infantil não está
desarticulada de uma cultura adulta. Reiteramos que tanto a categoria infância quanto A
categoria criança são subordinadas ao seu tempo e multifacetadas.
Outro possível consenso entre as diferentes correntes teóricas é a de que essa educação
deva centrar-se na ludicidade, com espaço para o jogo, o exercício da imaginação e a
brincadeira. São essas as diretrizes constantes na maioria das propostas curriculares da
educação infantil. Os currículos nessa etapa não se organizam mais a partir de listas de
conteúdos a serem ensinados, mas por indicativos e considerações sobre uma práxis que
assegure as possibilidades do exercício da ludicidade e da construção da autonomia da
criança.
Embora haja consensos, a definição dos conteúdos que proporcionam melhor esses
princípios continua sob disputa política e teórica. O que ensinar? Como ensinar? Por isso,
influenciar na escolha do conteúdo que será trabalhado na educação infantil é o objetivo
principal dos cursos de formação de professores para o combate ao racismo e das DCEER.
Para discutir o currículo dessa etapa, é necessário investigar se o RCNEI, em vigor
desde 1998 e referência pedagógica oficial em vários municípios e Estados, traz indicativos
para o trabalho com a educação das relações étnico-raciais.
O RCNEI não faz nenhuma menção explícita ao tema étnico-racial. Verifica-se que os
indicativos não incentivam ações relacionadas ao combate ao racismo. O assunto, de certa
forma, se encontra na Formação Pessoal e Social, um eixo que favorece, prioritariamente, os
processos de construção da Identidade e Autonomia das crianças. Depois, no âmbito
Conhecimento de Mundo, há seis eixos sobre as diferentes linguagens e como as crianças
estabelecem relações com os objetos de conhecimento. Com isso, indicam que os
conhecimentos sobre Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita e
Natureza, Sociedade e Matemática devem compor a base curricular da educação infantil,
tendo como princípio que tais conhecimentos devem ser acompanhados de
[...] situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma
integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis
de relação interpessoal, de ser e estar com os outros, em uma atitude básica de
aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais
amplos da realidade social e cultural. Neste processo, a educação poderá auxiliar o
desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das
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potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na perspectiva de
contribuir para a formação de crianças felizes e saudáveis (RCNEI, 1998, p.23).
A matriz curricular de um sistema de ensino ou de uma etapa da educação implica
articular diferentes dimensões, tais como: a seleção dos conteúdos, eixos norteadores ou
princípios, as condições institucionais nos quais essa seleção ocorre e as concepções
psicológicas, epistemológicas, filosóficas que permeiam essa seleção. Isso quando tratamos
do currículo explícito, pois, ao lado dele, encontra-se o currículo oculto, no qual concepções e
valores sociais são transmitidos aos alunos por meio da cultura escolar na qual se estabelecem
as interações. Essas concepções e aspirações revelam-se nos conhecimentos eleitos para a
composição do currículo.
Estamos de acordo que a escola deva ensinar a ler, escrever e contar, desde que cada
uma dessas habilidades e seus graus de complexidade estejam adequados ao nível de ensino
em que se está trabalhando, mas igualmente acreditamos que devam ser mediadas por outros
conhecimentos importantes. Inspirados nos quatro pilares para a educação do século XXI
encomendado pela UNESCO153 e reconhecendo que eles trazem conceitos importantes para a
educação, propomos que os currículos e projetos pedagógicos devam considerá-lo na
formulação que se segue.
1) A possibilidade de promover o aprender a conhecer, implicando um exercício que
possibilite ao aluno conhecer sua história individual articulada com a história de
diferentes povos com os quais se relaciona de forma direta ou indireta. Conhecer as
histórias de suas origens, as diferentes religiosidades e formas de organização social.
Ter em vista a variação das manifestações culturais, envolvendo as artísticas, os tipos
de produção, os modos de registros e linguagens, sob o pressuposto de que não há uma
relação de hierarquia entre os diferentes modos encontrados nesses estudos.
2) A matriz curricular deverá proporcionar ao aluno a possibilidade de aprender a
fazer. É preciso aprender como os antepassados dos diferentes grupos étnico-raciais o
que fizeram e o que podemos fazer juntos, estimulando assim a cooperação.
3) Nesse sentido, estimula-se o aprender a viver junto, reconhecendo no outro a sua
humanidade. Aprende-se a estabelecer pontos comuns nas diferenças que possuímos
153
Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser. Apresentados no Relatório
da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, elaborado por Jacques D'elors (1998).
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como seres humanos e a estimular a noção de que os valores da diversidade devem ser
preservados e/ou conquistados como princípios de convivência. Sem com isso
desconsiderar a necessidade de compreender as relações de poder nas quais se
estabelecem os conflitos gerados na luta pela igualdade.
4) Por fim, é necessário aprender a ser. Isto é, saber de onde se é, por quem e como
somos constituídos. Nas relações étnico-raciais, inclui saber que só nos definimos na
relação com o outro.
Não desconhecemos que, ao indicarmos tais proposições, adentramos na controvérsia
atual sobre a educação infantil no Brasil. Uma das concepções vigentes sobre essa etapa
defende que as crianças que nela estão não devem ser consideradas alunos, que o espaço que
freqüentam não devem ser tidos como escola e ainda que a profissional dessa etapa não dá
aulas. A professora Ana Lúcia Goulart de Faria (2005a) expressa bem essa idéia.
A creche é o lugar onde um profissional vai trazer para elas [as crianças] os
ambientes de vida num contexto educativo. Não vai dar aula, mas desorganizar o
tempo e o espaço do mundo adulto, organizando-os para que as crianças produzam
as culturas infantis, para que as crianças sejam crianças. Crescer sem deixar de ser
criança, construir as dimensões humanas. Nesse aspecto, a pré-escola é a mesma
coisa. (FARIA, 2005a, p.128)
Nessa formulação, está fortemente presente a preocupação de que a educação infantil
se afaste da função preparatória para o ensino fundamental. Ou seja, que na ação educativa
com crianças pequenas não se repita a formalidade, a pouca criatividade, a falta de dinamismo
e a ausência de alegria que caracterizam boa parte das escolas de ensino fundamental.
Por outro lado,o argumento utilizado para justificar uma educação mais formal no
ensino fundamental é que nessa etapa não se pode mais "perder" tempo com brincadeiras, é
preciso ensinar às crianças e jovens a no mínimo ler, escrever e contar. Temos visto que o
argumento não é válido, porque a escola tem fracassado na sua missão e não têm sido
presentes a inventividade e o dinamismo que potencializam o aprender em qualquer etapa da
vida.154 É compreensível que surjam movimentos que procurem preservar essa etapa de uma
154
Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo sobre uma avaliação de aprendizagem realizada pelo
MEC, constatou-se [...] que, em média, os alunos de 4ª série se atrapalham ao interpretar textos longos ou com
informação científica e não conseguem ler horas em relógios de ponteiros. Também não conseguem fazer
operações de multiplicação com números de dois algarismos. No caso da 8ª série, não entendem a intenção do
autor em histórias em quadrinhos nem identificam a tese de textos argumentativos com linguagem informal.
Também não conseguem resolver problemas matemáticos em que é preciso fazer cálculo de conversão de
medidas, como de tempo, de comprimento ou de capacidade.(SANDER, Folha de São Paulo, 01/07/2006).
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"escolarização" que não permita às crianças realizarem atividades prazerosas.
Uma outra concepção vigente preconiza que a educação infantil deve assegurar à
criança oportunidades para que adquira e produza conhecimentos. Sustenta que uma das
funções da educação nessa etapa é propiciar à criança o acesso ao conhecimento produzido na
sociedade, sem com isso deixar de ser prazeroso e de compreender a criança como um sujeito
ativo e lúdico. Para a professora Monique Deheizelin, (1994)
[...] os cuidados com as crianças ganham outras amplitudes e sentidos quando a
escola de educação infantil revela sua função, que é a transformação cultural dos
objetos de conhecimento. Sem deixar de alimentá-la com comida, os professores
podem agora também alimentá-las com informações; sem deixar de cuidar da
higiene física, o professor cuidará também da higiene mental - sua e de seus alunos , na medida em que todos estarão em um ambiente efervescente de criação e
descoberta; e finalmente os professores e as crianças poderão demonstrar e exercer
afetos em situações de trabalho cooperativo. (DEHEIZELIN, 1994, p.50-51).
Sonia Kramer (2004), também, defende que a escola básica, o que inclui a educação
infantil, deve possibilitar que crianças e adultos se apropriem dos conhecimentos básicos, da
tradição cultural dos diferentes grupos populacionais e étnico-raciais que compõem a
sociedade brasileira, do saber científico, da possibilidade de lutar por mudanças, de aprender
com livros, histórias, filmes, arte, músicas, danças e teatro. Ela afirma que a formação cultural
humana é necessária para a produção da indignação e resistência e devem estar presentes
como elementos importantes do fazer educacional, em todas as etapas da educação.
Fazendo coro às preocupações apresentadas pelas últimas pesquisadoras, julgamos que
a educação infantil também tem a função de ensinar - porém não é o ensino fundamental nem
fase preparatória para ele. A educação infantil é uma etapa que possui suas especificidades,
como as outras,
com a vantagem de não estar presa nas amarras do fazer pedagógico
engessado pelos conteúdos dos livros didáticos, que têm sido os "formuladores" do currículo
escolar do ensino fundamental e médio em grande parte das escolas brasileiras.
Graças a essa maior flexibilidade curricular defendida por seus teóricos e amparada
nas proposições institucionais, a educação infantil pode organizar seu currículo incluindo as
delícias de estar junto, o fabuloso mundo da leitura, as belezas dos ritmos e sons, o misterioso
mundo da escrita, as fantásticas possibilidades do fazer artístico e muitos outros temas.
Tudo pode ser matéria do currículo infantil. Tudo que os seres humanos são capazes
de descobrir e organizar como conhecimento, desde que, devidamente adequados às
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possibilidades de compreensão dos pequenos e considerando os seus interesses de
aprendizagens. Uma proposta curricular para a educação infantil não poderá esquecer de
como é gostoso tomar banho de mangueira, correr livremente, brincar sem compromisso de
aprender alguma coisa, simplesmente brincar, que é preciso ter tempo de bater papo com os
colegas, "viajar" pela imaginação e inventar. As crianças inventam a partir do que aprendem,
refletem, estabelecem lógicas e conexões, transferem conhecimentos e indagam sobre
diferentes temas.155 A possibilidade de criar diante do aprendido e de aprender criando deve
ser o que move a organização do currículo na educação infantil.
Por isso, as propostas pedagógicas ou diretrizes curriculares atuais não estabelecem
listas de conteúdos. A começar pelo Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil
(RCNEI), que, ao tratar da sua função, postula que
[...] o Referencial é um guia de orientação que deverá servir de base para discussões
entre profissionais de um mesmo sistema de ensino ou no interior da instituição, na
elaboração de projetos educativos singulares e diversos.(RCNEI, 1998, v.01, p. 9,
grifos do documento)
Essa indicação de que os projetos devem contemplar suas singularidades e
diversidades também aparece quando os RCNEI tratam dos conteúdos apropriados para essa
etapa.
Este Referencial concebe os conteúdos, por um lado, como a concretização dos
propósitos da instituição e, por outro, como um meio para que as crianças
desenvolvam suas capacidades e exercitem sua maneira própria de pensar, sentir e
ser, ampliando suas hipóteses acerca do mundo ao qual pertencem e constituindo-se
em um instrumento para a compreensão da realidade. Os conteúdos abrangem, para
além de fatos, conceitos e princípios, também os conhecimentos relacionados a
procedimentos, atitudes, valores e normas como objetos de aprendizagem. A
explicitação de conteúdos de naturezas diversas aponta para a necessidade de se
trabalhar de forma intencional e integrada com conteúdos que, na maioria das vezes,
não são tratados de forma explícita e consciente. (RCNEI,1998,v.01,1 p. 49)
Na proposta pedagógica educação infantil de MS, Educação em Ação, produzida em
parceria SETTAS/MS e a SED/MS, constatamos que a flexibilidade para composição dos
conteúdos que organizarão o currículo também está presente.
[...] podemos aprender sobre o tamanho e as partes do corpo, os tipos de
alimentação, as cores e os sabores das comidas, a textura e o cheiro do sabonete,
sobre água, as bolinhas de sabão, a areia e as pedrinhas, as formigas do parque... e
155
Um exemplo dessa capacidade de inventar e estabelecer conexões com seu universo poder ser apreendida na
reprodução dessa conversa entre um menino de quatro anos e sua mãe. "Mamãe você sabia que esse número que
você acabou de falar é número de brincar?" "Qual deles?" "Esse, 123." "Número de brincar? Por quê?" "Porque,
olha , 1,2,3 e já!".
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tantos outros conhecimentos que estão escondidos nos cantinhos dos CEI’s.
(Proposta Pedagógica: Educação em Ação, SETTAS /SED /MS, 2002, p.26).
Para todos esses possíveis conhecimentos que podem ser elaborados, investigados e
construídos a proposta indica um princípio fundamental no qual o trabalho deve pautar-se
para que “[...] que seja um espaço de aprendizagem para crianças e adultos, um espaço para a
pluralidade e a diversidade cultural, um espaço onde não haja lugar para a discriminação e o
preconceito”.156 Ter na proposta pedagógica considerações sobre a educação das relações
étnico-raciais indica coerência estabelecida entre o que está posto como diretriz curricular e a
política de formação, porque essa proposta foi construída depois que o curso de formação de
professores para o combate ao racismo ocorreu.
Ao considerar a organização curricular como espaço importante de consolidação da
proposta de combate ao racismo, nos indagamos sobre quais conteúdos escolheram para
trabalhar o tema. Para obtermos essas informações, adotamos como principal estratégia ouvir
as educadoras. Tal opção se deve ao fato de pretendermos compreender as práticas
desenvolvidas a partir das vivências, experiências e subjetividades das educadoras. Elas
planejam e implementam suas práticas de combate ao racismo inseridas num mundo de
relação com o outro - um mundo social. Isso nos possibilita compreender o significado das
ações para elas mesmas enquanto profissionais da educação mas também a possibilidade de
identificar padrões e relações que favoreçam a acumulação do conhecimento.
3. Visitas aos Ceis: "silêncios" e "barulhos" sobre a questão racial
Ao marcamos as entrevistas com as educadoras, foi opção delas escolher o local.
Todas optaram pelo Ceis em que trabalham, abrindo a oportunidade para conhecer essas
instituições. De modo geral, os Ceis eram espaços pequenos com poucas salas de aula. O
maior deles tinha quatro. Eram ambientes limpos, às vezes, com paredes decoradas com
flores de papel laminado ou com figuras de animais; não havia nas decorações figuras
humanas. Em alguns, chegamos na "chamada hora do sono" das crianças, momento preferido
pelas educadoras para concederem as entrevistas. Para nós, era um fato limitante, pois as salas
ficavam fechadas, e todos no Cei evitavam barulhos para não acordarem as crianças. Reinava
156
Ibidem, p.26, grifos nossos.
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uma parcial tranqüilidade pelo ambiente. Um silêncio quase absoluto. Como em todos os Ceis
faltavam atendentes, algumas professoras tinham pouco tempo para conceder entrevista, pois
lhes faltava a auxiliar.
Enquanto aguardávamos as educadoras, aproveitávamos para observar o ambiente. Os
Ceis eram aconchegantes: sem sofisticação, mas limpos e agradáveis. As pessoas que
encontrávamos nos recebiam bem, mas não procuraram saber o que íamos fazer. Apenas
perguntavam com quem falaríamos e nos conduzia até a pessoa indicada. Mas era possível
perceber olhos observadores o tempo todo. Verificamos nos ambientes visitados se havia a
presença de indicativos do trabalho com o tema das relações raciais. Somente em um deles foi
possível identificar algo: vimos bonecas negras na estante de uma sala.
O Cei que mais nos chamou a atenção se encontra na comunidade negra São Benedito.
Na decoração, paredes com alguns desenhos, mas nada que nos revelasse sobre o trabalho
com as relações étnico-raciais. Seu ambiente não se diferenciava muito dos outros, mas a
estrutura física era mais bonita. O prédio era novo e com uma arquitetura moderna. Era
marcante o contraste com as casas simples da comunidade, feitas em madeira ou com tijolos
sem pintura. De certo modo, foi decepcionante não conseguirmos perceber a presença de um
trabalho relativo à educação das relações étnico-raciais no ambiente. Tínhamos a expectativa
de ver figuras negras espalhadas pelas paredes. Bonecas negras entre os brinquedos
disponibilizados para as crianças e também atividades relativas ao tema.
As faxineiras e merendeiras eram geralmente negras; os funcionários da secretaria, em
geral, eram brancos, assim como a maioria das professoras. Ou seja, a presença negra ali
repete a subordinação social vivida pela população negra, ocupando os trabalhos de menos
prestígio social. Em relação às crianças, vimos negras, brancas e indígenas.
Como temos considerado que as práticas pedagógicas ultrapassam a sala de aula,
lamentamos que o ambiente físico emanasse um "silêncio" sobre as aprendizagens que ali
ocorriam. Esse "silêncio" do espaço físico nos aguçou mais ainda para ouvir as educadoras,
tentando assim identificar o "barulho" que elas produziram com seus trabalhos.
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4. Pressupostos Pedagógicos: nortes para trabalhos com o combate ao
racismo
Foi importante identificar nos depoimentos das educadoras os pressupostos que
norteavam seus trabalhos. Os pressupostos pedagógicos regem os modos que orientam o fazer
e o pensar da educação, referem-se aos elementos essenciais e gerais numa proposta
educacional, incluindo a reflexão metodológica acerca dos processos educativos.
Ao relatarem suas atividades, as educadoras enunciam dois importantes pressupostos,
que "o trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer parte do dia-a-dia" e que “o educador
tem de ter coragem para trabalhar com esse tema”. Apesar de se apresentarem difusos em seus
depoimentos, pode-se inferir que pautam o trabalho realizado e se constituem em uma
contribuição importante para a construção de uma pedagogia de combate ao racismo. Ao
apresentá-los não os colocamos em ordem hierárquica. Ambos parecem ter a mesma
importância
numa
proposta pedagógica para orientar a ação prática de educadores da
primeira infância.
O primeiro pressuposto, que defende o trabalho contínuo e cotidiano com o tema,
relaciona-se com o fato de que a educadora não deve eleger uma data específica ou um único
momento para o desenvolvimento de atividades nas quais as crianças tenham contato com os
conceitos de igualdade e diferença e com a história e cultura afro-brasileira. As datas
importantes em relação ao tema devem ser apresentadas na medida em que o trabalho em sala
se desenvolva, mas não podem ser os únicos pontos nem restringir as práticas. A educadora
Mariana manifestou a presença desse pressuposto em seu trabalho quando nos diz que
Não é assim, “hoje vou falar sobre o racismo ou sobre a raça”. Todos os momentos
no meu dia-a-dia eu incluo. Porque ali no berçário, por exemplo, o nosso fazer
pedagógico é mais com a oralidade, desenvolvimento motor, essas coisas. Então,
tudo aquilo, tudo que a criança está fazendo, se está brincando, eu procuro mostrar
[diversidade de modo positivo]. Por exemplo, vamos pentear o cabelo? Agora é hora
de nós pentearmos o cabelo. Olha vamos pentear o cabelo dela para ficar bonito?
[...]. É a percepção do corpo, da cor, da raça. Eu procuro trabalhar com o
autoconhecimento. Eu mostro muito o espelho na hora de pentear o cabelo, o rosto, e
dou o espelho para eles se olharem. (Professora Mariama - entrevista concedida em
23/09/06).
O outro pressuposto, a “coragem” para enfrentar o tema, talvez seja mais abrangente,
pois implica tomar uma atitude ousada e ética em relação às questões aqui tratadas. Ação
nem sempre apoiada pelo conjunto de profissionais das instituições escolares. Trabalhar com
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o tema
das relações raciais, na educação infantil, exige que o educador assuma um
compromisso com o assunto, apesar de haver, nas propostas oficiais, recomendações mais ou
menos diretas para que a escola ofereça esse tipo de conhecimento. Abibatou declara que,
para abordar esse tema, o educador:
Tem de ser corajoso, porque ele vai encontrar várias barreiras dos pais das crianças.
Você vai encontrar até questionamento da direção, daquele diretor que fala assim
"Ah!, não é bobagem isso que você está falando? Não é bem assim, professora". O
outro professor também, que às vezes não quer se disponibilizar a trabalhar, porque
é um processo trabalhoso. E, às vezes, você vai colher um pouquinho só daquele
trabalho enorme que você faz. O fruto é bem pouco, mas com certeza, aquela árvore
que você plantou vai dar bons frutos, porque aquilo que você passou vai ficar
marcado. E a criança tem um poder muito grande de guardar as coisas. (Professora
Abibatou - entrevista concedida em 22/09/06)
Essa coragem requerida por Abibatou de fato nos parece necessária, pois, mesmo com
as legislações em vigor, sabemos que o tema das relações raciais no Brasil, continua
controverso e por isso, constitui-se num campo árido, no qual precisamos semear, regar, e
cuidar cotidianamente para que as propostas possam produzir uma nova ação, "os bons
frutos", dos quais nos fala Abibatou. Para atuar sobre esse tema, não bastam as leis, é
necessário o convencimento dos atores da escola de que existe uma necessidade concreta. Os
trabalhos iniciais exigem muita energia dos educadores, que precisam pensar conteúdos,
metodologias e ainda convencer os colegas ou justificar sua ação.
Também é importante considerar que a inclusão desse tema deve procurar superar a
modalidade "currículo de turistas". Santomé (1998) exemplifica essa modalidade em seis
tipos diferentes de abordagem. A primeira seria a "trivialização", dando a abordagem um
caráter superficial, tendo como referência somente os costumes alimentares, suas formas de
vestimenta, seus rituais festivos e a decoração de suas casas. Como se estivéssemos numa
excursão turística, sem estabelecermos uma relação de compromisso com esse grupo.
Na mesma medida devemos evitar o tipo de trabalho orientado pela "recordação", o
qual consiste em destinarmos um pequeno espaço no currículo anual ou lermos um livro
durante o ano que trate do tema. Ou então pela modalidade "desligando", a mais comum, pois
seria uma pausa no que se está estudando para trabalhar um tema relativo ao assunto. Em
geral numa data comemorativa, dia 13 de maio ou, com alguma sorte, o 20 de novembro. Esse
tipo de intervenção, em geral não relaciona as relações étnico-raciais com a vida cotidiana.
Outra possibilidade de abordar o tema seria por meio da "esteriotipia". Supostamente
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bem intencionada esse tipo repete os estereótipos utilizados para discriminar, repetindo
imagens distorcidas ou reafirmando idéias preconceituosas. Como foi o caso relatado do
diretor que, preocupado com a aluna adolescente que se cortava para se livrar do sangue
negro, a leva ao cabeleireiro para alisar-lhe os cabelos.
Já a “tergiversação” explica a discriminação atribuindo a culpa aos próprios
discriminados. É muito comum ouvir "que o próprio negro é que se discrimina" ao referiremse a pessoas negras que não aceitam seu pertencimento racial. Buscam, assim, explicações
fora das relações de poder e dos determinantes políticos e sociais.
E por fim uma outra maneira de abordar o tema apontado por Santomé é o
"paternalismo", na qual colocam os discriminados como vítimas e não lhes reconhece a
capacidade de resistência autônoma. Essa abordagem é muito comum em filmes
hollywoodianos que tratam de populações discriminadas. Nesses filmes há sempre um ator
que não faz parte daquela população, mas se comove com a situação de discriminação por ela
sofrida e ocupa o papel de protagonista na luta de resistência. Obviamente, os tipos de
"currículo de turista" podem se manifestar numa prática pedagógica de modo articulado.
De acordo com as educadoras, a participação no curso colaborou para que as práticas
pedagógicas de combate ao racismo fossem mais abrangentes e organizadas. Elas foram
unânimes ao afirmarem a contribuição decisiva do curso:
Sempre fui instigada a trabalhar a questão da diferença na escola. Porém nem
sempre fui respaldada por onde passei. Pela direção, pelas gestoras, enfim. Desta
vez, o curso veio de forma que a própria Secretaria da Assistência Social, na qual
está vinculada a educação infantil do Estado, respaldava, endossava a questão de
aplicar aquele conteúdo trabalhado na instituição. Isso deu uma liberdade, uma
maior segurança para trabalhar. (Professora Fatou - entrevista concedida em
21/09/06)
Esse apoio relatado pela professora é fundamental para que os temas possam aparecer
na organização curricular, sem medo de censuras ou de qualquer outro tipo de repreensão,
como deboches das colegas, descrédito da direção ou outro fato qualquer que possam
desestimular um educador a pôr em prática aquilo que aprendeu em curso de formação, o que
não é incomum. Entretanto uma das educadoras teve dificuldades para precisar em que e
como houve percebeu essa contribuição. Essa professora afirmou trabalhar com o tema das
relações raciais, com mais ênfase na semana de consciência negra, que ocorre próxima a data
de 20 de novembro e negou a existência de conflitos raciais na sua sala.
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Olha a gente aqui trabalha mais na semana da consciência negra. Porque as minhas
crianças, eles não têm esse tipo de problema, assim falar que um não aceita o outro
por causa da cor. Nunca. Nunca, passei por isso, dentro da sala de aula, não. Então,
na semana da consciência negra, nos trabalhamos. A gente faz cartazes. Eu mostro
para eles através das diferenças. (Professora Ken - entrevista concedida em
21/09/06)
A dificuldade apresentada por essa educadora no reconhecimento de que o racismo
está presente também na sua sala de aula, ao nosso ver, dificulta que ela realize ações mais
contundentes e que atenda ao princípio da continuidade e constância no seu trabalho.
Diferentemente de sua colega Fama, que, mesmo afirmando não existir situações de
discriminação racial na escola, diz que, depois do curso, possibilita às crianças a compreensão
de que a diversidade e a diferença fazem parte da vida.
Até mesmo na questão do planejamento. Hoje, quando você planeja uma
determinada atividade, você tem de abrir um leque de várias diferenças. Por
exemplo, cores, animais, plantas... É difícil até explicar para a criança porque você
sabe o que é ser negro, o que é a questão do preconceito o que é a questão racial,
mas, quando você vai abrir uma atividade ou você vai fazer um planejamento, tem
de colocar que no mundo não há nada igual, tudo é diferente. (Professora Fama entrevista concedida em 21/09/06)
As professoras, em conclusão, não possuem explicações teóricas mais elaboradas para
seus trabalhos com a temática, e as respostas encontradas por elas não são padronizadas nem
repetem os conteúdos clássicos das abordagens que tratam dessa temática. Ao seu modo, cada
uma procurou incorporar suas aprendizagens realizando práticas efetivas. Para tanto,
escolheram conteúdos que julgaram mais adequados. São esses conteúdos que procuramos
apreender nos seus depoimentos e apresentamos a seguir.
5. Conteúdos trabalhados
Na educação infantil, os conteúdos não se configuram como disciplinas que devam ser
cumpridas em prazos determinados. Eles compreendem dimensões cognitivas, motoras,
afetivas, de inserção e interação social e estão diretamente relacionados ao conceito de
indivíduo e de sociedade. Para Sacristán (1998, p.121), “um conteúdo passa a ser valioso e
legítimo quando goza do aval social dos que têm poder para determinar sua validade; por isso,
a fonte do currículo é a cultura que emana de uma sociedade”. Diante da possibilidade que a
educadora tem em suas mãos de escolher os conteúdos a serem trabalhados e que esses
revelam a perspectiva de sociedade que ser quer, compreendemos a importância de esses
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educadores terem acesso a cursos que tratem da educação das relações étnico-raciais para
considerarem a inclusão de conteúdos relativos ao tema. É essa escolha que produz as
mudanças almejadas.
Nos pronunciamentos das educadoras sobre esse aspecto, foi possível caracterizar
alguns conteúdos trabalhados por elas ao abordarem o tema. Eles podem ser incluídos no
âmbito histórico-antropológico, destacando-se: “o caminho realizado pelos negros da África
até o Brasil”; “os costumes da população negra”, “tradições culturais”, “tipos de alimentos”,
“danças”, “religiosidade”. Já no âmbito do indivíduo, a ênfase é no trabalho com o corpo por
meio de atividades que valorizem as “características físicas das crianças” (principalmente a
valorização da cor da pele de cada um e os diferentes tipos de cabelos) ou no
“autoconhecimento”. Além disso, foram citadas atividades realizadas com “músicas que
enfatizam aspectos culturais da população negra “ e também com “músicas identificadas em
sua produção com a população negra”. Todos podem ser considerados conteúdos da educação
das relações étnico-raciais.
Esses conteúdos foram bem variados, abrangendo vários tipos de linguagens relativas
ao universo da criança, embora haja uma relação intrínseca entre os conteúdos escolhidos
pelas educadoras com os conteúdos apresentados nos módulos do curso. Para indicar os
conteúdos trabalhados, as educadoras não lançam mão de nenhum tipo de bibliografia ou
referência teórica mais aprimorada; contam apenas com o que aprenderam nos conteúdos
trabalhados durante curso. Não há outras decorrências a partir dele, como novas leituras,
participação em outros cursos com o mesmo tema ou mesmo uma busca pela produção
cultural relacionada ao tema.
Outro dado importante, além dos conteúdos, foi o foco que as educadoras apontam no
tratamento dos temas. Segundo seus depoimentos, os trabalhos são realizados visando a
importância de questionar os estereótipos relacionados à população negra e indígena;
procuram trazer informações “sobre a mestiçagem”; buscam “produzir maior conhecimento
sobre os negros”; e almejam que as crianças “compreendam outras culturas”.
Mais um destaque apreendido dos relatos é que todas as educadoras utilizaram a
metodologia de projetos para desenvolver os trabalhos relativos ao tema. Recurso esse
também disponibilizado pelo curso e que é indicado na proposta pedagógica de MS como
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uma possibilidade desejável de organização do trabalho: "Os projetos são formas de trabalhos
que envolvem diferentes conhecimentos e que se organizam em torno de uma série de
atividades, cuja escolha e elaboração são atividades compartilhadas com as crianças".
(Proposta Pedagógica da MS, p.43).
Acreditamos que o domínio da metodologia de projetos colaborou para que as
educadoras pudessem organizar seu trabalho com os diferentes temas ao longo do ano de
modo mais produtivo e criativo, potencializando seu fazer pedagógico. Essa metodologia
possibilitou que as professoras registrassem seus trabalhos, pois o projeto prevê esse aspecto,
e também colaborou para que elas produzissem material pedagógico sobre o tema.
As educadoras produziram ainda um rico fazer pedagógico a partir do arcabouço
metodológico próprio da educação infantil, representado em três tipos. O primeiro se refere a
atividades ligadas ao desenvolvimento da linguagem. No trabalho com o desenvolvimento da
linguagem, foram citadas três atividades que consideramos, novas e ricas para a educação das
relações étnico-raciais: a utilização da linguagem engajada, a leitura de livros conhecidos sob
novos prismas, a produção de livros como material didático e a realização de entrevistas.
Como segundo tipo, há as atividades relacionadas ao fazer artístico: dramatizações,
confecção de cartazes com imagens de pessoas de diferentes origens étnico-raciais, sejam
originadas de recortes de revistas sejam desenhadas pelas próprias crianças. Aparecem ainda a
ilustração de livros pelas próprias crianças, o desenho de uma história e sua projeção em
retro-projetor, a participação em atividades públicas e a confecção de bonecas negras.
E por fim, o terceiro grupo de atividades relaciona-se à corporeidade, nas quais
preponderam atividades que destacam as características físicas por meio de conversas,
desfiles, momentos de "pentear" os cabelos, apreciação de fotografias, diálogos, o uso do
espelho e, numa outra esfera, se apresentam atividades com música afro-brasileira para cantar
e dançar. Veremos a seguir as atividades que se destacaram nos depoimentos.
6. Atividades com linguagens
6.1. Poder do verbo: a utilização de uma linguagem engajada
Estamos chamando de utilização de linguagem engajada o fato de as educadoras
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destacarem suas preferências por termos valorizados pelos movimentos sociais e
pesquisadores das relações raciais, como preferir “negro” a “preto” e o uso do conceito de
racismo para situações de discriminação e de manifestação do preconceito racial. Para elas,
essa opção significa um modo de colaborar na construção da identidade positiva de crianças
negras e brancas e de se aproximar desses ativistas. Na educação das relações raciais, a
linguagem ocupa um lugar de destaque, pois esse tema enfrenta dificuldades para ser expresso
no domínio público, no que o brasilianista ganense Anani Ddizdizenyo chama de “etiqueta
das relações raciais”. Um exemplo dessa dificuldade, por exemplo, é o receio comum de
perguntar se uma pessoa é considerada negra ou não.
Por outro lado, não faltam ofensas e expressões racistas no repertório vocabular
brasileiro: "cabelo ruim", para referir-se a cabelo crespo, e "serviço de preto", para referir-se a
alguma atividade malfeita estão entre as mais conhecidas. Enfim, existem muitas expressões
que estão presentes no falar cotidiano das pessoas de todas as classes sociais e origens étnicoraciais, permeadas de representações negativas sobre a população negra e indígena que devem
ser questionadas porque são transmissoras de preconceitos. Porque
[...] as formas estereotipadas no discurso da vida cotidiana respondem por um
discurso social que as consolida, ou seja, possuem um auditório organizado que
mantém a sua permanência, refletindo, assim, ideologicamente a composição social
do grupo, evidência da afirmação de Bakhtin ao dizer que 'a palavra é o fenômeno
ideológico por excelência' ou 'todo signo é ideológico'. Por essa razão, é que,
mesmo em uma aparente simples anedota que se conta sobre o negro, o judeu, o
nordestino, a mulher etc., os preconceitos que se afloram nada mais são do que
exercício constante dos elementos culturais desse grupo social. (LUKIANCHUKI,
2001, s/p.).157
De acordo com Lukianchuki (2001), essas expressões, mais do que simples modos de
dizer coisas desprovidos de uma questão social, possuem mensagens subliminares, indicando
uma inferiorização desses grupos. A linguagem engajada utilizada pelas educadoras após o
curso se configura em procedimentos de desconstrução de tais significados. A preocupação
manifestada pelas educadoras em relação à linguagem em sala é uma atitude política e
pedagógica, por isso o termo "linguagem engajada", ou seja, as educadoras estão preocupadas
em não reproduzir, na oralidade, ditos racistas, estão engajadas em transformar esse dado da
realidade também por meio da linguagem utilizada.
157
Grifos da autora. LUKIANCHUKI, Claudia. Dialogismo: a linguagem verbal como exercício social. Sinergia,
revista semestral do CEFET/SP, julh.2001. <http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/claudia2.html>. Acesso em 25
nov 2006.
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6.2. Literatura infantil: velhos livros e novos olhares
Nos seus primórdios, a literatura infantil tem função formadora, ao apresentar
modelos de comportamento com a finalidade de reforçar os valores sociais vigentes.
A literatura infantil contemporânea oferece uma nova concepção de texto escrito,
aberto a múltiplas leituras, questionamentos e reflexões. Clarice Fortkamp Caldin
É cada dia mais enfatizada a leitura como possibilidade de ação social qualificada.
Seja porque estamos inseridos numa sociedade letrada seja por que é cada vez maior o
número de ações cotidianas que requerem essa habilidade. As crianças não escapam a essa
demanda instalada. Saber ler é parte constitutiva da cidadania. Para as crianças que possuem
recursos financeiros, o acesso à literatura hoje é quase que infinito, e o mercado literário não
cessa de publicar ano a ano quantidades cada vez maiores de novos títulos. Já as crianças das
camadas mais pobres da sociedade têm na escola, de maneira geral, a porta de entrada para o
universo da literatura. Entretanto, em qualquer tipo de escola, seja privada ou pública, o lugar
da literatura já está consagrado nas práticas pedagógicas.
É ponto aceito sem contestação que a leitura do texto escrito constitui uma das
conquistas da humanidade. Pela leitura, o ser humano não só absorve o
conhecimento como pode transformá-lo em um processo de aperfeiçoamento
contínuo. A aprendizagem da leitura possibilita a emancipação da criança e a
assimilação dos valores da sociedade. (CALDIN, 2003,p.6)
Vários pesquisadores já destacaram o papel do livro didático na transmissão por meio
de imagens e textos de valores discriminatórios em relação à população negra. Já citamos o
trabalho da professora Ana Célia da Silva, que se constitui em um clássico dessa análise, e
mais recentemente outros pesquisadores, como Andréia Lisboa de Sousa (2005, p. 199), vêm
aferindo como essas críticas do livro didático podem se estender à produção de livros para
crianças.
Sousa destaca, a partir da década de 80, que alguns títulos da literatura infantil "[...]
passaram a enfatizar positivamente aspectos da cultura negra, como a capoeira e a mitologia
dos orixás. São encontradas situações de reflexão sobre a vida e a imagem da personagem
negra feminina de maneira positiva e criativa". Embora seja um dado estimulante para o
trabalho com as relações raciais, a autora também apresenta dificuldades. Segundo ela,
[...] muitas vezes as crianças não lêem esses livros porque os educadores, pais e a
comunidade em geral não sabem da existência dos mesmos. O acesso às obras pelos
educadores e os leitores em geral é prejudicado também em virtude das limitações
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financeiras para obtê-los, e em virtude da ausência de políticas públicas afirmativas
de diversidade étnico-racial nos programas oficiais de distribuição de livros dessa
natureza (SOUSA, 2005, p.201)
Nós pudemos constatar essa dificuldade dos educadores em acessar livros desse tipo,
principalmente os títulos mais atuais. Entre as educadoras de Campo Grande os livros mais
citados foram158 Menina Bonita de Laço de Fita; Menino Marrom; Histórias de Monteiro
Lobato, sem especificar qual delas, a História de Zumbi dos Palmares (não identificamos qual
versão foi utilizada, há algumas em quadrinhos). Também se reportaram ao uso de poetas
negros. Ainda se incluem nas práticas relatadas um trabalho realizado com a poesia As
Borboletas, de Vinicíus de Morais.
De mais atual, foi citada a leitura do gibi Luana e Sua turma, produzido por Aroldo
Macedo e Oswaldo Faustino. De acordo com seus criadores, Luana ela é a primeira heroína
infantil negra do Brasil. Joga capoeira, e o seu berimbau é mágico, fazendo-a viajar.159As
educadoras também se referiram a outras atividades executadas com as crianças após suas
leituras, entre elas o reconto oralmente e por escrito e a produção de texto coletivo a partir de
uma situação vivenciada com a leitura do livro.
Dos livros citados, Menina Bonita do Laço de Fita160 constitui-se num clássico nos
trabalhos com a educação das relações étnico-raciais . Em nossa pesquisa de mestrado (1996),
por exemplo, ele fazia parte do material. E continua ainda sendo largamente utilizado por
educadores de todo o Brasil. Entretanto ativistas que trabalham com educação e relações
raciais o têm incluindo entre os livros inadequados, alegando que o texto elogia a mestiçagem,
utiliza-se do termo mulata, e não negra para designar a mãe da menina e a compara com
animais, reforçando desse modo, preconceitos em relação à população negra.
158
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Editora Ática, 2003; ZIRALDO. O
menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 1986; GIBI- Luana e sua turma. São Paulo: Editora Toque de
Midas; Histórias de Monteiro Lobato para crianças, Reinações de Narizinho; Viagem ao céu e O Saci; Caçadas
de Pedrinho e Hans Staden; História do mundo para as crianças; Memórias da Emília e Peter Pan; Emília no
país da gramática e Aritmética da Emília; Geografia de Dona Benta; Serões de Dona Benta e História das
invenções; D. Quixote das crianças – O poço do Visconde; Histórias de tia Nastácia; O Pica-pau Amarelo e A
reforma da natureza; O Minotauro; A chave do tamanho; Fábulas Os doze trabalhos de Hércules (1º tomo) e
Os doze trabalhos de Hércules (2º tomo).
159
<http://www.facasper.com.br/cultura/site/ensaio> Acesso em 24 nov.2006. Que falta Luana me fez, por
Cinthia Gomes.
160
Na obra Menina Bonita do Laço de Fita, Ana Maria Machado narra a história de uma menina negra e um
coelhinho branco. O coelho, apaixonado pela cor da menina, tenta descobrir como ficar negro também. Para isso,
usa vários artifícios sugeridos pela menina até que descobre que só será possível ter filhos negros se casando
com uma coelha negra, porque a cor da pele é parte da herança genética dos parentes.
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Por conta da nossa experiência de trabalho com crianças utilizando esse livro,
reconhecemos nele várias qualidades. Principalmente porque, ao explicar os motivos pelos
quais as pessoas são negras, faz desacreditar explicações pejorativas presentes no senso
comum. Tais como, uma pessoa é negra porque bebeu muito café, porque comeu muita
jabuticaba ou caiu numa lata de tinta preta. A resposta final a essa questão no texto remetenos à nossa ancestralidade, ao nosso parentesco.
Também trata a mestiçagem sobre outro prisma, pois inverte a teoria do
embranquecimento. O que se apresenta é o desejo de um coelho branco em tornar-se negro. O
coelho pergunta à menina seu segredo para "ser tão pretinha" e sonha em ter uma filha igual a
ela. O fato de considerar que esse livro tem qualidades não quer dizer que as críticas não
fazem sentido e que não se tenha outra possibilidade literária para trabalhar com o tema da
educação das relações étnico-raciais. Porém nossas ponderações estão longe de retirá-lo da
lista de livros recomendáveis. Acreditamos no potencial que esse livro possui para trabalhar
com a educação das relações raciais e por isso fizemos contato com a autora, em março de
2006.
Nosso intuito era dialogar sobre as críticas feitas ao livro e como a autora as
compreendia. Apontamos os três pontos nos quais as críticas se amparam. O primeiro, é a
comparação da cor da pele da menina com a cor da pantera negra. Nossa argumentação era de
que, em manifestações racistas no Brasil, há uma tendência em assemelhar pejorativamente
negro a animais. No texto, a autora fala que a menina tinha a "pele escura e lustrosa, que nem
o pêlo da pantera negra quando pula na chuva".161
O segundo ponto tratou da parte em que a mãe vai revelar o segredo ao coelho. Isto é,
os motivos pelos quais a menina é "pretinha". O trecho é o seguinte: "a menina não sabia e já
ia inventando outra coisa, uma história de feijoada, quando a mãe dela, que era uma mulata
linda e risonha, resolveu se meter e disse: ‘Artes de uma avó preta que ela tinha...”. Sobre ele,
fizemos a seguinte ponderação: por que dizer mulata? Termo considerado pejorativo, porque a
palavra originalmente designava a "mula", animal fruto do cruzamento de diferentes espécies
(égua com um burro). E por fim, tratamos do fato que nem a mãe e nem a menina têm
nomes. Diante dessas indagações a autora nos responde:
161
Menina Bonita do Laço de Fita, p.3.
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1)Minha intenção é uma criação literária e utilizo para isso os recursos estéticos que
a linguagem põe à minha disposição, desde que a literatura existe. A comparação de
pessoas com o que eu bem entender, inclusive animais (além de comparar a princesa
africana), faz parte do repertorio literário desde que o mundo é mundo — inclusive
de textos escritos por negros, sobre negros. Os nomes dos personagens não são
africanos nem brasileiros porque não estou escrevendo para um público especifico
africano ou brasileiro, mas para seres humanos em geral e resolvi não dar nome a
ninguém. Até mesmo porque queria criar um ritmo especial e um nome próprio
atrapalharia.
2) Quanto ao uso da palavra “mulata”, ela até pode ter essa acepção (que você cita)
possível e ser registrada assim em dicionários, mas não é nesse sentido que eu a
estou usando, obviamente, e qualquer leitor logo percebe. São apenas homônimos.
Muitas palavras na língua têm vários significados diferentes, de acordo com o
contexto. Recusar-se a usar algum é ajudar a empobrecer a língua e eu não posso
fazer isso, de jeito nenhum. Seria como deixar de usar a expressão “barco à vela”
porque os dicionários também registram que vela pode ser uma peça de um motor e
quem veleja não usa motor. [...] Além do mais, acho que substituir a palavra
“mulata” por “negra” eliminaria a mestiçagem, justamente o que quero destacar.
3) Para mim, esse livro não é um instrumento de discussão de relações inter-raciais,
é uma história sobre a mestiçagem e a beleza das diferenças, nascida a partir da
diferença que observei entre a cor da pele de minha filha e a do resto da família —
como já contei tantas vezes e está em palestras reunidas em livros, como, por
exemplo “Contracorrente”, editado pela Ática. Para o leitor, será tudo o que ele
conseguir encontrar em sua leitura, como você e tantos outros vêm fazendo há mais
de 20 anos com esse livro tão lido, premiado e traduzido em tantos países e
continentes. (Ana Maria Machado, e-mail enviado em 29/03/2006)162.
Ana Maria Machado, ressalta que as críticas devem nos instigar a produzir outros
olhares sobre o mesmo tema, provocando-nos de modo correto.
Se você quiser outras abordagens, sugiro, por exemplo, que você leia outros títulos
meus, como “Do Outro Mundo” ou “O mistério da Ilha” (ambos da Ática) ou “Do
Outro lado tem segredos” (Ed. Nova Fronteira). Mas essa minha filhota, “Menina
bonita” é assim, do jeito que é e que nasceu, uma querida mesticinha de muitas
linhagens que vêm de longe. Uma cálida celebração da beleza e da mestiçagem —
ao alcance dos bem pequenininhos, brancos, pretos, mulatos, índios, africanos,
europeus, coreanos, guianenses, japoneses, todo mundo do mundo todo. [...] Mas,
evidentemente, sua leitura pode incluir a discordância com todas essas minhas
escolhas. Você pode trabalhar o livro criticamente, se quiser, chamando a atenção
para os aspectos com que não concorda (e ouvindo com respeito os que não
concordarem com você). É uma forma interessante de discutir os temas levantados
por uma obra literária. Mas não é uma forma de substituir ou corrigir a criação
artística que está numa obra, é só um complemento. Individual e superpessoal (Ana
Maria Machado, e-mail enviado em 29/03/2006).163
Relatamos em detalhes esse episódio porque acreditamos que as mesmas
considerações feitas em torno desse livro podem se estender a todos os outros listados pelas
162
MACHADO, Ana Maria Machado. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <
[email protected]> em 29/03/2006.
163
Ibidem.
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educadoras. O trabalho da educação das relações étnico-raciais, ao utilizar-se da literatura,
tem de ter esse olhar crítico sobre os materiais e reconhecer suas limitações e os alcances
possíveis de serem encontrados em cada um.
As educadoras, ao apresentarem suas práticas com a literatura, indicam que se
apropriaram de um discurso sobre a necessidade de trazer novas referências para seus alunos
nessa área. Idealmente, elas têm de ser capazes de reler o material à sua disposição
construindo novos olhares sobres eles e produzir materiais quando não encontram um que lhes
propicie a abordagem desejada. Como o fez Abibatou ao escrever uma história ou a
professora Fama ao apresentar aos seus alunos uma releitura da história da Rapunzel
adaptando-a aos seus interesses no trabalho com o tema. É o que se verá a seguir.
6.3. Confecção de livros e reinvenção de histórias: a falta que não resulta
em ausência
A mobilização das educadoras para produzirem material didático fez com que
escrevessem histórias ou reinventassem contos de fadas já conhecidos. Abibatou nos relata
que elaborou uma história infantil para o seu trabalho em sala de aula:
Eu escrevi uma história... de uma menina que foi para escola, que morava numa
fazenda, vivia feliz, era o mundo dela, ela corria... Era maravilhoso e chamava
Cidinha, a bonequinha negra. Ai o pai a levou para entrar na escola. E quando ela
chegou à escola, ela achou bonita. Nossa! Mas ela foi uma criança que ficou meio
que abandonada na escola, ninguém tomava confiança por ela. E professor deu um
trabalho, e ela foi desenvolver o trabalho, mas não tinha ninguém pra ajudar. E o avô
dela, lá na fazenda, que sabia das coisas, um negro muito inteligente, foi quem
ajudou a neta a elaborar o trabalho. Eles plantaram vários vasos de plantas, uma
diferente da outra e no dia ela explicou, ela colocou as plantas e uma ficou lá no
canto da sala, ela disse para os coleguinhas que ela era aquela [planta]. E as crianças
ficaram apaixonadas, nós construímos uma boneca negra, eles escolheram o nome e
cada criança tinha o dia da semana de levar para casa. Eles levavam a boneca para
dormir em casa e no outro traziam. (Professora Abibatou - entrevista concedida em
22/09/06)
Sua estratégia foi muito criativa, pois queria abordar o delicado tema do isolamento
das crianças negras em sala. Como não tinha nenhum material para fazê-lo, decidiu escrever a
história da Cidinha, que depois se transforma em personagem presente na sala de aula (fez
junto com as crianças uma enorme boneca negra). A história traz vários elementos
importantes: há isolamento da menina negra no novo espaço que ocupa depois de viver feliz
na fazenda, lugar em que remete, na historia, ao estado natural. A menina se vê obrigada a
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retornar a ele para que seu avô, negro e sábio - a meu ver, o arquétipo do griô -164, lhe
possibilita, por meio de seus conhecimentos não-escolares, a entrada no mundo da escola e
assim tornar-se membro do grupo.
Iniciativas como essa é de fundamental importância porque a ausência de material tem
sido um forte argumento utilizado por professores para não desenvolverem em sala de aula
atividades com o tema das relações raciais. É verdade que a falta de material prejudica o
desenvolvimento de ações com o assunto, no entanto, não foi impedimento para essas
educadoras. O que importa demonstrar é que o educador engajado no trabalho não deixa de
realizá-lo por falta de material, ele exerce seu papel de professor intelectual e produz, seja a
partir de algo totalmente novo, como fez Abibatou ao escrever a história da Cidinha, seja a
partir daquilo que já existe, como é o caso da releitura do conto de fadas Rapunzel, proposta
pela professora Fama:
Uma vez eu contei a história da Rapunzel,165só que fiz uma adaptação. Eu não
coloquei a Rapunzel da história verdadeira, loira de olhos azuis. Não. Eu coloquei a
Rapunzel, negra, de cabelos negros. Por aí você abre caminhos para fazer com que a
criança entenda que não existe só [princesa] branca, dos olhos azuis, de cabelo
amarelo. Existem grandes diferenças. (Professora Fama - entrevista concedida em
21/09/06)
Ao que parece, Fama não fundamenta o seu trabalho em referências teóricas mais
substanciais, orienta-se, provavelmente, pelo que aprendeu no curso sobre a valorização da
estética branca. Sendo assim, procura inverter a lógica. Tal atividade consegue estabelecer
uma ruptura na norma de um dos contos de fadas mais presentes no universo da educação
infantil. A inversão apresenta para a criança a possibilidade de imaginar uma princesa negra.
Aparentemente,
um
procedimento
simples.
Metodologicamente,
há
várias
complexidades envolvidas. A educadora, nesse procedimento, teve de repensar seu
planejamento. Realizou uma atividade rotineira na educação infantil revestindo-a de novos
164
Em várias regiões da África existem os diêli "animadores públicos" na língua bambara (griots, em francês e
griôs em português). Segundo Amadou Hampâté Bâ, esse termo se refere a "uma corporação profissional,
compreendendo músicos, cantores e também sábios genealogistas itinerantes ligados a algumas famílias cuja
história cantavam e celebravam. No Brasil o termo tem sido utilizado para designar a sabedoria dos velhos
africanos. Às vezes como sinônimo de “sábios contadores de histórias”. Consultar BÂ.Amadou Hampâté.
Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Pallas Athena: Casa das Áfricas, p. 13, 2003.
165
Rapunzel, conto de fadas dos irmãos Grimm, é criada numa imensa torre, prisioneira do mundo, por uma
bruxa malvada. O cabelo da menina nunca é cortado e é conservado como uma gigantesca trança. Um dia, um
príncipe passando pelo local, ouve Rapunzel cantando, e decide salvá-la das garras da bruxa. Ao enfrentar a vilã,
é castigado com uma cegueira total. Mas, no final da história, ele é salvo pelas lágrimas da amada, e têm o
merecido final feliz.
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significados, porque foi preciso pensar na história não apenas do ponto de vista do seu roteiro
mas como uma história colabora na construção do imaginário infantil.166 Rompendo com a
norma: princesas são brancas, de longos cabelos lisos e loiros, com belos olhos azuis. Essa
transgressão não passou, segundo a educadora, despercebida pelas crianças.
Quando, de repente, você adapta a história a um outro tipo de característica, [você
ouve]: “Ué, professora mas a Rapunzel, não é loira? Ué, na outra historinha, ela é
loira.” . "Mas agora ela é morena, será que existe somente a cor loira?". (Professora
Fama - entrevista concedida em 21/09/06)
O que se observa nesse relato é que, mesmo cometendo alguns equívocos conceituais,
como a utilização do termo loiro como cor, ou o uso de "morena" em vez de “negra”, Fama
mostra que existem outras possibilidades de ser Rapunzel. A educadora procura, com os
conhecimentos que tem, proporcionar a alunos o questionamento do padrão de beleza mais
valorizado socialmente, dando lhes condições para realizar rupturas no que está dado e parece
consolidado em termos de construção simbólica167. Isso é uma aprendizagem importante,
principalmente para lidar com preconceitos que precisam ser questionados. Esperamos que as
crianças se agarrem nos cabelos negros da Rapunzel para construírem suas identidades de
modo positivo.
Outra modalidade utilizada por duas educadoras foi a realização de entrevistas. Uma
delas, Fatou, levou seus alunos para conhecerem a ONG do movimento negro Grupo TEZ.
Ali, realizaram entrevistas com os dirigentes e conheceram os trabalhos produzidos pela
instituição.
7. Pintando o sete: o fazer artístico como recurso metodológico
O fazer artístico na educação infantil envolve vários tipos de linguagens, como as artes
visuais, a música, o teatro e a dança. A proposta pedagógica de MS (2002, p.50), ao
166
Para Michael Mafessoli "O imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação,
de uma comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social". Entrevista concedida a Juremir
Machado da Silva, em Paris. Publicada na Revista Famecos, Porto Alegre,nº 15, agosto 2001.
167
Não é demais afirmar que essas rupturas colaboram na alteração do que Bourdieu chamou de capital
simbólico. O prestígio, a fama e a valorização do padrão de beleza do branco podem ser colocados em xeque à
medida que as crianças possuam instrumentos que lhes permitam questionar esse valor conferido pela força da
reprodução cultural. A beleza branca só é um valor porque há um consenso social em torno dessa assertiva.
Quando se estabelecem estratégias para questioná-la e se encontram outras formas de conceber a beleza, abre-se
a possibilidade de romper com tal crença. Mais detalhes em Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Difel,
1989.
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exemplificar a execução dos projetos, enfatiza que "as artes - musical, cênica e plástica podem e devem ser bem exploradas". Também está previsto no RCNEI que:
As crianças têm suas próprias impressões, idéias e interpretações sobre a produção
de arte e o fazer artístico. Tais construções são elaboradas a partir de suas
experiências ao longo da vida, que envolvem a relação com a produção de arte, com
o mundo dos objetos e com seu próprio fazer. As crianças exploram, sentem, agem,
refletem e elaboram sentidos de suas experiências. A partir daí constroem
significações sobre como se faz, o que é, para que serve e sobre outros
conhecimentos a respeito da arte. (RCNEI, 1998, vol.3, p.83)
Ao apresentar o trabalho com artes, esses documentos enfatizam que não se constitui
em transmissão de técnicas ou mera reprodução de repertórios estabelecidos, mas que devem
ser compreendidos nos seus variados aspectos, como momento de lazer, de auto-expressão, de
transmissão de conceitos e sobretudo que a arte seja mais uma possibilidade de compreender
o que se faz e o que os outros fazem desenvolvendo uma percepção estética e se apropriando
do contexto histórico em que uma determinada obra é realizada.
Todos os povos representam artisticamente, sentimentos, desejos, fatos ou idéias. No
trabalho com as artes visuais, é importante proporcionar às crianças o contato com os mais
variados tipos de manifestações artísticas: modelagem, esculturas, instalações, telas e outros.
Elas devem aprender a apreciar a arte já produzida e ser estimulada a produzir também a sua
arte. Não se pode, ao trabalhar esse conteúdo perder a oportunidade de apresentar para as
crianças a produção das artes visuais dos povos africanos e indígenas. Elas são riquíssimas e
ampliará a concepção das crianças sobre quem faz arte.
Nos trabalhos relacionados a esse campo realizados pelas professoras de Campo
Grande, destacaram-se a dramatização, o uso de imagens positivas de pessoas negras por meio
de atividades de recorte e colagem, o uso de desenhos e a confecção de bonecas. A seguir
comentaremos cada uma dessas expressões, enfatizando as estratégias utilizadas pelas
educadoras e suas repercussões em relação à educação das relações étnico-raciais.
7.1. Confecção de bonecas
A produção de bonecas negras para compor o universo dos brinquedos disponíveis em
sala de aula também foi um recurso utilizado pelas professoras, resultante da oficina que o
curso ofereceu. Esse recurso tem sido recorrente nas experiências desenvolvidas por
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educadoras dessa etapa. A educadora Fatou levou no momento da roda168 uma caixa surpresa
que continha duas bonecas: Celina, uma boneca negra, e Sara, uma boneca branca.
Eram seus argumentos para continuar o trabalho que já vinha fazendo com as crianças
de discussão de semelhanças e diferenças entre os elementos da natureza. Ela já tinha falado
dos animais, usando a poesia As borboletas, de Vinicíus de Morais, e o texto Borboleta triste.
Depois, usou o espelho (atividade que será comentada no item corporeidade) e, em seguida,
apresentou as bonecas.
Como o brincar é destacado como uma dimensão fundamental da educação infantil e a
boneca, culturalmente, faz parte desse universo, a ação de produzir bonecas negras atua tanto
na dimensão de possibilitar a convivência com brinquedos que representem diferentes origens
étnico-raciais como também foi motivo para questionar o estereótipo de que esse tipo de
brinquedo é apenas para as meninas.
Uma das estratégias da educadora Abibatou, bastante envolvida com esse tipo de
produção, foi confeccionar junto com as crianças uma boneca negra gigante. Era a Cidinha,
personagem criado por ela para o livro que foi ilustrado pelas crianças. Cada criança da sala
levou para sua casa a boneca para apresentá-la à família, o modo encontrado pela educadora
para aproximar a família do trabalho em realização. Em geral a boneca era bem aceita, as
crianças a levavam e traziam no dia seguinte, relatando na roda o que fizeram com a ela em
casa. A exceção foi na casa de um dos meninos. De acordo com o depoimento da professora o
acontecimento se desenrola da seguinte maneira.
Um menino era louco para levar a boneca, ele levou. Em casa, o pai quis bater. Ele
chegou pra mim e falou: "Meu pai quis me bater ontem. Ele não me deixou dormir
com a Cidinha". (Ela imita a voz da criança chorosa). Quis bater, porque, onde já se
viu um menino trazer boneca para casa e ainda por cima uma boneca negra? Ai,
nossa! Eu fiquei assim ... Mas eu pedi foi pra chocar mesmo... Pra ver o que eu ia
buscar. (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
A educadora, mesmo estarrecida, diante do depoimento do menino, apóia e lhe diz:
Mas você vai dormir com a Cidinha, espera. Aí mandei chamar o pai e a mãe aqui. E
ai eu falei pra mãe: “O que me choca é que você já trabalhou em creche, você sabe
como era nosso trabalho”. Eu conversei, expliquei pro pai, qual era o trabalho,
expliquei o que era, o que não era. Que o filho dele não ia ficar nem mais nem
menos feminino... (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
168
A roda é uma estratégia bastante difundida na educação infantil, todas as crianças sentam-se no chão ou em
cadeiras em círculo e serve para iniciar a aula organizando a rotina, discutir algum assunto, apresentar novidades,
resolver conflitos, debater temas dentre outra atividades.
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E o pai responde para a educadora, segundo seu depoimento
“Professora, me perdoa, porque eu não tive uma pessoa assim como a senhora para
me orientar, falar e trabalhar as coisas dessa maneira. Deixa ele levar a boneca
hoje.” (Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
Abibatou, satisfeita com o resultado, finaliza sua história.
À tarde, ele levou a boneca. A mãe dele disse que ele dormiu tão feliz abraçado com
a boneca. No outro dia ele chegou aqui todo faceiro. Sabe, foi assim uma coisa... E
ai o pai ficou mais assim... mais maleável, inclusive acho que o pai não o deixaria
nem brincar de ser pai de uma boneca. (Professora Abibatou - entrevista concedida
em 22/09/05)
O relato revela que as intervenções realizadas pelos trabalhos das educadoras
mobilizam dimensões importantes que, se bem conduzidas, como foi o caso, levam a criança
e sua família a pensar sobre o que é brinquedo para menino e brinquedo para menina. O fato
de a educadora possibilitar à família refletir sobre esses "dogmas" é uma colaboração na
condução de possíveis mudanças.
7.2. Possibilidade de experimentando ser Outro: dramatização
O recurso à dramatização utilizado pelas educadoras para trabalhar com a educação
das relações étnico-raciais ocorria após atividades de leituras.
Nós trabalhamos Menina Bonita do Laço de Fita. Eu contei a historinha,
dramatizava, mudava o tom de voz e isso e aquilo. Aí virou um aluno e falou para
mim: "Professora, vamos fazer um teatro com a historinha?" Então, vamos. Tinha
um queria ser o coelho, era aquela briga. [...] Então, o que a gente fez? Na sala, nós
montamos, um teatrinho para eles. Eu acho que essa historia foi contada umas 25
vezes, porque cada aluno queria ser o personagem. E foi engraçado porque eles
faziam tudo certinho. Eles falam certinho como o coelho. Falavam : "Ah, menina
bonita do laço de fita, porque você é tão pretinha assim?". (Professora Fama entrevista concedida em 21/09/05)
Pelo relato da professora, as crianças gostavam de se expressarem por meio dessa
linguagem, na qual todos tiveram oportunidade de participar ocupando o papel dos
personagens principais. Questão importante, pois é comum em atividades desse tipo a
educadora escolher a criança que deverá representar o papel do personagem principal. No
relato da professora, não houve esse processo de escolha.
Entretanto não nos pareceu que o princípio de que todos podem representar o papel
principal independentemente do seu pertencimento étnico-racial esteja consolidado na prática
pedagógica da educadora.
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Eles adoram muito dramatizar. Adoram. Se você conta a historinha: "Ah, professora,
eu quero ser a Rapunzel!" Então, se tem a menina branca, vai a menina branca. A
gente a cada dia, a cada dia, ou cada hora a gente se reveza. Então eles se sentem
mais à vontade até mesmo para fazer as atividades que a gente propõe em sala.
(Professora Fama - entrevista concedida em 21/09/05, grifos nossos)
Nesse depoimento pode-se ser entender que ocorreu uma "falha comunicativa" ao
dizer que, para representar a Rapunzel, o papel cabe à menina branca. Porém instaura-se a
dúvida. Será que ela, preferencialmente, escolhe a menina branca, para o papel de Rapunzel?
A incerteza se estabelece porque em seguida ela diz que há um revezamento na representação
da personagem. Apresentando mais uma vez o princípio de que todos têm oportunidade de
representar. Essa ambigüidade apresentada nos alerta para a possibilidade de que exista na
escolhas das educadoras o predomínio da preferência por crianças brancas para ocupar os
principais papéis nas atividades educacionais.
O relato da educadora nos apresenta como é complexo propiciar a alunos códigos de
compreensão sobre a diversidade étnico-racial diferentes dos vigentes. Isto porque é
necessário que as educadoras realizem uma revisão dos seus próprios modos de compreensão
sobre o fato. No depoimento que se segue, essa dificuldade fica evidenciada quando a mesma
educadora se comove com o desenho apresentado por sua aluna no qual a Rapunzel está
representada como negra, resultado do trabalho que ela realizou ao contar essa história
apresentando um novo modelo de Rapunzel.
Tenho até hoje uma historinha que uma aluna me deu. Ela até escreveu “para a
minha professora”. E eu tenho até hoje essa historinha lá em casa...Não foi nem pelo
que ela escreveu, mas pelo desenho que você vê, entendeu? Não que a escrita não
seja importante, ela é importante, mas o desenho, você [vê] passou uma coisa que...
você conseguiu aquele objetivo que você queria, sabe. Então, talvez ela, talvez, não,
ela leve para a vida inteira dela, aquela história, ou aquele pensamento de que tudo
na vida... as coisas não são iguais, tudo é diferente. Já pensou se tudo fosse igual?
Não ia ter nem a discussão, né? (Professora Fama - entrevista concedida em
21/09/05)
De fato a educadora está correta, “se tudo fosse igual, não ia ter nem a discussão” e se
tudo fosse fácil não precisaríamos nem investir intensamente na formação do professor. Pelas
atividades desenvolvidas, percebemos que os cursos provocam rupturas importantes nas
práticas pedagógicas das professoras. Identifica-se um esforço por parte das educadoras na
apropriação dos conteúdos trabalhados no curso e de transformá-los em práticas pedagógicas.
Todavia percebe-se que esse empenho não vem acompanhado de políticas mais consistentes
por parte da Secretaria porque as ações desenvolvidas não têm conseguido dar o devido
suporte e acompanhamento aos trabalhados das professoras após a iniciativa de formação.
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7.3. Imagens refletidas: confecção de cartazes considerando a diversidade
étnico-racial
O dia-a-dia da escola é cercado por imagens de pessoas. Além das pessoas reais, há as
imagens originadas de revistas, livros didáticos ou produzidas pelas próprias educadoras e
alunos. Naturalmente, tanto as imagens vindas de fora quanto as produzidas na escola estão
permeadas das crenças, conceitos e valores da sociedade sobre o “belo”, limitando, como se
sabe, a presença negra. Mesmo considerando que, nos últimos anos, aumentou
consideravelmente a presença positiva de pessoas negras e de outros grupos não-brancos em
peças publicitárias e em produções de massa, como novelas, ainda é pertinente a crítica sobre
o tratamento subalternizado dado à imagem da população negra.
Nesse sentido, ao lidar com imagens, as professoras se esforçam para se contrapor a
esse modo de representar a população. Suas práticas disponibilizam aos alunos imagens que
representem a população negra de forma positiva e a sociedade multirracial que somos. É com
livros e revistas, de mais fácil acesso, que as educadoras contam para trabalharem com esse
aspecto, considerado de extrema importância.
Seria muito mais fácil se as escolas dispusessem de mais recursos tecnológicos.
Entretanto, se os educadores têm sorte de trabalhar em escolas com computadores, quase
nunca podem utilizá-los. Por isso, não nos surpreendeu que as atividades com imagens citadas
pelas educadoras para trabalhar a educação das relações étnico-raciais se restringiram a
confeccionar cartazes com recortes de imagens presentes em livros, jornais e revistas.
A prática consiste em confeccionar cartazes relacionados a datas comemorativas ou
assuntos temáticos (dia das mães, dia dos pais, dia das crianças, profissões etc.).As crianças
montam cartazes nos quais estejam representadas pessoas de diferentes grupos étnico-raciais.
Como exemplifica este depoimento da educadora Fama:
Eu usei recortes de revistas, porque a fotografia, nós tivemos dificuldade, aí vamos
trabalhar a família, vamos recortar a família: papai, mamãe, coloquei titia, vovó,
essas coisas assim. Várias raças... (Professora Fama - entrevista concedida em
21/09/05)
Segundo seu relato, ela procurava imagens para confeccionar os cartazes que
valorizassem os negros, mostrando-os como médicos e engenheiros ou em outras atividades
que usualmente os negros não são vistos.
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Deixa eu até fazer um questionamento, nas profissões. Por exemplo,"Ah!, mas só
tem médico branco?" "Ah, mas só tem médica loira?" Então, nas profissões, o
negro médico, o negro advogado, o negro que trabalha no banco, o negro rico. Não
só o negro pobre. O negro com carrão, por que só branco pode ter? Por que o negro
não pode ter? (Professora Fama - entrevista concedida em 21/09/05)
A atividade de confecção de cartazes privilegiando imagens positivas da população
negra por meio de recorte e colagem não deve ser de fácil e simples execução porque a
maioria das revistas disponíveis em bancas de jornal traz quase exclusivamente imagens de
pessoas brancas. Então, mesmo essa atividade quase artesanal requer cuidadoso planejamento,
e deve contar com a colaboração da coordenação e direção para que se efetive pois isso
também é papel das escolas e das Secretarias. Contar exclusivamente com a criatividade da
educadora para ultrapassar as barreiras tão grandes não é uma atitude justa dos formuladores
de política com esse objetivo. Os sistemas de ensino, além de proporcionarem momentos de
formação dos professores para trabalharem com o tema, devem garantir-lhes as condições
materiais. Questão essa prevista na resolução nº. 01/04 do CNE, Art. 2º.
§ 1° Os sistemas de ensino e as entidades mantenedoras incentivarão e criarão
condições materiais e financeiras, assim como proverão as escolas, professores e
alunos, de material bibliográfico e de outros materiais didáticos necessários para a
educação tratada no "caput" deste artigo.
O ideal seria que as educadoras e seus alunos pudessem acessar a internet. Há
excelentes estudos fotográficos disponíveis ou mesmo conhecer países africanos "viajando"
com as crianças pelo continente africano, podendo conhecê-lo sob outros olhares que não os
priorizados pela mídia. Seria ainda importante ter projetores de slides, data show, entre outros
recursos que facilitem a imersão das crianças e das educadoras em imagens positivas e
diferenciadas das que tem acesso. Filmes e vídeos que tratassem do tema em questão é uma
outra importante alternativa para trabalhar com imagens.
7.4. Apreciação de obras de arte: todos os grupos étnico-raciais produzem
Uma das educadoras, ao relatar outro aspecto do trabalho com a imagem e com o fazer
artístico, apresenta o uso do que foi chamado por ela de “cores da África”.169 Ela se utilizou
169
Essas cores são a azul, a verde, o vermelho e o preto, mas principalmente o preto e o verde. Elas têm sido
utilizadas pelo movimento negro simbolizando o continente africano e suas lutas. e são oriundas da
Organização da Unidade Africana (OUA) criada em 25 de Maio de 1963 em Adis Adeba, Etiópia, através da
assinatura da sua Constituição por representantes de 32 governos de países africanos independentes. A OUA foi
substituída pela União Africana a 9 de Julho de 2002.
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dessas cores para enfeitar a sala de aula e produzir desenhos com as crianças. Elas escolheram
lugares e objetos que poderiam recebê-las e depois estudaram obras do artista plástico local,
David Nunes, que se utiliza delas. Abaixo apresentamos uma foto na qual as crianças estão
apreciando uma obra do autor. A apreciação de obra de arte é uma atividade prevista nos
RCNEI e tem sido largamente utilizada na educação infantil, mas raramente se articula às
relações étnico-raciais.
Fotografia 1 - Fatou com seus alunos apreciando obra de arte170
Outra atividade relatada pelas educadoras e que consideramos
do universo da
construção da imagem é a participação das crianças em eventos públicos nos quais as crianças
negras e portadoras de necessidades educacionais especiais ocupam lugares privilegiados.
8. Corporeidade: cada um tem sua beleza, todas têm o seu valor
A apreciação e valorização das características físicas das crianças se constituíram nos
temas centrais dos trabalhos das professoras. Tal centralidade indica-nos mais uma vez as
maneiras pelas quais as educadoras se apropriam dos conteúdos vistos durante o curso e como
procuram a partir deles revestir suas práticas: no segundo módulo171 do curso, os conteúdos
170
Fonte: acervo pessoal da professora Fatou, 2001.
171
Estrutura do módulo: a) Como se dá a reprodução do racismo na educação; A escola como agente reprodutor
do racismo; Analisando os livros didáticos. b) Metodologia de combate ao racismo - oficinas Trabalhando com a
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enfatizavam o fato de a criança negra não ter suas características físicas valorizadas,
principalmente o tipo de cabelo e a cor da pele.
A questão da distribuição do afeto e suas conseqüências para as crianças foi tema de
uma das pesquisas mais comoventes já produzidas no Brasil. A professora Eliane Cavalleiro
(1998), ao observar a interação entre professoras de pré-escola e seus alunos, identifica que a
afetividade é distribuída também de acordo com critérios étnico-raciais, sendo as crianças
negras as que menos recebem afeto e incentivos. Também nessa mesma época, nosso trabalho
de mestrado (DIAS, 1997) apresenta as representações de crianças negras e brancas sobre
pessoas negras e brancas, evidenciando que crianças brancas apresentam maior tendência em
representar negros de modo subalternizado; e as crianças negras, ao se representarem,
preferem a pele branca e os cabelos lisos.
Mais de dez anos separam essas pesquisas do mestrado de Fabiana de Oliveira (2005),
mas suas observações nos revelam que, em plena vigência da lei 10.639/03 e das DCEER, as
crianças negras, ainda no berçário, são os alvos prediletos de apelidos depreciativos e de
punições mais severas por parte das educadoras. A investigação constata ainda e de novo que
as crianças negras recebem menos carinho.
Entretanto esta pesquisa revela que as educadoras de Campo Grande que passaram
pelo curso estão mais atentas em evitar esse desequilíbrio. Também se mostram capazes de
agir sobre esses conflitos na busca por produzir novas relações. Como prescreve as DCEER:
É necessário sublinhar que tais políticas têm também como meta o direito dos
negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de
ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores
qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação
para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações,
sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos
étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e
povos indígenas. (DCEER, 2004, p.2)
Essas relações tensas às quais se refere o texto das DCEER revelam-se no cotidiano
das crianças desde muito cedo. Relata a educadora Abibatou:
A maioria das pessoas não acredita que exista o preconceito na escola, na educação
infantil. Tem professor que tem mestrado, doutorado, mas nunca adentrou a sala de
aula, e para você saber o que é a rejeição, o desamor, o preconceito, a
discriminação... A criança pequena sabe discriminar, porque ela ouve o pai, o
adulto, falando, "olha aquele negro, olha aquele cabelo de Bombril". Então, ela ouve
pluralidade étnica; Auto-estima; Relato de experiências.
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em casa. E só quem está na sala de aula sabe que a discriminação racial existe.
(Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
Abibatou ressalta que o reconhecimento da existência do racismo não ocorre somente
por meio dos saberes técnicos que uma pessoa tenha. Para ela, é a experiência que fortalece
esse saber é o contato com as crianças que permite afirmar que o racismo existe.
Além disso, responsabiliza os adultos pela manutenção do racismo, procurando
"desculpar" a criança quando essa o manifesta. Tal iniciativa de isentar a criança pelo
preconceito manifesto articula-se com a idéia de infância como o tempo da ingenuidade,
recorrente em vários dos depoimentos. Sempre que as educadoras se referiam a algum tipo de
ação das crianças nesse sentido, elas procuravam ressaltar que a criança está livre dessa
responsabilidade. O mesmo não ocorre com sua família. Para as educadoras, pais e mães são
os maiores responsáveis pelo preconceito manifesto nos pequenos. Segundo Abibatou:
Quando você faz um projeto, primeiro você pergunta o que eles querem, qual é o
tema. Eu fiz ao contrário, eu queria mesmo ver o que a que a família, o que
comunidade achava em relação ao negro ao índio. No começo teve criança que falou
para mim: “O índio é sujo, o negro não toma banho”. (Professora Abibatou entrevista concedida em 22/09/05)
Visão essa reiterada pela professora Fatou:
Quando a criança socializava em casa que estava trabalhando com a questão racial,
ela voltava cheia de preconceitos, com piadas. Então, você percebe como é que se
dava. A própria família, apesar de termos feito um trabalho com as famílias,
também, mas o pontapé inicial foi com as crianças, a própria família não colocava
credibilidade no tema. (Professora Fatou- entrevista concedida em 21/09/05)
Elas atribuem responsabilidade às famílias, embora não façam uma discussão mais
elaborada do racismo como algo estruturante nas relações sociais do Brasil. Entretanto, ao
admitirem, que há racismo na educação infantil, elas reconhecem que é necessário atuar sobre
essa realidade e realizam diferentes práticas, sendo o corpo um dos focos privilegiados.
O corpo, culturalmente construído, é o "lugar" habitado por nós, sendo com o avanço
tecnológico, cada vez mais alvo de transformações para torná-lo mais agradável aos olhos dos
outros e aos seus próprios. Para GOMES (2006):
É no corpo que se dão as sensações, as pressões, os julgamentos. Esses não
acontecem de forma independente, mas estão intimamente entrelaçados,
constituindo uma estrutura, uma unidade que tem uma ordem - a sua forma de corpo.
É essa forma que garante o modo de ser-no-mundo e torna possível a compreensão
de como as relações são construídas com o mundo e no mundo. Assim, visto como
um campo fenomenal, podemos também compreender o corpo para além de suas
ações puramente fisiológicas, aproximando-nos das suas relações de sentido e de
significação. Ele se manifesta, então, pelo movimento ou comportamento, o qual se
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realiza numa ação que se projeta sempre para fora dela mesma, em direção ao outro,
ao mundo, nos limites da percepção e do trabalho. O sujeito, por meio do corpo,
expressa algo e realiza uma ação determinada. (GOMES, 2006, p.261)
É nessa cultura, portanto, que a criança branca aprende, por meios dos textos sociais
(fala, imagem, olhares, sorrisos, etc), que possui algo em seu corpo que lhe atribui vantagem,
sobre os não-brancos. Aprendem sobre o bonito e feio e classificam a si mesmas e aos outros
com tais critérios. É bonita uma criança de olhos azuis? Quem recebe mais elogios, a criança
de cabelos loiros ou a criança de cabelos pretos? E se forem crespos esses cabelos?
8.1. "Espelho, espelho meu, diga se há no mundo, alguém mais bela do que
eu?"
A percepção do próprio corpo é informada por questões culturais. Já na educação
infantil, é possível verificar a valorização de algumas características corporais em detrimento
de outras. Em decorrência, existem ações pedagógicas para essa faixa etária que incluem o
cuidado com o corpo e a problematização das representações acerca dele. Lábios grossos,
lábios finos, cabelos lisos, cabelos crespos, olhos pretos, olhos azuis, tudo isso se transformou
em "matéria" da educação infantil. As educadoras de Campo Grande organizaram diferentes
momentos em suas práticas pedagógicas para abordar essa problemática, entre as quais o
diálogo pedagógico individual, como foi o caso da professora Mariama, apresentado
anteriormente, que o aluno L. questionou por que o seu colega P. era negro ao vê-lo no banho.
No episódio, a busca pelo autoconhecimento, proposto pela educadora, é permeado pela
noção da hierarquia racial presente na sociedade brasileira. Segundo Muniz:
Com referência ao negro, a mídia e a indústria cultural constroem identidades
virtuais a partir não só da negação e do recalcamento mas também de um saber de
senso comum alimentado por uma longa tradição ocidental de preconceitos e
rejeições. Da identidade virtual nascem os estereótipos e as folclorizações em torno
do individuo de pele escura (SODRÉ, 1999,p.246)
Ao estabelecer com a criança essa possibilidade de olhar e gostar do corpo negro que
vê, a professora busca resistir à força da mídia. Mesmo numa batalha tão desigual, o
contraponto é uma grande contribuição para problematizar os estereótipos. De acordo com os
resultados das pesquisas de Cavalleiro (1998), Dias (1997) e Oliveira, F. (2005), não é essa a
postura mais corrente na escola.
Pudemos constatar esse contraponto também no trabalho da educadora Fatou para a
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criança aprender a apreciar seu corpo:
E por falar em algo belo, algo tão singular, ímpar, não precisou de estímulo algum
para que as crianças apreciassem e se encantassem com elas mesmas diante do
espelho. Esta foi uma atividade de auto-estima e auto-retrato. Atividade de
observação às características físicas de si mesmo: cor dos olhos, do cabelo, da pele,
forma do nariz, da boca, o sorriso, os dentes etc. Em seguida, foram estimuladas a
tocarem o corpo, o cabelo, o rosto e pernas dos colegas. Por fim um "sofisticado",
porém improvisado salão de beleza. (Professora Fatou).172
Cremos que não seja tão fácil como colocado pela professora, sabemos que de fato as
crianças gostam do espelho, objeto encantador. Às vezes, não gostamos do que vimos, porém
não podemos considerar natural que crianças pequenas se olhem e queiram outra cor de pele,
outro cabelo por se sentirem desvalorizadas; outras, ao contrário, se sentem mais superiores
ao outros justamente por possuírem atributos valorizados socialmente.
Fotografia 2 - Criança olhando-se no espelho e admirando suas características 173
Além dos diálogos pedagógicos, como o caso do banho e o trabalho diante do espelho,
as educadoras usaram fotografias. As crianças montaram um painel de fotos delas com seus
familiares e observaram, coletivamente, as características físicas, a cor do cabelo, dos olhos,
da pele etc. procurando semelhanças entre a criança e a pessoa de sua família.
172
Relatório produzido pela professora sobre o projeto "Trabalhando as diferenças" [arquivo pessoal], 2001.
Anexo 17.
173
Fonte: acervo pessoal da professora Fatou, 2001
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Outra atividade de valorização das características físicas foi a promoção de desfiles e a
organização de salão de beleza. No primeiro as crianças imitavam estarem numa passarela, e a
professora, ao chamá-las, enfatizava a cor da pele e dos olhos, o tipo de cabelo etc. A
passagem das crianças pela "passarela" era sempre acompanhada de vários elogios
Quando eles querem fazer uma atividade diferente, eles querem brincar de dançar,
eles querem desfilar... Então, a gente fala: "Olha aquele negro lindo passando".
Sabe, dá aquelas características da criança. Então, eles se sentem valorizados como
pessoa. Por que só o branco que é bonito? (Professora Fama - entrevista concedida
em 21/09/05)
8.2. Momentos de pentear : uma ação pedagógica
Chegou a hora de falar, vamos ser francos, pois quando um preto fala, o branco cala
ou deixa a sala, com veludo nos tamancos. Cabelo veio da África, junto com meus
santos. Benguelas, zulus, gêges Rebolos, bundos, bantos. Batuques, toques,
mandingas. Danças, tranças, cantos. Respeitem meus cabelos, brancos. Respeitem
meus cabelos, brancos. Se eu quero pixaim, deixa. Se eu quero enrolar, deixa. Se eu
quero assanhar, deixa. Deixa, deixa a madeixa balançar. Fui claro. Chico César,
Respeitem meus Cabelos, Brancos, 2002.
Entre as práticas mais marcantes e inovadoras relatadas encontram-se os "momentos
de pentear". O ato de pentear as crianças na educação infantil é parte do processo do cuidar,
mas ganha uma dimensão pedagógica ao enveredar pelas relações étnico-raciais.
Chico César pede respeito a seus cabelos. Sabe que esse é um atributo importante do
corpo e que de modo geral, nos negros, é tido como um problema. Desde pequena ouvíamos
de meu pai, negro de tez clara e cabelos crespos, que ele sempre pedia a Deus que não
mandasse uma menina de cabelo “ruim". Homem até podia ser, é mais fácil de cuidar, cortase baixinho e pronto. Mas, numa menina, a coisa era mais complicada. Deus não ouviu os
pedidos: entre as quatro filhas, uma veio com o "cabelo ruim". O que fazer? Prende-se.
Essa poderia ser apenas uma das más recordações de uma infância já distante. Mas não
é coisa do passado nem isolada ou causada por um pai pouco amoroso. A vontade paterna,
aqui, reflete o desejo de proteção diante de uma sociedade que valoriza o cabelo liso, de
preferência loiro. Como ele, tantos outros pais não sabem o que fazer com os cabelos crespos
de seus filhos. Em nosso caso, a consciência racial positiva adquirida por outras vias nos
possibilitou que enfrentássemos essa "falta divina" e, como Chico César, conseguimos pedir
respeito ao nosso tipo de cabelo.
Quando digo "respeitem meus cabelos, brancos" não falo só de mim nem quero
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dizer só isso. Debaixo dos cabelos, o homem como metáfora. A raça. A geração. A
pessoa e suas idéias. A luta para manter-se de pé e mantê-las, as idéias, flecheiras. É
como se alguém dissesse "respeitem minha particularidade". É o que eu digo, como
artista brasileiro nordestino descendente de negros e índios. E brancos. Ou ainda no
plural: minhas particularidades mutantes. Fala-se em tolerância. Pois não é disso que
se trata. Trata-se de respeito (Chico César) .174
Na música Veja os cabelos dela, composta por Tiririca, em 1996, a letra expressa
representações à cerca do cabelo crespo e da mulher negra que inferiorizam esses atributos
físicos identitários:
Veja, veja os cabelos dela! Parece bombril de arear panela, Eu já mandei ela se
lavar. Mas ela teimou e não quis me escutar. Essa nega fede! Fede de lascar. Bicha
fedorenta, fede mais que um gambá. Veja, veja, veja os cabelos dela. Como é que é?
A galera toda aí. Com as mãozinhas pra cima. Veja, veja, os cabelos dela. Bonito,
bonito! Aí, morena, você, garotona. Veja, veja, veja os cabelos dela.175
A gravadora foi condenada pelo Tribunal do Rio de Janeiro a pagar R$ 300 mil, um
avanço impensável em 1931, ano da marchinha carnavalesca O teu cabelo não nega, mulata,
gravada por Castro Barbosa acompanhado pelo Grupo da Velha Guarda de Pixinguinha: "O
teu cabelo não nega, mulata. Porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata.
Mulata eu quero teu amor. Tens um sabor, bem do Brasil. Tens a alma cor de anil. Mulata,
mulatinha meu amor".176 É claro que a música de Tiririca é pior do que a de Lamartime Babo
- para Tiririca, a mulher negra é um ser totalmente repugnante. Para Lamartine, apesar da cor
e do cabelo, ela é digna de ser amada. Ambas, no entanto traduzem de modo inequívoco como
as representações do negro na sociedade brasileira são construídas e que a dupla, cor negra e
cabelo crespo, constituem sinais de inferiorização.
Na produção acadêmica, os estudos sobre cabelo como parte da constituição da
identidade negra positiva ou negativa vêm ganhando espaço. Antes de 2002, aparecia
tangencialmente, em alguns trabalhos, como em Sodré (1999, P.253), no livro Claros e
Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Ele declara que "[...] a preocupação com o
cabelo é quase obsessiva [...]" ao analisar a imprensa negra contemporânea, segundo ele de
algum modo subordinada ao mercado:
A obsessão contemporânea com o cabelo explica-se igualmente pelo de que o atual
discurso mediático sobre o negro é mais estético do que político, doutrinário ou
174
Site Oficial do cantor < http://www2.uol.com.br/chicocesar/musica/discorespeitem.htm> Acesso em: 26 nov.
2006.
175
<http://www.vestibular.uerj.br/vest1997/files/1997_f2_red.pdf>. Acesso em 26 nov.2006.
176
Grifo nosso.
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ético. Nos jornais do passado, os modelos de reconstrução mítica da identidade eram
ideólogos como José do Patrocínio, André Rebouças, Luiz Gama. Hoje são atores,
modelos, cantores, jogadores de futebol ou figuras de grande sucesso profissional.
(SODRÉ, 1999, p.254)
Livio Sansone (2004), ao tratar da identidade negra entre jovens baianos, aponta que:
No Brasil, a cor é ainda mais determinada pelo cabelo crespo do que pelo tom da
pele, e os cabelos lisos ou alisados são essenciais para permitir que o indivíduo passe
de preto a pardo ou mulato. Segundo a norma somática hegemônica nas classes
populares, na Bahia, como pode comprovar na literatura de cordel, a pessoa de tez
clara e cabelo crespo (geralmente chamada de sarará) é considerada feia e
potencialmente traiçoeira, ao passo que a pessoa de tez muito escura e cabelo liso
natural (em geral chamada de cabo-verde) pode ser bonita, porque supostamente
combina a beleza da pele negra com a “finura” associada ao cabelo liso natural. Diz
um importante provérbio que “cor a gente conhece pelo cabelo da nuca” (a parte
“oculta” do cabelo, que não pode ser alisada) (SANSONE, 2004, p.145).
Apesar de não concordamos com Sansone sobre essa possibilidade de trânsito do
sujeito negro de preto a "mulato", seu trabalho relata-nos que no cabelo há uma questão
importante a ser considerada ao tratarmos da identidade. Dentro dessa linha, Ângela
Figueiredo (1994) afirma:
O cabelo crespo ocupa um lugar central na memória e na reconstrução da exclusão
de que foram vítimas na infância, seja na escola ou na própria família, talvez, por
isso, para o ativismo negro, o cabelo crespo natural é um símbolo de afirmação da
identidade, ao passo que, para a maioria das mulheres que incorporaram as
representações negativas sobre os cabelos crespos, o cabelo é, entre os fenótipos
negros, aquele que pode e deve ser manipulado.(FIGUEIREDO, 1994, p.27).
A pesquisa de doutorado de Nilma Gomes de Melo (2002), publicada em livro em
2006 sob o título Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, se
atém exatamente sobre o corpo e o cabelo como símbolos da identidade negra e estabelece um
marco importante na pesquisa sobre identidade negra. Segundo a autora:
A etnografia dos penteados africanos nos mostra que o cabelo nunca foi considerado
um simples atributo da natureza para os povos africanos, sobretudo os habitantes da
África Ocidental. O seu significado social, estético e espiritual constitui um marco
identitário que se tem mantido forte por milhares de anos. É um testemunho de que
resistência e a força das culturas africanas perduram até hoje entre nós através do
simbolismo do cabelo. (GOMES, 2006, p.357)
Os momentos de pentear os cabelos, a princípio, constituíam-se como práticas
pedagógicas relacionadas à dimensão do cuidar. Com a formação recebida, ganha um aspecto
pedagógico, ainda que não embasados em conhecimentos mais aprofundados sobre os tipos de
penteado. As educadoras percebem que as crianças reagem ao modo como seus cabelos são
tratados no ambiente escolar e que esse tratamento requer cuidados diferenciados quando lida
com o cabelo crespo.
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A educadora Abibatou, mesmo sem dominar conhecimentos sobre penteados
africanos, procurou, em suas práticas de pentear, contemplar o que a mídia tem apresentado
como estética negra, principalmente em relação ao modelo de cabelos crespos infantis. Na
mídia, é possível encontrar, crianças negras cujos penteados são cabelos cheios de trancinhas
ou com muitos enfeites coloridos. É nesse tipo de modelo que Abibatou se apóia para
trabalhar com a identidade positiva. Ela sintetiza assim sua experiência:
Era aquela história. Quando tomavam banho, as meninas vinham para pentear o
cabelo. Tem dia que eu penteio e tem dia que eu faço elas irem no espelho para
pentear. A menininha negra que eu tinha na sala, tinha um cabelo que não era muito
comprido e nem muito curto. Só que ela ficava...todo mundo de cabelo comprido,
todo mundo penteava... ficavam todas deslumbradas. E ela vinha de manhã com o
cabelo assim (faz gesto com as mãos, indicando um cabelo alto). Ai peguei e
comecei a trazer aquelas liganetes de pôr no cabelo. Eu penteava o cabelo dela
todinho, deixava lindo. E à tarde, antes de ela ir embora, eu pegava, tinha tnt na
creche], eu cortava as tiras e colocava fita no cabelo dela. Ela ia embora igual uma
princesa. Passou um tempo ela começou a vir de cabelo penteado, porque não
penteavam o cabelo dela, achavam difícil decerto. As crianças começaram [a falar]:
"Ah, eu também, pro”, “Eu também quero fazer trancinhas", "Eu também quero".
(Professora Abibatou - entrevista concedida em 22/09/05)
O lugar da menina negra na sala era desvalorizado porque, ao chegar à escola, o cabelo
está "despenteado". Isso mobiliza a professora a incluir na sua ação de pentear novos
elementos (liganetes, tiras de tnt etc). O objetivo é pentear a menina negra fazendo-a ficar
parecida com uma "princesa". Isso nos faz lembrar do livro Menina Bonita do Laço de Fita,
referência para o trabalho da educadora e também da afirmação de Clóvis Moura, quando
trata da valorização da estética africana encontrada nos institutos de beleza afro-brasileiros.
Segundo o autor
esse movimento não se refere apenas ao lado estético, mas também
ideológico ao valorizar padrões culturais africanos, "transformando esse visual restaurado e
simbolizado em um padrão de resistência cultural [...]" (MOURA, 1994, 237).
Entre as imagens de crianças negras produzidas pela mídia também encontramos
algumas que participam dessa reconstrução. Quando se consegue que essa estética negra
chegue à mídia, colabora-se na construção de referenciais que serão utilizados pelas
educadoras. É nesse referencial divulgado pela mídia e pelos livros que a professora se
ampara para "produzir" um cabelo negro aceitável para a própria criança e para as outras.
Sua estratégia é bem-sucedida: o lugar da menina negra na sala de aula ganha novos
contornos, passando da rejeição a objeto de desejo das outras meninas. Certamente, essa
criança aprendeu muitas coisas sobre ser negra, pois, além de pentear, a professora lhe dizia:
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"Eu fui penteando o cabelo, eu fui arrumando... ajeitando... tanto é que ela se sentia linda.
Quando eu penteava, eu a mandava se olhar no espelho. Veja como você é bonita, K. Olha
como você é linda".
Esse redimensionamento do olhar da criança sobre o colega negro também é relatado
pela professora Fatou, como decorrência das suas práticas:
Sim. Eu percebi assim ... na questão... nas brincadeiras, na interação com o outro. Eu
percebi que elas falavam assim: “Ah, se eu pudesse trocar de cabelo, eu ficava com
seu [crespo] um pouco”. Era muito engraçado. A instituição era cercada de telas
vazadas. Era interessante [porque] as crianças brincavam lá no pátio e dava para ver
a rua. Então, [quando] as pessoas passavam na rua ... foi até conflitante. Elas
gritavam "Pró, corre aqui. Está passando um negro na rua. Um negro lindo!" (risos).
"Oi, negro, tudo bem negro?" (risos). Eles queriam se aproximar. Era como se todos
os negros passassem a ter uma história própria e eles queriam saber dessa história
(Professora Fatou - entrevista concedida em 21/09/05)
Esse resultado só pode ser alcançado na medida em que verificamos que essas práticas
ultrapassam o sentido do cuidar, simplesmente. O cuidado aqui apresentado foi guiado pela
ação consciente do educador que procurava rupturas na constituição da identidade das
crianças. Mariama nos relatou este caso:
Essa menina negra era bem negrinha mesmo. Cabelo bem pixaim mesmo. Bem
negrinha. Ela tinha o cabelo longo, era difícil para pentear o cabelo dela. Ela vivia
acariciando os meus cabelos. Parecia que ela não gostava do cabelo dela, embora eu
desse banho, fizesse cachinhos e elogiasse muito. Mas, até, então, eu não sabia o
motivo por que, às vezes, ela agia ... quando ela via uma criança com cabelo
arrumado. Outra criança com o cabelo bem arrumado, ela, desmanchava o cabelo da
outra. Ela pegava, passava a mão e desmanchava todo o cabelo. Na época, eu não
entendia, às vezes, eu até chamava a atenção dela. Se estivesse de xuxinha, ela
arrancava. Ela chegava de manhã muito mal arrumada. O cabelo. Acho que mãe não
tinha tempo de arrumar. Alguma coisa assim. Eu arrumava na hora do banho. Na
hora de ela ir embora, ela estava bonitinha, mas, de manhã, ela chegava com o
cabelo todo despenteado. Não é que ela chegava despenteada. É quando passa o
pente sem tempo, e o cabelo fica todo alto. Depois, a mãe pegou e cortou o cabelo
dela. Cortou bem curtinho, mas bem curtinho mesmo. Tipo menino. Mas ela era
muito linda e ficou linda mesmo assim com o cabelo curto. Ai ela chegou à sala. Eu
arrumei o cabelo da outra coleguinha. Dei banho, fiz de novo, cachinho na outra. E
no dela não dava para fazer cachinho porque estava curtinho. Ela foi e esparramou
tudo o cabelo da outra. (Professora Mariama -entrevista concedida em 23/09/05)
Essa disposição da professora em cuidar do cabelo da menina negra não impede que
ela continue a desarrumar os cabelos das outras. Apesar de ter seu cabelo arrumado, era
necessário destruir o objeto do seu desejo, os cabelos lisos. Nem as conversas da professora
mudavam o comportamento da menina. Somente quando a educadora compreende que as
atitudes da menina negra, por meio da linguagem não-verbal, relacionam-se com a
desvalorização social do cabelo crespo, sua intervenção surte efeito:
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Eu conversei, e ela falou que queria que eu fizesse cachinhos no dela. Eu falei que
não dava para fazer porque o cabelo dela era curto. Ela falou que não gostou do
cabelo dela curto, que ela não gostava do cabelo dela e que queria o cabelo
comprido. Eu expliquei para ela. Não, mas você está linda. Você está linda com seu
cabelo cortado. Você está igual a fulano da novela. Peguei o espelho, mostrei pra ela
o quanto ela era bonita. E a partir daquele dia ela não desmanchou mais o cabelo das
meninas. Eu percebi isso, que ela não desmanchou, mas até então, eu não percebia
[que era uma questão de pertencimento racial]... Depois do curso eu fui fazer essa
ligação. (Professora Mariama - entrevista concedida em 23/09/05)
Percebe-se, no geral, que a tendência de intervenção das professoras, ao pentear os
cabelos das crianças negras, tem um caráter "disciplinador". Elas o fazem "arrumando" e
"ajeitando" os cabelos das meninas negras a fim de garantir-lhes melhor aceitação de si
mesmas e delas em relação ao grupo. Porém seria adequado problematizar essa ação para que
ela não se paute pela idéia de embranquecimento das crianças, ou seja, arrumar o cabelo das
crianças negras não pode tomar como padrão o cabelo liso. Pentear o cabelo da criança negra
deve pautar-se pela valorização de sua identidade. É pentear "sem perder a raiz".
A hora de pentear os cabelos crespos deve ser o momento de cuidado com esses
cabelos, mas tomados de cautela. Pentear o cabelo crespo não é assemelhá-lo aos cabelos
lisos, é tornar possível que a criança negra possa "brincar" com os múltiplos penteados que
seus cabelos podem ter. É permitir, estimular e conduzir esses momentos pela idéia presente
na música de Chico César: "Se eu quero pixaim, deixa. Se eu quero enrolar, deixa. Se eu
quero assanhar, deixa. Deixa, deixa a madeixa balançar".
9. Considerações acerca das práticas coletadas em Campo Grande
Na análise das práticas apresentadas pelas professoras de Campo Grande/MS,
verificamos que muitas delas são realizadas a partir do que elas puderam apreender do curso
oferecido. Por outro lado, não contam com outras oportunidades para incrementar suas
reflexões, e a realização do trabalho decorre, em grande medida, do compromisso ético que as
impede de silenciar diante de atos discriminatórios.
Algumas práticas apresentadas precisam ser mais bem avaliadas pelas educadoras,
como é o caso da abordagem em relação à mestiçagem, o lugar das crianças negras nas
dramatizações e mesmo as maneiras pelas quais os cabelos são penteados. Durante a
investigação, em nenhum momento dos depoimentos das educadoras há referência sobre
outros estudos sobre o tema ou mesmo às orientações contidas na DCEER, documento, a
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nosso ver, fundamental para a educação das relações étnico-raciais.
O curso, mesmo no curto período de 60 horas, potencializou o compromisso que
algumas educadoras já apresentavam e lhes possibilitou o desenvolvimento de práticas
destinadas ao aprimoramento das relações raciais. No entanto, para que esse tipo de ação não
caia no esquecimento ou seja suplantado por outras demandas da escola, é necessário um
acompanhamento por parte da Secretaria de Educação de Mato Grosso do Sul bem como a
continuidade de investimentos em formação, aquisição de material didático, compra de
equipamentos e aquisição de livro. Enfim, necessita-se criar uma infra-estrutura que viabilize
a proposta nos centros de educação infantil e, mais do que isso.
É preciso ainda que a realização de um trabalho dessa natureza com as crianças dos
Ceis seja uma exigência do sistema, dando cumprimento à reformulação da LDBN
Nº.9394/96, quando aprovada a Lei 10.639. As professoras fizeram o curso em 2001, e as
entrevistas foram realizadas em 2005. Porém nenhuma citou a lei como prerrogativa para
amparar o seu trabalho. Isso fez com que as professoras, em vários momentos, se sentissem
dentro de uma tarefa quixotesca, e não numa prática pedagógica amparada pela legislação.
Tampouco percebemos nos depoimentos uma análise estrutural das relações raciais, ou seja, a
as desigualdades raciais não estão presentes nos seus depoimentos ao justificar a importância
de suas práticas. O foco, para elas, é a criança e as suas relações.
Não temos a ingênua esperança de que práticas como essas transformarão a
sociedade, mas sabemos também que, sem elas, não haverá mudanças. As práticas dessas
educadoras, nesse sentido, contribuem em vários aspectos. Primeiro, colaborando consigo
mesmas, como cidadãs. Depois, com as crianças brancas e negras, convidando-as a refletir
sobre conceitos que lhes são apresentados geralmente fora do ambiente escolar. Por fim, com
as crianças negras em particular, fornecendo-lhes mecanismo de defesa e de compreensão do
mundo hostil que as cerca .177 Na medida em que elas acreditam em si mesmas, percebendo-se
possuidoras dos mesmos direitos que as crianças brancas, vão questionar o papel de
subalternidade que a sociedade lhes destina.
Alguns exemplos dessa aquisição de poder foram dados pelas educadoras. Elas
177
Para Eduardo Mourão VASCONCELOS (2003, p.11) empoderamento (empowerment) é a" perspectiva de
fortalecimento do poder pessoal e coletivo de pessoas e grupos submetidos a longo processo de dor, opressão
e/ou discriminação". É nesse sentido que o tomamos nesse texto.
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percebiam que as crianças negras reagiam de modo positivo ao trabalho. Elas ficavam
orgulhosas quando viam livros com personagens negros; as bonecas negras, em outro sentido,
fizeram com que as crianças brancas percebessem a beleza do colega negro, tratando-o com
mais carinho. “Quando chegava uma criança negra, a criança branca ia recebê-la na porta. 'Ah
que bom que você chegou'. Dava abraço, beijo”.
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Canto de Esperança
Há sempre um poema me esperando
nas amadas feitas de ternura
e por isso o meu tempo
não é contado à velhice
Estou conservado no ritmo do meu povo
Me tornei cantiga determinadamente
e nunca terei tempo para morrer
Meu desejo de paz
se tornou rosa
e a minha vida é enfeitada
com bandeirolas coloridas
porque eu tenho uma festa interior
voltada para o grande Amanhã.
Solano Trindade
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Capítulo V - A experiência da Secretaria Municipal de Educação de
Campinas-SP
1. Introdução
A análise a seguir pretende dar conta das formas pelas quais se instauraram as
experiências de formação de professores para o combate o racismo na educação em Campinas
e obedece a uma lógica semelhante ao que se fez com o caso de Campo Grande. Ressaltam-se
assim os aspectos da cidade nas quais a experiência se localiza para em seguida abordarmos
como ocorre a consolidação do espaço para discussão da temática do combate ao racismo na
Secretaria de Educação da cidade.
Neste capítulo, destacamos a estruturação do curso de formação de educadores para a
igualdade racial na escola e apresentamos as categorias resultantes da análise das entrevistas:
Profissionalidade, Ações Formadoras, Questões Político-administrativas e, por fim, Práticas
Pedagógicas. Algumas categorias receberam a mesma denominação das de Campo Grande,
mas trarão novos elementos decorrentes das especificidades do caso de Campinas.
2. Situando a cidade de Campinas e a Secretaria Municipal de Educação
A cidade de Campinas surgiu na primeira metade do século XVIII como um bairro
rural da Vila de Jundiaí, localizado nas margens de uma trilha aberta por paulistas do Planalto
de Piratininga entre 1721 e 1730. O pouso das "Campinas do Mato Grosso" organizado em
meio a pequenos campos no meio da mata fechada impulsionou o desenvolvimento de várias
atividades de abastecimento e promoveu uma maior concentração populacional devido à
chegada de fazendeiros procedentes de Itu, Porto Feliz e Taubaté, entre outras regiões
paulistas. Buscavam terras para instalar lavouras de cana e engenhos de açúcar, utilizando-se
da mão-de-obra escravizada.
Em 1774, o bairro foi transformado em Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das
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Campinas do Mato Grosso; depois, em Vila de São Carlos (1797); e, finalmente, em Cidade
de Campinas (1842), período no qual as plantações de café já suplantavam as lavouras de
cana e dominavam a paisagem da região. A partir da economia cafeeira, Campinas passou a
concentrar um grande contingente de trabalhadores escravizados e livres.
Com a crise da economia cafeeira, a partir da década de 1930, a cidade "agrária" de
Campinas assumiu uma fisionomia mais industrial e de serviços. No plano urbanístico, por
exemplo, Campinas recebeu do "Plano Prestes Maia" (1938) um amplo conjunto de ações
voltado a reordenar suas vocações urbanas. Entre as décadas de 1930 e 1940, a cidade de
Campinas passou a vivenciar um novo momento histórico, marcado pela migração e pela
multiplicação de bairros nas proximidades das fábricas, dos estabelecimentos e das grandes
rodovias em implantação - Via Anhanguera, (1948), Rodovia Bandeirantes (1979) e Rodovia
Santos Dumont (década de 1980).
Na atualidade, Campinas ocupa uma área de 801 km² e conta com uma população
aproximada em 1 milhão de habitantes, distribuída por quatro distritos (Joaquim Egídio,
Sousas, Barão Geraldo, e Nova Aparecida) e centenas de bairros. Tais vigores econômicos e
sociais, trazidos em especial pela ampliação de sua população trabalhadora, têm permitido a
Campinas constituir-se como um dos mais importantes pólos populacionais brasileiros,
formado por 19 cidades e uma população estimada em 2,33 milhões de habitantes (6,31% da
população do Estado). Campinas, segundo dados do IBGE, é o município que mais cresce no
interior de São Paulo, sendo o terceiro pólo industrial do país e o segundo maior mercado
consumidor.
A cidade tem atualmente uma taxa de alfabetização de 95,3%. A rede de escolas
municipais com educação pré-escolar (0 a 6 anos) é de cerca de 150 unidades, atendendo por
volta de 28,6 mil crianças. AS 59 creches atendem 8 mil crianças de 0 a 3 anos, e as 82
escolas de educação infantil recebem 21 mil crianças, de 4 a 6 anos. Existem ainda 44
unidades filantrópicas que contam com a parceria da Secretaria para atender por volta de
5.400 crianças nessa faixa etária. A SME/FUMEC está estruturada em um órgão central e em
cinco Núcleos de Educação Descentralizada (NAEDs), divididos para atender a região Sul,
Sudoeste, Leste, Norte e Noroeste.
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3. Consolidação do espaço para discussão da temática de um combate ao
racismo na Secretarias da Educação de Campinas-SP
Neste item, procuramos identificar os principais momentos em que se constitui a
construção da Política de Promoção da Igualdade Racial na Secretaria de Educação do
Município de Campinas. Para isso, entrevistamos as professoras Lucinéia Crespim Pinho
Micaela178 e Sueli Gonçalves, ambas com papel importante na consolidação desse processo.
Também recorremos à legislação municipal para compreendermos a partir de quando essa
questão aparece como um anúncio de instituição de política e quem foram os atores desse
processo. O termo Promoção da Igualdade Racial será entendido aqui do mesmo modo que a
Política de Combate ao Racismo na Educação. No caso de Campinas, é o primeiro nome que
aparece nas falas das gestoras e das educadoras entrevistas bem como nos documentos
encontrados.
Ao analisar as legislações de Campinas, percebemos que a presença dessa temática
existe desde 1990: aparece, em meio a outros temas, no artigo 224 do capítulo II da Lei
Orgânica do município:
Constarão do currículo escolar de todas as unidades educativas da rede municipal de
ensino temas com abordagem interdisciplinar que abranjam, entre outros, a educação
ambiental, a educação sexual, história da África e do negro no Brasil, história da
mulher na sociedade, a educação para o trânsito, que respeitem e incorporem os
diferentes aspectos da cultura brasileira, enfatizando sua abordagem regional e
estadual. (Art.224 - Lei orgânica de Campinas, 1990).179
O tema transversal sobre as questões “ética, pluralidade cultural e cidadania,
enfatizando a História da África e do negro no Brasil” está presente na Matriz Curricular das
escolas de Campinas, instituída por meio da portaria nº. 08 de 01/02/95. Como nos disse
Sueli Gonçalves:
Em linhas gerais, o processo de implementação de políticas de promoção da
igualdade racial do município de Campinas começa em 1998, com uma lei
municipal do vereador Sebastião Arcanjo. Essa lei trata da obrigatoriedade do ensino
da História da África e dos afrodescendentes no currículo escolar. Isso consta da
grade curricular, no rodapé da grade curricular, desde 1998. Porém, como eu sempre
178
A professora adota o nome de Luci Crespim, o qual passaremos a utilizar quando nos referirmos a ela daqui
para frente.
179
Ainda na Lei Orgânica do Município, temos uma emenda apresentada, em 2003, por Sebastião Arcanjo, o
“Tiãozinho”, na época, vereador do PT. Essa emenda acrescenta o capítulo VIII, “Das Políticas Afirmativas da
População Negra e Afrodescendentes”, que não possui nenhuma referência à educação. Todos esses documentos
estão disponíveis no site: http://www.campinas.sp.gov.br/diario/. Acesso em 05 jan.2007.
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digo, nem sempre ter a lei significa que ela será cumprida. Então, dentro desse
processo, o que nós temos de 98 até o ano de 2000? A lei. Existia, todo mundo tinha
ciência. Cada um trabalhava dentro da sua sala de aula ao seu modo e aquilo que
acreditava que contemplava, ponto. (Gestora Sueli Gonçalves - entrevista concedida
em 04/07/05)
Como explica Gonçalves, foi necessária uma conjuntura política que favorecesse a
instituição desses espaços de modo mais concreto, o que ocorre com a vitória de um prefeito
do PT. Esse não é o partido pioneiro na instituição desse tipo de política.
Na gestão iniciada por Antonio da Costa Santos, o “Toninho do PT”,
180
e continuada
por Izalene Tiene (2000-2004), a prefeitura criou uma Coordenadoria de Promoção da
Igualdade Racial, a exemplo de outros governos do PT. É nessa gestão que vamos analisar a
instituição de políticas para a promoção da igualdade racial.
Esse espaço oficial, segundo Gonçalves, passou por um longo processo de negociação
dentro do sistema educacional passou por um longo processo de negociação e de conquistas
até a sua legitimação. Ao ser questionada se o setor foi criado logo no início da gestão, disse:
Não. Não foi instituída. Foram pessoas que acreditavam numa possibilidade de
trabalho que foram convidadas a estar juntas e a pensar junto. Não era um trabalho
sistemático, por exemplo, você vai ganhar x horas para fazer, era meio que no
voluntariado e por acreditar que era possível fazer. (Gestora Sueli Gonçalves entrevista concedida em 04/07/05)
Apesar dessa ação “voluntária”, houve na Secretaria possibilidades concretas para o
desenvolvimento de ações mais consistentes referentes às Políticas de Promoção da Igualdade
Racial. Em 2000, a Secretaria criou a Assessoria de Políticas Étnicas, cargo exercido por Luci
Crespim, que será a principal articuladora das chamadas Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, diferentemente de Mato Grosso do Sul.
A iniciativa resultou de articulações anteriores à própria eleição do prefeito Toninho.
Segundo Crispim, é decorrente do movimento realizado por ativistas do Movimento Negro
Unificado (MNU) e outros grupos reunidos em torno do prefeito ainda durante o processo
eleitoral. Ao assumir, Toninho deu prosseguimento ao compromisso estabelecido com esses
ativistas e apóia ações em nome dessa política. No entanto os primeiros impasses não
demoram a acontecer.
De acordo com Crespim, o movimento negro reivindicou uma Secretaria para tratar do
tema, mas obteve, na disputa política, uma Coordenadoria ligada ao gabinete do prefeito. A
180
Assasinado em setembro de 2001. Assumiu o cargo a vice-prefeita Izalene Tiene, também do PT.
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partir disso, o prefeito cria uma equipe de 12 pessoas vindas das Secretarias de Saúde,
Habitação, Educação e Cultura para serem responsáveis pelo desenvolvimento de políticas
afirmativas nas suas respectivas pastas, sendo Luci Crispim a responsável pela área de
educação. Em suas palavras:
Eu acho que foi assim [...] O movimento, na formação, foi bastante forte, coeso.
Depois, cada um ficou tentando administrar seus problemas. Eu, dentro da
secretaria, tinha uma ligação, tenho uma ligação com o movimento negro, militante,
aquela coisa e tal. Então eu... não que eu estive sozinha, mas aquele trabalho acabou
ficando muito comigo mesma. A coordenadoria já existia, estávamos no processo de
construção do conselho da comunidade negra. Então, era lá que a gente dividia todas
as ações que estavam sendo desenvolvidas. Então, eu tinha uma certa tranqüilidade,
o movimento sempre respaldava o trabalho que estava sendo feito. Eu assim,
tranqüilamente, posso dizer que foi a secretaria [da educação] que mais trabalhou a
questão do negro na sua diversidade. Tinha mais agilidade até do que a própria
coordenadoria, porque a gente perde o Toninho, também, 9 meses depois a gente
perde o prefeito, isso nos enfraquece muito politicamente, amarra-se muita coisa,
coloca-se muita coisa na instância do quase zero, a coordenadoria principalmente,
porque ela estava ligada diretamente ao gabinete do prefeito. Então quem estava em
instâncias de secretaria não recua, continua o seu trabalho. (Ex- Assessoria para
assuntos étnico-raciais da SME , Luci Crespin- entrevista concedida em 11/10/06)
A ação de Luci Crespim na área de educação não estava ligada a uma sólida
construção unificada e nacional, do mesmo modo como observado em Mato Grosso do Sul.
Os elementos preponderantes nesse processo, nos dois locais têm sido a própria experiência
dos gestores, construída na sua militância no movimento negro.
Segundo Crespin, sua "inspiração" para pensar as ações na área de educação pautou-se
pela idéia de territorialidade de Milton Santos
A partir desse estudo, desse material, o território que eu fui buscar, foi o território da
sala de aula, da escola. E aí não tinha outra pessoa, na rede ou na secretaria, que
desse garantia para que essa política fosse feita, a não ser o educador, então a gente
muda o conceito de professor, de coordenador, a gente trata a todos como
educadores. Então, quando essa idéia vem e a gente começa a implementar, vai
buscar parceiro, vai trabalhar a auto-estima da mulher negra que está lá na cozinha,
na sala de aula, na monitoria, enfim, vai trabalhar a auto-estima, exatamente para
que aquele território da educação possa ser o contrário do que era. (Ex- Assessoria
para assuntos étnico-raciais da SME, Luci Crespim - entrevista concedida em
11/10/06)
De acordo com Crespin, o nome Assessoria para Assuntos Étnicos foi escolhido após
o debate de várias propostas, que incluíram termos como “afrodescendente”, “afro-brasileiro”
e “negro”. Novamente aqui há semelhanças com a implementação da política em Mato
Grosso do Sul. Nos dois lugares, lidou-se com o escorregadio terreno do racismo dentro das
instituições. As pessoas responsáveis pela implementação de políticas dessa natureza,
geralmente, possuem vínculos com o movimento negro, e, ao adentrarem os espaços
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institucionais, precisam mediar a ansiedade desse segmento e o desejo de produzir ações de
impacto com o descrédito e até a oposição de setores dos órgãos públicos.
Nesse sentido de negociação, compreendemos o uso do termo étnico escolhido para
designar as Políticas de Igualdade Racial no interior da Secretaria de Educação de Campinas,
porém Maclaren (2000) nos alerta sobre a armadilha instalada nessa escolha. Para ele, "os
grupos brancos precisam examinar sua próprias histórias étnicas de maneira que fiquem
menos inclinados a julgar suas próprias normas culturais como neutras ou universais"
(MACLAREN, 2000, P.136). Nesse sentido, utilizar o termo étnico para designar as políticas
em prol da população negra é afirmar que a diferença está nessa população e não na relação
estabelecida entre as populações. Seria o étnico entendido como “coisas” de negro, o exótico,
o diferente, o peculiar, enquanto a cultura branca seria a estrutura cultural.
Além dessa questão da escolha do nome, outra semelhança entre Campinas e Mato
Grosso do Sul se refere ao fato de as ações começarem antes de ter um espaço formalizado.
Segundo Sueli Gonçalves,
O ano de 2000 inicia uma gestão democrática e popular na qual uma das
plataformas de governo era a inclusão da temática racial, a singularidade nos eixos
da educação e a participação democrática. Com isso, veio para a Secretaria de
Educação um grupo de pessoas preocupados com a temática racial, a inclusão, a
garantia de permanência com sucesso dos afrodescendentes. Nesse grupo, veio Luci
Crespim como assessora de políticas étnicas da Secretaria sob a gestão da secretária
Corinta Geraldi, hoje professora da Unicamp. Para tratar da temática étnico-racial,
várias ações foram desenvolvidas, entre elas: o curso de formação para a igualdade
racial, a compra de livros com temática étnico-racial - coisa que nunca tinha
ocorrido. Foram em torno de 238 títulos para os cinco NAEDS, isso é um volume
considerável, veio ainda um kit de oito volumes de livros de história infantil com
recorte étnico-racial para todas as unidades de educação infantil do município.
(Gestora Sueli Gonçalves - entrevista concedida em 04/07/05- Grifo nosso)
Também parece ter sido fundamental a adesão da secretária de educação, professora
Corinta Maria Grissola Geraldi, ao projeto de implementação dessas políticas. Segundo Luci
Crespin, ela passou por um processo de convencimento a partir de algumas experiências
realizadas dentro da rede, resultantes já das intervenções da Assessoria:
A secretária e as diretoras eram convidadas para festinhas onde a família negra
estava sendo valorizada na escola e isso deu ... (estala os dedos). A Secretária
começou a ... (imita alguém ofegante). Um curso de bonecas? Um curso de bonecas
foi um curso assim fabuloso na construção da afetividade, porque a gente brincava,
inventava brincadeiras e histórias infantis e produzia as bonecas. A secretária ganha
uma boneca de uma professora do curso. Então a secretária passa a carregar essa
boneca pela cidade. Ela deu até um nome para a boneca...Enfim, ela passa a carregar
uma boneca enorme (ênfase) para os restaurantes, para os congressos, para todos os
lugares que ela vai ela passa a carregar essa boneca. O que era uma postura política.
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Ela ia para restaurantes da cidade onde praticamente negro não entra e punha a
boneca na cadeira. E as pessoas questionavam... Então ela dizia, falava o que era, ela
contava do trabalho. A secretária rapidamente toma pé da situação e também veste a
camisa. (Ex- Assessoria para assuntos étnico-raciais da SME, Luci Crespim entrevista concedida em 11/10/06)
Contudo o processo de institucionalização da política percorreu um longo caminho:
desde o período pré-eleitoral, com a articulação do movimento negro, passou por 2000 e
2001, com a nomeação de pessoas no interior das Secretarias para apresentar um programa de
ação. Em 2002, houve a organização de uma comissão para elaborar uma proposta de trabalho
no interior da Secretaria da Educação. Paralelo a isso, houve a criação do Grupo de Trabalho
(GT) Memória e Identidade: Resgatando a Cultura Afro-brasileira, dentro da Secretaria de
Educação do Município de Campinas. Por fim, em 2004, criou-se o Programa Memória e
Identidade: Promoção da Igualdade na Diversidade - MIPID, por meio da Resolução nº.03
SME/FUMEC, de 04/02/2004181.
Uma das principais estratégias para a consolidação da Política foi criação do GT
Memória e identidade, publicado em Diário Oficial no dia 12/02/2003. Ele contou com a
participação inicial de 25 educadores: professores de educação infantil, do ensino
fundamental I e II e da educação de jovens e adultos. Uma de suas propostas era “[...] edificar
ações através de cursos, projetos, oficinas e grupos de estudos integrados aos Projetos
Pedagógicos das escolas”.182 Esses grupos de trabalho têm uma importância grande no modo
como a política de formação continuada da Secretaria se organizou. Por meio deles, os
professores de forma voluntária se inscrevem e estudam durante o ano temas pertinentes ao
fazer pedagógico. Vários grupos foram criados a cada ano atendendo à demanda de formação
da categoria, mas era a primeira vez que um GT tratou da cultura afro-brasileira.
Muitas atividades importantes na consolidação da Política decorreram desse GT, tais
como o curso de História e Cultura Afro-Brasileira, com carga horária de 72 horas, uma
oficina de confecção de bonecas "étnicas" e uma oficina de literatura afro-brasileira com a
aquisição de livros para as unidades escolares que participaram dessa oficina. Foram nove
títulos. Em outra oficina realizada para gestores (vice-diretores, orientadores pedagógicos e
181
Essa e todas as outras resoluções e pareceres utilizados na análise dos trabalhos de Campinas estão
disponíveis no site: http://www.campinas.sp.gov.br/bibjuri/educa.htm. Acesso em 05 jan. 2007.
182
Informações contidas no documento (relatório): Programa, memória e identidade: promoção da igualdade da
diversidade –MIPID/ Departamento Pedagógico, SME, p.5,2004 autora: Sueli A. Gonçalves, coordenadora.
Anexo 66.
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professores responsáveis pelas bibliotecas escolares), quem fez recebeu nove títulos de
literatura infanto-juvenil ligados ao tema étnico-racial.
As instituições que participaram de uma terceira oficina receberam 14 livros. Houve a
apresentação da peça "Menina Bonita do Laço de Fita" que levou por volta de 900 alunos ao
teatro no mês de novembro. Realizou-se ainda a exposição "Valorizando a promoção da
igualdade racial em Campinas: experiências estudantis de promoção da igualdade racial",
atividade que envolveu 35 unidades e aproximadamente 350 alunos.
Entre essas atividades ocorre o curso de formação continuada de professores Educar
para a Igualdade Racial, em 2003, objeto de análise desta tese. Vivia-se de fato um
movimento rico na rede fértil em atividades.
Outro fato fundamental deu-se em fevereiro de 2004, na implementação do Programa
Memória e Identidade: Promoção da Igualdade na Diversidade (MIPID), por meio da
Resolução nº.03 SME/FUMEC,de 04/02/2004. A criação desse programa constitui-se em um
marco na institucionalização da Política de Promoção da Igualdade Racial na Secretaria de
Educação. Com a criação do programa, há um fecundo movimento interno de seleção de
profissionais para comporem um quadro dos chamados “Educadores Étnicos”183. Esses
educadores foram escolhidos por uma comissão nomeada pela Secretaria e composta por oito
professores. Como critério, exigia-se que o professor tivesse participado de cursos, de grupos
de trabalho ou de oficinas sobre a temática étnico-racial promovidos pela SME/FUMEC.
Também havia uma bibliografia básica.
A seleção desses educadores incluía a análise de uma ficha, de um texto produzido
pelo candidato justificando seu interesse em participar do Programa MIPID e de entrevista.
Esse processo foi fomentado e gerido durante a vigência do curso Educar para a Igualdade
Racial, de 2003, sob a coordenação do CEERT, que também coordenou, em 2004, o curso
Formação Aprofundada para os Educadores Étnicos da rede municipal de Campinas, cujos
objetivos gerais eram “1. Construir referenciais de políticas públicas educacionais de inclusão
da temática racial/étnica” e; “2. Qualificar o discurso e a prática dos gestores do setor público
em educação para a efetivação da igualdade racial/étnica no ambiente escolar".184
183
184
Comunicado da SME/FUMEC n.05/2004 nomeando os educadores. Anexo 33.
Objetivos retirados do Relatório I Encontro - Grupo MIPID, de 17 de abril de 2004, Escola Viva, Campinas-
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O processo de instituição de políticas de ação afirmativa, tanto em Campinas, quanto
em Mato Grosso do Sul, apresentam semelhanças, tais como o trabalho anterior do
movimento negro, a presença nas Secretarias de pessoas com vínculos com o movimento para
viabilizar as ações internamente, a necessidade de um constante convencimento dos
secretários sobre a importância de a Secretaria incluir o tema da educação das relações étnicoraciais e a ausência de uma diretriz nacional proveniente do próprio movimento negro embora encontremos o discurso do movimento presente na concretização da política.
Em relação às diferenças, o que mais se evidencia é a diferença no investimento. Na
Secretaria de Educação de Campinas, é patente que o curso de formação foi uma parte de um
projeto que incluiu a aquisição de material didático, a contração de outros cursos e oficinas
para os professores e a própria composição da equipe que para executar o MIPID. Além disso,
houve atividades de grande porte envolvendo alunos, como as exposições de trabalhos e a
participação de alunos em apresentação de teatro. Os investimentos não visavam apenas à
etapa da educação infantil, mas o fato de as Secretarias Municipais serem responsáveis por
essa etapa colabora para que chegassem também à primeira infância.
Em Mato Grosso do Sul, o curso de formação realizado foi a única ação: depois,
nenhuma aquisição de material ou outro tipo de investimento foram verificados em relação
aos Ceis. Outro diferencial percebido foi a instabilidade trabalhista dos gestores em Mato
Grosso do Sul. No momento em que encerramos a pesquisa, todos os gestores entrevistados já
não estavam mais respondendo pelos seus setores.
4. Formação de educadores para a igualdade racial na escola: o curso
O curso Educar para a Igualdade Racial, realizado pelo CEERT, começou em julho
de 2003 e foi estruturado em três módulos. Desse curso participaram professores dos vários
níveis da educação básica, e foram abordados os seguintes temas:
Módulo I - 16 horas, julho de 2003



Resgate histórico e conceituação básica da questão racial;
Dados estatísticos sobre educação e as relações raciais;
Currículo e formação de educadores;
SP- Formação Aprofundada Para os Educadores Étnicos da Rede Municipal de Campinas/ Elaboração CEERT,
p.02. Anexo 29.
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
A discriminação racial no livro didático.
Módulo II – 16 horas, agosto de 2003




Leis de promoção da igualdade racial: limites e possibilidades;
Relato de prática: “Prêmio Educar para a Igualdade Racial”;
Etapas de um processo de seleção;
Metodologias de Análise de Práticas educacionais.
Módulo III - 16 horas, novembro de 2003





Construção do conceito de raça no Brasil;
Recuperação e avaliação da experiência “Valorizando a promoção da
igualdade racial em Campinas: experiências estudantis de promoção da
igualdade racial/étnica”;
Processo de registro das práticas;
Lei 10.639/03 – contextualização histórica;
Jogos, músicas e brincadeiras na sala de aula: linguagens que mediam o
tratamento da temática racial e riqueza cultural da África a partir do
desenho “Kiriku e a feiticeira”.185
O curso está ricamente documentado. O primeiro relatório consta de três partes: a
introdução, a segunda parte descreve as atividades desenvolvidas, acompanhadas de
comentário dos professores, enquanto a terceira apresenta a metodologia utilizada e a
avaliação. Estrutura que basicamente se repete no segundo e no terceiro relatório186.
Esse registro pormenorizado do trabalho é outro diferencial em relação ao curso
realizado em MS, que não possuía documentos sistematizado do processo. Atribuímos isso ao
fato de as próprias técnicas da Secretaria de Estado terem se responsabilizado pela formação,
acarretando uma carga maior de trabalho e dificultando a documentação do trabalho. No caso
de Campinas, a executora foi uma ONG com reconhecida experiência nesse campo e
contratada especificamente para essa tarefa e também se previa no trabalho de Campinas a
publicação de material. De acordo com os relatórios, as atividades também foram filmadas.
A metodologia do curso desenvolveu várias estratégias: trabalho em grupo, trabalho
em duplas, atividades individuais, atividades com músicas, com poesias, textos literários,
apreciação de fotografias, dinâmicas de grupos para sensibilização, assistência de
documentários, análise de imagens em revistas e reescrita de textos poéticos. Para cada tema
tratado, um palestrante ou uma dupla de palestrantes coordenavam o trabalho.
185
Informações contidas no documento (relatório): Programa, memória e identidade: promoção da igualdade da
diversidade –MIPID/ Departamento Pedagógico, SME, p.7, 2004 autora: Sueli A. Gonçalves, coordenadora.
Anexo 66.
186
Os três relatórios encontram-se nos anexos 29, 30 e 31.
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Como atividade inicial, foi realizada uma dinâmica de apresentação na qual cada um
dos participantes deveria escolher um parceiro e conversar sobre suas vidas e depois, ao se
apresentarem para o grupo, os papéis se inverteriam. Cada um assumiria a identidade do
colega, relatando as vivências do outro como se fossem as suas.
Nos relatos das educadoras, essa atividade se destaca como uma das mais marcantes.
Outra estratégia utilizada foi um caderno de bordo, no qual os participantes deveriam registrar
"[...] os sentimentos, emoções, impressões, pensamentos e microcenas de racismo".187 Essa
organização mais sólida dos trabalhos desenvolvidos em Campinas se comparados aos do
Mato Grosso do Sul deu às práticas realizadas pelas professoras alguns diferenciais
importantes, os quais veremos no item a seguir.
5. A construção da análise: categorias de interpretações.
Foram utilizados os mesmos procedimentos de Campo Grande para análise das
entrevistas de Campinas. No entanto, ao realizá-las, já tínhamos acumulado experiência o que
tornou nosso olhar mais apurado para esse novo momento.
Apesar dos modos diferenciados nos quais a instituição das políticas ocorreu nas duas
Secretarias, algumas categorias se repetiram, mas também foram identificadas novas e
algumas
peculiaridades
nas
categorias
semelhantes.
Por
exemplo,
na
categoria
Profissionalidade, construída nas entrevistas de Campo Grande/MS, não aparecem os fatores
que mobilizaram as educadoras a fazerem o curso. Em Campinas, esse fator ocupa um espaço
importante da análise. Essas diferenças devem-se às especificidades do trabalho desenvolvido
em Campinas e como também ao fato de termos acumulado a experiência das entrevistas de
Campo Grande tornando nossa interação em Campinas mais atenta para alguns detalhes.
As
categorias
configuradas
a
partir
do
estudo
das
entrevistas
foram:
profissionalidade, em que apareceram questões relativas ao pertencimento racial e à
construção da identidade racial das educadoras. Abordamos o ciclo de vida profissional,
enfocando as diferentes experiências vividas por educadoras negras e brancas, suas
187
Relatório Módulo I, p.3. Educar para a Igualdade Racial, Campinas-SP, jul.2003. Anexo
29.
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percepções sobre outros tipos de discriminações, os motivos que as mobilizaram a participar
do curso e suas intervenções fora do espaço escolar. Em ações formadoras, constam o local
do curso, o processo de seleção para participar dele, a articulação das professoras negras, os
conteúdos mais marcantes, metodologias, o que consideraram ter aprendido e a percepção
sobre a reação dos professores negros e brancos. Na categoria dimensão políticoadministrativa, se incluem os compromissos da Secretaria com a Política, os compromissos
da escola e os compromissos do educador.
A quarta e última categoria, práticas pedagógicas, que será tratada à parte, no
capítulo seguinte, analisa os pressupostos pedagógicos relatados pelas educadoras, a dimensão
curricular que o tema passa a ocupar nas práticas pedagógicas e também detalha a dimensão
metodológica. Verificamos como os conteúdos escolhidos se transformam em atividades, qual
tipo de estratégia as educadoras desenvolveram e, por fim, como as crianças reagem a um
trabalho com esse enfoque.
5.1. Profissionalidade
Eu sempre sentia isso, mas não sabia como me colocar, mesmo em relação às
crianças, mesmo comigo mesma. Eu lembro que fui trabalhar numa escola muito
grande, mas num bairro muito bom. E eu era a única professora negra daquela
escola, e o que aconteceu? Lá era uma escola ... No primeiro dia de aula, os
professores liam a lista e formavam a fila com as crianças, 20 salas. Eu lembro que
minha turma era a última, então, foram indo todas as crianças, todas as crianças, e as
crianças que ficaram seriam as minhas crianças, e eu olhava ... não sei se foi coisa
minha, mas eu olhava assim, a decepção mesmo dos pais. Educadora Aminata
A questão da profissionalidade se constitui de vários fatores, sendo um deles a
experiência dos professores adquirida na sua atuação. O depoimento de Aminata nos mostra
que ser negra interfere no trabalho como professora. Escolhemos começar por discutir esse
tema ao tratarmos da profissionalidade das educadoras de Campinas porque percebemos que o
pertencimento racial será de fato uma das questões mais marcantes na constituição de sua
profissionalidade.
Em Campinas - diferentemente de Campo Grande, onde as professoras tiveram
dificuldade para estabelecer seu pertencimento - as entrevistadas não apresentaram nenhuma
dúvida sobre sua identidade racial. Três se disseram negras e contestaram o fato de terem de
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"submeter" suas identidades raciais à categoria preta, como define o IBGE. Segundo elas, essa
denominação não se adequa à percepção que elas têm de si mesmas, revelando o caráter
político da escolha de pertencimento. Duas se disseram brancas, não apresentando nenhum
problema ou dúvida sobre isso.
Essa peculiaridade do pertencimento racial articula-se ao fato de que, das cinco
entrevistadas, três eram monitoras, e não professoras. Duas monitoras negras e uma branca e
duas professoras, uma negra e outra branca. Das quatro educadoras negras, duas terminaram
em 2006 a formação em nível superior, e uma terminou em 2003. A imbricação entre a
presença da mulher negra e a educação tem sido objeto de várias pesquisas. Recentemente,
algumas delas enfatizam a presença das mulheres negras na educação infantil, em geral num
posto hierarquicamente menos valorizado.188 Vejamos o que as questões do pertencimento
racial das educadoras nos apresentam.
5.1.1. Pertencimento Racial.
O estabelecimento do pertencimento racial das educadoras de Campinas revela-se
menos conflitivo do que em Campo Grande/MS, como poderemos verificar na tabela abaixo:
não houve discordância entre o pertencimento auto-atribuído e o hetero-atribuído. Para nós,
isso se deve ao fato de o curso desenvolvido em Campinas ter proporcionado para essas
educadoras compreender de modo consistente como o pertencimento racial é construído na
sociedade brasileira.
Quadro 3 -Pertencimento racial das educadoras de Campinas - SP
NOME
AUTO-ATRIBUIÇÃO
HETEROATRIBUIÇÃO
Mame
Negra/ Preta
Negra/ Preta
Aminata
Negra/ Preta
Negra/Preta
Nafissatou
Branca
Branca
Aissatou
Branca
Branca
Aicha
Negra/ Preta
Negra/Preta
188
Alguns deles são: Nilma Lino Gomes (1995); Denise Maria Botelho (2000), Marlene Gonçalves (2000),
Regina de Fátima Jesus (2002), Maria Lúcia Rodrigues Müller (1999), Gláucia Romualdo dos Santos (2000),
Eva Aparecida da Silva (2003), Jacira dos Reis (2000), Patricia Santana (2004); Maria Nilza da Silva (1999),
Waldete Tristão de Oliveira (2006).
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Em Campinas, houve resistência em se enquadrar nas categorias utilizadas pelo IBGE,
refletindo uma crítica corrente no movimento negro. Na interpretação de Mame:\
Então não tem essa questão do negro? Eu acho que deveria de ter. No caso preto [eu
vou me colocar]. Mas eu me considero negra. Como não tem o negro, a gente tem de
se encaixar no preto mesmo. Se bem que eu acho que esse não seja [o melhor] ...
Tem que ter o negro no lugar do preto. (Educadora Mame - entrevista concedida em
13/09/06)
Outras simplesmente escolheram uma das categorias apresentadas sem maiores
delongas, como foram os casos de Aminata e de Aissatou: simplesmente indicaram as
categorias do IBGE que julgaram adequadas. As educadoras de Campinas não precisam
utilizar a estratégia de “enegrecimento” para se mostrarem comprometidas com o trabalho
como foi o caso de MS.
Também, julgamos que essa atitude resulta das diretrizes do curso. Embora não
estejam explicitadas nos documentos que relatam nem nos conteúdos, inferimos que houve a
abordagem sobre a branquitude, pois se trata de assunto estudado por Maria Aparecida Silva
Bento, diretora do CEERT e uma das ministrantes. A autora, ao tratar dos pressupostos que
compõem os cursos oferecidos por sua instituição, coloca que logo de início se deve explicitar
que há diferenças importantes a serem compreendidas entre o impacto do racismo sobre o
branco e sobre o negro, mas que suas conseqüências não são positivas para nenhum dos
grupos. Segundo ela, o racismo é um problema para ambos (BENTO, 2002, p.156).
Reconhecer que o racismo é prejudicial a todos possibilita ao professor se comprometer com a
luta sem que para isso precise assumir a posição do discriminado.
5.1.2. Ciclo de vida profissional
Outro diferencial das educadoras entrevistadas de Campinas em relação a Campo
Grande relaciona-se ao ciclo de vida profissional. Aqui, retomaremos Huberman (1995).
Algumas peculiaridades desse grupo nos chamam a atenção. A primeira se deve ao
fato de que, das cinco educadoras, quatro possuem mais de dez anos de trabalho com a
educação infantil. Além disso, as três educadoras negras só recentemente finalizaram a
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formação em nível superior. Apenas a educadora Aissatou é a "mais inexperiente", com nove
anos de docência e com a formação em nivel superior ainda incompleta. Outro fator
importante é que, das cinco educadoras, três são monitoras.
Segundo uma monitora, as diferenças entre as funções de monitora e de professora se
apresentam da seguinte forma:
Olha, o professor, aqui na...bom, fica até difícil falar, né, já misturei os dois,
incorporei as duas categorias, mas o professor tem todo um processo didático que
ele é responsável para dar conta até o final do ano, e o monitor, não. Era para ser
assim, mas muitos monitores se preocupam com a parte de higiene, socialização da
criança, conduta, ficam mais nesse setor. (Educadora Aicha - entrevista concedida
em 11/09/06)
Para uma professora, as funções se explicam assim:
A gente tem o cuidar e o educar juntos, mas essa questão do cuidar fica mais para o
monitor. Então o professor [fica com] a questão burocrática, os papéis, direcionar o
planejamento ... Mas a gente tenta fazer isso em equipe. Porque há 20 anos, quando
as creches não eram da Secretária de Campinas não era de Educação, mas da
Promoção Social havia só o cuidar, o professor nem existia nessa faixa etária. Hoje
não, hoje faz parte da Secretária de Educação, então é muito importante o papel do
professor nesta faixa etária. O professor veio na verdade para teorizar e para
movimentar o cuidar. Quer dizer, elas já faziam o pedagógico desde a Promoção
Social, só que elas achavam que não, que estavam ali para cuidar. Nossa! E como
elas fazem muito bem. E hoje inclusive muitas monitoras já têm pedagogia, foram
fazer o magistério ... Então isso ficou ... Nossa! Eu acho que melhorou muito. Na
verdade, já tem até uma discussão que não dá mais para diferenciar. É um
profissional só, porque, a gente entende que o cuidar e o educar não estão
separados. Eles andam juntos... (Educadora Aminata - entrevista concedida em
12/09/06)
A figura da monitora, de acordo com informações da Secretaria de Educação, vem do
tempo em que a educação infantil fazia parte da Secretaria de Promoção Social. Nesse
período, as profissionais contratadas não precisavam ter formação específica na área de
educação - nem mesmo o ensino médio era exigido. Com a passagem da educação infantil
para a pasta da Educação, as profissionais também passaram a fazer parte do quadro dessa
Secretaria, que buscou promover a formação dessas monitoras, mas a rede ainda tem
monitoras sem formação específica.
Na rede, somente os Centros de Educação Infantil contam com monitoras, que, às
vezes, estão em sala de aula com a professora ou no período contrário ao dela, já que os
centros atendem crianças que ficam em período integral com idade de zero a cinco anos. Nas
Emeis, só há professoras, e as crianças ficam meio período. Em relação à diferença das
funções de monitora e professora, o que pudemos apreender é que ainda há dificuldades de
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estabelecer uma ação compartilhada entre o cuidar e o educar sem que se considere uma certa
hierarquização entre as duas funções.
De acordo com Sueli Gonçalves, as monitoras passaram a compor o quadro da
educação após incorporação das creches antes administradas pela assistência social, como
previsto na LDBN nº.9394/96. Portanto essas monitoras ocupam novo papel profissional,
conscientemente expresso no depoimento de Aminata, que aqui retomamos:
Há 20 anos, não era [Secretaria de] Educação, era Promoção Social, então era só o
cuidar, o professor nem existia nessa faixa etária, hoje não, faz parte da Secretária de
Educação, então é muito importante o papel do professor nesta faixa etária também.
(Educadora Aminata - entrevista concedida em 12/09/06)
Quando analisamos a trajetória profissional das educadoras negras, monitoras e
professoras encontramos algumas semelhanças. As três fizeram recentemente a formação em
nível superior. Uma em faculdade privada, finalizado em 2004, e duas se graduaram pelo
Programa Especial de Formação de Professores em Exercício, organizado pela Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), finalizado no primeiro
semestre de 2006. As três trabalham há mais de dez anos na educação infantil, como podemos
constatar na tabela abaixo:
Quadro 4 - Formação e tempo de atuação das educadoras de Campinas -SP
NOME
FUNÇÃO
ESCOLARIDADE/
FORMAÇÃO
TEMPO DE
ATUAÇÃO NA
EI
Mame (negra)
Monitora
Pedagogia (formação em
serviço)
12 anos
Aminata (negra)
professora
Pedagogia (formação em
serviço)
20 anos
Nafissatou (branca)
monitora
Pedagogia (incompleto)
9 anos
Aissatou (branca)
professora
Pedagogia e ciências
sociais
17 anos
Aicha (negra)
monitora
Pedagogia
16 anos
Esse "lugar" de certo modo inferiorizado ocupado pelas mulheres negras na rede de
educação infantil não é exclusividade de Campinas, mas uma tendência nacional, embora este
levantamento não tenha a pretensão de ser estatístico. Waldete Tristão Farias de Oliveira
(2006), ao entrevistar educadoras negras que atuam na educação infantil, caracteriza muito
bem esse fenômeno:
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Às pessoas subordinadas socioeconomicamente foi oferecida uma oportunidade de
trabalho, anunciada por uma convergência de interesses sui generis. Ou seja, a
demanda dos movimentos sociais oportunizou trabalho às mulheres negras e oferta
do atendimento em creches às mães e crianças, mesmo que isso não significasse a
exigência da presença de um profissional qualificado para esse tipo de atendimento
(OLIVEIRA, 2006, p. 99).
A presença dessas mulheres negras há tanto tempo na educação infantil e suas recentes
formações em nível superior se devem em alguma medida a esse processo, pois, ainda
segundo Oliveira, "[...] a escolaridade ou a posse de saberes específicos relacionados à
profissionalidade da educadora da infância não eram levados em consideração no ato da
contração dessa mão-de-obra".189 No entanto, se os saberes escolares são marcas de prestígio
só recentemente alcançadas por essas educadoras, seus saberes experienciais lhes
possibilitaram uma participação qualificada no interior do curso e no desenvolvimento do
trabalho nas escolas. Como podemos identificar no depoimento da educadora Mame:
[...] Nós somos um grupo, onde tem o professor e mais dois monitores. Como a
professora entrou neste ano, ela já sabia que tinha o trabalho, não é que eu esteja a
frente, é que a gente fez o curso, a gente acaba sendo referência, né, mas ela está
aberta, quer fazer. E assim teve uma repercussão muito legal do trabalho em relação
à rede como um todo... (Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06)
Esse “lugar valorizado” que as educadoras negras passam a ocupar conta com o fator
de que elas se encontram na fase definida por Huberman como a fase da “diversificação”.
Aliás, é a fase na qual se encontram todas as educadoras entrevistadas, de acordo com a
classificação do autor, por volta dos 7 aos 25 anos. Essa fase, a mais longa, está marcada por
uma afirmação das possibilidades individuais que os profissionais conquistam no exercício de
sua profissão. Pode ser marcada por uma atitude de segurança em si mesmo provocada pelo
domínio da rotina e por certa estabilidade. Ou então pela possibilidade de crises, de
questionamentos dessas certezas adquiridas pela rotina profissional.
Cremos que a procura das educadoras por esse tipo de curso se relaciona diretamente
com esse movimento de questionamentos apontado por Huberman. Quando perguntamos
sobre os motivos que as levaram a fazer o curso as respostas, todas transmitiam a idéia de
questionar suas certezas adquiridas pela rotina profissional. Há uma motivação
pessoal/profissional em todas as respostas, mas o pertencimento racial lhes dá um componente
diferenciado. As educadoras negras sentiram-se mobilizadas para realizar uma formação com
189
Ibidem, p.102
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enfoque na promoção da igualdade racial porque queriam entender os significados de “ser
negra e ser de região de maioria negra” e ainda o porquê de “ser a única negra numa sala de
curso superior”. As educadoras negras também estavam mergulhadas no que poderíamos
considerar pequenas crises e questionamentos. Sentiam “o incômodo de perceber a diferença
de tratamento dos profissionais em relação à criança branca e à criança negra”, aliado ao o
fato de ser negra e presenciar situações conflitivas na escola, mas não saber intervir.
Já as motivações de ordem pessoal/profissional das professoras brancas relacionavamse ao fato de quererem um aprimoramento profissional para o melhor exercício de suas
atividades. Elas declararam necessidade de “um olhar mais específico para isso, pois me
perguntava: criança não discrimina, criança não tem preconceito, será que é isso mesmo?” Ou
porque “quis tirar dúvidas, pois já estava desenvolvendo um trabalho com o tema”.
Como a constituição da profissionalidade ocorre num processo contínuo de construção
e reconstrução de valores, atitudes e conhecimentos, esse processo ultrapassa os muros
escolares: as educadoras apontavam episódios que, segundo elas, fazem parte do processo de
formação.
Aqui também vamos encontrar diferentes percepções de acordo com o pertencimento
racial. As professoras brancas relataram questionamentos por parte de outras pessoas em
relação ao seu envolvimento com o tema. Familiares, por exemplo, questionaram os motivos
pelos quais a professora, que é branca, se interessa por um assunto “de negros”. Por outro
lado, também afirmaram que algumas pessoas negras não consideravam legítima a presença
de professoras brancas na discussão.
Já as professoras negras relataram que as vivências mais significativas relacionam-se
com o fato de terem "sentido na pele" a discriminação racial. Uma delas conta um episódio
doloroso, reproduzido a seguir:
No meu setor, de negro só tinha eu, as demais monitoras eram loiras, e a gente via a
diferença no tratamento dos pais, em abordar. Às vezes, faziam até questão de que a
monitora loira fosse pegar a criança. E a gente ficava só observando. Também, a
criança reproduzia isso, as tias loiras, que eram parecidas com a Xuxa, com a
Angélica, tinham a preferência. E isso [o trabalho com tema na escola] também se
reportou para a gente. Também [a criança] acabou enxergando que nós também
tínhamos o nosso valor. Na época, eu usava kanekalon [cabelo de fibra sintética] de
trancinhas. Eu lembro que eles começaram a elogiar: “Olha tia, como você está
bonita de trancinha, quero fazer para ficar igual ao seu” ... Eu falei: nossa...!
(Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06)
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Essa possibilidade de as educadoras negras potencializarem seu lugar dentro da
hierarquia da escola ao serem beneficiadas com o trabalho da educação das relações étnicoraciais é um aspecto importante, ainda que não previsto, do impacto positivo que uma política
de formação pode provocar no ambiente escolar.
Se as motivações das educadoras brancas foram diferentes das educadoras negras para
participarem do curso, elas tinham um objetivo comum de se colocarem como propulsoras de
mudanças em seus espaços de atuação. Como nos explicita Nafissatou:
Sim, e também essa... não essa coisa da sensibilidade, mas para quebrar um pouco,
porque na minha escola tem funcionárias negras, professoras negras, mas fica um
certo receio. E quando a gente fala, eu acho que ganha mais força. Porque não é um
... O meu discurso não é o discurso da professora negra, militante, que fica ali
defendendo porque ela vivencia tudo aquilo. É um discurso de uma professora
branca, militante também, que defende um ideal, um ideal de igualdade. (Educadora
Nafissatou - entrevista concedida em 16/10/06)
Aissatou, a outra educadora branca, também demarca sua posição de modo forte e
comprometido "É uma questão que no Brasil é muito negligenciada, ela não é tratada com a
importância que deveria".
Esse compromisso efetivo das educadoras gerou ações fora do seu ambiente de
trabalho. Quatro das educadoras disseram ter produzido algum tipo de intervenção em outros
espaços. Três incluíram suas vivências em produções acadêmicas: duas no memorial, trabalho
exigido para finalização do curso de pedagogia, e outra realizou pesquisa sobre o preconceito
racial no ensino fundamental, apresentando em monografia como exigência para finalização
do seu curso de pedagogia. A quarta educadora escolheu o tema da discriminação racial para
apresentação de trabalho em uma disciplina da faculdade.
Ao detectarmos que as educadoras colocam seus saberes em ação não só na escola
com seus alunos como também produzindo textos em novos contextos, concluímos que, a
partir do curso, conseguiram realizar uma prática reflexiva sobre o seu fazer.
5.2. Ações formadoras
Esta categoria também apareceu nas entrevistas de Campo Grande. Em Campinas, se
compõe de ações realizadas com intuito de promover a igualdade racial na escola que devem
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possibilitar aos educadores vencer as dificuldades inerentes a esse tipo de discussão.
Como estratégia de enfrentamento dessa dificuldade, o curso de Campinas foi
realizado em três módulos, divididos em 16 horas cada um. Previram-se ainda duas reuniões
de monitoramento. Todos os módulos foram ministrados em um hotel-fazenda, para onde o
grupo se deslocava na sexta-feira e ficava até o final do domingo.
A primeira etapa realizou-se nos dias 4 e 5 de julho de 2003. Participaram 43
professores, sendo 36 mulheres e 7 homens. No segundo módulo, ocorrido em 29 e 30 de
agosto, participaram 40 professores, sendo 33 mulheres e 7 homens. O último foi realizado
em 31/10 e 01/11 e contou com a participação de 34 professoras e 6 professores, dos quais
três estavam no grupo pela primeira vez. Em todos os módulos, os professores eram de
diferentes etapas da educação básica.
O local onde o curso foi realizado fez parte da estratégia estabelecida pela entidade
executora. Pretendia-se afastar os professores de seus locais de trabalho e possibilitar que
ficassem mais tempo juntos, ajudando a qualificar a discussão. Tal objetivo parece ter sido
atingido, pois todas as entrevistadas destacaram esse fator como positivo ao permitir o
sentimento de que formavam um grupo. De acordo com Aissatou,
Eu acho que a idéia de imersão, de a gente estar no hotel, distanciado, só isso torna
a coisa diferente, mais profunda, mais comprometida. Você passa a ter uma relação
com as pessoas nos momentos também de descontração, de almoço, da noite. Isso
cria um grupo que vai além só da questão do companheirismo, no sentido do
trabalho. Cria uma relação diferente entre as pessoas. E isso reflete no curso. Você
acaba tendo um curso que as pessoas se reencontram. A cada módulo as pessoas se
reencontram e querem se ver de novo e querem voltar a conversar sobre aquilo.
Criou-se um vínculo que também refletiu [num] bom trabalho. (Educadora Aissatou
- entrevista concedida em 14/09/06)
Essa não é uma prática muito comum na formação de professores, pois envolve custos
maiores e requer do profissional disponibilidade para deixar sua casa, porém, como a
professora Aissatou, todas as outras atribuíram parte do sucesso do curso a essa possibilidade
de estarem juntas. Pelo que nos declarou a professora, Mame, esse modelo de formação foi
proposto pela entidade executora.
É muito complicado discutir essa polêmica racial. Eu me lembro de que uma das
coisas que o CEERT colocou foi que precisava de um espaço amplo, de um local
mais calmo. Não ia ser uma coisa assim... É um processo demorado também, não ia
ser um curso rápido. Então foi escolhido um local mais retirado do centro. Eu
lembro que nós íamos na à sexta à noite, ficávamos hospedados nesse hotel-fazenda
e passávamos o final de semana todinho fazendo esse curso. (Educadora Mame entrevista concedida em 13/09/06).
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Além do processo de imersão, as educadoras destacaram com ênfase a metodologia e
os conteúdos trabalhados no curso. Com a identificação das experiências nas várias regiões
brasileiras, constatamos que muitos dos conteúdos se repetem, e os dois cursos analisados não
fugiram à regra. A abordagem sobre os significados dos conceitos raça, racismo, preconceito
e discriminação, a análise sobre a imagem do negro nos livros didáticos e na mídia em geral, o
entendimento da escola como veículo importante de transmissão de idéias preconceituosas
sobre a população e a importância do trabalho dos educadores para modificarem essa
realidade são conteúdos encontrados em quase todas as experiências nas quais conseguimos
apreender essa informação. Por isso, julgamos importante conhecer como os sujeitos desses
processos de formação elaboram as informações recebidas acerca desses conteúdos. A seguir,
veremos quais conteúdos as educadoras consideraram mais significativos e por quê.
5.2.1. Metodologias em uso na formação em curso.
Assim como em Campo Grande, os conteúdos que constituíram o currículo do curso
em Campinas começam pelos conceitos. Destacando-se: estereótipo, preconceito, preconceito
racial, discriminação (direta e indireta), racismo institucional e conceituação de raça/cor,
seguidos de reflexões sobre ser negro/preto/afro-descendente/mulato/moreno e as categorias
estatísticas adotadas pelo IBGE.
O curso de Campinas também procurou historiar a situação do negro no Brasil com os
seguintes conteúdos: Negro como minoria e as conseqüências e danos da invisibilidade dos
negros; Culpa e responsabilidade; Cordialidade racial brasileira – Mito da democracia racial;
as leis contra os negros em contraste com a solidariedade com o imigrante europeu. E por fim,
procedeu-se à análise de imagens de Debret e Rugendas para discutir a representação de
negros e brancos. No processo de historiar, encontramos uma novidade em relação a Campo
Grande: as leituras de imagens, trazendo novos recursos metodológicos para trabalhar o tema.
Outras metodologias que acreditamos necessárias se fizeram presentes na organização
do curso de Campinas. Atribuímos a abordagem mais qualificada no curso de Campinas ao
fato de ter sido ministrado por uma instituição reconhecida por sua atuação em educação e
relações raciais. Esse fato trouxe um diferencial significativo ao tratamento do conteúdo se
comparado ao de Campo Grande. Outra possível explicação pode ser o fato de Campo Grande
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estar num Estado pequeno, com menor número de especialistas no tema.
Nenhum ministrante de Campo Grande possuía mestrado. Em Campinas, participaram
como ministrantes três doutores - a psicóloga Cida Bento, o jurista Hédio Silva Jr. e o cineasta
e roteirista Joel Zito - e um mestre em história, Lauro Cornélio da Rocha. Todos realizaram
pesquisas com temas relacionados à questão racial. Ainda havia uma especialista, Isabel (Bel)
Santos, professora de matemática e alfabetizadora, com especialização na Itália.
As educadoras entrevistadas destacaram como conteúdos mais marcantes a
aprendizagem sobre a legislação referente à questão racial no Brasil; os conhecimentos sobre
a mídia, o racismo e a história do negro no Brasil; a discussão sobre cotas; e os tipos de
racismos. Para as educadoras, esses conteúdos foram muito significativos para que pudessem
pensar suas práticas pedagógicas ou mesmo conseguir intervir quando percebiam algum tipo
de discriminação, já que afirmam que o curso lhes possibilitou reconhecer o processo de
naturalização das situações discriminatórias.
A professora Aicha diz o seguinte sobre esse processo de aprendizagem: “Foi muito
conflitante, porque acabei descobrindo que também naturalizava muita coisa, entendeu? Esse
curso mexeu muito com a estrutura emocional dos que estavam no curso”. Ao nos indicar que
os conhecimentos adquiridos provocaram movimentos internos, os quais remetiam os
cursistas às suas vivências e experiências que não são do âmbito dos conhecimentos
científicos, nos interessamos em identificar se as educadoras perceberam algumas diferenças
nas atitudes de professores brancos e negros ao serem expostos a essas reflexões.
Todavia essa questão não foi recebida de modo tranqüilo. As educadoras mostraram-se
incomodadas, sobretudo as educadoras negras, que se sentiram constrangidas em falar se
existia uma diferença de reação a partir do pertencimento racial. Esse embaraço pode ser
percebido por meio de reações do tipo: "Ah... ah... ai fica difícil, né, ai fica difícil... eu posso
falar como... do meu referencial". Reação da professora Aicha, uma das mais enfáticas ao
tratar do racismo na sociedade brasileira e suas conseqüências na escola. Como insistimos na
questão, a educadora concordou em responder. Para ela, há uma diferença nesse processo de
aprendizagem explicada do seguinte modo
Eu acho que sim, eu acho que a reação da gente é sempre diferente, porque para
quem viveu aquilo, a gente fica um pouco angustiada, tudo aquilo fica pesado
(ênfase). E depois a gente tem de processar isso e trabalhar isso no interior da gente,
coisas que as pessoas acham engraçado, para a gente não é engraçado, é dolorido.
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(Educadora Aicha - entrevista concedida em 11/09/06).
Não foi fácil para a Aicha explicitar a diferença na reação entre professores brancos e
negros, apesar de ter falado com naturalidade sobre a desigualdade racial citando alguns
exemplos de índices sociais, da mídia ou da aplicação da lei.
Outra reação também significativa a essa questão foi a da professora Mame. Ela
rapidamente responde: "Não, não, a reação...". Mas, antes de terminar a frase, diz: "Desculpa,
volta a pergunta de novo?". E declara
Não. Reagiam sim, por exemplo, é aquilo que eu falei. Falar da questão da
discriminação não é fácil, eu me lembro... Que a cota... Ainda é uma coisa que pega
muito. Muitos não concordam, acham... As opiniões são diversas, acham que a cota
está discriminando mais, então isso já gera uma polêmica. A gente, talvez alguns
profissionais brancos acham que não precisa que ai sim esteja havendo
discriminação, alguns negros também...Não são todos brancos. (Educadoras Mame entrevista concedida em 13/09/06)
Apesar de reconhecer que as experiências sociais diferenciadas de negros e brancos na
sociedade geraram reações diferentes durante o processo de discussão do tema, ao final da
afirmação, ela minimiza essa diferença apontada.
Para a professora Aissatou, branca, não existiu nenhuma reação diferenciada a partir
do pertencimento racial.
Eu estive pensando mais sobre isso também. Eu acho o seguinte. Eu acho que não é
relacionada à cor. Eu acho que está relacionada com a forma como cada pessoa lida
com o preconceito. Algumas pessoas negras, eu percebi um olhar assim para mim,
por exemplo: “O que essa daí está fazendo aqui. Aqui não é muita a praia dela”. Mas
outras pessoas, não, uma naturalidade de estar junto mesmo. E algumas pessoas
brancas eu acho que também tem um olhar mais ra-di-ca-li-za-do (faz o gesto com
as mãos de aspas), no sentido de tentar fazer ações afirmativas de uma forma tão
radical, que eu acho que não é visto pela cor. Neste caso, passou mais pelo
entendimento da coisa... Eu não sei também se os termos que eu estou usando não
são também preconceituosos (risos). Mas [passou por ter] um entendimento mais
amplo ou um entendimento mais restrito, mais radicalizado. Acho que é como a
pessoa entende a questão. (Educadora Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06)
A professora Nafissatou, por outro lado, concorda com as educadoras negras: para ela
houve diferença na reação de professores brancos e negros durante as discussões.
Eu acho que os professores negros recebiam com mais naturalidade. Assim, já estão
mais acostumados a discutir isso. Alguns até não, mas a maioria sim. Professores
brancos? Tinha uma quantidade considerável, até. Alguns ficavam assim. "Nossa!",
"Ah, não sabia!" Você vê que mexeu, sabe, com a pessoa. E num primeiro momento
ficaram ainda... ficaram um pouco travados, não sei se é essa a palavra correta.
(Educadora Nafissatou - entrevista concedida em 16/10/06).
Não nos interessa aqui valorar as reações, mas ressaltar o fato de que um curso, ao
trabalhar o tema das relações raciais, precisa refletir também a dimensão individual do
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professor. De acordo com Bento (2002), é necessário cuidar desse aspecto para evitar as
fontes de resistência que podem se apresentar durante o curso, inclusive a negação pessoal de
qualquer envolvimento com o racismo.
Ao que parece, o curso em questão tomou esses cuidados, pois tanto as educadoras
negras como as brancas disseram que ele ajudou na "percepção da psicologia do racismo",
"ajudou a ficar mais atento com os detalhes no tratamento com as crianças, as pessoas, com os
indivíduos", possibilitou que elas "adquirissem um discurso para estar defendendo essa idéia,
o porquê de não aceitar isso [a discriminação]" e "o curso serviu no sentido de reforçar, de dar
novas visões". De acordo com o depoimento de Nafissatou,
[...] aquilo mexeu tanto com a gente, acho que entrou tanto na vida de quem fez, que
não tinha como se perder... A gente acabou levando [para outros espaços], era essa a
proposta mesmo, levando isso para o dia-a-dia, para o nosso trabalho. (Educadora
Nafissatou - entrevista concedida em 16/10/06)
De acordo com seus depoimentos, o curso alterou o modo de as educadoras
compreenderem as relações raciais no Brasil, mobilizando-as a intervirem no âmbito da
escola: as estratégias utilizadas, os princípios metodológicos dos ministrantes e
principalmente o fato de os professores se sentirem prestigiados, valorizados, ouvidos,
marcaram profundamente o modo como apreenderam os conteúdos. Segundo Mame:
Houve esse cuidado de ter uma pesquisa antes para saber o que a pessoa estava
buscando no curso. Acho que procurou atender a essa demanda. Eu, por trabalhar na
educação infantil, a minha preocupação era como trabalhar a questão étnica dentro
da educação infantil. Então para mim esse tema foi muito relevante. (Educadora
Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
Aicha corrobora ao afirmar que os organizadores do curso souberam escutar os
educadores: “A gente fica se fazendo essas perguntas, por que isso, por que aquilo. Então eu
fui para o curso para saber um pouco desses porquês e descobri todos lá”.
Embora tenha prevalecido uma avaliação positiva do curso as educadoras também
identificaram problemas, como este, apontado por Aissatou: “Acho que os módulos foram um
pouco curtos, talvez devessem menos temas e mais profundidade”.
O pouco tempo ou sua melhor distribuição para o aprofundamento das discussões
apareceu em vários momentos dos depoimentos e nos remete à outra questão da formação de
professores, a dimensão político-administrativa, que veremos a seguir.
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5.3. Questões Político-administrativas: compromissos
5.3.1. Compromisso da Secretaria
Vimos no item anterior que tratou dos conteúdos trabalhados e das metodologias
utilizadas que as educadoras elogiaram o compromisso do CEERT na organização e
estruturação do trabalho para que o mesmo tivesse um bom resultado. Essa avaliação positiva
também se estendeu à Secretaria de Educação e, por conseqüência, à política da
administração. Para Aicha, essa relação entre a qualidade do curso e o empenho da
administração ocorreu devido ao contexto político daquele momento.
O curso de 2003 estava muito bem estruturado. Eu acho que assim, vai um pouco do
poder público, também de verbas para a estruturação e na época o governo era
petista e eles assim acreditavam e bancavam, mesmo, investiam muito. Então foi
muito bem estruturado. O pessoal que veio ministrar as palestras era muito bem
qualificado. (Educadora Aicha - entrevista concedida em 11/09/06).
Além da infra-estrutura da qual esse curso dispôs, outro indicativo desse
comprometimento da instituição com a política foram as várias outras ações empreendidas
pela Secretaria de Educação: o curso de História da África, realizado pela Universidade
Cândido Mendes do Rio de Janeiro, também reconhecida nacionalmente por sua experiência
de cursos nessa área; a oficina de confecção de bonecas "étnicas", para a qual a Secretaria
adquiriu os materiais e contratou a cooperativa de mulheres Realidade de um Sonho que
confeccionou por volta de 420 bonecas distribuídas na rede190; a oficina de literatura afrobrasileira acompanhada da compra de livros; a organização do GT Memória e Identidade, já
citado. Nesse GT, as professoras participantes foram levadas ao I Congresso de Pesquisadores
Negros, em São Carlos (2002). E ainda houve a instituição do Programa Memória e
Identidade: Promoção da Igualdade na Diversidade (MIPID), em 2004, que envolveu a
contratação de 12 educadores "étnicos"191, sendo distribuídos pelos cinco NAEDs, e um
educador "étnico", responsável por coordenar os trabalhos.
Também nesse período foi adquirida a "Biblioteca Étnica"192, com aproximadamente
240 livros entregues aos NAEDs. Os educadores "étnicos" realizaram diversas oficinas para
190
A entrega das bonecas foi noticiada no site da Secretaria. Anexo 32.
191
Anexo 33.
192
Anexo 34.
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divulgação desse material, e os professores interessados poderiam emprestá-los. Segundo
Aminata, que também foi educadora "étnica", esse trabalho consistia em estimular as escolas
a incluírem no Trabalho Docente Coletivo (TDC), atividades relacionadas ao tema:
Nós trabalhávamos no TDC. A gente fazia esse trabalho de ligar para as escolas:
"Olha, nós somos do MIPID e estamos deixando o telefone com vocês para marcar
um TDC. Nós temos a biblioteca étnica". Porque como o educador ia trabalhar sem
ter o material? Então a gente tinha de indicar. "Olha, você pode fazer esse tipo de
leitura..." (Educadora Aminata - entrevista concedida em 12/09/06).
O Programa MIPID gerou diversas ações nas escolas da rede e manteve-se mesmo
após a troca de governos. É o governo do PT que dá início à Política (2001 -2004), e a gestão
seguinte, do PDT ainda no poder durante a redação desta tese, vem mantendo as linhas gerais.
De acordo com Luci Crespim (ex-assessora para assuntos étnicos da Secretaria),
apesar de o seu cargo ter sido extinto no atual governo, a manutenção do Programa se deve
ao fato de o trabalho ter conseguido atingir a escola e do grupo responsável pela política
dentro da Secretaria - o educador étnico central e os educadores étnicos dos NAEDs - terem
conseguido convencer os novos gestores da sua importância.
Eu acho que foi o grupo. O grupo se assumiu, o grupo se encontrou. O grupo... Eu
tive essa preocupação, [...] nos momentos de formação de delegar ao professor
aquilo que era dele. Não era de trabalhar, o profissional da rede. Formar o
profissional da rede não no sentido de reciclar ou de capacitar. Mas no sentido dele
se apropriar daquele espaço. Então, em todos os momentos que eu considerava
importante, reuniões com Secretária, reuniões com Diretoras, reuniões com
coordenadores pedagógicos, para discutir quais cursos viriam para cidade. Eu nunca
me dei ao luxo de fazer isso só. Não, por nenhum momento de fraqueza política,
não. Mas para que a rede e algumas pessoas pudessem saber alguns caminhos para
que elas pudessem continuar. (Ex-Assessoria para assuntos étnico-raciais da SME,
Luci Crespim - entrevista concedida em 11/10/06)
A manutenção do Programa é uma vitória política e estabelece ao nosso ver outro
patamar à Política. No entanto, não afasta uma certa preocupação de que um dia ele possa ser
extinto porque continua sendo um Programa dentro da rede. Para Sueli Gonçalves,
coordenadora do programa na época da pesquisa.
Houve momentos tensos onde nós não sabíamos se haveria continuidade ou não.
Houve uma conversa com a equipe de transição que se mostra favorável, com
algumas modificações, é claro. Porque nós temos que melhorar, um Programa é isso
mesmo, mas como nós estamos num processo de uma escola democrática
acreditamos que ao final do ano seja possível uma avaliação bem positiva para esse
Programa e para as ações que ele desencadeou.(Gestora Sueli Gonçalves - entrevista
concedida em 04/07/05)
Estamos em 2006 e o Programa continua, sem deixar de ter esse caráter. Instituído por
uma resolução, o que lhe atribui uma certa transitoriedade, gerando certa insegurança nos
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executores. O que talvez, devesse ocorrer é que com base na legislação atual a Secretaria
incluísse os recursos financeiros para a continuidade dos trabalhos do MIPID em seu
orçamento, fazendo com que suas ações sejam incorporadas ao fazer pedagógico da Secretaria
de Educação e ganhe uma vida menos instável estabelecendo-se de modo consistente como
uma política pública.
Porém, apesar dos impasses dentro do sistema, as escolas, a partir de ação das
educadoras, incorporam o compromisso de realizar uma educação para as relações étnicoraciais positivas. É que apresentaremos a seguir.
5.3.2. Compromisso da escola
Idealmente, a escola deve garantir condições aos professores que passaram por cursos
de formação a lançar mão de seus conhecimentos recém-adquiridos, incentivando e
divulgando as novas práticas. A implementação de uma educação para as relações étnicoraciais é uma oportunidade para a comunidade escolar pensar a escola como um todo. O
conjunto da comunidade escolar -, direção, professores, funcionários, alunos e pais - podem
pensar juntos novas maneiras de transformar a escola em um espaço no qual o respeito à
diversidade étnico-racial seja contemplado, porque um ambiente assim cria uma atmosfera de
segurança e confiança para todos.
Essa construção de um trabalho coletivo exige que a direção da escola e a
coordenação consigam escutar e valorizar o professor que passou por um processo de
formação continuada. Juntos, têm o potencial para levantar quais as necessidades que a escola
tem para incluir os novos conhecimentos. Será necessário rever o currículo ou o plano de
curso? É necessário algum tipo de reforma no espaço da escola? Há livros e materiais
pedagógicos para o desenvolvimento do trabalho? Que tipo de equipamento os professores
teriam de ter? Poderão contar com locais e pessoas da comunidade para colaborar nessa nova
perspectiva? Quais poderiam ser as atividades iniciais que colaborariam nessa nova
organização do ensino?
Depois de levantadas as necessidades, é preciso avaliar como a escola poderá
viabilizar o que foi apontado como necessário. É fundamental que a família seja sempre bem
informada das novidades que esses processos de formação trazem. Uma reunião inicial para
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explicar as mudanças ajudaria a família a participar dos novos projetos que a escola virá a
desenvolver.
Esse movimento pode parecer desproporcional. Seria necessário responder a todos
esses questionamentos a cada participação de professores em atividades de formação
continuada? Mas será que não deveríamos repensar, como a escola tem se comportado diante
dos cursos de formação continuada? Será que os gestores não têm negligenciado esses
momentos que potencializam as mudanças necessárias nas escolas? Será que os professores
não estão sendo esquecidos e não conseguem compartilhar suas angústias e suas expectativas
ao voltar para escola depois de participar de cursos desse tipo?
Se um dos papéis da escola é transmissão de conhecimento, esse processo não deve
ser apenas na direção professoralunos, mas professorprofessor, alunoprofessor e
professor  família. Enfim, é essa a finalidade da escola, percorrer caminhos dinâmicos,
criativos, de exploração das potencialidades de todos que compõem a comunidade.
Nesse sentido, a educação das relações étnico-raciais colabora para incrementar esse
caráter de coletividade porque visa formar atitudes e valores, fortalecendo os laços de
solidariedade entre os diferentes grupos. Isso implica produzir na escola espaços nas quais a
comunidade escolar pratique o respeito ao ser humano em sua diversidade.
A educadora Aissatou relata um desses momentos em que a escola criou para todos a
oportunidade de vivência e reflexão da inclusão de temas relativos à religiosidade de matriz
africana no fazer pedagógico da escola:
Talvez seja interessante para você saber. No inicio do ano, a gente apresenta o nosso
Projeto Pedagógico para o conselho da escola. No conselho, tem algumas pessoas
evangélicas, e, quando você levanta a questão, por exemplo, de religião africana,
eles acham que isso é uma coisa do mal, demoníaca e que não deve ser levantada.
Então, a gente diz o seguinte: "Olha, a escola é laica. Ela não vai falar de nenhuma
religião. Nem da sua, nem da minha, nem da religião africana. Mas a gente está
contando história. Da mesma maneira, quando vai falar, por exemplo, de 12 de
outubro. Por que é feriado? É dia de Nossa Senhora Aparecida. Nossa Senhora
Aparecida é negra, os brancos chamam de Nossa Senhora Aparecida. Como é que
os negros chamam? De onde veio essa história da religiosidade? Então é informação,
e informação não pode ser hierarquizada, não tem uma melhor que a outra". Isso foi
uma discussão no nosso Conselho de Escolar que num primeiro momento ficou um
pouco assustado com o que a gente poderia fazer a respeito disso. Mas, no correr do
ano, isso vem sendo bem aceito. Sabe, no dia que tem uma coisa assim, por
exemplo, que tem um caráter religioso mais específico, a gente costuma mandar
bilhete para as crianças. Porque os que são evangélicos, por exemplo, que não
querem participar de uma comemoração têm direito de não participar. Por exemplo,
festa junina, é festa de santo, então, têm direito de não participar, mas a questão de
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falar de coisas mesmo de religiões africanas e tudo, que no primeiro momento a
gente enfrentou uma discussão mais séria, no correr do ano foi legal, não houve
nenhum momento que as pessoas disseram: "Não gostei disso". As coisas acabaram
vindo naturalmente. (Educadora Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06)
O depoimento de Aissatou revela que, mesmo em temas polêmicos, como é a questão
da religiosidade, se a escola está preparada para propor à comunidade uma reflexão segura
sobre o tema, o resultado é positivo. O Conselho de Pais questiona a abordagem religiosa num
primeiro momento, mas é convencido da seriedade com a qual a escola está tratando o assunto
e concorda que também as religiões de matriz africana podem adentrar o espaço da escola.
Abordagens para as quais não deve existir nenhuma perspectiva de doutrinação. Aissatou
credita essa concordância do Conselho a um processo natural de aceitação ao tema. Mas,
como seu próprio depoimento, indica é necessário ter argumentos efetivos e bem estruturados
para que se dê o processo de convencimento.
A apresentação do Projeto Pedagógico ao Conselho de Pais no início do ano constituise um espaço fértil para estabelecer alianças entre os diferentes segmentos da comunidade
escolar para que os trabalhos se desenvolvam de forma harmônica. A importância atribuída ao
PP é um outro diferencial percebido nas práticas pedagógica das professoras de Campinas em
relação às professoras de Campo Grande. Para a pesquisadora Rosângela Gavioli Pietro:
Uma das principais tarefas das unidades escolares é a construção de espaços para a
participação de todos os segmentos envolvidos direta ou indiretamente nas
atividades de ensino. Entre outras tarefas, essa participação deve garantir a
elaboração, execução e avaliação do projeto pedagógico da escola em consonância
com princípios e objetivos maiores da educação, previstos em legislação nacional.
Nesse projeto, a educação para todos deve prever o atendimento à diversidade de
necessidades e características da demanda escolar193.
A Política educacional de Campinas, de acordo as educadoras, procura dar
cumprimento a essa tarefa no que se refere à construção do PP. Todas as educadoras
entrevistadas da cidade em algum momento de seus depoimentos fazem referência ao PP. O
que não ocorre com as educadoras de Campo Grande, que em nenhum momento citam o PP
como espaço importante de negociação e alteração da organização da escola para contemplar
o trabalho com a educação das relações étnico-raciais.
Já as educadoras de Campinas relatam inclusive situações de disputa de concepções
193
PRIETO. Rosângela Gavioli. Políticas públicas de inclusão: compromissos do poder público, da escola e dos
professores. Disponível em <www.pedagobrasil.com.br/pedagogia/politicasdeinclusão.htm> Acesso em: 10
out.2007.
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entre os educadores durante o PP. Uma delas foi apresentada por Nafissatou ao relatar o
embate que se trava na sua escola quando ela propõe a inclusão do tema da igualdade racial:
É, se fala [no PP]. Fala-se na diversidade, se fala na igualdade, em
estar tratando as crianças da mesma maneira e tal. A preocupação com
os sujeitos, mas não tem um ponto específico falando disso. Elas já
discutiram. É um ponto bem polêmico, tem gente que não gosta nem
de discutir, pra falar a verdade. Mas não se vê uma preocupação em
tratar sobre o tema racial, sobre igualdade racial, porque é uma coisa
que [dizem que] tem de ser natural, têm de ser todos iguais...
[irônica].(Educadora Nafissatou - entrevista concedida em 16/10/06).
Aissatou, nesse embate, foi mais feliz que Nafissatou:
A questão racial agora é abordada, especificamente, no projeto
pedagógico, porque antes era uma coisa assim: lidar com diferenças,
não havia um item específico para isso, e agora a gente faz questão
que conste no projeto um item específico. (Educadora Aissatou entrevista concedida em 14/09/06).
A inclusão de temas relativos à educação das relações étnico-raciais não necessitaria
passar pela aprovação do Conselho de Pais ou mesmo do corpo docente porque é uma
obrigatoriedade legal prevista em vários documentos. Entretanto tais discussões conferem ao
tema legitimidade e colabora para elucidar as dúvidas que podem surgir entre os pais e as
mães da escola, o que ajuda em muito o trabalho do educador comprometido. É dele que
pretendemos falar a seguir.
5.3.3. Compromisso do educador
O papel do educador é inconfundível e fundamental ao se constituir em fonte de
referências para os alunos e contribui na construção de suas identidades. O educador ajuda na
aprendizagem e colabora no enfrentamento de situações-problema que ocorrem diuturnamente
na comunidade escolar, visando buscar respostas para as mudanças necessárias. O educador
contextualiza e oferece significado aos conteúdos já fundamentados na ação pedagógica e
formula novos a serem estudados.
Um dos aspectos que as educadoras salientaram como conflituosos foi a volta para a
escola. Elas relatam dificuldades para cumprirem um acordo estabelecido antes do curso, o
de compartilhar o apreendido com as outras educadoras. Nesse processo, reaparece a cisão
entre professoras e monitoras. Os espaços de planejamento e estudos do TDC são separados,
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por isso as monitoras que fizeram o curso socializaram entre si, e as professoras do mesmo
modo. Aicha é monitora e aponta as dificuldades que teve para viabilizar o compromisso
assumido:
Quantas vezes eu reproduzi o preconceito, achando que eu estava
ajudando...Quantas vezes. Fazendo o curso, percebi que podia mudar isso. Eu tinha
de mudar, isso. Como negra, como educadora, eu tinha de mudar isso. Quando eu
trouxe essa prática para escola, tinha responsabilidade de socializá-la, porque eu era
dispensada um dia a cada dois meses para fazer esse curso. Tinha, também, que
montar, organizar, com as monitoras algumas atividades para a rotina diária delas.
Foi difícil (ênfase), porque eu tinha que trazer coisas para elas lerem, e elas não
gostam de ler. Se não for revista, ninguém gosta de ler. E elas tinham de ler para
poder entender aquilo. Porque você não consegue falar de racismo sem uma leitura.
Você precisa ler pessoas que estão pesquisando sobre os assuntos para entender
como a coisa acontece de uma forma que você não percebe. Foi bem complicado.
(Educadora Aicha - entrevista concedida em 11/09/06).
De fato, o que lhes foi solicitado é que exercessem o papel de multiplicadoras, isto é,
professores que se capacitam e que passam a assumir papéis de capacitadores com os colegas,
auxiliando-os a refletirem sobre suas práticas em relação ao objeto do curso. Tal empreitada
requeria que a educadora organizasse oficinas e preparasse material de estudo de modo a
possibilitar às colegas se apropriarem de algum modo da discussão realizada.
Assumir essa nova tarefa no ambiente escolar não foi uma ação tranqüila, porque elas
passaram por situações constrangedoras. Assim como Aicha, Nafissatou enfrentou outros
modos de resistências entre suas colegas:
As pessoas vinham com brincadeiras. ... Porque, como eu sempre levei muito a
sério, ninguém falava claramente, sabe? Mas com piadinhas. Até nesse ano passei
por uma situação muito desagradável. Chegou o dia da consciência negra, eu já
estava com um trabalho de um ano todo. Aí elas [as outras professoras] vieram com
uma piadinha. Colocaram um adesivo, assim: “Queremos o dia da consciência
branca”. Sabe? [...] Mas é uma brincadeira que acaba desconstruindo um trabalho
de um ano que eu estou tendo com as crianças. “Ah, mas eles não sabem ler”. Eles
não sabem ler, mas percebem. E tem criança que já sabe ler. Foi uma provocação
para mim diretamente, e eu me senti muito incomodada e briguei. Falei que a gente
trabalha para construir uma identidade e um respeito e, numa brincadeira de mau
gosto, você acaba perdendo isso. (Educadora Nafissatou - entrevista concedida em
16/10/06).
Mas nem só de dificuldades é composto o compromisso dos educadores no retorno
aos seus locais de trabalho. Aminata nos relata seu bem-sucedido processo de socialização:
Olha. Eu consegui. Eu não digo assim que foi tudo... Onde eu trabalhava era
muito... a diretora, a orientadora pedagógica [diziam]: “Olha, que
interessante acontecer isso!" [...] Então, eu fiquei assim, uma coisa tão boa
que a gente... a gente quer passar ... a gente veio com vários livros que
trabalhavam a questão do negro de uma forma positiva, às vezes com aquela
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ânsia... E foi assim, foi uma coisa boa.(Educadora Aminata - entrevista
concedida em 12/09/06).
Essa boa acolhida acabou resultando na inclusão do tema da educação para as relações
étnico-raciais no PP da escola:
A gente trabalha muito com projeto, só que, para fazer um projeto, ele
tem de estar dentro do projeto político pedagógico da escola. Como já
tinha um tempo que a gente havia feito o curso, escrevi um projeto
para enviar logo no início do ano para fazer parte do projeto político
pedagógico. [...] Primeiro tem que passar pela escola, se todo mundo
concorda. Eu lembro que era o projeto educar para a igualdade... Eu
fico muito feliz, porque eu não estou mais nesta escola, mas até hoje o
projeto funciona, no Cemei. Porque a intenção é realmente essa, se
está no projeto pedagógico da escola, então todo mundo tem de
abraçar. Primeiro a gente discutiu se era realmente necessário esse
projeto estar na escola. (Educadora Aminata - entrevista concedida em
12/09/06).
O compromisso dessas educadoras revela-se em cada uma dessas aparentes pequenas
ações: o preparo das oficinas para discussão com os colegas, a insistência de que esse tema
faça parte do projeto pedagógico, a disponibilidade de organizar as sessões de estudos, mesmo
enfrentando momentos tensos dentro e fora do espaço escolar.
Aicha relata que teve dificuldades em encontrar uma orientadora para sua monografia
que tratava do assunto, e mesmo a que aceitou o desafio
acreditava que ela estava
procurando "pêlo em ovo". Para Aicha, assumir esse compromisso também inclui “[...] um
monte de obstáculos na vida. Quando você começa a discutir essa questão, as pessoas não
gostam de discutir esse assunto, não se consideram racistas, elas se levantam assim de uma
forma ... prejudica muito, eu tive muitos problemas, viu, não foram flores não”.
Entretanto as educadoras também foram beneficiadas, tendo o trabalho reconhecido
por alguns setores da sociedade. A professora Nafissatou, entre as cinco entrevistadas, foi a
que mais relatou obstáculos. Segundo ela, enfrentou e enfrenta ainda dificuldades no seu
ambiente de trabalho, mas se orgulha de ter sido convidada a participar do vídeo Vista a
minha pele194. Mame e ela deram depoimentos sobre o trabalho realizado com seus alunos
nesse vídeo e em programa do Canal Futura.
194
ARAÚJO, Joel Zito. Vista a Minha Pele, 2003, 15 min. “Vista a Minha Pele” é uma divertida paródia da
realidade brasileira. Serve de material básico para discussão sobre racismo e preconceito em sala-de-aula. Nessa
história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados. Produção: Casa de
Criação/CEERT.
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A professora Aicha, juntamente com mais duas colegas de sua escola, conseguiu o
primeiro lugar na categoria educação infantil do 2º. Prêmio Educar para a Igualdade Racial,
realizado pelo CEERT. Elas comentaram que os jornais de Campinas divulgaram as
atividades realizadas por elas nas escolas, como a entrega de bonecas no dia das crianças. Por
fim, ressaltaram o fato de terem se tornado referência para as outras colegas da escola, como é
o caso da professora Aissatou:
Bom eu já sou a diferente da escola porque sou sempre eu quem trabalha, por
exemplo, com as crianças especiais. Mas eu percebo que isso foi uma coisa que foi
crescendo, nestes 21 anos que eu tenho de rede. A rede municipal foi uma coisa que
foi crescendo. Antigamente, quando eu entrei, isso era uma coisa assim... "É
estranho porque essa pessoa lida com essas coisas, para que, por quê?" Mas à
medida que a sociedade toda está discutindo mais, falando, lendo, aparecendo na
TV, mil situações que lidam com formas variadas de preconceito, então, as pessoas
estão incorporando mesmo falar sobre isso, se instrumentalizar para trabalhar com
isso em sala de aula. Eu acho que agora eu tenho sido vista como uma referência,
sabe assim quando, tem que tratar alguma coisa. "Vamos lá perguntar para a
Aissatou que jeito que é bom fazer isso". (Educadora Aissatou - entrevista concedida
em 14/09/06).
Esse sentimento de serem compreendidas e até de se tornarem referência dentro e fora
da escola nos indica que, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, o compromisso está
assumido na produção de uma educação anti-racista. É disso que nosso próximo capítulo
tratará.
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Documentos de adoção
A primeira instituição à que fui
não queria nos colocar na sua lista
não morávamos suficientemente próximos
nem freqüentávamos qualquer igreja
(mas nos calamos sobre o fato de que éramos comunistas).
A segunda nos disse que nossa renda não era suficientemente alta.
A terceira gostou de nós
mas tinham uma lista de espera de cinco anos.
Passei seis meses tentando não olhar
para balanços nem para carrinhos de bebê
para não pensar que essa criança que eu queria
poderia ter agora cinco anos.
A quarta instituição estava com as vagas esgotadas
A sexta disse sim, mas, de novo não havia nenhum bebê.
Quando eu já estava na porta,
Eu disse olha a gente não liga pra cor.
E foi assim que, de repente, a espera acabou.
Jackie Key
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Capítulo VI - As Práticas Pedagógicas de combate ao racismo na
primeira infância em Campinas
1. Introdução
Acreditamos na concepção de que, para a escola exercer seu papel de transmissora e
construtora de conhecimentos, precisa escutar a sua volta, estabelecendo um diálogo direto
com o modelo econômico e social e considerando suas interferências nas concepções de
mundo e de relações interpessoais. Para Paulo Freire (1992, p.157), a construção de um
currículo que contemple a educação das relações étnico-raciais tem de se pautar pelo princípio
da unidade na diversidade. É uma conquista, segundo ele, que não acontece naturalmente, mas
"[...] é histórica, o que implica decisão, vontade política, mobilização, organização de cada
grupo cultural com vistas a fins comuns".
O curso Promovendo a Igualdade Racial na escola buscou familiarizar os
educadores com a idéia da existência, no contexto da escola, de práticas de discriminação
racial. Reflexão que de fato parece ter atingido seu objetivo, pois os depoimentos revelam ter
identificado formas pejorativas de construção e reprodução de imagens de negros,
principalmente por meio do livro de literatura infantil e pela organização de um currículo que
tem ignorado a contribuição cultural e econômica da população negra.
O empenho originado desse diagnóstico representa um decisivo passo na construção de
uma educação das relações étnico-raciais, assim como uma importante contribuição à luta
histórica dos movimentos sociais na defesa dos direitos da comunidade negra. Representa
ainda um movimento, ainda frágil mas que se espera consistente, de romper dentro da escola o
silêncio dos educadores diante do racismo tão bem caracterizado por Luiz Alberto Gonçalves
em princípios dos anos 80.
É essa perspectiva que nos anima a trazer à tona as práticas desenvolvidas pelas
educadoras de Campinas, algumas semelhantes às de Campo Grande. No entanto, cada grupo
ao seu modo apropria-se do que lhes foi "ensinado", compreende os conteúdos segundo suas
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próprias histórias e os realiza de acordo com suas condições materiais e a sua apreensão
política, teórica e pessoal .
2. Lugares e encontros com os sujeitos da pesquisa
O sonho positivista de uma perfeita inocência epistemológica oculta na verdade que
a diferença não é entre a ciência que realiza uma construção e aquela que não o faz,
mas entre aquela que o faz sem saber e aquela que, sabendo, se esforça para
conhecer e dominar o mais completamente possível seus atos, inevitáveis, de
construção e os efeitos que eles produzem também inevitavelmente. P.Bourdieu. A
míséria do mundo, p.695, 2003.
Pensando no que disse Bourdieu (2003,p.695) de que não é possível “uma perfeita
inocência epistemológica”, procuramos construir a pesquisa de modo reflexivo. Nessa nova
etapa, partíamos já com algumas referências do que nos esperava, pois tínhamos realizado as
entrevistas com as educadoras de Campo Grande. Mas, ao mesmo tempo em que isso nos
confortava, também acrescentava uma certa ansiedade. Seríamos bem recebidas nessa cidade
desconhecida? O que as educadoras trariam de novo? Como será chegar a cada uma delas?
Cada educadora escolheu o lugar e o horário mais adequado. A primeira a ser
entrevistada foi a professora Aicha, na escola onde trabalha. Chegamos uma hora antes do
horário e fomos bem recebidas por uma das pessoas responsáveis pela limpeza do Cei. Ela
nos conduziu para a cozinha e lá ficamos aguardando, aproveitamos para revisar as questões,
conferir o gravador e olhar o ambiente. Em seguida, ela ofereceu a biblioteca para aguardar,
oferta aceita.
Tratava-se de uma pequena sala com um computador, três estantes, um armário e duas
cadeiras. Nada aconchegante. Decidimos, então, ficar no refeitório. Todas as pessoas da
escola foram muito simpáticas, cumprimentavam-me sorridentes, aliás, a escola tinha um
"clima" muito bom. Percebíamos entre as funcionárias uma relação afável. Aicha chegou no
horário combinado. Disse que estava nervosa, mas falou com desenvoltura e mostrou fotos do
trabalho realizado durante os últimos quatro anos, como bonecas confeccionadas.
A
entrevista com Aicha demorou por volta de uma hora e meia e conseguimos obter ricas
informações. Aicha fala alto rápido, numa profusão de idéias e fazeres.
No outro dia, a entrevista era com a professora Mame. Como sempre, chegamos
antes do horário marcado. Fomos recebidas por uma de suas colegas de sala, que nos indicou
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uma cadeira no corredor para aguardá-la e se ofereceu para chamá-la por telefone, já que teria
de aguardar por mais de duas horas. Preferi que ela não o fizesse, esperá-la me daria a chance
para conhecer o espaço do Cei. Resolvi sentar no refeitório, mas isso não durou muito porque
em seguida as crianças seriam servidas do seu café-almoço. Eram 9h30, e elas iriam comer
arroz, feijão e carne.
Uma senhora, talvez a orientadora pedagógica, indagou-me sobre o que fazia ali,
expliquei que aguardava Mame para uma entrevista. Ela me conduziu à biblioteca,
demonstrando um certo incômodo com a minha presença. A biblioteca era um espaço bem
pequeno, mas acolhedor. Havia uma mesa, quatro estantes, vários livros, um tapete e uma
mesinha com duas cadeiras pequenas. Aproveitamos para verificar os títulos disponíveis conseguimos encontrar poucos do kit entregue pela prefeitura destinado ao trabalho com a
cultura afro-brasileira. Então meus sentidos se voltaram para o barulho provocado pelo
movimento das crianças, já que falar não era permitido pelas educadoras, que o tempo todo
pediam silêncio ou distribuíam broncas. Os motivos eram variados: a bagunça na fila, o tom
de voz ou a quantidade de comida colocada no prato.
Depois de mais 20 minutos, veio uma das colegas de Mame com olhar curioso nos
perguntar se estava tudo bem e confirmar se íamos entrevistar Mame sobre o trabalho “da
etnia”. Disse que sim para as duas questões. Em seguida, apareceu novamente a pessoa que
suponho seja a orientadora, lamentando o fato de Mame não ter chegado. Expliquei-lhe que
eu é que tinha me adiantado demais e que não se preocupasse. Passados uns dez minutos, a
diretora chegou e, certamente avisada pela orientadora sobre nossa presença, veio até onde
estávamos. Apresentou-se simpaticamente e se dispôs a percorrer a escola. Decidi ficar na
biblioteca mesmo.
Mame chegou no horário combinado, pediu que aguardássemos um pouco, foi até a
sua sala e voltou com a mesma colega que nos recebeu, a curiosidade dela era evidente. Em
seguida, Mame perguntou se a entrevista poderia ser ali mesmo, mas manifestamos a
necessidade de um lugar mais silencioso. Então, ela nos conduziu a uma grande praça anexa à
escola, na qual tinha uma frondosa árvore. Foi embaixo dela que iniciamos nossa conversa,
com uma leve brisa e o som de risadas de crianças ao longe. Durou por volta de uma hora.
Mame fala baixo e timidamente, mas com firmeza.
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A professora Aminata escolheu o Centro de Educação Profissional (CEFORMA), para
a entrevista. Já conhecíamos o ambiente, pois é lá que trabalha a coordenadora do MIPID.
Chegamos e aguardamos a educadora. Em seguida, solicitamos uma sala. Fizemos a entrevista
mais ou menos em uma hora e meia. Aminata fala de forma desenvolta, rapidamente e cheia
de entusiasmo.
A quarta entrevistada para este trabalho escolheu sua própria casa, na região central de
Campinas. Foi a entrevista mais objetiva: durou cera de 30 minutos, respostas precisas e
centradas nas questões. A professora Aissatou, fala de modo calmo, seguro e objetivo.
Por fim, nossa quinta entrevista, teve um intervalo de quase dois meses. Foi marcada
no grêmio estudantil da Faculdade de Educação da UNICAMP. É uma jovem educadora, com
nove anos de experiência na educação infantil. Durante a entrevista, a educadora parecia
sempre refletir por alguns segundos sobre a pergunta, e a resposta era segura e objetiva. A
professora Nafissatou é calma e sorridente, aparenta um certo despojamento e tem muita
segurança nas respostas.
Finalizada essa etapa, iniciamos o processo de análise das entrevistas, já descrito
anteriormente. Desse material, foram construídas as seguintes categorias: Pressupostos
Pedagógicos, Dimensão curricular (conteúdos e metodologias), Conteúdos trabalhados pelas
educadoras e Corporeidade.
3. Pressupostos Pedagógicos
No trabalho de Campinas, os pressupostos pedagógicos que orientaram o trabalho das
educadoras não apareceram de maneira explícita, assim como em Campo Grande. Eles se
revelaram quando as educadoras falaram sobre o que fazem e no que acreditam ao
trabalharem o tema da educação das relações étnico-raciais com a criança pequena.
No caso de Campinas, surgiram pressupostos que se relacionam diretamente com a
criança, tais como: “Para com a criança tem que ter bastante concreto" ou “educação é mais
lúdico mesmo”. Tais argumentos expressam o que várias teorias que tratam da educação
infantil indicam: é preciso considerar a ludicidade presente nessa fase para constituir qualquer
tipo de trabalho. Também a questão do concreto pode ser uma referência à produção
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piagetiana ou a outras concepções educacionais que tratam dos modos de aprender da criança
pequena. Piaget (1971) e Vygostky (1998), dois teóricos influentes nas discussões
educacionais no Brasil, tratam da importância do jogo no processo de aprendizagem da
criança, sejam eles simbólicos ou de regras.
Tizuko M.Kishomoto195 tem apontado a importância da ludicidade no processo de
aprendizagem da criança pequena. Para a autora, a brincadeira, além de divertir a criança,
permite que ela crie, recrie e interprete as relações sociais. No entanto, o imaginário do
educador infantil sobre o brinquedo é permeado de informações dispersas e pouco
problematizadas, o que acaba por fazê-lo incorporar inúmeras idéias equivocadas sobre o que
seriam os melhores brinquedos e o modo como esses podem adentrar o espaço da escola.
Essas interpretações pouco refletidas, também, influenciam a intenção de propostas que
tratem da educação das relações étnico-raciais. Para Kishomoto
Escolas representadas por diversas etnias começam a introduzir festas folclóricas,
com danças, comidas típicas, como se a multiculturalidade pudesse ser resumida e
compreendida como algo turístico, pelo seu lado exótico, apenas por festas e
exposições de objetos típicos, não contemplando os elementos que caracterizam a
identidade de cada povo. Enfim, são tais atitudes que demonstram preconcepções
relacionadas à classe social, ao gênero e à etnia, e tentam justificar propostas
relacionadas às brincadeiras introduzidas em nossas instituições de educação
infantil. Da mesma forma, a concepção de que o brincar deve restringir-se a espaços
como o playground ou a uma sala como a Brinquedoteca mostra o quanto o brincar
está ausente de uma proposta pedagógica que incorpore o lúdico como eixo do
trabalho infantil. (KISHOMOTO, www.fe.usp, 06/12/06)
Essas observações feitas pela pesquisadora devem contribuir na constituição do
pressuposto sobre a ludicidade, isto é, o lúdico é uma prática importante no trabalho com a
educação das relações étnico-raciais.
Outro pressuposto dito pelas educadoras se apresentou a partir das seguintes
expressões: "A gente procura em várias ocasiões pautar a diferença como algo positivo”. Ou
então: “A gente procura não hierarquizar a formação do simbólico na criança, da mesma
forma que a gente conta história de príncipes e princesas loiras, a gente conta de princesas
negras”. Essas formulações expressam o pressuposto de que a idéia de diferença196 deve ser
195
KISHIMOTO.Tizuko Morchida. Escolarização e brincadeira na educação infantil. Artigo disponível no site <
http://www.fe.usp.br/laboratorios/labrimp/escola.htm> Acesso em: 06 dez. 2006
196
Aqui tomaremos o termo como referente "às diferenças culturais entre os diversos grupos sociais definidos
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construída como algo positivo.
Escolher o princípio de construir entre as crianças pequenas a concepção de que as
diferenças observadas na convivência entre seus pares é algo positivo está na contramão da
política de identidade que deseja estabelecer hierarquias entre as pessoas. A escola, sempre
que pautar seu trabalho por esse princípio, estará interrogando a si mesma e aos outros
espaços sociais sobre o tratamento dado a essa questão, possibilitando que as crianças pensem
nas diferenças como uma experiência ao mesmo tempo particular e coletiva.
É possível compreendermos o que as professoras dizem quando explicitam esse
pressuposto em atividades concretas, como quando relatam que procuram "não hierarquizar a
formação do simbólico na criança". Nesse exercício, elas estão trazendo para suas práticas a
contestação que Giroux (1995, p.71), chama de disneyzação da cultura infantil. Para o autor,
"não existe nada de inocente naquilo que as crianças aprendem sobre raça, tal como retratada
no 'mundo mágico' da Disney". Assim como não existe nada de inocente nas histórias infantis
que apresentam, exclusivamente, um tipo físico como o portador da beleza, da bondade, da
riqueza ou da magia. Por isso, cada vez que essas educadoras possibilitam para seus alunos
ouvirem e verem histórias com outras representações, elas estão travando uma luta contra os
discursos vigentes e dominantes sobre os modos como as crianças devem se reconhecer como
sujeitos e reconhecer o Outro.
Esse pressuposto articula-se a outro, de fundamental importância, expresso no
depoimento da professora Aicha, quando explica a mudança de atitude de uma criança:
Agora ele se identifica como negro, mas ele teve de aprender isso, ele teve de
construir isso. Eu acho que a gente tem de respeitar isso na criança, a criança tem de
construir essa identidade, não a gente impor essa identidade. Eu falo, a gente faz um
trabalho, falando da cultura, falando do preconceito, mas a gente não fala para a
criança: "- olha, você é negra. Olha você é negro viu?". Não. Acho que isso a
criança constrói. Fazendo um trabalho positivo que mostre para ela que ser negro
não é negativo, pelo contrário, que a gente tem muita coisa legal, e a gente tem de
trabalhar com essas coisas. A gente tem de mostrar para as pessoas. Então, isso que
faz a criança se identificar como negro, faz a criança ser negra, mas não adianta
falar: "Você é negro, você é branco..." (Educadora Aicha - entrevista concedida em
11/09/06).
Aqui reside uma das chaves fundamentais para as educadoras que trabalham com esse
em termos de divisões sociais tais como classe, raça, etnia, gênero, sexualidade e nacionalidade". Tal definição
encontra-se entre as explicações do termo em SILVA. Tomaz Tadeu. Teoria Cultural e Educação: um
vocabulário crítico. Belo Horizonte; Autêntica, 2000.
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tema. De fato, se consideramos as crianças sujeitos ativos e reflexivos, não podemos obrigálas a assumir uma identidade, seja ela qual for, ainda que acreditemos ser mais saudável que
uma criança negra (aos nossos olhos) se aceite, tenha orgulho de si e dos seus antepassados, a
identidade, inclusive a racial é socialmente construída. Não cabe ao educador definir para a
criança sua identidade racial. O que lhe cabe é fornecer elementos nos quais as crianças
negras e não-negras possam se apoiar na constituição de sua identidade racial. Com isso
chegamos ao último pressuposto pedagógico, a criança tem de ter elementos que colaborem
na construção de sua identidade racial de modo positivo, já que essa identidade não pode ser
imposta.
São, portanto, cinco os pressupostos pedagógicos que se apresentaram nas proposições
das educadoras:
1. O trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer parte do dia-a-dia;
2. o educador tem que ter coragem para trabalhar esse tema;
3. o lúdico é importante no contexto da educação das relações étnico-raciais;
4. a idéia de diferença deve ser construída junto à criança como algo positivo.
5. a criança tem de ter elementos que colaborem na construção de sua identidade
racial de modo positivo, já que essa identidade não deve ser imposta a ela.
A seguir, veremos como as educadoras concretizaram esses princípios.
4. Dimensão curricular: conteúdos e metodologias
Para, Kramer (1999), não é necessário estabelecer diferenças conceituais entre a
proposta pedagógica e o currículo, já que se compreendem ambos como os modos de
organização da escola, reunindo tanto referências teóricas quanto diretrizes práticas. Em
Campinas, a proposta curricular/pedagógica destinada a orientar o trabalho na educação
infantil é um documento orientativo intitulado "Currículo em construção". Esse documento
pode sofrer alterações resultantes das discussões do V Congresso Municipal de Educação.197
197
O V Congresso Municipal de Educação ocorre de dois em dois anos e visa discutir os trabalhos desenvolvidos
na rede municipal de educação e as propostas e projeções para os próximos anos. O evento é destinado a
profissionais de educação das unidades educacionais dos Núcleos de Ação Educativa Descentralizada (Naeds),
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Ao analisar o documento para verificamos se e como a questão da educação das
relações étnico-raciais aparece, vimos que, diferentemente da proposta de MS, em Campinas
não há um item específico sobre o trabalho com as relações étnico-raciais. No entanto, o
documento está permeado de recomendações para que o trabalho na educação infantil não
ignore essa dimensão. Embora seja preponderante uma visão sobre as diferenças entre as
pessoas a partir da cultura e da classe, há citações específicas sobre raça e etnia quando trata
as diferentes experiências que as crianças trazem para o ambiente escolar, entre as quais o
pertencimento de raça. Segundo, o texto "[...] o conceito de infância está em constante
processo de transformação e, para ser delineado, precisa contar ainda com outros indicadores
como: gênero, raça, idade, origem social e cultural, identidade e cidadania." (Currículo em
Construção, 1998, p.14).
O fato de aparecer o termo raça, mesmo que poucas vezes (nas outras citações o termo
mais comum é etnia), marca uma diferença importante em comparação com os outros
documentos já analisados, pois em nenhum deles consta o termo raça. Acreditamos que, para
as discussões da educação das relações étnico-raciais, seja importante a abordagem do termo
para a problematização dos conflitos raciais quando esses acontecem ou mesmo para a
compreensão dos motivos que levaram a propostas como as expostas nas DCEER.
A proposta de organização didática para a educação infantil da rede municipal de
Campinas elegeu o aspecto cultural como "princípio, meio e fim", entendendo cultura como
toda a atividade à qual os seres humanos atribuem significados198. Por isso, é a cultura um dos
princípios norteadores da proposta, realizando-se por meio da produção cultural dos adultos e
das crianças. Indica também que a organização didática deve considerar o brincar como o
modo principal pelo qual a criança adquire conhecimentos. Organiza-se em quatro blocos:
descobrindo o eu e o outro; descobrindo o meio físico, social e o conhecimento lógico;
descobrindo o corpo em movimento; e descobrindo as diferentes linguagens.
Em dois deles, há referências explícitas para que o trabalho trate da dimensão étnicoracial. O primeiro bloco inclui como item a ser considerado o respeito à diversidade cultural
na descoberta do eu e do outro. Já o item dois, ao descobrir o meio físico, social e o
ocorreu de 05 a 07 de dezembro de 2006, ou seja, realizado no exato momento em que escrevemos essa tese.
198
Ibidem, p.38
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conhecimento lógico, incluiu-se o "respeito e a valorização das diferenças culturais, sociais,
dialetais, de gênero e raciais...".199
Além da proposta "Currículo em construção", buscamos analisar, leis, decretos,
comunicações, ordens de serviços e resoluções emitidas pela Secretaria no período de 2003 a
2006.200 Foram encontradas nesse período sete resoluções que incluem em suas orientações a
questão da educação das relações étnico-raciais, todas utilizando o termo “étnica”, seguindo o
padrão dos documentos oficiais do governo federal, e não o que se apresenta na proposta
Currículo em Construção.
Três dessas resoluções tratam de instituir diretrizes que servem de base para análise
das ações realizadas no ano de sua publicação e para planejamento do ano seguinte. A
primeira resolução é a de nº.14, publicada em Diário Oficial, em 11 de novembro de 2003, e
estabelecia as diretrizes que serviriam de base para a análise das ações realizadas em cada
unidade educacional no ano de 2003 e para o planejamento do trabalho pedagógico e
organização da equipe educativa para o ano de 2004.
Apesar de toda a movimentação na rede em torno da instituição de políticas para a
promoção da igualdade racial desde 2001, inclusive, com o curso de formação de professores
em 2003, não consta nessa primeira resolução nenhuma orientação relativa a essa política. No
entanto, ela nos remete à resolução nº.13/03, também de 11 de novembro de 2003, que
estabelece as diretrizes para a organização, a desburocratização e o fortalecimento do trabalho
pedagógico nas diferentes instâncias da SME/FUMEC. Essa resolução, quando relaciona as
considerações nas quais se apóiam essas diretrizes, indica que os fundamentos políticoeducacionais devem considerar "o respeito à diversidade humana, às diferenças sociais, de
gênero e geração, étnicas, culturais, intelectuais, físicas e sensoriais".
No ano de 2004, há a resolução nº.03/2004, que cria o Programa Memória e
Identidade: Promoção da Igualdade na Diversidade (MIPID). Após a instituição desse
programa, percebemos que a referência sobre a educação das relações étnico-raciais passa a
ser mais consistente. Na resolução nº.12/2004, de 03 de setembro, que traz as novas diretrizes
de avaliação dos projetos pedagógicos e o planejamento para o ano seguinte, o texto tem a
199
Ibidem, p.43
200
Disponíveis < http://www.campinas.sp.gov.br/bibjuri/educa.htm> Acesso em 08 dez. 2006.
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seguinte redação:
I - Planejamento do Currículo: a forma como a Unidade Educacional e/ou espaço
educativo planeja, propõe e acompanha a construção do conhecimento nos diferentes
momentos e possibilidades de ensino e aprendizagem, explicitando: e) as atividades
relacionadas diretamente com a formação cidadã, visando o convívio coletivo, a
ética, a preservação do meio ambiente, a sexualidade e as questões étnicas.
(Resolução nº.12/04 de 03/09/04, grifos nossos)
Esse modo de propor a abordagem das questões étnico-raciais já é mais explícito do
que na resolução anterior que trata do mesmo tema, embora não estejam incorporadas as
DCEER entre as várias diretrizes citadas como referência. Ainda em 2004, a resolução de
nº.14/04, de 19 de outubro, que trata da regulamentação do trabalho docente, pela primeira
vez recomenda em seu artigo 8º que
A Unidade Educacional poderá incluir como aulas de Atividade Curricular Especial
as atividades dos programas gerais da Secretária Municipal de Educação, tais como,
PRODANÇA, ORIENTAÇÃO SEXUAL, ETNIA, ESCOLA É NOSSA e
LINGUAGEM: MÍDIA, ARTE E EDUCAÇÃO. (Art. 8º. Resolução nº.14/04 de
19/10/04)
No ano de 2005, novamente a resolução que institui as diretrizes de avaliação do
projeto pedagógico reitera sua preocupação com as relações étnico-raciais. A resolução
nº.09/05, de 13 de setembro, artigo 10, prevê que:
As ações educativas desenvolvidas deverão assegurar o direito à infância e à
adolescência, a ampliação das oportunidades e diversidade das experiências de
aprendizagem de forma significativa, organizando/ampliando o tempo e o uso dos
espaços na escola, de modo a garantir os aspectos lúdicos, culturais, étnicos,
cognitivos, éticos, políticos, científicos, estéticos, sociais e afetivos dos educandos.
(Art.10. Resolução nº.09/05 de 13/09/05, grifos do próprio texto).
Novamente, várias diretrizes do CNE são citadas como referência, porém, não
constam as DCEER. Já em 2006, a resolução nº.02/06, de 10 de fevereiro, que dispõe sobre a
jornada docente, jornada especial, formação continuada e programas e projetos da Secretaria,
estabelece o seguinte sobre o Trabalho Docente de Participação em Projetos (TDPR):
As horas de TDPR realizadas em Grupos de Trabalho ou cursos deverão estar
voltadas para:
I - estudo e orientação do Currículo da Rede Municipal de Ensino;
II - avançadas formas de ensino-aprendizagem e avaliação escolar;
III - estudos
sobre
a organização
dos ciclos de formação;
IV - temáticas dos programas: MIPID (Memória e Identidade: Promoção da
Igualdade na Diversidade; Orientação Sexual; Educação Ambiental; LIMAE
(Linguagens: Mídia, Arte e Educação); NTE (Informática); Cidadania: Exercício da
Política e Democrática, incluídas como temas transversais da matriz curricular.
(Art.4º. Resolução nº.02/06 de 10/02/06)
Outra resolução de 2006, nº.06/06, de 11 de novembro, que trata de estabelecer as
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diretrizes de avaliação dos projetos pedagógicos e do planejamento para o ano seguinte,
apresenta duas referências à questão da educação das relações étnico-raciais. Num primeiro
momento, aparece nas considerações com o seguinte texto: “CONSIDERANDO o respeito à
diversidade humana, às diferenças sociais, de gênero, de geração, étnicas, culturais,
intelectuais, religiosas, físicas e sensoriais". Depois, nova referência no Artigo 12, quando
trata do processo de avaliação e do Projeto Pedagógico, os quais deverão ser articulados ao
"currículo planejado, vivido e documentado” tendo em vista os seguintes aspectos:
II - Ação pedagógica: avaliação, planejamento e desenvolvimento – Indicadores
que evidenciam como a unidade educacional avalia, planeja e reorienta suas ações e
a efetivação da relação dialética entre o planejado e o experienciado, em função da
elevação da qualidade social da aprendizagem, tendo em vista: i) as atividades
educativas relacionadas diretamente com a formação cidadã, visando: ao convívio
coletivo, à ética, à autonomia, à solidariedade, à preservação do ambiente, que
reconheçam e respeitem as diversidades culturais, étnicas, sociais, de gênero, etária,
religiosa, da sexualidade. (Art.12. Resolução,nº.06/06 de 11/11/06)
Também foi analisado o documento-guia, elaborado pela comissão relatora eleita na
Assembléia Ordinária do Fórum de Representantes das Unidades Educacionais Municipais de
Campinas, em 11/11/2006. Está dividido em duas partes: a Escola que temos, ou seja, a
escola pública municipal construída desde o último Congresso Municipal de Educação, em
2004; e a Escola que queremos, no qual constou um levantamento de idéias feito pela
comissão para servir de referência às discussões que se realizavam ao mesmo tempo em que
redigíamos esta tese. Registramos como importante o fato de a política de promoção da
igualdade racial estar citada entre as várias questões colocadas pelos representantes como
importantes para serem discutidas. São duas as referências no documento, ambas na segunda
parte a qual se intitula a “escola que queremos”. A primeira está redigida do seguinte modo:
Implementação imediata da lei 10.639/2003 e dos 7 temas geradores presentes nos
Parâmetros Curriculares da Educação Nacional, garantidas de forma institucional.
Como está hoje, depende da “boa vontade” do profissional. Não há garantias
institucionais de implementação. (Documento Guia para o V Congresso Municipal
de Educação).201
E a segunda referência:
Reavaliar a Resolução nº 3 de 2 de fevereiro de 2004. Justificativa: a implementação
da lei 10369/03 possibilitará a produção de trabalhos na Unidade Escolar, sua
socialização, além de construir e incentivar o registro das memórias, a pesquisa e
intercâmbios culturais na temática da História da África e do povo negro brasileiro.
201
Documento
guia
para
o
V
Congresso
Municipal
de
Educação.
<http://www.campinas.sp.gov.br/smenet/seminarioeducacao.htm> Acesso em: 08 dez. 2006. Anexo 35.
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Os cursos e formação nesta temática devem seguir os critérios da Coordenadoria de
Formação e das reais necessidades da escola.202
As formulações apresentadas apontam uma revisão
da Política no sentido de
fortalecê-la, o que mais uma vez indica que ela vai se afirmando como uma política pública,
embora ainda nos pareça mais estimulada pela organização dos professores comprometidos
com o tema do que uma ação do sistema, o qual aparentemente ainda resiste, por exemplo, a
incorporar as DCEER como referência. No entanto, percebe-se pelas análises das resoluções
que a Política tem se reafirmado por meio dos documentos da Secretaria de Educação.
A seguir, analisaremos os conteúdos que as professoras elegem para esse trabalho e
suas metodologias.
5. Conteúdos trabalhados pelas educadoras de Campinas
Combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial, empreender
reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas da escola. As
formas de discriminação de qualquer natureza não têm o seu nascedouro na escola,
porém, o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade
perpassam por ali. (DCEER, 004 1998,p. 14)
Os conteúdos eleitos pelas educadoras para abordar a educação das relações étnicoraciais têm como fonte principal o que lhes foi disponibilizado no curso de formação
continuada. Destacaram-se os conteúdos que propiciaram à criança uma visão diferente do
que a mídia tem veiculado sobre o continente africano ou atividades que procuram valorizar
as características físicas das crianças, semelhante ao que ocorreu em Campo Grande.
As educadoras exemplificaram como trabalharam nessa perspectiva. Por exemplo,
quando realizaram um estudo de Moçambique, houve a oportunidade de apreciar músicas
desse país africano, culinária, danças típicas, assim como conhecer por meio da internet as
cidades que o compõem, desconstruíndo a idéia de continente africano como lugar selvagem,
marcado apenas pela fome e pela miséria. Disseram também que procuraram dar novas
referências às crianças sobre a população negra brasileira, evitando a abordagem
exclusivamente centrada na escravidão.
Além disso, estiveram presentes conteúdos relacionados a outros aspectos da
202
Ibidem.
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aprendizagem, como a afetividade e o trabalho com a aparência física. Para o
desenvolvimento dessas atividades, as educadoras se utilizaram da metodologia de projetos,
outra semelhança com as práticas das educadoras de Campo Grande.
Dividimos as atividades em grupos. Serão apresentadas as que foram relatadas com
maior ênfase e que se apresentam de modo diferenciado em relação às descritas pelas
educadoras de Campo Grande. No primeiro grupo, encontram-se as atividades com
linguagem: leitura de livros, conversa na roda. As atividades relacionadas ao fazer artístico
foram: a confecção de bonecas, a confecção de cartazes, a apreciação de obras de arte, o
trabalho com grafite e a organização de exposições de objetos relacionados à produção
cultural de um determinado grupo étnico-racial. Será apresentado a seguir como essas
atividades ocorrem nas práticas das educadoras, a começar pelas atividades com linguagem.
5.1. Atividades com linguagem - leitura de livro e conversa na roda
A leitura de livros apresenta-se como a atividade mais constante no trabalho com
linguagem. Todas as educadoras citaram a leitura de livros com personagens negros ou com
histórias, lendas e contos africanos. Nenhuma delas citou a leitura de histórias aliada a outros
procedimentos, como a reescrita ou o desenho de personagens. Ao que parece, contar história
relaciona-se, em suas práticas, à possibilidade de desenvolver na criança o prazer por ouvir.
A diferença em relação a Campo Grande é que as educadoras de Campinas,
demonstram um conhecimento mais atualizado da literatura infanto-juvenil que trata do tema
da educação das relações étnico-raciais. São citados: Ifá, o Adivinho, o Menino Nito, Tanto
Tanto.203, embora o clássico Menina Bonita do Laço de Fita lidere a preferência. Segundo as
educadoras, o trabalho com a literatura colaborou para dar início a uma ação efetiva na escola
com o tema, como podemos ver no depoimento de Aissatou:
A gente conta histórias e lendas africanas da mesma forma que a gente conta
histórias de origem européia. Para dizer assim: o que eles têm de pensar a respeito
de África e de negros não é só a questão da escravidão, é também essa questão do
imaginário, de príncipes, de fadas. Na fantasia da criança, ela não pode enxergar só
princesas loiras. (Educadora Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06)
203
PRANDI, Reginaldo. Ifá, o adivinho. São Paulo:Companhia das Letrinhas, 2002; COOKE, Trish. Tanto,
Tanto, São Paulo: Editora Ática, 1994; ROSA, Sonia. O menino Nito. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
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A literatura é importante veículo que auxilia de modo efetivo na construção do
imaginário da criança. Nessa fase em que elas se encontram, é necessário dar-lhes múltiplas
referências, os personagens que habitam o mundo infantil devem ser de diferentes origens
étnico-raciais. De positivo, está ocorrendo um aumento no número de publicações de livros
infanto-juvenis que procuram responder a demanda instituída pela lei 10.639/03. Ainda que
uma parte dessas publicações não seja de boa qualidade, a escola já possui condições
inclusive de selecionar, algo impossível há duas décadas. Aicha apresenta como há uma
atenção a essa solicitação por parte do mercado.
Nós saímos comprando livro, pesquisando. A mocinha da FNAC ficava olhando
para a gente. Acho que ela falava assim: “Lá vêm àquelas mocinhas pretinhas
querendo comprar livros. Era bem engraçado. A gente chegava lá olhava tudo e dava
uma lista para ela. "Olha, dá para você conseguir esses livros para a gente?”. Ela
olhava: “E por que esses livros?" Tem sempre perguntas. Muitos livros depois, nós
voltamos à FNAC. Já havia muitos livros que na primeira vez não estavam, foi bem
legal. (Educadora Aicha - entrevista concedida em 11/09/06).
Contar histórias já faz parte do fazer pedagógico da educação infantil, portanto incluir
livros que tragam personagens, referências ou imagens da população negra, africana e
indígena é incluir grupos que têm presença marcante na cultura brasileira, mas foram
marginalizados da produção voltada ao público infantil. Mame nos disse que descobriu a
possibilidade de trabalhar esse tema com as crianças, mas não sem se interrogar:
Educação infantil é mais o lúdico mesmo. Complicado. Eu mesma me peguei
perguntando: “Nossa, vou trabalhar essa questão com crianças tão pequenas? Tem
necessidade realmente? Será que eu não estou viajando um pouco? Como
trabalhar?” Mas conforme as crianças foram respondendo positivamente, isso foi
dando dados para a gente continuar o trabalho e abriu também os olhos dos outros
professores e outros profissionais que não haviam participado do curso... (Educadora
Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
Nafissatou diz ter trabalhado contos africanos com as crianças para que elas
sentissem/soubessem que esse povo tem uma história, ou seja, dar lugar para que contos
africanos estejam dentro da sala de aula assim como os contos indígenas, atualmente escritos
pelos próprios, a exemplo da produção de Daniel Munduruku. Esse escritor diz que
Educar é como catar piolho na cabeça de criança. É preciso que haja esperança,
abandono, perseverança. A esperança é a crença de que se está cumprindo uma
missão. O abandono é a confiança do educando na palavra. A perseverança é a
perseguição aos mais teimosos dos piolhos; é não permitir que um único se perca.
Só se educa pelo carinho, e catar piolho é o carinho que o educador faz na cabeça do
educando, estimulando-o pela palavra e pela magia do silêncio. Ser educador é ser
confessor dos próprios sonhos e só quem é capaz de oferecer o colo para que o
educando repouse a cabeça e se abandone ao som das palavras mágicas, pode fazer o
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outro construir seus próprios sonhos. E pouco importa se os piolhos são apenas
imaginários...204
Sua formulação sobre o ato de educar é permeada da cultura do seu povo, das suas
histórias e crenças e nos dá a exata dimensão do que é possibilitar uma educação para as
relações étnico-raciais. Um educador que a pratica está "catando os piolhos imaginários" de
um currículo etnocêntrico205.
Em relação à filmografia utilizada para esse trabalho, pelo que citam as educadoras
ainda é necessário uma boa investigação para verificar quais filmes poderiam servir ao
propósito da educação das relações étnico-raciais. Apesar de as educadoras dizerem que se
utilizam dessa linguagem, apenas o filme Kiriku e a Feiticeira206 foi citado como exemplo.
Aliado ao trabalho da leitura de livros com personagens negros ou histórias que
abordem as experiências da população negra e africana e assistência de filmes, outra
estratégia relacionada pelas educadoras foi a conversa na roda, uma ação freqüente na
educação infantil. É na roda que se estabelece a rotina, resolvem-se conflitos, apresentam
surpresas, enfim, a roda é espaço de acontecimentos. Por isso, é pertinente que a roda seja um
lugar privilegiado para conversar sobre as questões étnico-raciais. Em diferentes momentos,
as entrevistadas destacaram que o curso enfatizou a naturalização do preconceito e da
discriminação e também o silêncio que envolve esse tema, sendo, portanto, necessário que as
educadoras conversem com seus alunos. Para Aicha, essa é uma prática que tem início no
começo do ano letivo:
Quando eles chegam, logo no comecinho do ano, a gente sempre faz trabalho em
grupo, conversa, faz a roda da conversa. Eu falo: "Gente, eu sou Aicha, vou cuidar
de vocês o ano todo. Vou trabalhar com vocês o ano todo. Nós vamos fazer um
monte de coisa legal. Sou mulher, sou negra..." Entendeu? Então, é muito
engraçado. Eles falam o nome, falam a cor da pele, a gente vê criança negra falando
assim, “a minha mãe falou que eu sou branco”. "Tá bom, você é branco". Quando
chega assim, uns dois meses depois ele está falando que é negro. (Educadora Aicha
204
<http://www.danielmunduruku.com.br> Acesso em 08 dez. 2006.
205
Currículo etnocêntrico refere-se à organização curricular que considera como única referência válida os bens
culturais e científicos originados e/ou defendidos pelo grupo que possui o poder político numa determina
sociedade e com isso define os padrões culturais, os valores e os conhecimentos que devem ser ensinados nas
instituições escolares como os verdadeiros. No Brasil, o termo tem sido utilizado para designar o currículo
baseado na cultura ocidental, branca, masculina e de matriz européia ou norte-americana.
206
Na África Ocidental, nasce um menino minúsculo, cujo tamanho não alcança nem o joelho de um adulto, que
tem um destino: enfrentar a poderosa e malvada feiticeira Karabá, que secou a fonte d'água da aldeia de Kiriku,
engoliu todos os homens que foram enfrentá-la e ainda pegou todo o ouro que tinham. Para isso, Kiriku enfrenta
muitos perigos e se aventura por lugares onde somente pessoas pequeninas poderiam entrar.
<http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/kiriku/kiriku-e-feiticeira.asp> Acesso em 08 dez. 2006.
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- entrevista concedida em 11/09/06)
A roda foi espaço no qual se fez o rompimento do medo e a quebra do silêncio que
envolve esse tema. Isso ajudou as crianças a melhorar a relação entre si e potencializou o
papel da educadora negra, às vezes paralisada diante das manifestações racistas das crianças,
inclusive em relação a elas mesmas, como exemplifica Aminata em seu depoimento
Depois desse curso eu aprendi que, quando acontecer esse tipo de coisa... Quando
acontecer de um menino ou uma menina falar: "Olha, ele não quer pegar na minha
mão." "Olha, ele está me xingando". Porque entre eles acontecia muito isso. E até
aluno que, quando ficava bravo comigo, mesmo sendo pequenininho [falava]: "Sua
preta feia, eu não gosto mais de você, você é isso, você é aquilo". Sabe, a própria
criança, e eu deixava, sabia que ela estava brava. Eu não sabia como lidar com essa
situação, então isso mudou a minha prática. Porque a partir disso... Não, você não
pode deixar passar. Aconteceu isso? Então, vamos sentar, vamos conversar,
trabalhar um jeito com a criança [para que] perceba que a outra é diferente dela, mas
não é por isso que ela tem de se afastar ou que tem de bater nela o tempo todo.
(Educadora Aminata - entrevista concedida em 12/09/06).
Nilma Lino Gomes, em 1995, Patricia Santana, em 2004, e Waldete Tristão Farias de
Oliveira, em 2006, todas educadoras e negras, recuperam memórias e histórias de outras
educadoras negras. Em quase todas, evocam as mesmas vozes de Aminata. "Eu não sabia
como lidar com essa situação, então, isso mudou a minha prática". Há um desafio colocado às
mulheres negras que atuam na educação: para construir uma imagem positiva de seus alunos,
é preciso ter vencido a imagem negativa de si mesma. Tarefa cumprida por essas mulheres.
Ao invocar seus alunos a se olhar no espelho, elas também se olharam.
5.2. Fazendo arte
Assim como as educadoras de Campo Grande as de Campinas também realizaram
algumas práticas utilizando-se das linguagens artísticas. A mais freqüente foi a confecção de
bonecas, chamada por elas de confecção de bonecas negras ou bonecas "étnicas". Nessa
prática, enfatizam as diferentes características étnico-raciais, valorizando-as. Outra atividade
que aparece nas duas cidades é a confecção de cartazes com o objetivo semelhante, ou seja,
possibilitar que as crianças entrem em contato com imagens de pessoas representando a
diversidade étnico-racial da sociedade.
Como novidade em relação às práticas coletadas em Campo Grande encontra-se a
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organização de exposições de objetos a culturas de grupos étnico-raciais residentes no Brasil,
no caso, os descendentes de japoneses, e ainda práticas envolvendo o conhecimento das
manifestações artísticas do hip hop, música e grafite. Tanto nas práticas semelhantes quanto
nas diferentes, as educadoras imprimem peculiaridades relacionadas aos seus saberes
experienciais e técnicos, tornando-as expressões bem particulares de uma mesma estratégia.
5.3. Confecção de bonecas negras
Essa foi uma prática de difícil classificação, pois envolveu várias habilidades e
desenvolveu diferentes linguagens. Praticamente todas as educadoras de Campinas valeram
em algum momento dessa estratégia, tendo como ponto comum o objetivo que as crianças
apreendessem a diversidade étnico-racial como um valor. Apesar de o trabalho com as
bonecas se centrar na valorização das características físicas, decidimos por colocar essa
prática entre as relacionadas ao fazer artístico por julgar que a confecção das bonecas é uma
manifestação artística artesanal. Cada boneca era única, cada uma tinha a sua originalidade, a
sua marca pessoal.
A família também se envolvia, como relata Mame:
A gente dividiu isso com os pais. Nós cortávamos as bonecas, alguns pais levavam
para casa para costurar. Outra turma levava para colocar o enchimento e a roupa da
boneca, fazer o olho. Nós demos o corpo, e cabia ao pai fazer uma roupa para essa
boneca e mandar de volta para ser entregue na semana da consciência negra.
(Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
Claro que esse exercício de praticar rupturas no que está socialmente estabelecido não
ocorre de maneira sempre agradável. Às vezes, esses processos são incompreendidos ou há
tentativas de negá-los, porque eles colocam à prova nossas próprias percepções:
Nem tudo corre tão bem, tivemos no berçário uma mãe... Ela não aceitou, eu acho,
trabalhar com a boneca negra, inclusive a filha dela era bem clarinha, tinha o olho
bem clarinho, e ela revestiu toda a boneca de tecido claro. De tecido branco, aí a
monitora que trabalhava no projeto conversou com ela, que não era esse o objetivo
do trabalho, e fez uma outra boneca negra e deu para ela. (Educadora Mame entrevista concedida em 13/09/06).
A possibilidade de que os pais e as mães podem aprender com as atividades
desenvolvidas pelas instituições é perceptível nesse exemplo. E a escola tem de estar
preparada para tal papel sem proceder julgamentos, facilitando a compreensão da família e
colaborando para que esses também sejam sujeitos da educação das relações étnico-raciais.
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Em contrapartida, algumas famílias perceberam na confecção de bonecos uma
oportunidade de realizar seus sonhos:
Teve pai que levou o boneco no alfaiate (fala bem animada) para fazer roupa porque
queria que o boneco viesse bem bonito, (risos). Vieram bonecos vestidos de noiva,
de médico, de bombeiro, então saiu dessa coisa do negro só no futebol, só no samba.
Não vou dizer que não veio, ainda mais que estava no início da Copa. Então, vieram
muitos Ronaldinhos207, mas não foi a maioria... Entendeu, então foi muito legal!
Teve pai que fez questão de fazer o registro do boneco. Alguns perguntavam: “E aí,
tia, é menino ou menina?”. (Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
Também houve famílias que se envolveram de tal modo com a atividade que a boneca
quase representou a vinda de mais um filho, conta Mame:
Uma família que a mãe só tinha meninos queria que a boneca fosse menina, mas o
menino dono do boneco queria que fosse menino (risos). Claro! Aí gerou um
conflito em família. "Nós não temos menina, eu e o irmão mais velho queremos
menina!" E o menino quer menino. "Aí vocês chegam a um acordo" (risos).
(Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06)
Mas não foi só a confecção de bonecas negras que se apresentou como um importante
recurso na estratégia de trabalho das educadoras como esse tema. O contato com esse tipo de
brinquedo despertou nas educadoras negras lembranças de sua própria infância e da ausência
que esse tipo brinquedo significou.
Teve uma exposição de bonecas negras, até então eu nunca tinha visto... Sempre vi
de tecido. De borracha, aquelas bonecas negras, lindas! Aquilo chamou a atenção
tanto dos adultos como das crianças. [..] Eu fiquei encantada. Eu, quando criança,
não tive boneca negra, as poucas que tinha eram brancas. (Educadora Mame entrevista concedida em 13/09/06).
Essa mobilização de suas memórias certamente deu-lhe mais propriedade no campo
profissional para insistir na aquisição desse material para sua instituição:
Nunca teve a boneca negra na unidade, era sempre a boneca branca, tanto para o
branco como para a criança negra [...] Então eu comecei a insistir com ela [a
diretora] na questão da compra das bonecas negras para as crianças. Ela falava para
mim, "Ah, mas tem fantoches, trabalha com os fantoches". Mas não é a mesma
coisa, não era isso que eu queria. O fantoche tem a questão do estereótipo, não dá
para a criança se enxergar realmente, ali... E eu fui insistindo nisso (risos). Pela
insistência mesmo que ela comprou. E foi muito... Quando finalmente chegaram as
bonecas negras, a gente conseguiu ver que foi muito bom. Não só para as crianças
negras. As bonecas eram bonitas... Ela comprou cerca de três ou quatro para cada
sala, mas foi legal porque ela comprou para a creche toda. Então as crianças ficaram
encantadas, muitas não quiseram nem ir embora. Até os pais, quando viram, ficaram
loucos. As crianças queriam pegar, todo mundo queria pegar! (Educadora Mame entrevista concedida em 13/09/06).
207
Ronaldo de Assis Moreira, ou Ronaldinho Gaúcho como é conhecido no Brasil (na Europa é chamado
simplesmente de Ronaldinho), é um jogador de futebol brasileiro que em 2006 foi premiado como o melhor do
mundo na modalidade.
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Para a educadora as bonecas negras, constituíam-se em material pedagógico. A
presença das bonecas negras entre os brinquedos seria uma oportunidade para que as crianças
se identificassem positivamente. No que parece que estava certa:
E teve um menino da nossa sala, o V., e tinha um bebezão que tinha uma toquinha
na cabeça. Até então, ninguém tinha tido a curiosidade de tirar a toca, e ele,
brincando com o boneco, a toca caiu. Ele falou: "Olha o cabelo dele, é igualzinho ao
meu!" "Olha! o cabelinho dele é igualzinho ao meu!" E não quis mais largar o
boneco. E a monitora que estava ao lado [falou] V. que legal! A gente não tinha
percebido. Como é bonito o cabelo dele! E ele ficou todo... E aquele elogio da
boneca passou para a criança. (Educadora Mame - entrevista concedida em
13/09/06).
5.4. Confecção de cartazes
Essa atividade procura dar visibilidade a pessoas de várias origens, seja no dia das
mães, dias dos pais ou outra atividade que envolva pessoas. Mame mostra o quanto pode ser
promissora a atividade e também nos apresenta como o imaginário infantil precisa ser
confrontado com a diversidade de modo positivo.
Foi até surpreendente a reação de uma criança branca. A gente teve a idéia de fazer
um painel da etnia no corredor, para colocar, por exemplo, Páscoa, então, aquele
painel [do grupo da] etnia ia enfeitar.. Então nós tivemos a idéia de fazer esse painel
como se fosse uma boneca segurando esse painel, fizemos o rosto da boneca em
cima, o painel como se fosse o corpo, a mãozinha segurando, e a boneca era negra,
colocamos kanekalon, enfeitamos com borboletinha. Ai uma criança, essa criança
tinha três anos, ela olhou bem e falou: "Nossa, mas que boneca feia! E foi
interessante que uma das meninas da limpeza parou para observar a conversa... Eu
falei para ela: “Você achou feia?". “Achei”. "Por que?” “Ah! Porque se parece com
você, parece com a C., ela foi falando ... Citou a mim e todos os nomes das crianças
negras da sala. (Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
Essa ausência de constrangimento da criança em expressar sua opinião relaciona-se ao
fato de que se sente segura para falar o que pensa à educadora e colabora em muito para que
um diálogo franco possa ser construído na relação entre as duas. A situação é informal, mas
Mame não deixa escapar a oportunidade de problematizar a opinião da criança sobre os
motivos que a levam a considerar feias todas as meninas e mulheres negras da escola. Mame
não continua a conversa, questiona a criança e deixa-a pensando. Porque seriam feias todas as
mulheres negras da escola? Esse silêncio não é mais aquele de quando não se sabia o que
fazer, é o silêncio reflexivo, que Mame impôs para a pequena aprendiz, a partir de um cartaz.
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5.5. Exposição de objetos
Outra atividade circunscrita ao fazer artístico foi apresentada por Aissatou e diz
respeito a um trabalho com a cultura japonesa.
Acabei de desmontar uma exposição que fizemos na escola sobre a cultura japonesa.
A minha escola tem [na vizinhança] um clube okinawa, que é um clube de cultura
japonesa. O bairro tem muito japonês, por acaso, eles se agruparam ali em torno do
clube. Essa exposição foi legal, porque nós pedimos para as famílias estarem
mandando, objetos, fotos, tudo que elas tinham trazido do Japão para montar a
exposição, o que era da avó... Para falar também dos nossos alunos de origem
oriental. Então, a gente procura em vários momentos pautar essa diferenciação de
uma maneira positiva. Olha, que legal [o] que essas crianças têm de diferente para
oferecer para a gente, para sabermos mais sobre elas? (Educadora Aissatou entrevista concedida em 14/09/06).
Incluir contribuições de diferentes origens é parte da educação das relações étnicoraciais e está prevista nas DCEER, que alerta para o fato de que não se trata de mudar de um
foco eurocêntrico para um afrocêntrico. O que se pretende é estender as possibilidades de
tratamento dessas heranças culturais dentro do currículo.
Outro aspecto importante é o conceito de cultura que se pretende construir. Ao propor
às crianças a organização de uma exposição com objetos vindo de um outro país, isto é, de
outra cultura, indicamos-lhes o que pensamos sobre esse conceito. Podemos incentivar a idéia
de cultura como algo estático, fixo ou como uma realidade dinâmica, flexível e por vezes
conflitiva. Como disse Paulo Freire (1992), a cultura é resultado da interação entre grupos
diferentes e de como cada um desses grupos compreendem e se apropriam daquilo que
encontrou no outro. As crianças devem ser expostas à concepção de que a cultura brasileira,
por exemplo, possui várias nuances, nas quais os diferentes povos colaboram. Não se trata de
reeditar a idéia do caldinho cultural, mas de estabelecer aquilo que Paulo Freire (1992)
chamou de unidade na diversidade. Ao mesmo tempo em que percebemos o que nos
distingue, também devemos procurar o que nos une.
As diferenças, como as entendemos, são constituídas e construídas socialmente e têm
suas origens em códigos sociais simbólicos e materiais, originando sistemas de classificação
das pessoas. Por isso, ao trabalharmos com crianças pequenas, é preciso cuidar para que
conceitos complexos como esses não sejam veiculados de maneira descuidada, provocando
compreensões contrárias ao que pretendemos. A percepção de diferenças entre grupos deverá
ser acompanhada de percepções de igualdade e de defesa de direitos.
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5.6. Trabalho com hip hop e grafite.
Ainda no item, fazer artístico, a professora Aicha mencionou o trabalho com hip hop.
No Brasil, é um movimento produzido por jovens negros das periferias. Segundo Bruno Zani,
O hip hop se constitui de quatro elementos: o break (a dança de passos robóticos,
quebrados e, quando realizada em equipe, sincronizados), o grafite (a pintura,
normalmente feita com spray, aplicada nos muros da cidade), o DJ (o disc-jóquei) e
o rapper (ou MC, mestre de cerimônias, aquele que canta ou declama as letras sobre
as bases eletrônicas criadas e executadas ao vivo pelo DJ). A junção dos dois
últimos elementos resulta na parte musical do hip hop: o rap (abreviação de rythym
and poetry, ritmo e poesia, em inglês). Alguns integrantes do movimento
consideram também um quinto elemento, a conscientização, que compreende
principalmente a valorização da ascendência étnica negra, o conhecimento
histórico da luta dos negros e de sua herança cultural, o combate ao preconceito
racial, a recusa em aparecer na grande mídia e o menosprezo por valores como a
ganância, a fama e o sucesso fácil. (ZANI, 2004, p.6. grifos nossos)
Esse “quinto elemento” foi o que levou a educadora Aicha a incluir atividades com
break e grafite no trabalho com seus alunos. Sua ação não deveria constituir-se como uma
novidade. Vários trabalhos de pesquisa apontam a interação desse movimento com a luta
contra o preconceito racial ou com a educação: Elaine Nunes de Andrade (1996); Pedro
Paulo Marques Guasco (2001); Marco Aurélio Paz Tella (2000); Tânia Ximenes Ferreira
(2005). Entre os estudos, destacamos o de Ione da Silva Jovino (2005), em sua pesquisa de
mestrado Escola: as minas e os manos têm a palavra. A autora investigou as relações entre
alunos negros pertencentes ao movimento hip hop e a escolarização formal. Para Jovino, o
hip hop é a forma de os jovens negros e de periferia fugirem aos lugares estabelecidos numa
sociedade discriminadora.
Foi algo inovador incluir hip hop na educação infantil, embora as pesquisas
apresentem como pontos comuns a importância de a escola conhecer e reconhecer essas
formas de organizações juvenis. A professora Aicha vivencia os desafios de concretizar essa
realidade na educação infantil. De acordo com seu depoimento, ao incluir esses aspectos da
cultura afro-brasileira, ela viveu um dos momentos mais tensos em sua escola:
O maior momento de tensão é quando mexe com a musicalidade... Quando nós
trabalhamos com o hip hop, também foi difícil, porque também é discriminado.
Agora elas [as outras educadoras] têm uma outra visão do hip hop, mas nós tivemos
de trazer um rapaz da comunidade para falar do hip hop, ele falou do trabalho que
ele faz com crianças, dançou com as crianças, fizemos um grafite no muro...Então
eu percebo que toda vez que o assunto é musicalidade a gente dá uma esbarrada....
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(Educadora Aicha - entrevista concedida em 11/09/06)
Em outro momento de seu depoimento, novamente essa questão reaparece
Nós tentamos colocar a música do Marcelo D2 para receber os pais e foi uma luta.E
olha que é um grupo que já faz uma discussão, não é um grupo leigo no assunto,
então, toda vez que chega uma monitora nova é uma pessoa que está chegando e não
tem a vivência que as outras tiveram, cria um auê... É difícil trabalhar. (Educadora
Aicha - entrevista concedida em 11/09/06)
A educadora atribui a tensão em relação ao hip hop à discriminação advinda das
manifestações culturais relacionadas à população negra. No caso, o hip hop é visto como
produto de negros pobres associado ao discurso da violência e da agressividade,
estabelecendo uma evidente contradição entre o que pensam os produtores do movimento e o
que pensam os professores sobre o movimento, como aponta Jovino:
E nesse movimento de ensinar/aprender/cuidar, do qual o rap faz parte, ele se
apresenta como lazer e prazer: de cantar, de compor, de ouvir. E no paradoxo das
ações “positivas” de cuidar, aconselhar, aprender e ensinar o hip hop aparece para a
os professores da escola e para a sociedade como violência, desordem, ignorância e
barulho. (JOVINO, 2004, p.7)
Sendo assim, ao incluir o hip hop na educação infantil, a educadora não só abriu
possibilidades aos seus alunos de se aproximarem de forma positiva de uma manifestação
cultural que carrega a luta de um povo como colaborou com suas colegas, abrindo-lhes uma
nova via para compreender o Outro.
5.7. A apreciação da obra de arte
A educadora Aicha escolheu a apreciação de obras de arte para compor seu trabalho de
educação das relações étnico-raciais. A opção foi por Cândido Portinari.
Eu estou fazendo um trabalho com as crianças que são releituras da arte de Portinari,
brinquedos e brincadeiras... São algumas brincadeiras que Portinari pintou. Está bem
legal, tem um professor de arte. Eu o conheci num evento e fiz o convite. Eu gostei
de convidá-lo, porque é um homem negro trabalhando na educação infantil,
auxiliando a gente num projeto da educação infantil. Ele está com a gente desde do
ano passado. A gente tem abordado a questão racial porque o Portinari pinta a cor
da pele das crianças. Tem um quadro que se chama roda, a gente consegue perceber
questões de gênero, em algumas brincadeiras não tem menina, só tem menino, então
dá para gente fazer uma discussão com as crianças. A gente fala do quadro, de
quando ele foi pintado... Mas bem direcionado para a educação infantil. (Educadora
Aicha - entrevista concedida em 11/09/06).
O trabalho com as artes visuais na educação infantil deve pautar-se pelo
desenvolvimento das capacidades criativas da criança. Na primeira infância, os simbolismos
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representam um modo particular de a criança compreender o mundo e a si mesma. Por isso, o
exercício de ler imagens deve estar em consonância com as relações que a criança consegue
estabelecer dentro do seu próprio universo de signos e significados.
No processo de criação de objetos ou na leitura de imagens, no trabalho com recorte e
colagem, na produção de desenhos, ou no trabalho com modelagem, de modo lúdico, as
crianças são capazes de expressar opiniões sobre seus próprios trabalhos e sobre os trabalhos
dos colegas, sendo estimuladas a conhecer obras artísticas, regionais, nacionais ou
internacionais, ampliado os conhecimentos sobre o mundo e sobre as diferentes culturas. Elas
devem ter oportunidade para realizar observações livres de imagens, fazendo comentários
sobre o que vê. Agindo assim, o educador amplia a compreensão dos alunos sobre a arte e
suas possibilidades de realização.
Para a pesquisadora Regina Maria Lintz Funari (2001), o sistema educacional
brasileiro não inclui na grade curricular dos cursos de artes o ensino de arte africana, arte afrobrasileira nem arte indígena, considerando apenas os estudos da chamada arte erudita, isto é,
predominantemente de origem européia e norte-americana. Novamente é a educadora Aicha
quem nos apresenta mais um modo de contraposição às práticas hegemônicas. Ao colocar nas
atividades com artes a dimensão das relações para a educação étnico-racial, ela mostra que o
fazer pedagógico precisa mesmo ser repensado. Quando o fazemos, é possível transformá-lo,
como foi o caso da inclusão das manifestações do hip hop e do grafite.
Chegamos nas últimas práticas identificadas nos depoimentos das educadoras. Essas
se relacionam ao corpo, mas se articulam com todas as outras práticas apresentadas até o
momento. Ao falar do corpo, as educadoras falaram de marcas identitárias, de igualdades e
diferenças, falaram também, das manifestações das crianças sobre si mesmas ou sobre seus
pares, das dificuldades delas, enquanto, profissionais negras e brancas adentrarem nesse
universo. Como enfrentaram o risco de organizar um currículo que inclua. Vamos ver,
também, as atitude que as crianças manifestam diante desse tipo de trabalho e as diferentes
reações considerando os pertencimentos étnico-raciais e por último, como o gênero, influencia
na experiência de discriminação vivida pelas crianças pequenas.
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6. Corporeidade: crianças sujeitos das práticas.
As crianças envolvidas eram de diversas idades, tinham entre 18 meses e cinco anos.
Em Campinas, as crianças da educação infantil são organizadas, em agrupamentos. Eles
incluem crianças de diferentes idades numa mesma sala. O agrupamento II recebe crianças de
18 meses a três anos de idade. O agrupamento III trabalha com crianças de três a cinco anos.
Essa organização pelo que foi entendido pode variar de acordo com a necessidade e demanda
da região. As educadoras relataram que a mudança de organização dos grupos por idade
ocorreu em 2003. Porém, todas realçaram que possuem experiência de trabalho com crianças
de todas as idades. Essa mudança é recente e as educadoras estão se adaptando a nova
realidade. Uma delas que trabalha com crianças menores gostou. Outra disse que está mais
difícil para trabalhar o tema das relações étnico-raciais com crianças de idades muito
diferentes na mesma sala
Eu estou achando bem difícil trabalhar com as três idades. Porque as crianças de 3
anos têm outras preocupações. Elas querem brincar, brincar... E as crianças de 5
anos, a gente consegue fazer um monte de coisa. Mas a gente tem que se acostumar
com essa realidade... Porque parece que vai ser assim. O que a gente consegue fazer
muito na sala, é leitura. Quando a gente está fazendo alguma leitura, observa, esse
menino, que cor é esse menino? (Educadora Aicha - entrevista concedida em
11/09/06)
A educadora Nafissatou, também, mudou de grupo etário, depois que fez o curso, o
que lhe exige o desenvolvimento de novas estratégias para dar continuidade à inclusão da
educação das relações étnico-raciais
Naquela época, minhas crianças tinham 5 anos, agora eu trabalho com uma turma de
dois, um ano e meio. Eu estou com a turma dos bebês. Eu acho que em primeiro
lugar é trabalhar com a questão da identidade mesmo. Então, qual o referencial que
eu vou levar para essa criança? (Educadora Nafissatou - entrevista concedida em
16/10/06)
Além, de ser preciso encontrar novas estratégias para o trabalho, Nafissatou, apresenta
outra necessidade na organização de suas atividades, a articulação com as professoras, já que
ela era monitora.
O ano passado eu tive que entrar num acordo com a professora de estar trabalhando
isso. Então, eu trabalhei com o bumba meu boi, além, da confecção da boneca.
Como eles são pequenos, durou o ano todo. Esse ano eu estou no horário oposto da
professora. E a gente trabalha a afetividade. Eu trago mais essa coisa das cantigas
populares. A gente faz um planejamento mensal. Cada semana a gente escolhe, um
tema para estar trabalhando. Só que ai a gente tem que encaixar com o planejamento
da escola, com eventos da escola e essas coisas e, às vezes, a gente acaba usando um
tempo muito maior.(Educadora Nafissatou - entrevista concedida em 16/10/06)
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Aicha, também, fala desse acordo com a professora, em relação aos conteúdos que as
monitoras irão abordar
A professora sim, ela tomou isso como processo. Inclusive nós fazemos
planejamento juntas. Eu trabalho a tarde, ela de manhã. Eu trago o meu
[planejamento] ela lê e acrescenta. Ela deixa o dela para eu acrescentar coisas,
entendeu? Eu sempre percebo na hora que eu faço a leitura, eu percebo pelas coisas
que ela deixa expostas na sala de aula. (Educadora Aicha - entrevista concedida em
11/09/06)
O que esses depoimentos indicam é que as educadoras buscam alternativas para
trabalhar com as crianças pequenas. Parece pouco o que já estruturaram a partir dessas novas
realidades, mas vale a pena observar que há permanência do trabalho. O que aponta para o
fato de que elas realmente incorporaram essa questão como uma dimensão de suas práticas
pedagógicas, em qualquer condição. Elas não se limitam a realizar o que aprenderam no
curso, mas investigam exercitam, abandonam e recuperam atividades que lhes possibilitem
estabelecer com a criança uma comunicação. Aminata relata um desses momentos em suas
práticas
Agora, eles são bebezinhos. A gente chama de agrupamento dois, um ano meio a
três anos. Então, nessa faixa etária como eles são pequenininhos a gente trabalha
com fantoches. Porque se a gente levar um livro de história para eles [como são]
pequenininhos, não se interessam. Eu até tentei contar, fazer barulho, tudo mais...
Agora com fantoches eu percebi que eles olham mesmo. Eles prestam atenção. Ai eu
comecei a ver os fantoches que tem lá na escola para começar a trabalhar. Livrinho
com folha, já é complicado. Então, a gente pega o fantoche, conta a historinha. Por
exemplo, a menina do laço de fita. Eu peguei uma menina negra, tinha o coelhinho,
eles prestam mais atenção. É para essa faixa etária, por enquanto, é o que prende,
mesmo. Não é só assim... Jogos, brincadeiras, que não dá para trabalhar muito essa
temática, só com os fantoches, mesmo, que acho que dá para direcionar mais...
(Educadora Aminata - entrevista concedida em 12/09/06)
Aqui notamos que mesmo com o empenho apresentado por elas, são necessários novos
investimentos para consolidar uma boa prática com crianças de todas as idades. Será que os
livros estão descartados para a faixa etária que a professora está atuando? Para, Nafissatou,
não. Ela trabalha com crianças na mesma faixa etária
Um ano e meio dois anos. Mas é sempre assim, com essa coisa da referência. Eu
trabalhei com Tanto, Tanto que eles gostam bastante, é uma história de um bebê. Já,
é uma coisa que prende a atenção e com referências. Assim, sempre estar mostrando
histórias...Do Tanto, Tanto eu acho muito interessante porque é uma família, tem o
pai, tem a mãe, tem avó, tem o tio, tem uma família completa e estar assim
mostrando isso para eles. E é sempre assim com referências como bonecos, com
figuras na sala. Já não dá para ter uma discussão com as crianças, mais.... nisso
assim, do material pedagógico mais apropriado. (Educadora Nafissatou - entrevista
concedida em 16/10/06)
Duas realidades, respostas diferentes, mesmas procuras. Vimos que a professora,
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Aminata, não conseguiu trabalhar a leitura de livros com sucesso, junto às crianças bem
pequenas. Embora, atualmente seja cada vez maior o número de livros com belas ilustrações.
Essa faixa etária gosta de ouvir histórias contadas sem ser lidas ou sintetizadas de acordo com
idade, explorando mais as ilustrações. Impressionam-se com as vozes e entonações e para
isso, há muitos contos indígenas e africanos já publicados no Brasil. Assim, como a música
em sua mais ampla diversidade pode estar presente nesse momento, ou mesmo, a decoração
do ambiente, como apontou Nafissatou, enfim, há vários recursos que podem ser utilizados,
possibilitando às crianças construírem por meio dos jogos e da linguagem simbólica
concepções de si mesmo e do outro de modo positivo.
6.1. Atitudes: crianças brancas e negras e suas reações
Durante a análise das entrevistas com as professoras de Campo Grande, percebemos
que, mesmo sem explicitar, algumas indicavam que havia diferenças nas reações das crianças
negras e brancas diante das atividades que abordavam o tema da educação das relações
étnico-raciais. Tal percepção nos levou a incluir duas perguntas no roteiro de entrevista que
realizaria com as educadoras de Campinas. Uma referiu-se ao modo como reagiam os
educadores brancos e negros durante as discussões no curso. E a outra se referia às crianças.
Queríamos primeiramente, saber como as educadoras identificavam atitudes preconceituosas
nas crianças. Em seguida, nos interessava saber se crianças negras e brancas reagiam
diferentemente às atividades sobre relações étnico-raciais.
As respostas trazem elementos extremamente fecundos para nossa análise, pois
correspondem, em certa medida, às discussões e referências que temos utilizado para discutir
a formação de professores. Quando nos referimos aos saberes experienciais que esse grupo
traz para a sua formação como dado importante na configuração de sua profissionalidade,
vamos encontrar nos depoimentos das educadoras referências em relação à atitude das
crianças negras e brancas diante das atividades que poderiam ser consideradas oriundas de
seus saberes adquiridos na dimensão de saberes experienciais, que se adquire na interação
social por elas vivenciadas, ainda que bem pequenas. Ao nosso ver, os saberes da criança
sobre o sentido de ser negro ou branco na sociedade brasileira têm origem na família, na
educação informal, no ambiente de vida, na experiência com os pares, nas músicas que ouve,
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nas revistas e propagandas que vê, nas piadas que escuta, nos gestos que identifica. Assim, a
aprendizagem sobre ser negro e branco ocorre de diferentes formas e antes da entrada da
criança na escola.
Para Tardif (2002), a aprendizagem da docência ocorre, também, com a prática
cotidiana, na qual o docente vai construindo saberes experienciais. Transpondo essa
concepção para o modo como as crianças constroem seus saberes, diríamos que é na prática
cotidiana que elas aprendem a ser criança negra e ser criança branca. Ou seja, não se trata de
algo que as crianças saibam antes de entrarem na escola que as ajudarão a compreender um
conteúdo que será trabalhado. Trata-se de saberes que as constituem como crianças, assim
como os saberes experienciais fazem parte da formação do professor, constituindo-os em sua
profissionalidade. Esse "saber" que as crianças apresentam sobre o outro, freqüentemente,
estão relacionados ao corpo. É o toque e a proximidade física dos corpos negros que são
evitados pelas crianças brancas. No depoimento da educadora, Aminata, podemos identificar
como isso ocorre.
Eu acho que é essa questão da proximidade, normalmente: “Ai eu não quero ficar
perto", "Eu não quero pegar na mão". Eles ainda têm essa, eu percebo isso até hoje.
Mesmo com os pequenos. É interessante isso. Tem criança que, às vezes, nunca foi
para a creche, às vezes, a criança que o pai é branco, a mãe é branca, então, quando
vê uma criança [negra], por incrível que pareça, eu achei que não tinha... Tem
criança que ainda se assusta quando vê uma [monitora/professora]... se for muito
preta. [a criança] começa a chorar não quer ir pro colo. (Educadora Aminata entrevista concedida em 12/09/06).
Há duas dimensões importantes para serem analisadas: o medo e a rejeição. A primeira
é o medo manifesto pela criança branca em relação aos sujeitos negros. Esses sentimentos
não se apresentam somente em relação às crianças, o educador negro também é alvo,
indicando que há um "saber" sobre o negro adquirido pela criança branca anterior à sua
presença na instituição. Quais seriam os "saberes" construídos em sua experiência que a
levam a apresentar essas atitudes? Certamente, é a aprendizagem social negativa sobre o que
representam pessoas negras veiculadas nos mais variados tipos de textos. A idéia do negro
como pessoa, feia, suja ou que são ladras, perigosas, malandras, assustadoras etc. permeia a
construção do imaginário.
Esse medo é criado por meio de mecanismos simbólicos veiculados em diferentes
veículo que trabalham com imagens. A pessoa negra está muitas vezes representada e
associada a fatores negativos. Nos filmes e histórias infantis, a referência à cor preta é
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tradicionalmente como a portadora do mal. A linguagem simbólica que habita as experiências
infantis remete-as à pessoa negra como assustadora ou perigosa.
Ah, a gente percebe assim... Que eles não gostam de sentar perto, enquanto você
está penteando o cabelo, sempre tira sarro, aquela coisa do cabelo. Eu não sei por
que, mas tenho problema com o cabelo, não adianta (risos), as meninas falam,
Aicha, você tem alguma coisa com o cabelo. "Ah, acho que eu tenho mesmo, viu,
não tem jeito". E fazendo uma leitura a gente percebe que as meninas negras na
escola sofrem demais (ênfase), é horrível! (Educadora Aicha - entrevista concedida
em 11/09/06).
A percepção de que as crianças brancas manifestam sentimentos de rejeição em
relação às pessoas negras, adultas ou crianças, e que essa rejeição se concretiza no momento
em que é necessário tocar, não se resume a isso. Elas utilizam o seu "saber" experencial para
fazer escolhas, principalmente na hora das brincadeiras. Nesses momentos, a criança negra é
preterida. A educadora Mame relata sua percepção sobre esse tipo de atitude.
Às vezes, não querem brincar com a criança negra. A gente sente que ele vai ficando
lá no cantinho dele, isolado mesmo. Às vezes, ele não é convidado a fazer parte da
brincadeira. Se o profissional não estiver atento a essa questão, a criança vai sempre
ficando no cantinho. São poucos os que chamam, os que convidam. Eles dão
preferência à criança branca para ficar brincando. (Educadora Mame - entrevista
concedida em 13/09/06).
Ao tomarmos contato com essa realidade por demais cruel, custamos a acreditar que
são práticas realizadas por crianças pequenas, com idade variando de dezoito meses a cinco
anos, e somos impelidos a dizer que são essas educadoras que, por serem negras, estão vendo
coisas onde não há. Mas as educadoras brancas também observaram o mesmo tipo de atitude.
Segundo Aissatou, é possível perceber os conflitos de origem étnico-racial entre as crianças
em vários momentos do fazer pedagógico.
Ah, desde uma coisa explícita assim: "Eu não quero essa menina perto de mim",
"Essa neguinha perto de mim". Até questões assim, vamos formar pares para a festa
junina. "Ah, eu não quero dançar com ele?". "Por que?". A criança não diz
especificamente porque não quer dançar... mas você tem ... você tem de ter um jogo
de cintura como professora para montar os pares de maneira que a criança negra
seja bem aceita como um par. Às vezes, até pela idade da criança isso não é
específico, não é explícito. "Não quero dançar com ele porque ele é negro". Mas
acaba na formação..."Ah, escolha o seu par". E por que, às vezes, aquela criança não
é escolhida? Então, você tem de ter uma intervenção como educadora para não
deixar que isso aconteça, então, eu acho que sentir esse momento é sentir
preconceito, né? (Educadora Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06).
Concorda com ela a educadora Nafissatou e nos traz outra dimensão pouco analisada
neste trabalho: a resistência da criança negra diante das atitudes discriminatórias de seus
colegas brancos. Nafissatou diz o seguinte:
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Tem criança que sim [reage], tem criança que não. Nesse caso que eu citei o
menininho bateu nele (risos). Nesse ano tinha uma aluna a B.. Ela já trazia isso de
um modo mais positivo. Tanto que a mãe dela é loira e o pai é negro, e ela se parece
mais com o pai. Ela nem tinha o cabelo enrolado, nada. O cabelo dela é quase liso,
mas ela trazia essa identidade muito forte, sabe? E ela era muito determinada. Então
ela falava assim: "Não, eu me pareço com o meu pai, eu sou negra". Eu achava isso
muito legal. Quando as crianças já começam a se colocar dessa forma, as outras vão
tratando isso de uma forma bem melhor também. (Educadora Nafissatou - entrevista
concedida em 16/10/06).
Nafissatou citou dois modos de resistência da criança negra diante do racismo vivido
por elas na escola. O primeiro, mais comum, é a reação de bater praticada por "um
menininho" ofendido pelo outro. Muitas crianças negras reagem desse modo na escola. E nem
sempre são compreendidas pela comunidade escolar, que a acusam de serem violentas e não
têm o mesmo procedimento com a criança que praticou a discriminação. Outras se isolam,
mas todas passam a serem acompanhadas de novas marcas de exclusão dentro do ambiente
escolar, consideradas como "agressivas", "esquisitas" ou "pouco participativas", como nos
aponta estudos realizados por Cavalleiro (2005).
Mas Nafissatou identifica um outro modo de resistência pelas crianças negras. Ela
observa que há crianças que, mesmo diante desse ambiente hostil, conseguem se auto-afirmar
como negras e colaboram para que outras crianças passem a considerar essa uma
possibilidade legítima de ser e estar no grupo.
6.2. Meninas negras penteiam o cabelo, meninos negros "perdem" o cabelo
Não há dúvidas de que o gênero é uma variável no processo de discriminação racial.
No mercado de trabalho, pesquisas verificaram que as mulheres negras estão na base da
pirâmide em termos salariais. Elas ganham menos que os homens negros, que por sua vez
ganham menos que as mulheres brancas, que ganham menos que os homens brancos. Entre as
causas de morte dos homens negros, destacam-se os óbitos por transtornos mentais (uso de
álcool e outras drogas), doenças infecciosas e parasitárias (tuberculose e HIV/ Aids) e causas
externas (homicídio). 208
208
Sobre esses temas, ver SOARES, Sergei Suarez Dillon. O Perfil da Discriminação no Mercado de Trabalho.
Homens Negros, Mulheres Brancas e Mulheres Negras. Texto para discussão N. 769. Ministério do
Planejamento, orçamento e gestão /IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2000. LEAL, Maria do
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Diante desses dados, nos perguntamos como essa diferença se dá em relação às
crianças pequenas e no ambiente escolar. De acordo com as educadoras, meninos e meninas
negras são atingidos no ambiente escolar por esse processo, mas todas concordam que as
meninas negras sofrem mais que os meninos negros. Um dos motivos apontados por elas
relaciona-se ao fato de que as mulheres estão mais sujeitas ao disciplinamento social da
estética. A professora Aissatou, ao ser provocada a refletir sobre o tema, diz:
Humm... A coisa do gênero também influencia na questão da cor? (silêncio breve)
Eu acho que a coisa não é por ser a menina negra. Eu acho que é por ser a mulher.
Porque por exemplo, a questão da beleza é mais cobrada da mulher, né...de qualquer
mulher. E a idéia de que o tipo físico negro não seja bonito pesa mais para a mulher.
Então acaba diferenciando um pouco por aí, a mulher carrega esse duplo
preconceito, por ser negra e por ser mulher. (Educadora Aissatou - entrevista
concedida em 14/09/06).
Na tentativa de aprofundarmos mais na compreensão dessa diferença de gênero,
indagamos à professora se havia uma questão específica para que a menina negra sofresse
mais. Ao que ela nos respondeu:
Ah, eu acho que a questão assim: não dá para pentear seu cabelo, seu cabelo é ruim,
sabe essas coisas? O menino, por exemplo, raspa careca e resolve. A essa idéia de
que este tipo de cabelo não é bonito juntou o preconceito que é o preconceito racial
com o preconceito em relação à mulher. A mulher tem que ter uma apresentação
dentro de uma expectativa, de tipo físico que [não] corresponde, muitas vezes, à
população brasileira. Então junta esses dois preconceitos na menina, eu acho. E no
menino é mais tranqüilo.(Educadora Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06).
Esse modo diferencial e mais “pesado” dos conflitos raciais na educação infantil terá
como protagonistas os cabelos. Desde Campo Grande até Campinas, todas as educadoras
possuem uma história para contar sobre como as meninas negras vivenciam de modo
conflituoso e doloroso o fato de terem cabelo crespo. A educadora Aminata destaca para nós
com maior precisão quais as dificuldades enfrentadas pelas meninas negras, quando trata de
identificar a diferença de gênero na vivência do racismo:
Eu acho que os meninos negros, eu acho um pouco [sofrem] menos, (risos). Porque
homem, por incrível que pareça, tem essa coisa de gênero... A menina, o que
acontece? Tem o cabelo, nossa, o cabelo. Elas piram! É uma coisa interessante. Eu
tinha uma aluninha de uns seis anos. Acho que foi há uns três anos. Ela colocava
trancinha direto. A mãe dela, quando ficavam [feias], tirava e colocava de novo. Um
belo dia aconteceu o quê? Não sei. Ela não colocou. Essa menina começou a vir de
toca na creche. Ela não tirava a toca da cabeça. Ela tinha vergonha de mostrar o
Carmo, GAMA, Silvana Granado Nogueira da. CUNHA, Cynthia Braga da. Desigualdades raciais, sóciodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública,vol.39 no.1, São
Paulo Fev. 2005. BATISTA, Luís Eduardo. Masculinidade, raça/cor e saúde. Ciências & saúde coletiva vol.10
n.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2005
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cabelo do jeito que estava. Então, eu acho assim, para as meninas, é um pouco mais
complicado, né? Para a criança negra tem que ter cuidado diferente em relação ao
cabelo, porque quando chega à escola (ênfase) é difícil, porque a criança, outra
criança, até [mesmo] o menino negro. Como é que eles falam? Cabelo de fuá. "
Você está com cabelo de fuá". " Sua mãe não penteia seu cabelo?". Sabe, é aquela
coisa! Eu acho que ainda é mais difícil para as meninas. Os meninos cortam o cabelo
baixinho. Até quando veio essa moda da trancinha... Teve uma mãe que trançou o
cabelo do menino. E meninos se impõem mais, com certeza. As meninas ainda
choram muito. "Ah, estão falando do meu cabelo." (Educadora Aminata - entrevista
concedida em 12/09/06).
Enquanto as meninas choram e reclamam, o que não deixa de ser um modo de
resistir às atitudes discriminatórias, os meninos se auto-afirmam com novos penteados. No
entanto, o modo mais comum que as famílias tem utilizado para "resolver" a questão do
cabelo do menino, segundo as educadoras, é cortar bem curtinho ou raspar. Para Mame, isso
indica que não se está cuidando do cabelo do menino, de fato ele está perdendo o seu cabelo.
Essa "solução" elimina uma possibilidade que a educadora
aponta como uma parte
importante do fazer pedagógico da educação infantil
Olha me incomodava muito. Embora, também, veja nos meninos a questão do
cabelo. Do cuidar do cabelo crespo. Porque o menino muitos pais acabam raspando
a cabecinha, cortando bem curtinho. Agora as meninas, algumas mães também
acabam fazendo, estilo masculino, raspa, corta bem curtinho. Mas conforme o
cabelo vai crescendo... Muitas vezes não é cuidado. [...] A gente via assim que às
crianças, por exemplo, a criança dorme, às vezes, a mãe traz arrumadinho, penteia,
tudo, mas a criança dorme. O que acontece? O penteado acaba se desfazendo. A
gente chega faz a higiene, lava o rosto, mas o cabelo sempre acabava ficando para o
monitor, para mim. Enquanto monitor negro, tomar à frente, porque as meninas [as
outras monitoras] acabavam não penteando. Ora porque não sabiam. Às vezes,
atrasava o horário, às vezes mudava o horário. Então, você chegava e a criança
estava lá [desarrumada] e as outras bem arrumadinhas, penteadinhas e a criança
[negra] descabelada. (Educadora Mame - entrevista concedida em 13/09/06)
O que podemos concluir desses depoimentos é que tanto as meninas negras, quanto os
meninos negros, sofrem os percalços de terem cabelos crespos. No entanto, o modo como
cada um vivencia essa experiência difere em vários aspectos, inclusive pelo diferencial de
gênero. Enquanto o menino negro está privado dos momentos de carinho e atenção, na hora
de ser penteado, porque, as educadoras em sua maioria entendem que os cabelos muito curtos
ou cabeças raspadas dispensam o toque, isto é, o cuidado.
Para as meninas negras, ter cabelo crespo significa em muitos casos ser a
"descabelada" a de "cabelo de fuá" e, por vezes, ser a criança que ficava sem ter esse tipo de
cuidado. Para a professora que denuncia esse tipo de atitude, o fato de as meninas negras não
serem penteadas indicava não a falta de tempo, mas de compromisso.
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Não é nem uma questão de não dar tempo, mas de não saber lidar com o cabelo
crespo. Por outro lado, também, não haviam tentado. Você entendeu? "Ah, eu não
sei trançar. Tem de trançar? Eu não sei trançar". Mas também não haviam tentado. O
que aconteceu na minha turma é que acabava ficando para mim. Além de cuidar dos
cabelos [das crianças brancas], que eu não ia discriminar a criança branca. Eu não
vou pentear de branco? Eu vou pentear só [os cabelos] dos negros? Eu não poderia
fazer isso. E o dia em que eu não estiver? (Educadora Mame - entrevista concedida
em 13/09/06).
Esse compromisso da educadora com o cuidar se tornou um dos pontos abordados por
quem fez o curso, possibilitando que outras educadoras passassem a refletir sobre esse tema,
antes não abordado nas práticas pedagógicas. A educadora Aicha nos relata que:
Conversando com o grupo de monitoras, falando um pouco da nossa prática, a gente
percebeu o seguinte: as monitoras não penteavam os meninos negros porque eles
usavam o cabelo baixinho o tempo todo. Só passavam a mão, quer dizer, às vezes,
passavam a mão. Mas na maioria das vezes não mexiam no cabelo daquele menino.
Quer dizer, a criança passava o dia todo na unidade perto de um adulto e não era
tocada pelo adulto. Não recebia o carinho do adulto, naquele momento. Tem gente
que fala assim: "Ah, mas pentear o cabelo? Pentear o cabelo não vai mudar uma
criança". Não vai mudar uma criança se você, simplesmente, mecanicamente, for
penteando o cabelo de todo mundo. Se você tiver um tempo, para sentar a criança,
aconchegar, pentear o cabelo, fazer perguntas, ouvir o que a criança tem para dizer,
é um momento único, é um momento único. (Educadora Aicha - entrevista
concedida em 11/09/06).
A possibilidade de potencializar esses momentos como processos ricos de
aprendizagem e empoderamento foram intensamente vividos pelas educadoras e também
pelas próprias crianças negras. Na medida em que o trabalho com a educação das relações
étnico-raciais foi se desenvolvendo as crianças foram se sentindo com direitos, apontam os
relatos. Elas queriam ser penteadas, tocadas, enfim, cuidadas, e conseguiram dizer isso ao seu
modo para as professoras. Mame revela um momento único na qual presencia um pequeno
tomar a palavra e indicar à educadora a tarefa que lhe faz jus ao título:
Teve uma cena muito legal. A monitora estava no banheiro penteando, arrumando o
cabelo para [as crianças] irem ao refeitório. Uma monitora pegou as meninas e outra
pegou os meninos e o V. tinha o cabelo cortadinho baixinho. A monitora não
penteou o cabelo dele. E ele ficou do lado dela só observando. Na hora em que ela
terminou de pentear o cabelo de todos, ele falou assim para ela: "Você não vai
pentear o meu cabelo?" Ela se surpreendeu, olhou para mim assustada. "Ah, Mame,
eu não fiz de propósito". Eu falei: "Eu sei que você não fez de propósito". "É que o
cabelo dele está tão curtinho, está tão... que para mim já estava penteado. Mas, vem
V., eu vou pentear o seu cabelo.” É essa coisa do toque. Você está penteando o
cabelo. Você está dando atenção, está tocando a criança. É como eu falei, a atenção,
muitas vezes, era focada na beleza branca. O negro não tinha esse momento de
carinho, de ser tocado. Eu achei interessante ele cobrar. Porque até então eles não
tinham essa iniciativa, de cobrar... Ela começou a ficar mais atenta. (Educadora
Mame - entrevista concedida em 13/09/06).
As educadoras identificaram as atitudes das crianças negras e brancas no que se refere
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ao modo como o racismo opera em suas relações, revelando-nos que o "espaço" do corpo é
privilegiado. É no toque e na proximidade que se explicita a rejeição da criança negra ou sua
aceitação. De acordo com os depoimentos, as crianças brancas, "não querem pegar na mão",
"dançar quadrilha", "sentar perto" ou brincar junto", almejam distanciarem-se daqueles que
lhes são apresentados pela ideologia racista como suspeitas (GOMES, 2006, p.155).
Nessa relação de desconfiança, tanto a criança negra quanto a branca se privam da
proximidade corporal. Falamos aqui de uma proximidade em que o afeto, a atenção e a
disponibilidade perante o outro estejam presentes. É necessário atenção para que também as
crianças negras encontrem um ambiente de aconchego. De acordo com Gomes (2006):
Esse processo conflitivo é construído socialmente, vivido e aprendido no
grupo, na família. Por isso, mesmo quando se nasce em uma família que
afirma que e valoriza a cultura negra, esse aprendizado pode ser
confrontando socialmente pela imagem do negro veiculada na mídia ou pela
maneira como lideranças e artistas negros, quando evidencia, comportam-se
diante da questão racial ou expressam a negritude através de seu corpo.
(GOMES, 2006, p.140).
É nessa perspectiva de criar na escola espaços nos quais as crianças possam vivenciar
contatos afetivos que envolvam atividades com o corpo que compreendemos as ações
organizadas pelas educadoras. Realizar brincadeiras que envolvam toques, formar grupos de
trabalho heterogêneos ou fazer o momento de pentear são ações pedagógicas, pois trabalham
a educação das relações étnico-raciais de modo positivo. Para dar conta dessa tarefa, a
educadora tem de estar atenta. Aissatou explica como faz isso no cotidiano:
Por exemplo, a criança tem de estar próxima uma do outra, formar pares, dar as
mãos e brincar juntas, desmanchar os grupos homogêneos. Temos de criar situações
em que as crianças diferentes estejam próximas uma das outras para que possam
conviver mais em situações de jogos, em situação de brincadeiras. (Educadora
Aissatou - entrevista concedida em 14/09/06).
São esses investimentos que poderão criar novas atmosferas nos espaços da educação
infantil, produzindo ambientes mais saudáveis. Além da percepção das professoras de que a
proximidade corporal é lugar de conflitos raciais, o momento de pentear cabelos revela aquilo
que Gomes (2006) chamou de rejeição/aceitação das marcas diacríticas de negritude. As
atividades desenvolvidas pelas educadoras em relação ao cabelo possuem algumas
semelhanças com o processo analisado pela autora nos salões de Belo Horizonte
especializados em cabelo crespo. Para autora, “alterar e/ ou cuidar do cabelo crespo, um dado
objetivo do corpo, transformado pela cultura, faz parte desse processo, o qual é cheio de
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tensões e ambigüidades”.209 Em Campo Grande, nas atividades de pentear, vimos que essa
ambigüidade estava presente, quando por vezes se pretendia “disciplinar” o cabelo,
adequando-o a um padrão considerado por aquelas educadoras como “bem penteado”,
procurando moldar um tipo de pertencimento racial das crianças, assemelhando-o ao modelo
do branco. Outras vezes, as educadoras buscavam, a partir dos modelos de penteado, destacar
um "modo" de afirmar a negritude da criança.
Nas atividades de Campinas, os dois movimentos também estão presentes, mas a
ênfase está na segunda intenção: pretende-se, com as atividades de pentear, estabelecer a
valorização do cabelo crespo, seja usando as técnicas adequadas para isso seja promovendo
ações coletivas, nas quais todas as crianças experimentam pentear seus cabelos a partir do que
culturalmente está posto como estética negra. Nesse caso, há uma estética particular para os
cabelos crespos infantis femininos, do qual as trancinhas ou o uso dos enfeites coloridos
fazem parte. E uma estética negra infantil masculina, essa mais próxima dos homens adultos
negros. Trancinhas, chamadas de rasteirinha (aquelas que ficam grudadas na cabeça), ou
desenhos nos cabelos são os modelos mais comuns. Nas meninas, há um modo mais
caracterizado como penteado infantil feminino. Como nos apresenta a professora Aicha:
Penteados étnicos são assim... Étnicos não, né, é africano mesmo. A gente sempre
convida todos os cabeleireiros do bairro. Eles vêm para escola, a gente pede
autorização para os pais, a gente arruma o cabelo das crianças, compra miçanga,
compra um monte de adereços. E nesse dia os cabeleireiros ficam o dia todo na
creche. Sala por sala, levam todos os meninos e meninas para o salão. A gente
compra um espelho bem grande, lá eles sentam e é o momento deles, de conversar
com o cabeleireiro, é um momento único, muito forte. (Educadora Aicha - entrevista
concedida em 11/09/06).
Foram muitos e variados os modos pelos quais as educadoras interferiram na
transformação das percepções acerca das diferenças étnico-raciais. Tais modos alcançaram a
elas próprias e as educadoras que não participaram do curso para a promoção da igualdade
racial, mas foram motivadas a repensarem suas práticas. Dessas transformações participaram
as crianças, que se percebem sujeitos de direito pela ação do novo saber técnico e experencial
e potencialmente fértil na promoção de mudanças institucionais.
209
Ibidem, p.144
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Considerações Finais
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma
nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu
caráter. Eu tenho um sonho hoje! Martin Luther King
Realizar uma pesquisa não é tarefa fácil. Durante os quatro anos em que passamos
envolvidas com esse trabalho, foram inúmeros os acontecimentos pessoais e profissionais que
afetaram o processo de produção do trabalho. O próprio desafio de compreender os modos
pelos quais educadoras da primeira infância se apropriaram de conhecimentos adquiridos em
cursos de formação continuada de professores nos impunha um longo caminho. Ao longo do
percurso, aprofundamos os conceitos, revimos posições e aumentamos a compreensão acerca
do tema, na expectativa de contribuir na ampliação dos conhecimentos sobre as implicações
político-pedagógicas de experiências em favor de uma sociedade menos racista.
A pesquisa nos possibilitou também pensar em nossa própria trajetória escolar, desde
quando aluna até o exercício da docência. Pudemos visitar o passado e procurar o que nele se
coadunava com o nosso presente, relacionando-o a essa pesquisa. O processo como se opera
a trajetória da pesquisa e como é feita sua análise estão permeados pela história individual do
pesquisador, suas condições concretas, seus capitais culturais e a relação que é capaz de
estabelecer com os conhecimentos.
A descoberta de ser negra e o modo como nossa família relacionava-se com o tema, a
atuação política e partidária, o exercício de ativista, a formação como professora de crianças
e, por fim, os conhecimentos agregados como pesquisadora do tema permeiam todo o
trabalho. É certo que a compreensão de muitas dessas dimensões foram transformadas pelo
contexto histórico e social, principalmente, as relacionadas ao pertencimento racial. O
envolvimento de caráter pessoal ainda está presente, mas agora investido por uma questão
teórica. Nosso interesse relaciona-se com a procura em compreender como os fatos sociais
produzem determinada realidade e como os sujeitos atuam sobre ela, transformando-a ou
conservando-a.
O fato de termos escolhidos ouvir professoras da educação infantil sobre suas práticas
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pedagógicas de combate ao racismo relaciona-se ao modo como acreditamos que o
conhecimento deva ser construído. Para nós, as educadoras são protagonistas. Nada mais justo
do que lhes dar a voz para dizerem como foi realizar um curso de formação com enfoque no
combate ao racismo. Quais conteúdos lhes chamaram a atenção. Qual a colaboração dos
conteúdos do curso para o seu trabalho no cotidiano das instituições. Mais do que discutir se
os relatos são descrições fiéis das práticas realizadas, é fundamental reconhecê-los como
possibilidades concretas de trabalhos. Essas educadoras estão construindo a educação das
relações étnico-raciais.
Ao nosso ver, a identificação e a análise das práticas que se expressam como
possibilidades nos relatos constituem-se numa das singularidades da pesquisa. Organizamos
uma coletânea de propostas construídas por educadoras que estão atuando com crianças da
primeira infância. Dessa forma, mostramos educadoras, em Campo Grande e em Campinas,
capazes de construir essas respostas pedagógicas a partir das atividades sistemáticas
proporcionadas como foram os cursos de formação com esse enfoque. De acordo com os
depoimentos, é só após essa experiência que elas conseguem desenvolver práticas eficazes no
combate ao racismo.
Os depoimentos nos revelam uma das principais conclusões da pesquisa, isto é, as
próprias educadoras nos dizem que percebem a discriminação no seu cotidiano escolar, mas
precisam de oportunidades institucionais nas quais possam discutir e estudar o tema. Pelos
depoimentos, concluiu-se que a segurança declarada por elas após o curso ocorreu porque
passaram a dominar alguns conceitos e conhecimentos, colaborando para formularem
respostas às manifestações de racismo na escola. Ou seja, atuar sobre a formação dos
professores, de acordo com os relatos, é fundamental para gerar respostas ao problema. Essas
considerações no levam a reexaminar as nossas hipóteses iniciais para verificar o que delas foi
possível construir e a partir disso apresentar algumas proposições que possam colaborar na
organização de programas de formação para a educação das relações étnico-raciais.
A nossa premissa do movimento negro como impulsor e promotor das experiências
de cursos de formação de professores de combate ao racismo foi reafirmada pela identificação
das experiências apresentadas no capítulo II. Vimos que a maioria das experiências foi
realizada por instituições pertencentes ao movimento negro e, quando eram experiências de
Secretarias, as pessoas responsabilizadas pela execução da política estavam diretamente
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ligadas ao movimento negro. Fato verificado também com as experiências realizadas pelas
universidades e também nas duas experiências que analisamos, em Campo Grande e em
Campinas. São ativistas do movimento negro que interferem diretamente na produção e
condução das políticas afirmativas construídas nesses espaços.
Vale ressaltar que a experiência de Campinas, na sua continuidade, apresenta o
diferencial de ter na condução dos trabalhos uma pessoa que não é oriunda do movimento
negro, apesar de envolvida com ações do movimento social. Trata-se, a nosso ver, de um bom
sinal, porque produz rupturas na concepção de que são os negros, e apenas eles, os
responsáveis pelo desenvolvimento de políticas afirmativas com esse caráter. É fundamental
que tenhamos negros concebendo e implementando políticas com esse recorte, porém não é
admissível que sejam tratadas como "coisas de negro", responsabilizando os técnicos negros
de modo exclusivo por sua formulação e execução.
Essa realidade nos aponta para um quadro pouco confortável em relação à constituição
de políticas públicas e às ações afirmativas que visem o fim do racismo na sociedade
brasileira. Embora a existência dessas experiências seja um avanço, ainda é uma causa
assumida, de modo geral, pelas próprias vítimas do processo, e não pelo conjunto da
sociedade brasileira. Nota-se uma forte presença da concepção defendida por sociólogos nas
décadas de 50 e 60 de que o racismo é um problema do negro, e não da sociedade brasileira.
Ao lado dessa ação de mobilização promovida pelo movimento, constitui-se como
nossa primeira hipótese a afirmativa de que os cursos de combate ao racismo ocupam uma
posição secundária na política de formação de professores das Secretarias da Educação. Essa
hipótese não foi totalmente confirmada por nossa investigação, pois exigiria comparativos
quantitativos e qualitativos entre as proposições de formação para o combate ao racismo e
outras formações. O que pudemos constatar em relação a essa hipótese é que a instituição
desse tipo de trabalho enfrenta muitas dificuldades. É preciso, de início, convencer os
próprios integrantes das Secretarias sobre a necessidade e importância de ações com esse
caráter. As gestoras relataram os vários modos de interdição não-declarados que dificultavam
a realização desse tipo de política. Tal fato nos leva a pensar que dificilmente as iniciativas de
combate ao racismo ocupavam um lugar central dentro da política de formação das duas
Secretarias investigadas.
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Dito isso, há uma nítida diferença de investimento entre as Secretarias de Educação de
Campinas e de Mato Grosso do Sul. No primeiro caso, o respaldo institucional é mais amplo
e visível, inclusive nas resoluções emitidas, em que a questão étnico-racial está sempre
mencionada. Além disso, o investimento público maior, tanto para a realização do curso
quanto para a aquisição de materiais, proporcionou às educadoras maior segurança e
autonomia para o desenvolvimento de suas novas propostas pedagógicas.
Esse respaldo é bem menor no caso de Mato Grosso do Sul. A falta de investimentos,
a constante troca de gestores à frente da iniciativa e a descontinuidade de espaços
institucionais para o prosseguimento do debate iniciado no curso de formação fizeram com
que a ação das educadoras e mesmo das gestoras tivesse uma dose maior de empenho pessoal
diante da inércia burocrática.
Na segunda hipótese, consideramos que, apesar dos instrumentos disponibilizados
pelo curso, os professores teriam dificuldades para incluir o tema do combate ao racismo sob
outras modalidades de ação que superassem o chamado “currículo de turistas"
(SANTOMÉ,1998). Essa hipótese foi parcialmente negada pelos depoimentos das
educadoras, com exceção de uma, de Campo Grande, que trabalha com o tema somente na
semana de consciência negra. As demais disseram que a educação das relações étnico-racial
permeia todo o currículo, apresentando vários exemplos de como isso ocorre.
A negação parcial dessa hipótese é bastante alentadora, pois se constitui na
consolidação do que defendemos como adequado no trato do tema. Isto é, o trabalho com a
educação das relações étnico-raciais deve ser incluído em todo o processo educacional,
principalmente quando estamos tratando de práticas pedagógicas realizadas com crianças
pequenas. A inclusão não deve ser a partir de discursos moralistas ou de outro cunho, mas por
meio da valorização do modo de ver a diferença racial e da apresentação das contribuições da
população negra na construção dos bens civilizatórios.
No entanto, para que a inclusão realizada pelas educadoras supere totalmente a
modalidade "currículo de turistas", é necessário que algumas avaliem os tipos de conteúdos e
as maneiras com os quais trabalham. Também que perguntem se de fato estão colaborando
para que os alunos um dia consigam estabelecer relações entre a discriminação e as dinâmicas
políticas, históricas e os processos de significações que influenciam as interpretações, as
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expectativas e possibilidades de intervenção na realidade (Santomé, 1998).
Nossa terceira hipótese foi verificar se os cursos que têm como objetivo a discussão do
combate ao racismo contribuem para que o educador perceba outros segmentos que sofrem
discriminações em sala de aula. Essa hipótese confirmou-se. Todas as professoras salientaram
que ficaram menos tolerantes com qualquer tipo de discriminação e que o curso lhes
possibilitou ter argumentos para intervir em situações de conflito.
A discriminação em relação à mulher constituiu-se, no dizer das professoras, a forma
que passou a ser mais bem identificada após a realização do curso. A discriminação com
relação aos portadores de necessidades especiais e à orientação sexual foram as formas que se
seguiram. Para nós, essa é uma questão importante, pois um dos principais argumentos dos
opositores de trabalhos de formação com enfoque no combate ao racismo é que existem
outros tipos de discriminações na sociedade brasileira, e não podemos privilegiar uma em
detrimento da outra. Temos argumentado que a discriminação racial deve ter momentos
específicos de formação porque se constitui um fator estruturante da sociedade brasileira e
que, ao discuti-la, fornecemos aos professores instrumentos para atuar sobre esse e outros
tipos de discriminação.
A quarta hipótese foi considerar que um curso desse tipo tem um caráter de ampliação
nos modos de atuar dos professores, causando impacto benéfico nas suas práticas em sala de
aula e influenciando a dinâmica de ensino-aprendizagem em diferentes áreas do
conhecimento. Essa hipótese foi confirmada, pois o fato das professoras criarem
metodologias, organizarem de modo autônomo os currículos, influenciarem na reformulação
dos projetos pedagógicos, dominarem a metodologia de projetos e exigirem a compra de
materiais demonstram esse impacto positivo em sua prática pedagógica, potencializando
atitudes criativas e formuladoras de políticas.
O reexame das hipóteses e a constatação de que as educadoras que participaram dos
cursos de formação mobilizam, sobretudo, conhecimentos advindos da reflexão sobre si
mesmas no contexto da sociedade brasileira nos coloca a seguinte questão: como devem ser
os programas de formação de professores que lhes possibilitem atuar sobre as manifestações
do racismo na escola?
A partir das muitas leituras e dos depoimentos das educadoras, pudemos organizar
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algumas sugestões, muitas delas pautadas também na leitura de Gomes e Gonçalves e Silva
(2003). Destacamos:

Considerar nos programas de formação os valores e saberes desses profissionais.
Esse é um aspecto muito valorizado, atualmente, nas perspectivas de formação de
professores. Reconhecer que eles constroem seus saberes a partir de suas experiências por
toda a vida, em diferentes lugares sociais, refletindo coletivamente, implica organizar espaços
de formação nos quais esses aspectos sejam contemplados. Uma rica experiência nesse
sentido tem sido desenvolvida por Catani et al. (2003), quando introduz os relatos
autobiográficos como técnica de abordagem. Todo relato autobiográfico tem dimensões
sociais, que se apresentam nas práticas descritas pelo sujeito. O exame das formulações
empreendidas para falar de si mesmo pode ser um modo fecundo para compreender a
realidade social, pois toda a descrição se encontra permeada por uma práxis social.
Articula-se à consideração dos saberes advindos da experiência dos professores um
outro aspecto, que a formação desse profissional para atuar contra o racismo na sociedade
brasileira deve pretender:

Desenvolver uma competência pedagógica construída e praticada pelos educadores
na construção de uma educação das relações étnico-raciais.
Tal competência pedagógica se dará por meio dos conteúdos específicos trabalhados
no curso. É necessário que eles consigam desconstruir a ideologia da democracia racial. No
entanto, essa competência pedagógica não se efetivará se o curso centrar-se na idéia de
atualização de conteúdo ou na perspectiva de convencer o professor sobre determinada
necessidade sem desenvolver estratégias de comprometimento com o problema. As
metodologias desenvolvidas, para chegar a essa competência, devem proporcionar que o
professor proceda a uma análise crítica da própria prática, estimulando uma atitude reflexiva
sobre os acontecimentos de seu cotidiano escolar e os alicerçando aos conhecimentos
necessários para intervir na realidade concreta da escola.
Nesse sentido, as propostas de formação de professores para o combate ao racismo
na escola poderiam utilizar-se dos variados modos pelos quais a humanidade expressa suas
concepções, seus valores, seus modos de viver, tais como: filmes, músicas, livros, artes
plásticas, na forma defendida por Sousa et al. (2005). As manifestações artísticas, de modo
geral, têm papel vital no processo de desencadear a reflexão crítica sobre a própria prática.
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Ao estimular que os professores pensem sobre as questões relativas à constituição de
si mesmo e dos outros a partir de variados suportes, colabora-se com o terceiro aspecto
importante na formulação de um programa de formação de professores:

Possibilitar que os educadores interajam com outros campos do conhecimento a
fim de favorecer-lhes a compreensão do racismo em toda a sua complexidade.
É fundamental que reconheçamos os limites da própria área de conhecimento das
ciências da educação para que possamos abranger a complexidade da temática da educação
das relações étnico-raciais. Uma proposta de formação sobre esse tema deve estimular que os
professores tomem contato com outras áreas do conhecimento que colaboram na compreensão
do fenômeno do racismo na sociedade brasileira, pois são vários os âmbitos sociais nos quais
se manifesta o racismo. Impõe-se a necessidade de levar em conta múltiplos conhecimentos
que extrapolem os limites disciplinares do campo educacional.
Para além das questões gerais, acima apresentadas, os programas de formação também
poderiam incluir os pressupostos pedagógicos pelos quais os trabalhos desenvolvidos pelos
professores devem ser regidos. Em relação às crianças pequenas, trazemos a contribuição das
educadoras entrevistadas que, mesmo sem terem chegado a tal formulação inspiraram-na, por
meio de seus depoimentos. Foram cinco os pressupostos pedagógicos que se apresentaram a
partir das proposições das educadoras:





o trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer parte do dia-a-dia;
o trabalho com a educação das relações étnico-raciais exige coragem do educador e essa
deve ser estimulada;
o trabalho no contexto da educação das relações étnico-raciais com crianças pequenas
deve pautar-se pela ludicidade;
o trabalho deve procurar construir a idéia de diferença como algo positivo;
o trabalho deve oferecer à criança elementos que colaborem na construção de sua
identidade racial de modo positivo, já que essa identidade é construída por ela, não
podendo ser imposta.
É importante recuperar as propostas pedagógicas formuladas por organizações do
movimento negro. Não para repeti-las, mas para revisitá-las, tendo-as como suportes teóricos
na construção dos referenciais para os programas de formação. Pelo que pudemos observar
nos depoimentos das educadoras, após a participação nessas formações, elas se tornaram
menos tolerantes com qualquer tipo de discriminação, constroem metodologias, interferem na
proposta curricular de suas instituições, influenciam na formulação dos projetos pedagógicos,
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produzem material didático-pedagógico e se sentem fortalecidas para desenvolver atividades
de caráter anti-racista junto às crianças pequenas, anunciando algo novo no fio do horizonte.
Com isso encerramos, por ora, nossa contribuição e esperamos ter apontado novos
caminhos de investigação que poderão ser percorridos por outros profissionais imbuídos do
mesmo objetivo. Ao examinar até onde alcançamos, ficou a inquietação de que ainda muita
coisa precisa ser investigada e de que há muito a fazer. Ao mesmo tempo, apresenta a certeza
de que o esforço para compreender nossas proposições e, sobretudo, o trabalho cotidiano de
educadoras comprometidas com um país melhor resultaram e resultarão em algo positivo na
construção de uma sociedade menos desigual e mais democrática.
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NERUDA,Pablo. Se cada dia cai. (Poema) Últimos Poemas.
<http://www.fabiorocha.com.br/neruda.htm> Acesso em: 27 out. 2006.
em
Disponível
<
em
SATER, Almir Sater,TEIXEIRA,Renato.Tocando em frente. (Música).Disponível em
<http://almir-sater.letras.terra.com.br/letras/44082> Acessado em: 03 nov. 2006
SILVEIRA,Oliveira. Encontrei minhas origens. (Poema). In. OLIVEIRA, Silveira. Roteiro
dos
Tantãs.
Disponível
em
<http://www.portalafro.com.br/portoalegre/oliveira/conciencia.htm> Acesso em 10 fev.
2006.
TRINDADE, Solano. Canto de Esperança. (Poema).Cantares ao meu povo São Paulo:
Editora Fulgor, 1961.
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APÊNDICE
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO PARA IDENTIFICAÇÃO DE PERCEPÇÕES E
PRÁTICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL COM O TEMA: COMBATE AO RACISMO NOS
CEIS SOB RESPONSABILIDADE DA SETTAS/MS
1. Caracterização da escola
nome da unidade:_________________________ município:____________________
diretor(a):_______________________________ coordenador(a):________________
endereço:_______________________________________________________________
fone/fax/email:___________________________________________________________
2. Identificação do professor
Nome: (não é obrigatório o preenchimento desse item)
sexo ( ) masculino ( ) feminino data de nascimento:
formação ( ) 2o. grau ( ) magistério ( ) Outro. Qual?
( )superior completo ( ) sim ( ) não. Qual?
( ) pós-graduação completa ou incompleta. Qual?
4. Você acha que existe preconceito racial no Brasil?
( ) sim ( ) não Por quê?________________________________________________
_____________________________________________________________________
5. Você tomaria alguma atitude diante de uma discriminação racial entre alunos?
Se, sim, qual?____________________________________________________________
Se, não. Por quê?_________________________________________________________
6. Você já participou de alguma atividade oferecida pela Secretária para discutir esse tema?
Qual?________________________________________________________
Quando?______/______/_____. Quanto tempo durou?_________________________
avalia como (
) muito boa (
) boa (
) regular (
)ruim
Porque?________________________________________________________________
7- Já realizou alguma prática na sala de aula com o tema?
( ) Sim. Tema trabalhado:_________________________________________________
Principal área do conhecimento:____________________________________________
Outras áreas do conhecimento:_____________________________________________
Série/nível e idade das crianças:____________________________________________
Período de realização:_____________________________________________________
Outros profissionais envolvidos:____________________________________________
O gestor da escola colaborou de alguma forma? Como?__________________________
Não, porque:____________________________________________________________
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Pesquisadora:Lucimar Rosa Dias contato: [email protected] - Colaboração: SETTAS/ Coordenadoria de Proteção Básica/
Programa de Atendimento à criança
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APÊNDICE B - CARTA AOS DIRETORES DE ESCOLA
São Paulo, _____ de _______ março de _______.
Prezado(a) Diretor(a),
Meu nome é Lucimar Rosa Dias e realizo uma pesquisa no programa de Pós-Graduação em Educação
na Faculdade de Educação da USP -Universidade de São Paulo, orientada pela professora Denice
Barbara Catani. Ela se refere a cursos de formação continuada de professores com o objetivo de
prepará-los para intervir de modo transformador nas situações de discriminação ligadas ao racismo em
sala de aula e favorecer o desenvolvimento de relações mais igualitárias.
A primeira etapa foi a identificação de experiências realizadas no Brasil de 1979 a 2003. No momento
estamos analisando duas dessas experiências a de Campinas e de Mato Grosso do Sul. Estamos
levantando as impressões de professoras que participaram do processo. Nesse sentido gostaria de
contar com a colaboração de uma professora da educação infantil, de sua escola, que tenha participado
de qualquer curso de formação com a temática das desigualdades raciais. Pretende-se que a professora
relate (por meio de entrevista gravada com duração de no máximo 1h30m a ser realizada no mês de
abril) suas impressões sobre a experiência em participar de um curso com esse caráter.
Por favor, gostaria de obter uma resposta negativa ou positiva em relação à solicitação. Ela poderá ser
enviada para: e-mail [email protected], ou pelos telefones (11)3763-6820/ 8135-1789 até o
dia 07 de abril,. Caso seja positiva, gostaria dos seguintes dados das professoras:
nome da professora ou das professoras caso tenha mais de uma interessada
nome da escola
número de telefones para contato
e-mail
nível da educação infantil em que atua
período em que fez a formação
A partir disso entrarei em contato com as professoras que se disponibilizaram para marcar o horário e
dia mais adequado para realização da entrevista. Sendo só para o momento agradeço a colaboração
nesse processo de pesquisa.
Lucimar Rosa Dias
Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP
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APÊNDICE C- MODELO DE CARTA DE CESSÃO
Carta de Cessão
São Paulo,________ de_________ de ______.
Eu, XXXXXXXXXXX, declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha
entrevista, gravada no dia XX de XXXXXXX por Lucimar Rosa Dias, para ser utilizada
integralmente ou em partes, sem restrições de prazos e citações, desde a presente data na tese
de doutorado de título provisório: mapeando experiências de combate ao racismo no Brasil
cuja autora é Lucimar Rosa Dias, abdicando de direitos autorais meus e de meus
descendentes, subscrevo a presente.
Assinatura
RG:_______________________________
CPF:_____________________________
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APÊNDICE D - REFERÊNCIAS DAS ESCRITORAS QUE INSPIRARAM
PSEUDÔNIMOS DAS PROFESSORAS ENTREVISTADA
A - Pseudônimos utilizados para as professoras entrevistas em Campo Grande-MS
OS
1- Mariama; 2-Fatou; 3-Ken; 4- Abibatou e 5- Fama
1 - Mariama
Mariama Bâ (1920-1980) - Nasceu em 1929, no Senegal. Escritora. Foi criada por seus
avós. Seu pai era ministro da saúde antes da independência. Em 1947 obteve o título de professora de
ensino primário, profissão que exerceu por doze anos deixando a docência por razões da saúde. Mãe
de nove crianças, divorciada, era esposa do deputado Obèye Diop. Em 1980 ganhou seu primeiro
prêmio com o livro " Uma longa carta (1979). Morreu no seguinte ano, pouco antes da publicação de
seu segundo livro (1981) " Um canto escarlate" (1981).
2- Fatou
Fatou Diome (1968-) nasceu em 1968 em Niodior, uma pequena ilha do Senegal , ela vive
em Strasbourg, França. Sua primeira obra Le ventre de l'Atlantique, foi um sucesso, sua última
publicação é Kétala. Paris: Flammarion, 2006.
3- Ken
Ken Bugul (1947 -) Mulher Wolof, seu nome significa: “quem não é desejado”, é o
pseudônimo usado pela escritora Mariètou Mbaye Biléoma que nasceu em 1947. Estudou na escola
primária de sua vila, passou um ano na universidade de Dacar, quando obteve uma bolsa que a
permitiu continuar seus estudos na Bélgica. Entre suas publicações estão: O baobab abandonado: o
autobiography de uma mulher Senegalesa: 1991; Sable de Riwan ou le chemin de [Riwan ou a trilha
arenosa]. Paris: Présence Africaine, 1999; La Folie et mort do la [loucura e morte]. Paris: Présence
Africaine, 2000. e D'or do pièce do La. Paris: Edições de UBU, 2006.
4- Abibatou
Abibatou Traoré (1973-) Nasceu em 1973 em Dacar. Estudou matemática aplicada e
informática na Universidade de Paris X e VI. (1999). Sidagamie é seu primeiro romance. Também é
membro “do painel das mentes eminentes” criado pelo Secretário geral Kofi Annan Este painel foi
criado para fazer sugestões para o reformas das Nações Unidas.
5- Fama
Fama Diagne Sene (1969 -) Nasceu em 1969 em Thiès, Senegal. Terminou toda sua
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instrução nesta cidade onde é atualmente professora. Em 1997, seu primeiro romance The Song of
Darkness [a canção da escuridão] recebeu o Prêmio literário Grande Prêmio da República do Senegal
.
B- Pseudônimos utilizados para as professoras entrevistas em Campinas- SP
1- Aminata; 2- Nafissatou; 3- Mame; 4- Aicha e 5- Aissatou
1- Aminata
Aminata Sow Fall (1941-). Sua inspiração é fundamentalmente social como é
reconhecido o em sua primeira obra, Revenant, 1976, confirma-se em A greve de Battu, Dacar, 1979
no qual denuncia os sistemas que marginalizam os pobres em benefício de uma minoria elitista. . 2Nafissatou
Nafissatou Dia Diouf (1973 -) Nasceu em 1973, no Senegal. Estudou Logística
Industrial e Línguas Extrangeiras Aplicadas na Universidade Michel de Montaigne. Mora em Dacar e
tem participado de diferentes eventos de literatura como parte de sua formação. Entre suas numerosas
publicações se sobressaem: Retour d'un si long exil et autres nouvelles, (2001); "Balade virtuelle
autour de la planète francophone", (1999); Sables Mouvants, (2000) e Cirque de Missira (2001).
3- Mame
Mame Younousse Dieng . Foi professora do ensino primário e mais tarde Diretor de
escola, é aposentada agora. Vive em Dacar (1998). Ela escreveu uma das primeiras obras na língua
senegalesa Wofo, intitulado “Aawo bi”. Também traduziu o hino nacional senegalês para o Wolof,
durante a independência do Senegal, e escreve poesia nessa língua. Publicação: Feu do en de L'ombre
[a sombra no fogo]. Dacar: NEAS, 1997.
4- Aicha
Aicha Diouri (1974-) A escritora Aicha Diouri morroquina-senegalesa de origem
marroquina, embora nascida em Dakaar, Senegal, em 1974. Realizou seus estudos primário e
secundário na capital senegalesa e ainda encontrava-se estudando na escola do Sagrado Coração
Dacar, quando publicou sua primeira obra. O passe de Mauvaise, Dacar: Edições Khoudia 1990.
5- Aissatou
Aissatou Diagne Deme - Escritora senegalesa, bacharel em Técnicas Administrativas de
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Gestão. Durante algum tempo estudou na Faculdade de Direito, antes de começar a trabalhar como
Secretária de uma empresa de advogados. Dirige atualmente uma Instituição de Prevenção de
enfermidades e uma empresa de produtos locais "A casa do consumidor senegalês.” Obra publicada
:Les échos du silence Sénégal [os filhos do silêncio do Senegal]: Les Nouvells Editions Africaines du
Sénégal, 1999.
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APÊNDICE E - ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA GESTORES
Parte 1 - A IMPLEMENTAÇÃO
1- Primeiro, gostaria que me dissesse qual o seu nome completo, sua formação e qual era função na
Secretária de educação?
2- Você poderia relatar como foi que a discussão sobre a questão racial teve início na Secretária de
educação?
3- Por que a Secretária escolhe a questão do negro? Em que ano, com qual governo?
4- E como é a participação do movimento negro? Ele participa nesse processo? Como?
5- Você considera que houve momentos de tensão nas discussões desse tema, na implementação
dentro da Secretária? Como eles se revelavam?
6- Houve alguma experiência nacional que inspirou vocês? Como é que foi definido o processo?
Parte 2 - A EXECUÇÃO
1-Que tipo de trabalho vocês fizeram com os professores?
2-Como os professores reagiam a essa oferta da Secretária de cursos com esse enfoque?
3- Quanto tempo você coordenou o trabalho e como ele se estruturou?
4-Quantas pessoas fizeram/fazem parte da equipe ?
5-A Secretária avaliou essa experiência?
6-E você considera que essa política tem/teve visibilidade dentro da Secretária de educação?
7- Mudaram Secretários, teve alguma ruptura no processo ?
Parte 3 - A CONTINUIDADE
1- Quando ocorreu à mudança de governo, vocês tiveram algum processo de renegociação da política
ou ela continuou sem nenhum problema? Quem participou desse processo de negociação?
2-Você considera que a política dentro da Secretária foi fortalecida ou ela se manteve do mesmo
jeito?
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APÊNDICE F - FICHA DE ENTREVISTA PARA PROFESSORES
Identificação:
NOME:
LOCAL ATUAL DE TRABALHO:
LOCAL DA ENTREVISTA:
DATA DA ENTREVISTA:
TELEFONES PARA CONTATO
ENDEREÇO:
DE ACORDO COM AS CATEGORIAS DO IBGE, COMO VOCÊ SE CLASSIFICARIA?
( ) BRANCA ( ) PRETA ( ) PARDA ( ) AMARELA ( ) INDÍGENA
Parte 1 - A FORMAÇÃO
1. QUAL A SUA ESCOLARIDADE ? FEZ CURSO SUPERIOR, QUAL? QUANTO TEMPO
ATUA NA EDUCAÇÃO INFANTIL, QUAL É A SUA FUNÇAO? FALE UM POUCO DE
SUA FORMAÇÃO.
Parte 2- O CURSO
1. QUANDO FOI SUA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA COM CURSOS DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES? TRATASSEM DA TEMÁTICA DO NEGRO?
2. DE QUEM FOI A INICIATIVA DE PROMOVER O CURSO?
3. ONDE O CURSO ACONTECEU?
4. QUAL FOI A ABORDAGEM DO CURSO? VOCÊ GOSTOU?
5. COMO VOCÊ CONSIDEROU QUE FOI A ORGANIZAÇÃO DO CURSO?
6. PARA QUEM O CURSO ERA DESTINADO?
7. VOCÊ SE LEMBRA DE QUEM PARTICIPOU DO CURSO? QUANTAS PESSOAS ERAM?
8. QUAL O CONTEÚDO DO CURSO?
9. VOCÊ PERCEBEU REAÇÃO DIFERENTE ENTRE PROFESSORAS BRANCAS E NEGRAS
DURANTE O CURSO?
10. DESTES CONTEÚDOS OS QUE MAIS CHAMOU SUA ATENÇÃO? PORQUE?
Parte 3- AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
1. TER FEITO O CURSO AJUDOU EM SUAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS? COMO?
2. VOCÊ SE RECORDA DE TER VIVIDO ALGUM CONFLITO DE ORDEM RACIAL COM
SEUS ALUNOS ANTES DO CURSO?
3. E DEPOIS?
4. VOCÊ COLOCOU SEUS CONHECIMENTOS EM PRÁTICA? COMO?
5. QUAL FOI A REAÇÃO DAS CRIANÇAS DIANTE DO TRABALHO?
6. CONSIDERA QUE AS CRIANÇAS BRANCAS REAGIAM DIFERENTE DAS CRIANÇAS
NEGRAS? COMO ERA A REAÇÃO DE CADA UM DOS GRUPOS?
7. QUE TIPO DE RECURSOS VOCÊ UTILIZOU DURANTE O TRABALHO?
8. VOCÊ ACHA QUE O CURSO AJUDOU VOCÊ A DISCUTIR OUTROS TIPOS DE
DISCRIMINAÇÃO ALÉM DA RELATIVA AO NEGRO? QUAIS?
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APÊNDICE G – ROTEIRO PARA IDENTIFICAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS
Pesquisadora: Lucimar Rosa Dias/ Programa: Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da USP/ Bolsista Internacional da Fundação Ford/ Orientadora: Profª Drª: Denice
Barbara Catani/ Título da Pesquisa: Formação de Professores e cursos de combate ao racismo.
Um desafio pedagógico
1-REGISTRO DAS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDADA PELO SEU GRUPO E/OU POR
VOCÊ.
Data do primeiro contato:
1-Descrição da experiência:
1 duração/período/ ano em que foram realizados
2 iniciativa/instituições
3 Apoios institucionais
4 Instituição responsável
5 Pessoa responsável/coordenação
6 Âmbito/ público- caracterização (quantidade, funções, tipos de escolas, locais das escolas, lugar da
experiência)
7 Natureza da experiência/ curso/palestra/seminários
8 Metodologia
9 Conteúdos/objetivos
10 Bibliografia utilizada
11 Dificuldades enfrentadas:
12 Resultados satisfatórios:
13 Forma de avaliação da experiência
14 Tipos de registros
2-Registrar as formas de acesso às informações:
1 Tipo de fonte
2 Depoimento
3 Material
4 Localização da fonte
3- Pessoas que forneceram os dados:
1 nome:
2 local atual de trabalho/função:
3 telefones
4 formação:
5 função na instituição no período da experiência:
4- Em sua cidade existem órgãos governamentais responsáveis por desenvolver políticas de promoção
da igualdade racial? Se sim onde eles se situam (Secretárias/ fundações/ etc) e desde de quando
funcionam? Quais partidos lideravam a gestão quando estes órgãos foram criados?
5-Outras observações:
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ANEXOS
O trabalho ainda se compõe de um volume à parte, onde se encontram os documentos
coletados e as entrevistas.
ANEXO 1 - Proposta de Educação do governo popular de Mato Grosso do Sul – 1999/2002 –
Série Fundamentos Políticos Pedagógicos – Escola Guaicuru , 24p.
ANEXO 2- Minuta do Programa de Superação da Exclusão Social e das Desigualdades
Raciais – Governo do Estado de Mato Grosso do Sul. 2002, 23p.
ANEXO 3- Documento enviado pelo Movimento Negro do Mato Grosso do Sul para o
governador José Orcírio dos Santos- O Zeca do PT, em 17/11/99, 4p
ANEXO 4 – Série Calendário da Cidadania (Subsídios para aulas especiais) n.02 Negr@:
vivendo novas lições de etnia, 10p
ANEXO 5- 1º. Congresso Estadual da Constituinte Escolar – Texto Base do Plano de
Educação para a Rede Estadual de Ensino – Mato Grosso do Sul construindo uma educação
cidadã pra toda sua gente. Campo Grande – MS / 2001 (material parcial – capa e contra-capa,
Índice de temas, apresentação, introdução, páginas referentes ao tema: Combate ao racismo
nas escolas de rede pública estadual, capa da programação). 11p
ANEXO 6 – Documento – Reunião com o Secretário 23/04/2004. Este documento foi
utilizado para a equipe apresentar os trabalhados desenvolvidos pela gestão ao secretário.
Consta de : objetivos, objetivo geral, principais objetivos da gestão, atribuições da gestão e
ações realizadas pela gestão). 4p
ANEXO 7 – Caderno Temático trabalhado na Constituinte Escolar - Mato Grosso do Sul.
SED. Educação: Etnias Indígenas e Negros. Caderno n.02. 3º. Momento - Constituinte
Escolar - construindo a escola cidadã. nov.2000 [Série Consituinte Escolar].30p.
ANEXO 8 – Documento relativo ao 2º. Momento da Constituinte Escolar no qual constata-se
a ausência do tema sobre o combate ao racismo (material parcial – capa, apresentação e
sumário). 3p
ANEXO 9 – Documento “Ações Desenvolvidas”, não está especificado seu objetivo. Nele
constam ações desenvolvidas pela gestão de processos em educação para a igualdade racial de
1999 a 2003. 3p
ANEXO 10 - Documento abaixo-assinado, apresentado pelo Grupo Tez após sua
participação no 3º. Momento da Constituinte Escolar, datado de 15/11/2000. 7p
ANEXO 11 – Cópia do Diário Oficial de Mato Grosso do Sul ano XXIII n.5596 de
19/09/2001, no qual consta a Resolução/SED n.1506 de 18/09/2001 que trata da criação do
Comitê de Educação para a População Negra de Mato Grosso do Sul (CEPONE) 1p.
ANEXO 12 – Cópia da Ata do Grupo TEZ n. 10 de 11 de 2000 que trata do caso do qual
decorre a proposta de um curso de formação para professores para o combate ao racismo na
escola. 3p.
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ANEXO 13 – Cópia da Carta enviada pelo Grupo TEZ a Escola X, propondo o curso de
formação de professores, datada de 15/11/2000.4p.
ANEXO 14 – Cópia do Projeto coordenado e desenvolvido pela Professora Ana Lucia da
Silva Sena e por outras professoras da Escola CNEC- Oliva Enciso, junto à crianças da
Educação Infantil datado de 1998. 7p.
ANEXO 15 – Documento sem título elaborado pela gestão de processo para educação para a
igualdade racial. Consta de : objetivos, objetivo geral, principais objetivos da gestão,
atribuições da gestão e ações realizadas pela gestão, 2p.
ANEXO 16 – O roteiro da pesquisa respondido pela Secretaria de Estado de Educação do
Mato Grosso do Sul, sobre o curso analisado.4p.
ANEXO 17 – Relatório produzido pela professora Fatou sobre o Projeto “Trabalhando as
diferenças”, desenvolvido junto a crianças. 9p.
ANEXO 18 – Entrevista com a professora-técnica Irinéia Lina Cesário. 2p.
ANEXO 19 – Entrevista com a professora-técnica Ana Lúcia da Silva Sena.3p.
ANEXO 20 – Entrevista com a gestora Benedita Marques Borges.5p.
ANEXO 21 – Entrevista com a gestora Dina Maria da Silva.3p.
ANEXO 22 – Entrevista com a gestora Nilda da Silva Pereira.2p.
ANEXO 23 – Entrevista com a gestora Tanea Mariano.4p.
ANEXO 24 – Entrevista com a professora Mariama. 5p.
ANEXO 25 – Entrevista com a professora Abibatou. 8p.
ANEXO 26 – Entrevista com a professora Ken. 4p.
ANEXO 27 – Entrevista com a professora Fama. 5p.
ANEXO 28 – Entrevista com a professora Fatou. 12p.
ANEXO 29 – Relatório Módulo I Educar Para a Igualdade – Formação de educadores da
Rede Municipal de Educação de Campinas sobre o tratamento da temática racial/étnica – 04 e
05 de julho de 2003, solar das andorinhas – Esse material não pode ser reproduzido
integralmente. Documento disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação de
Campinas. Elaboração CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades. 38p.
ANEXO 30 – Relatório Módulo II Educar Para a Igualdade – Formação de educadores da
Rede Municipal de Educação de Campinas sobre o tratamento da temática racial/étnica – 29 e
30 de agosto de 2003, solar das andorinhas, SP – Esse material não pode ser reproduzido
integralmente. Documento disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação de
Campinas. Elaboração CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades.39p.
ANEXO 31 – Relatório Módulo III Educar Para a Igualdade – Formação de educadores da
Rede Municipal de Educação de Campinas sobre o tratamento da temática racial/étnica –
31de out. a 1º. De nov. de 2003, solar das andorinhas, SP – Esse material não pode ser
reproduzido integralmente. Documento disponibilizado pela Secretaria Municipal de
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Educação de Campinas. Elaboração CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades. 68p.
ANEXO 32 – Notícia retirada do site da Secretaria Municipal de Educação de Campinas
sobre a entrega das bonecas étnicas de pano. Documento disponibilizado pela Secretaria
Municipal de Educação de Campinas. 1p.
ANEXO 33 – Comunicado SME/FUMEC n.05/2004 sobre a nomeação dos primeiros
educadores étnicos.1p.
ANEXO 34 – Lista com os títulos dos livros que compuseram a Biblioteca Étnica. 9p.
ANEXO 35 –Documento Guia para o V congresso Municipal de Educação (Cópia retirada
da Internet). O V Congresso Municipal de Educação ocorre de dois em dois anos e visa
discutir os trabalhos desenvolvidos na rede municipal de educação e as propostas e projeções
para os próximos anos. O evento é destinado a profissionais de educação das unidades
educacionais dos Núcleos de Ação Educativa Descentralizada (Naeds) e ocorreu de 05 a 07 de
dezembro de 2006. 7p.
ANEXO 36 - Entrevista com a gestora Sueli Gonçalves. 7p.
ANEXO 37 – Entrevista com a Ex- Assessora de Assuntos Étnicos da Secretaria Municipal
de Educação de Campinas. p.10.
ANEXO 38 - Entrevista com a monitora Aicha.13p.
ANEXO 39 - Entrevista com a professora Aminata.13p.
ANEXO 40 - Entrevista com a monitora Mame.9p.
ANEXO 41 - Entrevista com a monitora Nafissatou. 9p.
ANEXO 42 - Entrevista com a professora Aissatou. 7p.
ANEXO 43 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência do Centro de Estudos da Cultura Negra
(CECUN) 8p
ANEXO 44 - Folder referente ao curso realizado pelo Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino
Superior (NUPES) 2p.
ANEXO 45 - Notícia sobre o curso desenvolvido pelo NEAB- UFSCAR 1p.
ANEXO 46 - Material sobre a experiência do Instituto de Pesquisas e Estudos AfroBrasileiros (IPEAFRO) 2p.
ANEXO 47 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência do Programa de Educação Sobre o
Negro na Sociedade Brasileira (PENESB).17p.
ANEXO 48- Roteiro de pesquisa sobre a experiência da Fundação Centro de Referência da
Cultura Negra/ Grupo de educação. 3p.
ANEXO 49 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e a Fundação Centro de Referência da Cultura Negra/ Grupo de educação.
2p.
ANEXO 50 - Folder sobre a experiência desenvolvida em Uberlândia. 2p.
ANEXO 51 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência desenvolvida pela Secretaria
Municipal de Educação e Cultura de Ituiutaba. 5p.
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ANEXO 52 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência da Universidade Estadual de MaringáDepartamento de Ciências Sociais. 3p.
ANEXO 53- Folder sobre a experiência desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre as Relações Raciais e Educação (NEPRE). 3p.
ANEXO 54- Folder sobre a experiência desenvolvida pelo Centro de Estudos Afro-orientaisCEAO e CEAFRO- Profissionalização e Cidadania e Secretaria Municipal de Educação de
Salvador. 3p.
ANEXO 55- Informação sobre experiência desenvolvida pela Faculdade de Formação de
Professores de Goiana em parceria com a DJUMBAY. 2p.
ANEXO 56- Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Relações Raciais e Educação (NEPRE).
3p.
ANEXO 57- Informações recebidas sobre a experiência desenvolvida pelo NEN- Núcleo de
Estudos Negros. 2p.
ANEXO 58 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência da Secretaria da Educação do Estado
da Paraíba. 9p.
ANEXO 59- Informação sobre experiência desenvolvida pelo Instituto Brasileiro
Araguainense (IABA). 1p.
ANEXO 60 - Roteiro de pesquisa sobre a experiência desenvolvida por Lourenço Cardoso.
7p.
ANEXO 61- Marcha Zumbi dos Palmares. Documento: Por uma política nacional de
combate ao racismo e à desigualdade: Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela
cidadania e pela vida – Brasília, Cultura Gráfica e Editora Ltda, 1996. 37p.
ANEXO 62 - Documento sobre a Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra
(SMACON) 19p.
ANEXO 63 - Documento que traz a política nacional de promoção da igualdade racial
estabelecida pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
29p.
ANEXO 64 - Lista de endereço dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros.9p.
ANEXO 65- Roteiro de pesquisa exploratória organizado por Maria Aparecida (Cidinha) da
Silva. 8p.
ANEXO 66- Relatório sobre o Programa Memória e Identidade: Promoção da Igualdade na
Diversidade MIPID, produzido por Sueli Gonçalves, 18p.
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