O FILHO DO SR. JOÃO FOI PRESO Fernanda Vieira de Oliveira 1 O filho de Sr. João foi preso, avisou um menino que estava na rua e viu o rapaz ser posto no camburão, sob o comando de vários adjetivos que saíam da boca do policial militar, palavras que os moradores já se acostumaram a escutar da boca dessas “autoridades”, mas que não precisamos manchar nossa breve narrativa transcrevendo tão tristes comentários. O pai desesperado e atordoado é orientado por um vizinho que já passou pelo mesmo drama, e esse diz a que delegacia o pai deve dirigir-se. E lá vai o pai, gastando em um táxi o dinheiro que não tem, chegando lá, em sua inexperiência com esse estranho mundo de autoridades fardadas e armadas, se sente perdido e se põe a fazer o que mais irrita uma autoridade, começa a perguntar pelo seu filho. Passadas algumas horas intermináveis para um agoniado e perdido pai, finalmente ele consegue saber que seu filho foi preso em flagrante por tráfico de drogas, seja lá o que isso signifique. O Sr. João não sabe, mas existe uma lei que diz que a prisão do seu filho deve ser comunicada em 24 horas ao juiz e ao defensor público 2 . Não sabendo disso, o pai procura um advogado, ou melhor, é encontrado por algum na porta da delegacia. Novamente começa a gastar dinheiro que não tem na esperança desesperada de ter seu filho em casa em 24 horas, como acontece nos casos dos ricos que se vê na televisão que têm habeas corpus 3 julgados no meio da madrugada. Pensa inocentemente que basta ter um advogado para que seu filho logo esteja em casa. 1 ‐ Coordenadora da Comissão Jurídica do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Mestranda em Relações Internacionais pela Universidad de Buenos Aires (RA). 2 Art. 306 e parágrafos do CPP alterado pela Lei 11.449/07 : “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada. § 1o Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. § 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas. “ 3 Art. 5°, inciso LXVIII, da Constituição Brasileira de 1988: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". Também não sabe esse pai o que significa seu filho ser preso e autuado em flagrante delito por tráfico de drogas, conduta ilícita atualmente regulada pela Lei 11.343/06 em seu art. 33, que prevê uma pena mínima de 5 anos de reclusão em regime inicialmente fechado. 4 Defensor público ou advogado particular as previsões para o filho preso do Sr. João e para toda a família são totalmente negativas. O pedido de liberdade provisória feito pelo advogado contratado e pago a custas de algum empréstimo ou com a venda de algum bem que foi adquirido a duras penas foi indeferida, negada, o rapaz continuará preso. A Lei 11.343/06 em seu art. 44 5 proíbe a concessão de liberdade provisória para o crime de tráfico. Da negativa da concessão da liberdade provisória fundamentada exclusivamente na vedação do art. 44 da Lei 11.343/06 caberá a impetração de habeas corpus ao Tribunal de Justiça que provavelmente será negado. Além disso, terá a família do rapaz preso que pagar ao advogado por mais esse trabalho ou recorrer à Defensoria Pública que se debate desesperadamente em meio à falta de recursos financeiros e humanos para que possa atuar com qualidade e eficiência, obviamente sem muito sucesso. E a família por algum meio consegue impetrar o pedido de habeas corpus, chega o dia da sessão de julgamento no Tribunal de Justiça e a família comparece inteira. O Presidente da Câmara nega provimento, o que significa que o pedido não foi concedido, os familiares do rapaz se entreolham sem saber o que aquilo significa, sendo esclarecidos por alguém, resumidamente, seu amado filho continuará preso. A família do rapaz já sem recursos financeiros, na realidade nunca teve recursos reais, tem que se conformar em ter seu filho atendido pela defensoria pública. 4 Art. 33 da Lei 11.343/06: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.” 5 Art. 44 da Lei 11.343/06: “ Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.” Ser atendido pela Defensoria Pública significa, em primeiro lugar, que o primeiro contato da defesa com aquele que deve ser defendido será no dia da Audiência de Instrução e Julgamento. Considerando o preceituado no art. 396 e 396A do Código de Processo Penal que o juiz ao receber a denúncia ordenará a intimação do acusado para apresentação de defesa preliminar no prazo de 10 dias onde o acusado poderá arguir preliminares, oferecer documentos, arrolar testemunhas, especificar provas que pretende produzir, ou seja, defender-se da acusação contra ele apresentada. Como o Defensor Público irá aceder a informações que obviamente não constam do auto de prisão em flagrante sem sequer falar uma única vez com o seu “assistido” (nomenclatura usada pela Defensoria Pública de Minas Gerais). Essa ausência de contato entre defesa e acusado em geral culmina com uma peça processual padrão e com a defesa arrolando as mesmas testemunhas que a denúncia, ou seja, os policiais que efetuaram a prisão. Pobre rapaz, pobre duas vezes, pobre por não ter dinheiro e pobre por estar condenado à famosa “defesa técnica”, que considero o modo mais cruel de negar a alguém o direito de ser defendido das acusações a ele imputadas. Um “jeitinho” do “Estado” ter a consciência tranquila por haver garantido o direito à defesa e ao contraditório. Diante disso nos perguntamos onde está o juiz e o promotor que não se manifestam diante dessa situação clara de ausência de defesa real? O promotor de justiça, fiscal da lei, só fiscaliza a lei nesses casos para ter certeza que o perigoso elemento chamado traficante será condenado e o juiz já tem a condenação pronta na sua cabeça antes mesmo da Audiência de Instrução e Julgamento. Na verdade, a existência da Audiência de Instrução e Julgamento, onde supostamente o acusado seria ouvido é uma mera formalidade, ele não é ouvido de fato e nem mesmo suas testemunhas são ouvidas de fato. As conhecidas testemunhas de conduta, já que é muito difícil em uma comunidade pobre que alguém testemunhe a favor de um suposto traficante, por medo de represálias policias que o judiciário convenientemente ignora existir, não são levadas em consideração para nada pelo juiz, nem mesmo no momento de dosimetria da pena. Em contrapartida, o depoimento dos policias responsáveis pela prisão recebem total crédito e o chamado “levantamento da vida pregressa” feito pela polícia civil, cheio de “disseram”, “falaram”, mas tiveram medo de se identificar atestando que o tal acusado é conhecido traficante da região é recebido com o mesmo peso que as revelações do Evangelho foram recebidas pelos cristãos. São verdades absolutas, incontestáveis, não importa o número de testemunhas que por algum milagre a família do acusado consiga dizendo o contrário do que está escrito naquelas folhas. As sentenças se parecem mais com cópias uma das outras sempre com os mesmo jargões técnicos, alterando apenas o nome da vítima do aparato repressor estatal. Prolatada a sentença, supondo que o nosso caro filho do Sr. João foi condenado à pena mínima de 5 anos de reclusão, não recebendo a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33 § 4 6 por ter dito em seu interrogatório não ser a primeira vez que vendia drogas, além de constar no seu levantamento da vida pregressa que é conhecido dos seus vizinhos por vender drogas, apesar dos depoimentos dos vizinhos no processo dizendo o contrário, entendeu o juiz que o acusado se dedica a atividades criminosas não sendo merecedor da aplicação da causa de diminuição de pena supracitada. Sentenciado e após ser devidamente intimado da Sentença, o rapaz informa que deseja recorrer da mesma, conforme orientação de seus companheiros de cela, advogados práticos que muitas vezes são a única assistência jurídica disponível. De seis meses a um ano será a média de tempo de espera pelo julgamento do recurso de apelação, se defendido por um advogado particular, esse provavelmente subirá na tribuna para fazer a defesa do seu cliente no dia da sessão, o que não é sinônimo de um bom resultado, mas aumenta um pouco as chances do filho do Sr. João ter a pena reduzida, tudo também dependendo da Câmara em que for julgado o recurso. O filho do Sr. João, com certeza, aguardou cerca de seis meses até receber a triste notícia da condenação e aguardará mais seis meses ou um ano para o julgamento de seu recurso, nesse tempo acalentará a esperança de ter a pena reduzida. 6 Art. 33, § 4o da Lei 11.343/06: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.” Caso tenha sorte, seguramente sua pena será reduzida a um ano e oito meses e ele provavelmente estará preso há cerca de um ano e meio, faltando apenas dois meses para o integral cumprimento da pena. Mas tudo que é ruim ainda pode ficar pior. O filho do Sr. João não teve após sua condenação a expedição da Guia de Execução de Pena, o que significa que sua punibilidade não poderá ser declarada extinta pelo juiz da execução porque ele não tem processo de execução de pena. E pior, considerando o tempo que o mesmo está preso, com redução da pena ele já estaria no regime aberto e dependendo do juiz da execução poderia cumprir esses dois meses restantes em regime de prisão domiciliar. O Sr. João, seu filho preso e toda a família venceram a batalha, mas não a guerra, terão que continuar lutando contra a burocracia e insensibilidade do poder público. Pedir a expedição da Guia de Execução na Secretaria do Juiz que condenou, lutar pelo seu envio a Vara de Execuções Criminais, autuação, parecer do MP, despacho do juiz, filas intermináveis para pedir o andamento da execução e funcionários já insensíveis a todo aquele drama, exaustos por uma carga de trabalho impossível de suportar. Todo esse trabalho pode levar mais de dois míseros meses, enquanto isso, o filho do Sr. João estará preso e a crença de todas essas pessoas na famosa “justiça” irá esvaindo-se, desaparecendo pouco a pouco até que o único sentimento que restará é o antagônico, o de “injustiça”.