CIDADE, PENSAMENTO, CIDADANIA1 Luís Carlos Boa Nova Valério2 Resumo A formação ético-política de um professor - no que toca ao objeto específico desse simpósio, referimo-nos ao professor de filosofia3 – deve sua constituição unicamente à educação familiar, à formação escolar e intelectual e ao contexto sócio-cultural de sua vida? A princípio, estes três eixos, na vida de qualquer pessoa, seriam suficientes para justificar o seu perfil ético-político. E certamente o são, exceto pelo fato de que a vida de cada um é uma parcela de um imenso cenário ético-político que vai construindo-se ao longo das gerações. Pelo menos desde 1933, ano de lançamento de Casa Grande & Senzala, não precisamos mais especular a respeito das origens da nossa formação éticopolítica. Com esta obra, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, respectivamente, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, o “genoma” do espírito brasileiro parece ter sido decifrado, definitivamente. Nesse breve trabalho, pensamos sobre algumas “mazelas” que cercam os afazeres do professor de filosofia, seu pensamento, e suas relações sociais, naquilo que isto aproxima-se dos conceitos de cidade e cidadania. Talvez mais do que proximidade, entre pensamento/filosofia e cidade (êthos)/ cidadania (de forma fraca no Brasil atual – pois aparece apenas como um efeito do éthos4) o que há é uma intrínseca analogia. Discutir sobre a formação ético-política do professor de filosofia prevê interpor às nossas análises o exame atento às configurações sociais, intelectuais e espirituais do cidadão de um passado não tão distante. É surpreendente como ainda estão presentes nos cidadãos de hoje as formas intelectuais e morais do homem do Brasil colonial. Tais formas ressaltam-se ainda mais nas pessoas com maior instrução, aquelas que se mantêm mais próximas de um número maior de instituições do nosso país. O professor, o advogado, o engenheiro, o médico, os profissionais com formação superior de um modo geral, mais do que as pessoas menos instruídas, parecem ter mais salientes as formas genitivas de uma ética e política do nosso passado império-colonial. O eixo temático “A formação ético-política do professor”, deste VIII Simpósio SulBrasileiro sobre o Ensino de Filosofia, despertou em nós a necessidade de repensar os problemas que circundam as atividades do pensamento filosófico e do “habitar” um lugar de condição – seja a educação, a profissão ou a cidade - e exercer uma cidadania ou o controle de uma cidadela. Os mesmos paradoxos e dilemas que fazem parte da vida e atividade de um professor de filosofia (ref. 1) nos dias atuais, já estavam inscritos no perfil ético-político do brasileiro do tempo colonial e, depois, na República. Como lembra Antonio Cândido no prefácio a Raízes do Brasil, algumas formas destes paradoxos vicejam na alma brasileira dos dias atuais: o personalismo, a frouxidão das instituições, a falta de coesão social, a exaltação do prestígio pessoal com relação a privilégios, uma mania geral de fidalguia, a repulsa pelo trabalho regular e utilitário, a renúncia à personalidade por meio da cega obediência, as relações de simpatia no 1 Texto apresentado no “VIII Simpósio sul-brasileiro sobre ensino de filosofia: filosofia, formação docente e cidadania, maio de 2008, Universidade de Caxias do Sul. 2 Licenciado em Filosofia pela UFSM, e mestrando pelo PPGE da mesma instituição. E-mail: [email protected] 3 Neste momento, estamos pensando especificamente no professor de filosofia do ensino médio, pois é o profissional que a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) quer que seja aquele que trabalha mais estreitamente com a perspectiva de ensino de formação da cidadania e preparo para o mundo do trabalho. 4 Referimo-nos aos costumes. 1 exercício da cidadania como prova da nossa incapacidade de adotar com impessoalidade a figura do Estado, a cordialidade quase sempre não significando bondade, mas um modo de comportamento afetivo aparente, uma sociabilidade de fachada, e só para lembrarmos mais uma, a satisfação com o saber aparente. Assim, propomo-nos pensar de que maneira as contingências ético-políticas herdadas e (re) construídas por esse professor que está aí hoje intervêm na prática de estímulo e incitamento ao pensamento filosófico nos alunos. CIDADE, PENSAMENTO, CIDADANIA5 Luís Carlos Boa Nova Valério6 Nosso encontro neste “VIII Simpósio sul-brasileiro sobre ensino de filosofia” força nosso pensamento (filosofia) frente ao eixo geral “formação docente e cidadania”. Exige nossas posições (velhas ou novas) sobre ética, política, responsabilidade social, ecologia, bioética, educação ambiental, interdisciplinaridade. Nossa intenção, aqui, é pensar a ligação entre o que é e para que, fundamentalmente, serve uma cidade (por conseguinte, o que é a cidadania), e o pensamento, levando-se em conta o conceito de formação. Portanto, falaremos de um ponto de vista que especula a aproximação entre a formação de um indivíduo que é para a cidade (por isso, um cidadão), e o seu pensamento, quando este já constitui uma cidadela7. Assim, análogos e radicalmente unidos, o pensamento, a cidade e a cidadania precisam sempre ser repensados também a partir de sua origem. Cidade, pensamento, cidadania Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil (1983, p. 61) diz que “a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza”, porque se presta ao primado do poder. Ele lembra (ibidem) que Max Weber já teria constatado que tanto no Oriente Próximo, como na Grécia e no Império Romano, a criação de uma cidade tinha 5 Trabalho apresentado no VIII Simpósio Sul-Brasileiro sobre Ensino de Filosofia: Filosofia, Formação Docente e Cidadania / X Encontro de Cursos de Filosofia do Sul do Brasil, promovido pela Universidade de Caxias do Sul/RS, em maio de 2008. 6 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 7 O pensamento enquanto uma cidadela é como uma fortaleza construída com a finalidade de proteger um conjunto de doutrinas, crenças e saberes específicos da sua formação. Raros são os casos em que alguém é autor (a) da fuga aos limites bem guardados da cidadela. 2 o objetivo primeiro de instalar organismos de poder. Organizar, disciplinar e garantir a ordem das idéias e determinações de um regime de poder. Holanda esclarece (ibidem e ss.) sobre o tanto que diferiam portugueses e espanhóis quanto ao conceito de cidade. Enquanto estes tinham o senso grave de domínio e ordem às minúcias para estipular como deveria ser uma cidade (a geografia era geometricamente calculada e os propósitos eram superiores a simples feitorização), aqueles eram indiferentes ao local (cidade ou campo), pois priorizavam o comércio das riquezas fáceis. Nossas pequenas cidades do interior guardam a forma da planta-baixa romano-espanhola (a praça e suas ruas convergentes), mas a alma dos habitantes (descuidada e divergente) é portuguesa. Como devemos entender nosso pensamento cidadão, intelectual, artístico, religioso, a partir de um ou de ambos destes modelos colonizadores predominantes? Os sentidos e sentimentos que formam a complexidade de um caráter genitivo estão cristalizados no nosso modo de aprender e se envolver com o mundo, a despeito de o século XXI não parecer guardar mais nada em comum com a vida de duzentos, trezentos anos atrás. São muitas e difíceis as questões que se afiguram quando relacionamos o estudo e a vivência ética com a formação do pensamento e com a cidade que nos gerou, e que aguarda-nos como cidadãos. Ficamos, por ora, com um só dos problemas de tantas questões: nesse cidadão que nasce com a marca dos efeitos mestiços e antagônicos dos seus colonizadores, o que significa este espírito de deixa estar “não vale a pena” como escreveu Aubrey Bell (In: idem, p. 76)? Holanda cita o perfil feito por Bell dessa alma portuguesa, relacionando-o ao seu modo de estabelecer cidades. E o espírito que habita de forma desorganizada e desleixada um território (como foi o caso de Salvador com suas ladeiras e ruelas) é uma alma que vive a vida “muitas vezes sem alegria” (ibidem). O que certamente se cristalizou em nós daquele espírito ultramarino, e que se faz sentir quando tentamos driblar o mal-estar que surge entre o que queremos ensinar em filosofia e o nosso próprio dia a dia, é esse jeito meio blasé de passar pelas coisas, pelo pensamento, pela cidade e pela cidadania, defendendo o refrão do não vale a pena8. Tudo isto é a somatização de uma mesma raiz: uma alma desatenta para consigo e seu entorno. Não alheia ao real, mas realista somente no seu real. Revezante entre a 8 Vide os últimos grandes escândalos nacionais envolvendo o poder central: 2007 foi um ano marcante na revelação da profundidade da corrupção nos três poderes do nosso país. No entanto, o que aconteceu em resposta a isto? Nada. O povo e todas as organizações sociais reagiram com o mais passivo silêncio. 3 comodidade da aquisição fácil e a autopunição na forma de uma saudade. Não é por acaso que esta palavra só existe no português de lá e cá. Foi o mesmo Aubrey Bell, citado acima, no seu Portugal of the Portuguese, em 1915, que comparou o “desleixo” dessa alma com o mesmo tom da saudade. E Danilo Moraes, distante noventa e dois anos de Bell, dirá num dos versos da sua canção Herança Nordestina (de 2007) ”Que a saudade é nossa grande herança”. 9 . A propósito da alegria que falta nesta alma, como dizia Holanda, cada vez que pensamos em fundar nossos projetos mais importantes, é justamente esta “falta” que nos transforma em críticos grandiloquentes da nação, da família, da escola, da nossa própria vida, mas apartados do exigente trabalho da política. Críticos, mas apassivados, mergulhamos na saudade de uma pátria que nunca chega. Como diria a artista plástica portuguesa Alice Valente Alves, em seu texto Crenças e poder – do dever em não devir10, nós temos muita urgência em resolver nossos deveres, mas nenhuma pressa com os nossos devires. O devir do corpo, do pensamento, da cidade, da cidadania, da formação é um transcurso sem normas, sem obediência, sem grandiloqüência; não é um caminho para nos entreter, ou como diz Alice As crenças por poder ou o poder das atuais crenças em deveres obrigados a serem cumpridos a todo custo geram mitos, entretenimentos, distrações e passatempos (...) O entretenimento faz esquecer a forma genuína de se pensar direcionado a um bem comum a todos. O entretenimento não provoca prazer, mas sim gozo, é uma forma de fazer esquecer ou diluir o pensamento no menor esforço possível (...) O entretenimento vem do coletivo para o singular, é uma apreciação em frases feitas do coletivo dirigida ao singular, fazendo por imergir o singular numa moda disponível a ser usada como sugestiva e conveniente pelo poder que comanda o coletivo. (...) O entretenimento será inteiramente ligado ao dever, e é o que fica do que não foi possível criar (...) (2007, p. 4-5). Tal como já vínhamos depreendendo do clássico estudo da alma cidadã brasileira feito por Holanda, inclusive quando ele analisa com tanta profundidade a exacerbada cordialidade que habita o caráter do brasileiro (idem, p. 101 ss.), Alice, na citação acima, converge para os mesmos pontos de Holanda. Ela, contudo, traduz as relações de dever com a crença e o entretenimento, e quando diz que o entretenimento 9 Ver e ouvir In: http://www.youtube.com/watch?v=gAuU41kQuTE e ler a letra in: http://danilomoraes.musicas.mus.br/letras/326542/. Acessos em 15/03/08. 10 Única forma de acessar o texto de Alice: na guia pesquisar do Google coloque “Crenças e Poder - Do Dever em não Devir”; o primeiro link será o trabalho de Alice; é só abrir. Acesso em 12 de março de 2008. 4 “é uma forma de fazer esquecer ou diluir o pensamento”, isto se junta ao “desleixo” e a “saudade” e até mesmo a falta de alegria de que falavam Holanda e Bell. O pensamento que é uma cidade, que exerce uma cidadania sob os hábitos de uma formação de feitoria11, que se obscurece na comodidade da sua cidadela, só contribui para uma ética da infelicidade ou do entretenimento pueril. Porque nos sentimos muitas vezes constrangidos quando ensinamos filosofia, justamente porque parece que apenas a estamos comentando, cabe perguntar sempre: que fazemos quando lecionamos filosofia? Estamos buscando devires ou apenas reafirmando deveres? Nossa cidade, pensamento, cidadania e formação necessitam de respostas a estas questões. Referências Bibliográficas MORAES, Danilo. In: http://br.youtube.com/watch?v=gAuU41kQuTE (canção) e in: http://danilo-moraes.musicas.mus.br/letras/326542/ (letra). Acesso em 14 de março de 2008. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1983. 11 Leia-se: comerciadora. 5