RAÍZES DO BRASIL Sérgio Buarque de Holanda, 1936 CAPÍTULO 5 – O HOMEM CORDIAL Sérgio Buarque de Holanda nos faz uma célebre análise das relações sociais, políticas e econômicas brasileiras centradas na chamada “cordialidade” de nosso povo. Entretanto, como pode sugestionar o termo, não se trata de amabilidade e boa educação, mas sim de organizar tudo de acordo com nossas relações afetivas, próximas ao “coração”, isto é, de acordo com os vínculos pessoais que se estabelecem. Inicia a argumentação utilizando-se do texto de Sófocles, contando a história de Antígona e Creonte, onde este representa a noção da ordem pública e abstrata da Cidade, a lei geral; enquanto aquela representa o privado, a relação material e a lei particular. Há ali uma oposição entre o círculo familiar (privado) e o Estado (público). “E todo aquele que acima da Pátria coloca seu amigo, eu o terei por nulo. ” Creonte P. 141 Um exemplo histórico citado por SBH para elucidar a transformação que o mundo contemporâneo sofria é a dicotomia entre o antigo sistema produtivo das corporações e o moderno sistema industrial. As corporações caracterizavam-se pelo vínculo direto entre o proprietário e os artesãos, configurando, assim, um sistema de familiaridade, compartilhando-se o mesmo ambiente, as mesmas ferramentas, as mesmas funções. Há uma persistência destas características nas empresas familiares. O contraste verifica-se no moderno sistema industrial, caracterizado pela separação entre o dono dos meios de produção (fábrica, máquinas, ferramentas, matérias-primas e, especialmente dos capitais) e os donos da força de trabalho, os operários. Nele, há a supressão da intimidade entre patrões e empregados e, até mesmo, entre os próprios operários. Com a força da mecanização e a produção em série, o empregado passou a ser um mero número, executando mecanicamente suas tarefas. Perdeu-se a relação humana. No espaço dedicado à “Pedagogia Moderna e as Virtudes Antifamiliares”, SBH aponta graves dificuldades para a abolição da velha ordem familiar por outra, em que as relações sociais, fundadas em princípios abstratos (ordem pública), tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue. Constatava a persistência, em 1936, mesmo nas grandes cidades, de “famílias retardatárias”, que procuravam transmitir o poder de pai para filho, sendo estes preparados para agirem exclusivamente nos círculos da familiaridade e da cordialidade, no sentido de priorizarem as relações afetuosas. A educação colonial e Imperial era voltada para os filhos preservaremse no círculo doméstico. Tanto, que as relações de trabalho, afora a escravidão, davam-se sob a forma do clientelismo e na vinculação dos peões aos patrões, como se verificava nas fazendas do Rio Grande do Sul. A nova pedagogia do final do século XIX e início do século XX calcavase na ciência (psicologia, sociologia, antropologia), rompendo com a pedagogia persistente no Brasil. Nas novas concepções, a obediência só é estimulada para a adoção de ideias oriundas de especialistas no assunto e não na opinião pessoal de leigos, oriundos do ambiente familiar. A criança é preparada para desobedecer aos pontos falíveis e, assim, adquirir individualidade. Os novos tempos capitalistas traziam o individualismo e a impessoalidade. O próprio autor, SBH, era simpático ao liberalismo. A família patriarcal, herança histórica brasileira, gerava crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social. Entretanto, essa separação, de uma educação para a vida fora da família, representa as condições primárias e obrigatórias de qualquer adaptação à “vida prática”, isto é, fora do círculo familiar. A educação dos filhos de nossa elite deu-se através da crença na verdade inquestionável das posições do pai, do professor ou do religioso que lhes lecionava. Servia como mecanismo de reprodução da ordem social, da hierarquia patriarcal, da consolidação dos dogmas católicos e da construção dos valores sociais. Durante os séculos XVI ao XIX, praticamente os únicos personagens economicamente importantes e socialmente poderosos foram os grandes proprietários rurais. Monopolizavam os poderes políticos destinados a brasileiros (Câmaras Municipais), compartilhando-os com a Corte portuguesa até a independência e disputando-os com os remanescentes lusitanos no Primeiro Reinado (não podemos nos esquecer dos atritos entre brasileiros e portugueses por ocasião da nossa primeira Constituição, entre 1823 e 1824).Ao longo do Império, a oligarquia brasileira manifestou-se através do coronelismo, mantido ao longo da República Velha com seus votos de cabresto e com persistências visíveis em algumas regiões do país até hoje. Entretanto, foi na última etapa do Império, o Segundo Reinado, que o Brasil iniciou um processo de modernização. Com as ferrovias, os imigrantes europeus, as primeiras fábricas, a urbanização e a influência da cidade sobre o campo, uma série de mudanças começariam a se verificar no comportamento dos jovens brasileiros. No Império, os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos (São Paulo e Olinda), contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes (no sentido de voltados para a ordem pública, acima dos princípios afetivos). Os adolescentes arrancados de suas famílias e províncias têm seu “cordão umbilical” abruptamente cortado, rompendo os laços familiares e viabilizando sua evolução como homens públicos. No RS, poderíamos citar como exemplos Borges de Medeiros, Assis Brasil, Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos e a maioria da geração de políticos simpáticos ao positivismo, que construíram o estado durante a República Velha. Aplicaram uma visão científica da política, da economia e da sociedade, rompendo com grupos tradicionais da oligarquia e buscando a aproximação com grupos sociais novos, como os imigrantes alemães e italianos. Como definiu Joaquim Nabuco, expoente político pernambucano do final do século XIX: “em nossa política e em nossa sociedade (...) são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”. É exatamente nesta herança da tradição afetiva que SBH identifica a dificuldade dos detentores de posições públicas em distinguirem os domínios do privado e do público, gerando aquilo que Max Weber definira como PATRIMONIALISMO ESTATAL (vimos isso, por exemplo, quando estudamos o Convênio de Taubaté). Seguindo o pensamento weberiano SBH discorre sobre as diferenças existentes entre o funcionário patrimonial e o burocrata. O funcionário patrimonial pensa e age na gestão pública como assunto de seu interesse particular. A visão patrimonial determina a escolha dos homens que cumprirão as funções públicas de acordo com a confiança pessoal que mereçam. É o que chamamos de clientelismo. Já a visão burocrática é qualificada pela especialização das funções e pela garantia jurídica aos cidadãos, em uma escolha impessoal dos funcionários, de acordo com a capacitação para o cargo. Por exemplo, através da realização de concursos públicos. O Brasil é fundado historicamente nestes círculos familiares, que se tornaram o modelo de qualquer composição social no país. A contribuição brasileira para a civilização é exatamente essa cordialidade, marcada pelo fundo emotivo e avesso a qualquer ritualismo social. A cordialidade brasileira demonstra a aversão à aceitação da hierarquia superior, o desejo de estabelecer intimidade. Demonstramos esse desejo em relação às pessoas, aos objetos e, até, aos nossos santos. Um exemplo claro disso é a utilização do sufixo “inho”.