1 III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTORES DO TRABALHO: Nayra Veras de Araújo; Antônia Jesuíta de Lima Gestão participativa na política de segurança pública: desafios à prática de um policiamento participativo. RESUMO: A constituição federal de 1988 é o divisor de águas para o estabelecimento de um novo modelo de gestão que passou a primar pela participação da sociedade nas decisões governamentais, institucionalizando diversas formas de contribuição da sociedade para a governança e para a elaboração de políticas públicas. A experiência de participação popular, porém, tem encontrado resistências em algumas áreas, que apresentam dificuldades tanto na arquitetura da participação, como na cultura institucional, é o caso da segurança pública. O objetivo desse artigo é refletir sobre as dificuldades de implantação de uma gestão participativa na segurança pública, especificamente, na que hoje se convencionou chamar de policiamento comunitário. A reflexão proposta interage com uma discussão prévia sobre os conceitos e categorias que envolvem a gestão e as transformações pela qual tem passado à administração da coisa pública no cenário brasileiro. Introdução: Já na década de 1970 a arquitetura centralizada do Estado brasileiro começou a mostrar rachaduras, expressas com o surgimento dos movimentos sociais que se manifestavam com o caráter de denuncia. Na década seguinte, o fim do regime autoritário, o retorno à democracia e a elaboração de uma nova constituição forneceram elementos para se solidificar um novo modelo de gestão pública. Pautado no princípio da descentralização, o novo modelo conferiu instrumentos legais para a participação da sociedade e dos governos locais na gestão da coisa pública. Na década de 1990 a discussão partilhada era no sentido de compreender um modelo de gestão que atendesse as demandas do processo de redemocratização. Isto significa dizer, uma gestão que pudesse contemplar nas práticas governamentais o conceito de democratização e justiça social. A constituição federal de 1988 é o divisor de águas para o estabelecimento de um novo modelo de gestão, que passou a primar pela participação da sociedade nas decisões governamentais, institucionalizando diversas formas de contribuição da sociedade para a governança e para a elaboração de políticas públicas: plebiscitos e referendos, audiências públicas, tribunais populares. Além disso, proporcionou a ampliação e valorização do poder local, ampliando a participação dos municípios na administração da máquina estatal e criou conselhos mistos reunindo Estado e sociedade civil onde os orçamentos participativos, conselhos e fóruns são os principais exemplos. A experiência de participação popular, porém, tem encontrado resistências em algumas áreas, que apresentam dificuldades tanto na arquitetura da participação, como na cultura institucional, é o caso da segurança pública. O objetivo desse artigo é, portanto, refletir sobre as dificuldades de implantação de uma gestão participativa na segurança pública, especificamente, na que hoje se convencionou chamar de policiamento comunitário. Esta reflexão, porém, não será possível sem uma discussão prévia sobre os conceitos e categorias que envolvem a gestão e as transformações pela qual tem passado à administração da coisa pública. Dessa forma o artigo está estruturado em duas partes, com vistas a atender os objetivos propostos. O trabalho não pretende esgotar as possibilidades analíticas para o tema, ao invés disso se propõe a ser um espaço para levantar questões sobre a prática de policiamento comunitário. 2 Descentralização, gestão social e participação: novos princípios da gestão pública. O fim do regime autoritário no Brasil trouxe para cena pública uma sequência de três novos elementos que passaram a conduzir a gestão dos bens públicos. “No sentido mais especifico, Gestão é compreendida como a administração de serviços, programas, projetos, que se fundamentam em decisões e tomadas deliberadas de políticas governamentais” (FERREIRA, 2005, p.51). O primeiro elemento a se destacar da sequência é a descentralização municipal. Durante o governo militar as decisões eram tomadas pelo governo central, que representava a fonte exclusiva de autoridade política. Governadores e prefeitos foram destituídos de base de autonomia própria e deste modo, estados e municípios apenas acatavam as decisões vindas de cima, ou se concentravam em formular projetos de solicitação de recursos para o governo federal. Este modelo de gestão não conseguia atender as especificidades regionais o que dificultava a efetividade do sistema público. Com o retorno da democracia e a implantação de princípios descentralizadores os municípios adquiram autonomia para gerir o espaço local. Nas décadas de 70 e 80 houve o predomínio da agenda de descentralização que passou a ser vista como um processo virtuoso geradora de inovação no setor público. Nos países egressos de experiências autoritárias, maioria dos países latino-americanos, a descentralização passou a ser entendida enquanto dimensão essencial da democratização. Na década de 1990 na nova agenda a discussão era sobre os constrangimentos e vicissitudes da descentralização, os efeitos perversos de reformas passam a ser apontados e a descentralização passa a ser analisada como um espaço para corrupção: os estados e municípios vistos como local de Clientelismo e ineficiência. (MELO, 1996). Os resultados obtidos, portanto, não foram apenas benéficos como pode se pensar a primeira vista, este processo implicou na concorrência dos municípios. Como se fossem grandes empresas privadas visando atrair clientes, os gestores municipais disputavam por investimentos do mercado visando o desenvolvimento local, este processo foi denominado por Melo como hobbesianismo municipal. O processo de descentralização política, que é um movimento histórico em curso no mundo desde, pelo menos, a década de 80 (MELO, 1996) e faz parte, portanto de um processo mais amplo que recruta cada vez mais a participação da sociedade em gerir os problemas sociais e que representa mudanças no paradigma de gestão pública. “A nova percepção de gestão tenta romper com o paradigma do centralismo e do fragmentalismo, consequentemente remete-nos a ampliar a visão da gestão, a qual tem sido restrita a administração e gerência do campo privado” (FERREIRA, 2005, p.52). A descentralização ofereceu suporte para se pensar em um segundo elemento, que é o investimento na gestão social, isto porque “o cruzamento entre a gestão social e a descentralização política oferece perspectivas particularmente interessantes” (DOWBOR, 1999, p.39). Assim, o segundo item fator, na discussão da gestão pública pós-ditadura, é o investimento na gestão social, a centralidade da gestão pública até então era pautada no econômico. Não se falava em políticas voltadas para o social, mas para determinadas ações que visavam superar o atraso, como por exemplo, a pobreza que era vista como um entrave ao progresso econômico. As políticas de habitação, saneamento básico, assistência social, educação eram formuladas, financiadas e avaliadas por agências federais. É a partir do final da década de 1980, com o processo de redemocratização brasileiro que se começa a falar de uma gestão social, “a descentralização passou a ser um componente inquestionável e imprescindível do referencial de propostas de reforma na área social” (ARRETCHE, 1997, p. 21). Isto significa dizer que o investimento humano em formação, saúde, educação e cultura passaram a ser pensados como necessários para o progresso econômico, como diz Dowbor “a dimensão social do desenvolvimento 3 deixa de ser um complemento, uma dimensão humanitária de certa forma externas aos processos econômicos centrais, para se tornar um dos componentes essenciais do conjunto da reprodução” (1999, p. 34). O terceiro fator diz respeito à participação da sociedade na gestão da coisa pública. Desse princípio resultou a institucionalização de diversos mecanismos de participação tais como conselhos e fóruns. “Esses espaços e processos de participação têm o potencial de ampliar a capacidade da sociedade civil e o Estado operarem em suas respectivas esferas específicas, além de reuni-los de forma solidária em direção à efetiva solução dos problemas sociais” (MACAULAY, 2005, p.149-150). A participação da sociedade como instrumental para dar poder ao cidadão e aprimorar os serviços públicos, através de um engajamento autônomo da sociedade e da estabilidade das instituições garante o que se denomina de parceria entre sociedade civil de Estado. Macedo (2005) lembra que cabe a sociedade civil a participação ativa e crítica na formulação de políticas sociais; a fiscalização e a exigência de qualidade na execução dessas políticas; denuncia de atos que violem as leis implantadas. O conceito de Sociedade Civil, por sua vez, já passou algumas modificações ao longo dos anos. Tornou-se objeto de elaboração teórica a partir dos anos 70, na luta contra o regime ditatorial. Durante o regime militar a expressão sociedade civil vai ser utilizada como sinônimo de participação e organização da população civil na luta contra o regime ditatorial (GOHN, 2005; DAGNINO, 2002). “Este cenário estimulou o surgimento de inúmeras práticas coletivas no interior da sociedade civil, voltadas para a reivindicação de bens, serviços e direitos sociopolíticos, negados pelo regime político vigente” (GOHN, 2005, p. 71). Do ponto de vista teórico o conceito de sociedade civil passou a ser utilizado como sinônimo de algo bom e positivo e contrapunha-se ao Estado. A partir de 1985 começa a se alterar o significado atribuído à sociedade civil, os movimentos sociais perdem centralidade, surgindo uma pluralidade de novos atores, decorrentes de novas formas de associativismo. Ao longo dos anos 90, o campo da sociedade ampliou-se, na prática e nos discursos. A cidadania foi incorporada nos discursos oficiais e resignificada em direção a idéia de participação da sociedade civil, de exercício da responsabilidade social dos cidadãos, porque passou a tratar não só dos direitos, mas também dos deveres. Assim, no novo cenário a sociedade civil se amplia para se entrelaçar com a sociedade política. Desenvolvendo-se o novo espaço público denominado público nãoestatal, aonde irão se situar os conselhos, fóruns, redes e articulações entre a sociedade civil e representantes do poder público para a gestão de parcelas da coisa pública. Significativo ainda, nessa teia de reformulações que tem passado a gestão pública, são os conceitos de empowerment, ou empoderamento, conceito que remete ao “resgate do poder político pela sociedade” (Dowbor, p.41) e de accountability, que refere-se a “responsabilização do representantes da sociedade em termos de prestação de contas(idem). A expressão "empoderamento" da sociedade, que remete a atuação da coletividade como protagonista de sua própria história é um termo recorrente que entrou para o jargão das políticas públicas e dos analistas, neste novo milênio. Trata-se de processos com a capacidade de gerar artifícios de desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos - os novos educadores sociais – atores fundamentais na organização e o desenvolvimento dos projetos. O novo processo tem ocorrido, predominantemente, sem articulações políticas mais amplas, principalmente com partidos políticos ou sindicatos. (GONH, 2004) 4 O termo accountability, por sua vez, diz respeito à capacidade de resposta dos governos, ou seja, a obrigação dos oficiais públicos informarem e explicarem seus atos e a capacidade das agências de impor sanções e perda de poder para aqueles que violaram os deveres públicos. Policiamento Comunitário: desafios para uma gestão participativa na segurança pública. A gestão participativa na área de segurança pública, entre outras formas tais como conselhos e ouvidorias, tem se consubstanciado na proposta de uma polícia comunitária. Em contraposição ao modelo tradicional, em que a força tem sido o principal instrumento de intervenção, sendo usada às vezes de forma excessiva e não profissional, o modelo de polícia comunitária sugere novos critérios de prática, que se afastam do uso exclusivo da força. A discussão sobre a implantação de um policiamento comunitária inclui-se na pauta de reformulação do sistema de segurança público brasileiro, que tem sido assunto frequente no cenário político. A reformulação se assenta em alternativas para atender a questões sobre o planejamento da política de segurança pública, investimento financeiro depositado, o padrão de policiamento existente, o uso excessivo da força dos policiais e unificação das polícias civis e militares. No Brasil o modelo tradicional de gestão de segurança pública, pautado na separação clara entre formulação e implementação das ações, vem sendo gradualmente substituído nos últimos anos por uma nova forma de gestão que reforça a necessidade de se reunir às contribuições de todos os atores envolvidos nas ações de segurança pública, entre eles: o Estado, as instituições, os profissionais que as executam e a sociedade. Exemplo disso é a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública, dentro da estrutura do Ministério da Justiça; a estruturação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP); a implementação do programa nacional de segurança do cidadão (PRONASCI), a realização da primeira conferência nacional de segurança pública; a criação de ouvidorias que contam com a participação da sociedade para fiscalizar a ação dos profissionais e os conselhos estaduais, existentes em alguns estados. Essas ações fazem parte de um esforço mais amplo de adequação, ou mesmo de transformação de uma segurança pública, que remete a ações visando proteger o estado, para uma segurança-cidadã, que se volta para a garantia dos direitos dos cidadãos. É desse esforço de transformação que tem sido frequente a proposta de efetivação de uma polícia comunitária. É necessário investir em uma concepção de polícia cidadã, que é um conceito que se desdobra numa série de dimensões. Por exemplo, a questão da participação comunitária, que inexiste na polícia tradicional, uma vez que ela não foi concebida para isto, é um fator permanente na polícia cidadã, pela aproximação de seus integrantes à população e pelo comprometimento com a segurança pública no local de trabalho, surgindo aí o policiamento comunitário (Senasp, 2009, p. 124). O termo policia comunitária se refere a uma postura estratégia no modelo de funcionamento policial. A terminologia teve origem nos anos 60 e 70 do século XX nos EUA, mas teve sua ascensão na Inglaterra. Nos anos 80 e 90 foi difundida pelos países ocidentais mais desenvolvidos. Este modelo de trabalho começou a ser divulgados e postos em prática nos anos 90 pelos órgãos de segurança pública da China continental através de diversas medidas de ordenamento da segurança pública na sociedade. No âmbito do Ministério da Justiça brasileiro é entendido como, 5 Isto significa dizer que o conceito de polícia comunitária gira em torno de um elemento central, que é a parceria com a comunidade. A proposta associa e valoriza dois fatores principais, a saber: a identificação e resolução de problemas de defesa social com a participação da comunidade e a prevenção criminal. Nesta parceria a comunidade tem o direito de ser consultada, de atuar como denunciante, e também participar das decisões sobre as prioridades das instituições de defesa social, e as estratégias de gestão. Isto porque “para se chegar à resolução dos problemas, as polícias precisarão fazer uma articulação de ações, compreensão e identificação do seu núcleo, buscando melhores soluções” (BENGOCHEA, 2004, p. 120). A prática de policiamento comunitário significa, pois a promessa aos cidadãos de maior acesso a policia, maior participação nas tomada de decisões, um policiamento que seja singular as especificidades de cada comunidade, e maior comprometimento com a prevenção e redução da criminalidade. Porém, a prática de um policiamento comunitário esbarra em alguns entraves que, a nosso ver, são desafios à sua efetivação. O primeiro deles diz respeito à imagem das organizações policiais. No Brasil, historicamente a polícia esteve associada ao Estado, com a função de manutenção da ordem interna, a atuação da polícia foi sempre afastada da interação com a sociedade. O regime militar acentuou ainda mais esse afastamento, que não conseguiu ser superado com a volta da democracia. No Brasil de hoje, a imagem social das organizações policiais se tornam a cada dia mais associada à violência, corrupção e abuso de autoridade. A imagem social da polícia se revela absolutamente relevante ao se propor um modelo de polícia comunitária porque o sucesso do policiamento comunitário depende de um processo retroalimentado pela confiança da comunidade na polícia e vice-versa. Neste aspecto, uma polícia que não tem credibilidade perante a sociedade dificilmente terá condições de dialogar no sentido de estabelecer soluções para os problemas da comunidade. A edificação de um sentimento de confiança dos cidadãos na polícia e a legitimidade de suas atividades dependem, neste ponto, da absorção de novos valores pelos seus agentes e em uma mudança de atitude da prática policial que deve ser condizentes com uma polícia que tem as comunidades como grande parceira na prevenção dos problemas de crime locais. Sobre isto vale citar os dados da pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, “O que pensam os profissionais de Segurança Pública no Brasil” que ouviu profissionais de segurança pública sobre alguns fatores referentes à sua prática profissional que indicaram a pouca confiança da população nas instituições de segurança pública, aspecto citado por 54,3% dos entrevistados como fator muito importante para a efetividade do sistema de segurança público brasileiro. Outro desafio diz respeito a distinguir uma prática de policiamento comunitário preventivo de práticas assistencialistas que se desvia de uma prática eminentemente policial. Por exemplo, campanha contra as drogas para prevenir o tráfico é ou não função da polícia? Este desafio se traduz na reflexão sobre qual a verdadeira função da polícia, ou ainda no que se entende por policiamento preventivo. Como desafio de se construir uma gestão mais participativa aos moldes de uma polícia comunitária, apresenta-se ainda o desconhecimento que a sociedade tem do funcionamento do sistema de segurança pública, “a participação em todo o processo de gestão requer, por parte da sociedade, o conhecimento da realidade municipal, estadual e/ou nacional no que diz respeito às decisões políticas e econômicas que refletem na realidade local” (p. 52). No diagnóstico de Beato (1999) existe uma grande ignorância no Brasil em relação ao sistema de Justiça Criminal em geral e às organizações policiais em particular. Este desconhecimento não decorre apenas do desprestígio do tema da Justiça 6 Criminal nos meios acadêmicos, mas também de certo insulamento das próprias organizações do sistema. Macauly (2005) adverte que no Brasil, na área do policiamento, as organizações da sociedade civil foram criadas voltadas para dois objetivos, primeiro cumprir o papel de fiscalização das atividades da polícia, principalmente com relação a denúncias de abusos contra os direitos humanos; e segundo o de trabalhar em parceria com a polícia local, através de conselhos formados em associação com a comunidade, para distribuir os recursos de policiamento de acordo com as necessidades e prioridades locais. Destarte, a proposta da polícia comunitária implica numa mudança de paradigma no modo de ser e estar a serviço da comunidade e, conseqüentemente, numa mudança de postura profissional perante o cidadão. O conceito de polícia comunitária insere-se como mecanismo para o estabelecimento de uma polícia cidadã. A polícia cidadã, ou de forma mais ampla a segurança pública para a cidadania diz respeito à garantia das condições de acesso aos direitos dos cidadãos com segurança. Nesta abordagem, que prima pela participação da sociedade na resolução dos conflitos, a polícia comunitária é aquela que se aproxima da comunidade e deve estar presente em todos os bairros de forma real ou potencial, atuando com ênfase na prevenção dos delitos, especialmente naqueles locais de maior vulnerabilidade social e de elevado nível de conflitos. A constituição brasileira de 1988, popularmente identificada como constituição cidadã, conferiu, entre outras garantias, capítulo próprio para a segurança pública, definida como "dever do Estado, direito e responsabilidade de todos". Determinando em seu artigo 144 as missões das polícias brasileiras, no qual às polícias militares ficaram responsáveis pelo "policiamento ostensivo fardado e a preservação da ordem pública". Entretanto, conforme atenta Macauly, “Ordem pública” e “paz social” constituem os referenciais dominantes, enquanto a figura do cidadão permanece ausente – mesmo em um documento que articula a mais completa declaração de liberdades civis (2005). Experiências de organização comunitária para fins de prevenção criminal revelam que o apelo à noção de comunidade pode ser expressão de solidariedade e identidade em torno de projetos comuns, mas pode assumir conotações excludentes, ocultando manifestações de intolerância, que colidem com a perspectiva de uma sociedade democrática e pluralista. A comunidade se converte em “olhos e ouvidos” da polícia, reproduzindo os padrões seletivos de atuação do sistema penal e fortalecendo a lógica repressiva da prevenção via exclusão (CANUTO, 2008, p.47). Este fato revela a ambivalência do conceito de participação social em ações de prevenção criminal em torno do “policiamento comunitário”. Isto porque enquanto a proposta permanece apenas no plano filosófico, ou seja, como modelo que aproxima policiais e cidadãos, ela é prontamente aceita. Entretanto, na prática ela se revela um modelo sem contornos definidos. Macaulay (2005), ao investigar sobre as modalidades de engajamento da sociedade civil e do Estado na área de segurança do cidadão no Brasil, constata que polícia desconfia do monitoramento de suas atividades pela sociedade civil, e a cultura do policiamento comunitário ainda não está enraizada. Este fato evidencia que na prática a palavra parceria é inadequada para de se referir ao relacionamento da sociedade como a prática policial, a sociedade como fiscalizadora da ação policial ganha contornos de adversária e não de parceira. Devido a sua natureza filosófica, a polícia comunitária pode ser interpretada de formas diversas, variável que depende da visão de cada departamento de polícia, da 7 disponibilidade de recursos e das características e demandas próprias de cada comunidade. Disto resulta que a implementação dessa filosofia demande um processo longo e complexo, muitas vezes sem uma nítida clareza sobre quais objetivos a serem alcançados e seu real impacto na prevenção e controle do crime. Neste sentido, Canuto (2008) vai argumentar que no esforço de realizar uma gestão mais participativa algumas ações se concentram na atuação do profissional de relações públicas, com vistas a estabelecer contatos da polícia com a comunidade para legitimar suas práticas e melhorar a sua imagem. Outras experiências refletem uma concepção de participação restrita à idéia de organização de redes de vigilâncias entre visinhos com o intuito de converter os cidadãos em instrumentos do controle policial. Soma-se a esses fatores a resistência de alguns policiais em se engajar na atuação de uma polícia comunitária, isto porque incorporam a tese de que polícia é para prender ladrão e desta forma ações preventivas, por exemplo, que inibam o surgimento de novos bandidos, ficam de fora do seu espaço de atuação. Assim, o policiamento comunitário tem sido incorporado apenas como princípio norteador da missão policial. Canuto (2008) destaca que “as iniciativas mais consistentes de policiamento comunitário são aquelas que souberam incorporar a metodologia do „policiamento orientado a resolução de problemas‟, é a metodologia policial voltada para a solução de conflitos atinentes à segurança pública e a comunidade, canalizando a participação dos cidadãos na identificação, análise e planejamento de respostas aos problemas da área” (CANUTO, 2008, p. 48). Macauly (2005) nos lembra que projetos de policiamento comunitário exigem a colaboração da população local e a participação de outros órgãos do aparelho estatal. “Faz-se necessária uma abordagem múltipla com vistas a melhorar, a um só tempo, a qualidade de vida, o capital social e a confiança dos cidadãos, bem como seu acesso à justiça e ao Estado de Direito” (2005, p.160). Sintetizando, maior desafio, entretanto dessa proposta ainda se remete em como tornar ela viável. Ainda é necessário maior precisão na definição das atividades e da metodologia de solução de problemas, que deve associar os objetivos a serem alcançados com o contexto mais amplo da polícia de resultados. Só assim será possível se avaliar e medir seu real impacto na prevenção e controle da criminalidade, e superar ou mesmo reduzir os desafios que acabam por colocar em risco a implementação desse modelo. Considerações finais Diante da exposição delineada nas páginas anteriores podemos considerar a prática de um policiamento comunitário significa em primeiro lugar repensar em que tipo de polícia se pretende ter, ou ainda se questionar sobre qual é a real função da polícia. Se considerarmos que a polícia deve agir para reprimir o crime e, portanto para atuar com bandidos, o tipo de controle que a sociedade deve ter sobre a atuação da polícia se limitará a fiscalizar o exercício indiscriminado da força. Se considerar, ao contrário que a polícia deve ter uma atuação preventiva, é necessário definir os contornos que se limitam a sua ação, pois o conceito de comunitário pode conduzir a ação da polícia para ações que incluem ensino de disciplinas voltadas para a cidadania e prevenção do uso de drogas nas escolas, intervenção direta junto a autoridades o melhoramento de vias e iluminação pública, na promoção e coordenação de encontros comunitários, na mobilização da comunidade em programas de proteção de bairros etc, extrapolando assim os limites de atuação da polícia. Ao se pensar em uma polícia comunitária deve-se ter em mente o postulado estabelecido pela constituição de que “segurança pública é um dever do Estado e 8 responsabilidade de todos”. A função da sociedade deve ser conduzida no sentido de vigilante da própria sociedade, sendo responsável por encaminhar á polícia os casos que merecem atenção por oferecer periculosidade pública. A polícia por sua vez deve se esforçar para atender aos anseios da sociedade, melhorando assim sua imagem. Aliás, apesar de termos afirmado que um dos principais desafios para a polícia comunitária é tornar ela viável este parece ser um desafio secundário que resulta da melhoria da imagem da polícia ante a sociedade. Pode-se dizer ainda que a efetivação de uma política de segurança pública mais participativa resulta do aprendizado da sociedade em como participar ativamente desse processo. Este fato, aliás, se inclui no processo mais amplo que está relacionado com o desenvolvimento da sociedade civil. Referências ARRETCHE, Marta T. S. O Sistema de proteção social brasileiro: em direção a um modelo descentralizado. São Paulo em perspectiva, São Paulo, vol.11, nº3, p.20-3, 1997. BEATO FILHO, Cláudio. C. Políticas Públicas e a Questão Policial. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, ano 4, nº13, p. 13-27,1999. BENGOCHEA, Jorge Luiz Paz. et al. A transição de uma polícia de Controle para uma polícia cidadã. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.18, nº1, p. 119-131, 2004. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. DOWBOR, Ladislau. A gestão social em busca de paradigmas. In: RICO, Elizabeth de Melo; RAICHELIS, Raquel. (Orgs.). Gestão Social uma questão em debate. São Paulo: educ., 1999, p.31-42. FERREIRA, Maria D‟Alva M. Gestão Democrática da Política de Assistência a Criança e o Adolescente no município. In: Serviço Social e Contemporaneidade, v. 2, nº3, 2005. Revista do departamento de serviço Social da Universidade federal do Piauí. p. 50-90. GOHN, Maria da G. O protagonismo da Sociedade Civil. São Paulo: Cortez, 2005. _____. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, São Paulo v.13, n.2, p.20-31, maio - ago. 2004. MACAULAY, Fiona. Parcerias entre estado e sociedade civil para promover a segurança do cidadão no Brasil. SUR - revista internacional de direitos humanos, ano 2, nº 2, p.146173, 2005. MELO, Marcus A. Crise Federativa, Guerra Fiscal e Hobbesianismo Municipal: efeitos Perversos da Descentralização?, São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação SEADE, v.10, nº, p.11-31, 1996. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. O que pensam os profissionais de segurança pública. Brasil, 2009.