Livro produzido pelo projeto Marcos Nicolau (Org.) Para ler o digital: reconfiguração do livro na cibercultura PIBIC/UFPB Departamento de Mídias Digitais - DEMID / Núcleo de Artes Midiáticas - NAMID Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas Gmid/PPGC/UFPB Coordenador do Projeto Marcos Nicolau Capa Rennam Virginio midiatização e cotidiano: Editoração Digital Marriett Albuquerque reflexões sobre as interações Integrantes do Projeto Danielle Abreu Fabrícia Guedes Filipe Almeida Keila Lourenço Luan Matias Maria Alice Lemos Marriett Albuquerque Rennam Virginio tecnomediadas EDITORA Av. Nossa Senhora de Fátima, 1357, Bairro Torre Cep.58.040-380 - João Pessoa, PB www.ideiaeditora.com.br Atenção: As imagens usadas neste trabalho o são para efeito de estudo, de acordo com o artigo 46 da lei 9610, sendo garantida a propriedade das mesmas aos seus criadores ou detentores de direitos autorais. M629 EDITORA João Pessoa - 2012 Midiatização e cotidiano [livro eletrônico]: reflexões sobre as interações tecnomediadas / Marcos Nicolau (org.). - - João Pessoa: Ideia, 2012. 1.857 kb / pdf. ISBN 978-85-7539-751-0 1. Comunicação. 2. Interações tecnomediadas. 3. Culturas midiáticas. 4. Midiatização. I. Nicolau, Marcos. UFPB/BC CDU: 007 midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 7 - Marcos Nicolau Sumário Prefácio: Midiatização e interações tecnomediadas ........... 08 A midiatização do cotidiano: da techné à técnica Wellington Pereira .................................................. 12 TV Digital Universitária: a midiatização pública do conhecimento Olga Tavares ......................................................... 28 Narrativas Transmídias: um estudo da franquia The Walking Dead Charles Cade José Glaydson Pereira Ed Porto Bezerra .................................................... 44 A falsa interatividade mercadológica e a negação da inteligência coletiva Emanuella Santos Jitana Cardins ....................................................... 70 Série, cartazes e fones de ouvido: a lógica da transmídia publicitária na midiatização Alan Mascarenhas Andréa Poshar Danielle Vieira ..................................................... 100 Capa Sumário A resenha cinematográfica online em tempos de midiatização: o caso Omelete João Batista Firmino Júnior .................................... 134 A Midiatização e a Multiconversação nas Redes sociais Ana Maria de Sousa Pereira Patrícia Medeiros de Lima ...................................... 155 Interações religiosas tecno-mediadas: ressignificação da religião no ciberespaço Odlinari Ramon Nascimento da Silva ....................... 182 Uso dos sites de redes sociais como serviço de atendimento ao consumidor na sociedade midiatizada: estudo de caso da Fan Page TIM Brasil Gustavo David Araújo Freire .................................. 204 Anonimato e violência no discurso midiatizado: desafios ao Marco Civil da Internet Giovanna Abreu ................................................... 234 O livro digital e a interdependência dos fatores da midiatização Rennam Virginio .................................................. 272 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Prefácio Midiatização e interações tecnomediadas A virtualização das relações humanas presente em determinadas pautas individuais de conduta baseadas nas tecnologias da comunicação, segundo Muniz Sodré, é um dos aspectos que confirma a hipótese de que a sociedade contemporânea rege-se pela midiatização. Para este autor, a midiatização deve ser pensada como um novo bios, no sentido aristotélico, uma espécie de quarta esfera existencial, com uma qualificação cultural própria ou uma tecnocultura. E não há como transitar pela sociedade moderna, sem que se isente de qualquer operação digital: nosso dinheiro, cada vez mais circula pelas maquininhas das lojas; nossos cartões de felicitações já são digitalizados através de e-mails; nossas reclamações e críticas a produtos e serviços, nossas compras e reservas são tecnomediadas; produções, ideias e opiniões, mobilizações e participações em fóruns, cursos e eventos; namoros e casamentos... o que mais nos falta participar via internet? E mesmo aqueles que acreditam estarem livres ou à parte dessa rede de interação midiática, não percebe que toda a vida a sua volta se articula com as redes invisíveis do ciberespaço, uma vez que está inserido em um novo bios, conforme ainda Sodré, instaurado sob o processo social da midiatização. Diante desse processo de significativa repercussão social da midiatização no contexto de nosso cotidiano é que se articulou pesquisa e discussão da temática, com a consequente produção desta obra, como parte dos estudos do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas (Gmid), do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC), da Universidade Federal da Paraíba. As pesCapa 9 - Marcos Nicolau Sumário quisas foram apresentadas no Seminário Midiatização e Cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas - SEMID 2012, evento organizado dentro das atividades do PROCAD na UFPB, nos dias 17 e 18 de setembro de 2012, que contou com a presença das professoras Maria das Graças Pinto Coelho e Josimey Costa, ambas do PROCAD do Programa de Pós-Graduação em Estudos Midiáticos (PPGEM), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, além de professores e mestrandos do PPGC. Esta obra é composta por 11 artigos. Os três primeiros são de autoria de professores, os 07 seguintes de alunos do Mestrado (PPGC/UFPB) e o último de estudante de graduação do Curso de Comunicação em Mídias Digitais – DEMID. Abre o livro o texto do professor Wellington Pereira, intitulado A midiatização do cotidiano: da techné à técnica. Trata-se de um ensaio que visa discutir o caráter da midiatização do cotidiano, ora privilegiando a técnica, ora a techné. O autor discute as formas que aparecem encobertas ou reveladas no exercício de midiatizar a vida cotidiana. No segundo artigo, TV digital universitária: a midiatização pública do conhecimento, a professora Olga Tavares procura repensar a TV brasileira sob a ótica da TV digital pública, mas especificamente, as TVs universitárias, procurando adotar o conceito de midiatização pública do conhecimento para expor a proposta de diferenciar a produção de conteúdos da programação e demonstrar os preceitos da comunicação colaborativa. As narrativas transmidiáticas ganharam características próprias no processo da midiatização com uma diversidade de experiências: é o que sustém o terceiro artigo do livro, intitulado, As narrativas transmídias: um estudo da franquia The Walking Dead. Nele, o professor Ed Porto Bezerra e os mestrandos Charles Cadé e José Glaydson Pereira, além de apontarem características inerentes às singularidades da história, tanto na TV quanto nas HQs, destacam a imersão e interação do público na trama através dos games e do ciberespaço. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas A partir do quarto artigo é a vez dos mestrandos do PPGC/ UFPB apresentarem seus textos, iniciando por: A falsa interatividade mercadológica e a negação da inteligência coletiva, de autoria de Emanuella Santos e Jitana Cardins. Para elas, o Facebook é uma empresa que seduz seus usuários através de seus discursos, mas na prática contradiz-se com ações manipuladoras. Alan Mascarenhas, Andréa Poshar e Danielle Vieira são autores do artigo Série, cartazes e fones de ouvido: a lógica da transmídia publicitária na midiatização, cuja abordagem trata das estratégias mercadológicas na atualidade. Na visão deles: “à medida que a comunicação e interação entre indivíduos é potencializada, novas configurações surgem no fazer publicitário, sobretudo nas mídias digitais”. O sexto artigo, intitulado A resenha cinematográfica online em tempos de midiatização: o caso Omelete, de João Batista Firmino Júnior, tem como temática a resenha cinematográfica presente no site Omelete, como uma experiência própria do processo de midiatização. Identificado como um espaço em aprimoramento, o site envolve um fluxo de comentários e de outras ações conjuntas (como programação de salas de cinema e participação em promoções). A midiatização e a multiconversação nas redes sociais é o sétimo artigo, elaborado por Ana Maria de Sousa Pereira e Patrícia Medeiros de Lima. A pesquisa busca analisar a construção das multiconversações nas redes sociais, a partir do uso que fazemos das ferramentas tecnológicas. O artigo de Odlinari Ramon Nascimento da Silva, Interações religiosas tecno-mediadas: ressignificação da religião no ciberespaço faz uma análise a respeito das mudanças ocorridas no campo religioso a partir do desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação. Responsável pelo oitavo artigo desta obra, Gustavo David Araújo Freire, escreve sobre o Uso dos sites de redes sociais como serviço de atendimento ao consumidor na sociedade midiatizaCapa 11 - Marcos Nicolau Sumário da: estudo de caso da Fan Page TIM Brasil, cuja temática é como o descaso enfrentado pelos consumidores junto aos serviços de atendimento ao consumidor das empresas tem levado, todos eles, a adotarem um novo comportamento na internet. O penúltimo artigo tem como título, Anonimato e violência no discurso midiatizado: desafios ao Marco Civil da Internet e foi escrito por Giovanna Abreu, em torno das questões sobre a midiatização, Marco Civil da Internet, crimes digitais e a questão do anonimato online. Por fim, o décimo primeiro e último artigo, elaborado pelo graduando Rennam Virginio, aluno de Mídias Digitais e Bolsita PIBIC de Iniciação Científica, tem como temática O livro digital e a interdependência dos fatores da midiatização. A partir dos fatores mercadológicos, humanológicos e tecnológicos da midiatização, Rennam faz uma análise dos ebooks, suas atuações e influências no mercado do livro digital. Esperamos que este livro possa contribuir com as pesquisas sobre midiatização, no contexto da comunicação e das culturas midiáticas, fornecendo luzes para novos estudos e aprofundamentos das questões aqui levantadas. Boa leitura. Marcos Nicolau Coordenador do Gmid/PPGC/UFPB eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas A midiatização não se confunde com a mediação, pois este tem o caráter auxiliar e tecnológico a partir de demandas predicativas, instauradas na necessidade de ratificar ações. A midiatização do cotidiano: da techné à técnica Wellington PEREIRA1 Resumo Este ensaio tem como objetivo discutir o caráter da midiatização do cotidiano promovido, ora privilegiando a técnica, ora a techné. Nesse sentido, ensaiamos uma discussão sobre as formas que aparecem encobertas ou revelados no exercício de midiatizar a vida cotidiana. Palavras-chave: Techné. Técnica. Midiatização. Cotidiano. Introdução O processo de midiatização se caracteriza por um predicativo cultural, quer seja de ordem religiosa, quer seja estético-político. Midiatizar é procurar apreender algo através do auxílio de uma ferramenta lógica ou material. Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação - PPGC/UFPB. Coordenador do Grupo de Pesquisa Sobre o Cotidiano e o Jornalismo - GRPECJ. 1 Capa 13 - Marcos Nicolau Sumário Na mitologia, os deuses exercem um processo de mediação entre os homens, são porta-vozes de suas necessidades na adequação de seus atos à natureza. Os deuses não se colocam - no processo de mediação - no lugar dos homens, mas têm a função de adequar os seus pedidos de acordo com o imaginário de cada um deles. Deuses e deusas oferecem índices de compreensão, mas não a compreensão em si. O mediador ocupa sempre uma posição de neutralidade axiológica entre o sujeito e o predicado, ou seja: se coloca entre aquele que pratica a ação e o que o determina na ação. A mediação traduz o poder que tem um instrumento de provocar sintaxes – conexões – entre a razão teorética – a busca do entendimento – e o método – os instrumentos usados para se chegar ao que se deseja conhecer. Mediar é oferecer auxílio ao predicativo para a diminuição dos ruídos, da entropia de significados. É tradução. A midiatização é o contrário da mediação, pois sua função não é evitar os problemas de significação entre os campos dos saberes, mas “doar” possibilidades de interpretação. Na midiatização, o sujeito não tem como principal objetivo usar o predicado como instrumento auxiliar da compreensão, mas como instrumento de dominação, as- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas sim: o começo, o meio e o fim de uma cultura vêm determinados por uma cultura de per se: construída como forma dominadora até se tornar dominante. Embora o processo de mediação não possa ser lido fora de instâncias de poder, este depende da interpretação que o predicativo pode gerar em relação ao sujeito – enquanto na midiatização o que prevalece é “argumentação à la carte”. No mundo da vida, a mediação está para a techné assim como a midiatização para a técnica. Mas estes conceitos não dialogam independem de um efeito “maniqueísta” das interpretações, pois se entrelaça, julgam e subjugam as formas discursivas do cotidiano. Considerando a tradição filosófica ocidental – a partir dos gregos – poderíamos verificar o mito do Prometeu acorrentado (Esquilo) como uma primeira tentativa de entender as sutis diferenças entre techné e técnica. Nesse sentido, a palavra que une os deuses, os homens e a punição a Prometeu é revelação. Quando Prometeu rouba o fogo dos deuses e oferta aos homens, a importância não está no objeto (fogo), mas no processo de instauração (luz) da consciência dos humanos em relação ao seu mundo e ao divino. No mito prometeico, temos elencada a dualidade conceitual entre techné e técnica – para demonstrar que ambas se imbricam conceitualmente. O de transferir simples o poder de manejar o fogo aos homens é técnica: instrumento criado para realizar Capa 15 - Marcos Nicolau Sumário meios para atingir o fim. Aqui, estamos falando em emprego de ferramenta que auxiliam as habilidades manuais ou cognitivas para alcançar um determinado objetivo. Mas isso é apenas operacional. Noutra ponta de reflexão, aparece a techné encetada por Prometeu quando a revelação e autonomia da razão humana em relação aos deuses se dão através da dominação do fogo. Alguns filósofos chegam a determinar Prometeu como o pai da técnica, pois acabam esquecendo que além do poder de manipular o fogo os humanos foram revelados portadores de uma consciência que os tornou iguais aos deuses, não precisando pedir mais nada a estes. Este foi o problema absorvido na passagem da cultura mitológica à cultura técnica construída no renascimento e legitimada na modernidade. A techné – mal traduzida por técnica- pertence ao mundo das habilidades, portando da capacidade de revelação. Como revelação, os gregos tomaram todo processo artístico ou religioso, que exigiria uma liturgia reflexiva (Delfos, Pitonisa, Dioniso, Hermes) capaz de estabelecer o procedimento de “religar” (re-ligare) culturas. Aqui, temos a clara mediação entre o sensível e a epistème (o conhecimento racional codificado). Portanto, no cotidiano a techné corresponde ao processo de alinhamento entre o conjunto de instrumentos de um determinado campo de habilidade (escrita, dança, música, engenharia etc.) para revelar significados, pois na techné os instrumentos não escondem a natureza dos fins. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas “A técnica é mais fraca do que a necessidade”. Esta frase de Esquilo, em Prometeu acorrentado, joga por terra aquela máxima de que “os fins justificam os meios”, porque as técnicas governamentais ou industriais não podem estar acima da ética. Quando Esquilo afirma ser a técnica mais fraca que a necessidade, isso demonstra que as necessidades humanas não devem ser tratadas a partir das técnicas, sobretudo, de que necessidade técnica elas estabelecem, inclusive considerando os contextos históricos. A técnica não é boa, tampouco má: é instrumental. A techné é reflexiva, reveladora. O grande problema é quando a técnica deixa de ser meio e passa a ser fim, tornando-se mais forte que as necessidades humanas (invertendo a lógica do Prometeu acorrentado). Para Marx este é o início da idade técnica, no qual o homem está longe-de-si e mais perto do outro-de-si – as técnicas do modo de produção do capital. Mas, na idade da técnica, que começa quando o universo dos meios não tem em vista nenhuma finalidade (nem mesmo o lucro), a relação se inverte no sentido de que o homem não é mais um sujeito que a produção capitalista aliena e reifica, mas um produto da alienação tecnológica, a qual se organiza como sujeito e faz do homem um predicado seu. (GALIMBERTI, 2006, p. 17-18) O desafio para os cientistas sociais é recuperar o homem em meio a tantos sistemas técnicos no cotidiano, pois ele tem os seus valores dependentes das técnicas, Capa 17 - Marcos Nicolau Sumário como nos ensina Galimberti, em seu, livro à página 19. A técnica não deve ser demonizada, acusada de empobrecer a autenticidade da obra de arte. Ela deve ser compreendida enquanto técnica, a partir de um exercício pedagógico capaz de fazer o homem pensar na sua essência e aplicabilidade. Se não exercitarmos esta reflexão, teremos a instrumentalização do cotidiano e uma nova forma de mitificação: a técnica pela técnica. O primeiro exercício para não sucumbir à instrumentalização do cotidiano pode ser entendido através dos escritos de três pensadores: Martin Heidegger, Wittgenstein e McLuhan – sem importamos com uma cronologia das ações desses homens. Heidegger (2008) vai dizer que a maneira mais fácil de sucumbir ante as seduções da técnica é considerada neutra, porque isso nos torna cego em relação à essência da técnica. Com Heidegger, aprendemos uma coisa simples, mas de extremo valor: não existe técnica neutra. Assim, podemos arriscar a afirmação: toda a essência está em uma de suas utilizações e causas determinadas a priori. A essência da técnica é determinada pelas formais causais de seu emprego, ou seja: desde a filosofia Aristotélica aprendemos que existem quatro causas para o emprego das técnicas: 1) material; 2)formal; 3) final; 4) eficiente. Essas causas são modificadas na sociedade moderna e pós-moderna para que a técnica (aqui lato sensu) se eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas legitime como um fim em si (uma metafísica da comercialização e do controle social). Sua essência não está no pré-advento de suas aplicabilidades, mas no “pro” aquilo que se insere na natureza provocando uma “naturalização” dos sentidos humanos. A técnica, sobretudo a midiática, foi vista por McLuhan como uma extensão dos sentidos humanos – no sentido do alargamento da visão, audição e tato (ficaram de fora o paladar e o olfato). Na concepção do pensador canadense, ao contrário do que pensou Heidegger, a técnica dos meios de comunicação de massa exigia – antes de tudo- o aprimoramento dos sentidos humanos para a decodificação das mensagens. Assim, McLuhan aproxima – com sua classificação de meios quentes e meios frios – de um exercício técnico próxima do humano, o que seria da ordem da techné. Com Wittgenstein, um filósofo da linguagem, vamos aprender que a interferência da técnica no cotidiano se dá a partir das Formas Tecnológicas da Vida. Esta me parece uma síntese apropriada das ideias de Heidegger e McLuhan, porque o importante é entender quais são as práticas e os modos de ação que cada técnica impõe à vida cotidiana. O importante em Wittgenstein – sobretudo para aqueles que pesquisam a relação Mídia e cotidiano – é que as Formas Tecnológicas da Vida são sustentadas por uma tradição epistemológica que reforça a necessidade Capa 19 - Marcos Nicolau Sumário de validar o conhecimento em um regime classificatório e capaz de construir representações válidas. Mas todo o sentido das Formas Tecnológicas da Vida é produzido pelos sistemas tecnológicos – mesmo que sejam orgânicos, trabalhando no sentido fisiológico, ou seja, cibernéticos (no sentido da utilização da eletricidade, átomos, velocidade, para reconstituí-la os corpos ou as formas do habitat humano). Assim, o processo de midiatização do cotidiano não pode ser lido mais através da dicotomia techné e técnica, mas a partir das interfaces tecnológicas impostas pela herança da Formação Tecnológica da Vida que nos legou a modernidade. O desafio é – através de uma pedagogia da vida cotidiana procurar saber a que galáxia tecnocultural pertence esse ser Humano ad hoc (um Dasein do instante) que estamos construindo nesses exercícios de simulações da vida. 1 A tékhne do sujeito e a técnica da política Uma das formas de compreender a midiatização do cotidiano é observar as formas de construção dos sujeitos – através da tékhne – e dos sistemas políticos a partir das técnicas. As técnicas estabelecem uma midiatização dos sistemas de governo invocando um para-si e um “à vous”, como se toda ação social –mediada e midiatizada – exercida pelo poder obedecesse a dois princípios: 1) legitima- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas ção do poder – considerando as técnicas propagandísticas; 2) a doação das virtudes estatais aos cidadãos – ou seja, não pergunte, cumpra, aceite, reproduza que é para o vosso bem. Na midiatização, o trabalho de apresentação das virtudes do estado é um problema técnico, pois considera a manutenção dos sistemas capazes de promover a circulação dos ideais de governabilidade. Neste sentido, a técnica veste os sujeitos para que eles sejam média das formas de governabilidade: formação escolar, lógica do consumo, demandas de desejos estéticos instauradas pelo sistemas políticos. A técnica de alimentação dos sistemas políticos – no processo de midiatização do cotidiano – não se decifra apenas com uma hermenêutica das ideologias, mas através de um exercício pedagógico revelador de uma moldagem da mente e das vontades pessoais (BAUMAN, 2012). O problema na midiatização do cotidiano no âmbito da técnica do sistema político é a desnaturalização do sujeito, da perda dos índices que mostram os contornos históricos do imaginário de cada cultura, pois o sistema políticos em seus vieses partidários, econômicos, midiáticos – busca apenas apresentar a sociedade a partir de demandas criadas para si e “à vous”. A técnica esconde mais que revela. Quando revela traz em si um “à priori” que necessita ser decifrada por sistemas peritos: judiciário, médico, pedagógico, físico-matemático. Capa 21 - Marcos Nicolau Sumário Nesse processo, a técnica auxilia a criação de um sistema de midiatização do cotidiano que não obedece às “teologias” seculares, mas à nova ordem mercantil-cognitiva responsável pela apresentação do cotidiano como produto dos artefatos “eletroeletrônicos” e de suas retóricas. Na midiatização do cotidiano, as retóricas que possuem uma funcionalidade técnica são da ordem da sociabilidade – procura legitimar o para si e o “à vous” dos sistemas políticos ocidentais considerando padrões econômicos como determinantes dos valores de inclusão ou exclusão dos sujeitos “midiatizados” – na maioria das vezes – pela ideia de incompetência no tocante ao uso das riquezas oferecidas pela tecnologia. O tempo de midiatização do cotidiano pertence ao domínio das técnicas de legitimação do sistema político, através de um conjunto de tecnologias cujo objetivo é transformar o factual em um “continuum” sem caracteres históricos – capaz de prescindir das formas antropológicas do humano. A técnica pela técnica – no sentido heideggeriano – tem sido a acomodação de instrumentos – às vezes tomados como superiores – para difusão das injunções cotidianos, da “falha ontológica” do ser humano ante às inovações tecnológicas. Enquanto a técnica – no processo de midiatização do cotidiano – representa o “à vous” – uma fabricação de demandas “ofertadas” pelo estado e suas maquinarias eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas aos sujeitos, a tékhne representa o esforço do sujeito em recuperar a consciência de si e não para-si. A tékhne no cotidiano se perfaz quando os instrumentos –retóricos ou físicos – são usados para revelar e não acomodar os meios aos fins. Por isso, ela é da ordem cognitivo-pedagógico, provocando o sujeito a tomar consciência de si de outrem, como mostra Foucault (2010, p. 159): Vemos pois que há em Platão três maneiras de vincular, encaixar solidamente o que os neoplatônicos chamarão de catártico e político: vínculo de finalidade na tékhne política (devo ocupar-me comigo mesmo para saber, para conhecer, como convém, a tékhne política que me permitirá ocupar-me com os outros); vínculo de reciprocidade sobre a forma da cidade, pois, salvando-me, salvo a cidade e, salvando a cidade, me salvo...”. A techné é o exercício ontológico realizado pelo sujeito através do cuidado-de- si e da sociedade (FOUCAULT, 2010), com base numa ética da estética que privilegia todo o conjunto simbólico dos imaginários sociais. Mas este sujeito também é político, pois criando uma reflexão sobre si garante as habilidades necessárias para governar a cidade. O sujeito da techné exerce a difusão de sua essência (ousía) no espaço público, empregado os instrumentos mediadores com destreza clínica – não erradicando os problemas – mas procurando decifrá-los no desencaixe social. Capa 23 - Marcos Nicolau Sumário Na techné, a ênfase não está na simples apresentação dos fatos cotidianos – prerrogativa das técnicas midiáticas – mas no mostrar (monstrare, assombrar, espantar) filosoficamente as nuanças do viver em comunidade (quer seja urbana, quer seja rural) promovendo imbricações de técnicas culturais consideradas arcaicas com as tecnologias da pós-modernidade. Assim, podemos pensar que a função da techné é promover a harmonia entre o sujeito e a cidade ( entre o homem e a natureza) através do cuidado-de-si, obnubilado pela instrumentalização técnica que doa “à vous” fragmentos da realidade que substituem a realidade. 2 A techné e a técnica em relação às Teorias da Mídia Considerando a sistematização de uma Teoria da Mídia sistematizada por Harry Pross – seguindo os passos antropológicos de Ernst Cassirer (BAITELLO JUNIOR, 2010): 1) comunicação primária, 2) comunicação secundária; 3) comunicação terciária; podemos verificar que a técnica é pensada como auxiliar do item terceiro: Os meios terciários surgem com a eletricidade, com a criação de aparatos que transmitem mensagens para outros aparatos similares instantaneamente, ou remetem a mensagem gravada em suportes que somente podem se lidos por aparatos similares. Todos os que querem participar de um processo de comunicação terciária necessitam o acesso (ou a posse) aos eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas aparatos correspondentes. E a eletrificação, o cabeamento ou a construção de redes transmissoras, retransmissoras e captadoras tornam-se indispensáveis para o desenvolvimento da comunicação terciária. (BAITELLO JUNIOR, 2010, p.62). De forma geral, a citação reflete um entendimento “científico comum” –aquilo isolada- do que significa a midiatização enquanto processo apenas técnico. Pois é este “conectar” que reforça a construção de um cotidiano midiatizado pelo “à vous” como naturalizada das ofertas dos gostos e das formas de apreciação da natureza. Mas também é uma ordem discursiva para-si à medida que procura legitimar as demandas do estado: ideológica, educacional, política. Se a comunicação terciária se aproxima do predomínio da técnica no processo de midiatização do cotidiano, as comunicações primária e secundária estão mais próximas da techné – pois nelas o corpo-humano é a principal ferramenta para construção e desconstrução das realidades, das inscrições de mensagens em outros suportes a partir de uma biosfera – reconhecimento do habitat humano enquanto lugar de espécies e com um apelo mais sociocultural: Assim, a partir do telefone e da telegrafia, a radiofonia, a televisão e a rede mundial de computadores, a chamada www, constituem sistemas de comunicação terciários. Contudo, independente do grau de complexidade da mediação, primária, secundária ou terciária, sempre há um corpo no início e no final de todo processo de comunicação, afirma Harry Pross. Quer Capa 25 - Marcos Nicolau Sumário dizer, há aí uma comulatividade na passagem da primária para a secundária e da secundária para a terciária, a secundária contem a primária e a terciária contém a secundária e a primária. E isso não significa que a comunicação presencial seja a mais simples ou a mais fácil, e também não quer dizer que a comunicação terciária seja mais complexa por requerer maior número de etapas de mediações. Cada uma delas possui suas vantagens e desvantagens, seu potencial maior ou menor, sua melhor ou menos adequada aplicabilidade para cada determinada situação. (BAITELLO JUNIOR, 2010, p.63). À guisa de Conclusão Há de se pensar que –para efeitos didáticos – a midiatização do cotidiano se configura ora através da técnica – entendida com adequação de meios para determinados fins; ora se estabelece enquanto techné – a utilização de instrumentos para a criação e recriação de novos significados. Mas isto não quer dizer que técnica e techné sejam processos excludentes – impassíveis de convivência na vida cotidiana: ambos se legitimam na ordem da intencionalidade estético-econômica. A midiatização do cotidiano considerando apenas os aspectos instrumentais da técnica é um procedimento que esconde o caráter preconceituoso e hierárquico dos média com relação às culturas economicamente mais pobres – como se a tecnologias dos povos ricos fossem superiores às “técnicas dos menos civilizados.”. Na techné, o processo de midiatização não se dá através da superação e separação temporal entre meios e eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 27 - Marcos Nicolau fins, mas no exercício pedagógico de reconhecimento dos conflitos sociais. As técnicas podem ser consideradas sistemas simples “... redutíveis a seus componentes e às interações mecânicas entre eles...”. (Halévy, p.11, 210). Enquanto a techné é um sistema complexo, ultrapassando o analitismo cartesiano (o todo deve ser explicado por suas partes), promovendo a descoberta de novas camadas de significados preconizando uma relação noética - conhecimento, inteligência, espírito – (Halévy, p.14, 2010) entre os sistemas, os sujeitos e os sistemas sociais construídos por eles. Por tudo isso, que seja dito: a técnica é a midiatização da aparência; a techné promove midiatizações sobre o que se esconde no fundo das aparências. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2008. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis (RJ): Vozes. 1996. Referências BAITELLO JUNIOR, Norval. A serpente, a mação e o holograma: esboços para uma Teoria da Mídia. São Paulo: Paulus, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: WMF/Martinsfontes, 2011. GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade técnica. São Paulo: Paulus, 2006. HALEVY, Marc. A era do conhecimento: princípios e reflexões sobre a revolução noética no século XXI. São Paulo: Editora Unesp, 2010. Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas TV Digital Universitária: a midiatização pública do conhecimento Olga TAVARES2 Resumo Repensar a TV brasileira sob a perspectiva da TV digital pública, particularmente as TVs universitárias, de modo a aplicar o conceito de midiatização pública do conhecimento para trazer a proposta de diferenciar a produção de conteúdos da programação televisiva e, assim, cumprir com os preceitos da comunicação colaborativa que ora se instaura na cultura midiática. Palavras-chave: TV digital universitária. pública. Socialização do conhecimento. Midiatização Introdução A cultura midiática hodierna, no Brasil, não pode prescindir de repensar o papel da televisão sem deixar de considerar sua relevância na construção de uma cultura Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – PPGC/UFPB. Pós-Doutoranda em Comunicação na UFRJ. 2 Capa 29 - Marcos Nicolau Sumário televisiva que se instaurou no país desde a inauguração da TV Tupi, em 1950. A história brasileira dessas seis décadas se confunde com a programação da TV, no que concerne à adoção de comportamentos cotidianos, à homogeneização linguística e à pasteurização das práticas socioculturais. Com a inauguração da TV Digital, que privilegia, por enquanto, melhores qualidades técnicas, tem-se demandas novas que podem abrir espaço para que a televisão brasileira apresente novas propostas de produtos que tragam o diferencial conteudístico, que é uma discussão meramente acadêmica e que, por sua vez , merece destaque quando se fala em TV digital universitária. Portanto, nossa proposta é exatamente discutir a possiblidade de trazer ao fórum acadêmico a ideia de se repensar a televisão brasileira a partir de experiências que podem ser estudadas e trabalhadas pelo público universitário, convocando quadros discente e docente para a tarefa de se fazer, realmente, uma televisão que se almeja desde que ficou evidente que a função do meio, neste país, era fundamentalmente mercadológico, comprometido com o consumo e com a indústria do entretenimento – discussões que têm sido feitas sem que se chegue a nenhum consenso, tornando-as inócuas. Este momento se delineia como uma porta aberta para perspectivas favoráveis às mudanças que se esperavam em vão. Como a TV brasileira é um dos veículos de maior penetração midiática no país, o seu novo papel pode as- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas sociar-se à pretensão de uma socialização do conhecimento que tenha êxito, efetivamente, utilizando-se das novas ferramentas à disposição. A midiatização pública do conhecimento pode partir dos objetivos das televisões universitárias, cujos propósitos, conforme estabelece a Associação Brasileira de TVs Universitárias (ABTU), são o de contribuir para o aprimoramento dos profissionais do setor e para a melhor informação e formação do público telespectador; e entender a televisão brasileira como aquela voltada exclusivamente para o desenvolvimento da cidadania, a melhoria de qualidade de vida da população, o apoio à educação, o incremento à cultura regional, a democratização da informação e do conhecimento e todas as demais demandas preconizadas pelo artigo 221 de nossa Constituição. Midiatização Pública As práticas discursivas midiáticas, no Brasil, têm sido um grande campo de análise da televisão brasileira. Como exemplo, tem-se a grande mídia nacional pautando as novelas e seus enredos, que se confundem com a sociologia do cotidiano brasileiro, e muitos espaços midiáticos são ocupados por essas novas discussões dos comportamentos, vestuários e/ou valores de personagens, como fez a revista Veja (8/8/2012), com matéria de capa intitulada Vingança, sobre a atual novela da TV Globo, Avenida Brasil. Se for pesquisar no acervo digital da cita- Capa 31 - Marcos Nicolau Sumário da revista, desde a década de 80 que as novelas e seus personagens têm sido motivo de discussão nacional. Sem contar os inúmeros programas televisivos que dispendem muitas horas com esses mesmos assuntos em manhãs, tardes e noites de debates. Para Fausto Neto (2009), este é o conceito de midiatização: Trata-se da emergência e do desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade, alterando os atuais processos sociotécnico-discursivos de produção, circulação e de recepção de mensagens. Produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais. Grosso modo, trata-se de ascendência de uma determina realidade que se expande e se interioriza sobre a própria experiência humana, tendo como referência a própria existência da cultura e da lógica midiáticas. Então, as manifestações midiáticas são observadas sob essas premissas de modo a fornecer um quadro geral da própria cultura midiática que se tem no país. Essa ambiência midiática permite que se perceba a construção discursiva que se desenvolve através dos meios de comunicação que, por si só, contém sub-repticiamente uma formação ideológica previamente fortalecida pela mídia dominante. No entanto, com as novas conformações tecnológicas – portabilidade, mobilidade, funcionalidade, acessibilidade etc.-, esse perfil será modificado e a midiatização pública será possível, no sentido de combinar suas eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas propostas àquelas que a TV digital pública defende, por exemplo, como atender às necessidades da coletividade e abrir canais de cidadania. A multiplicidade de alternativas midiáticas aplicadas à TV digital universitária poderá ser a pauta das mudanças no setor televisivo nacional. E faz-se mister pensar a respeito de fato, tanto quanto já se organizar estratégias, parcerias e afins para que essas ideias sejam implantadas em tempo de assegurarem uma penetração significativa nas sociedades locais, a princípio, para que se estendam a todas as redes televisivas públicas do país, em um sistema que se configure profissional e capaz de preencher novas demandas, essas calcadas em cima dos novos aparelhos interativos que deverão interagir com a TV, tanto quanto fugir dos lugares comuns estipulados até hoje pela grande mídia, que pauta o cotidiano sociocultural brasileiro. Nesse caso, o conceito de Moniz Sodré (2009) serve de inspiração para aplicações que se direcionem à cidadania digital, quando ele diz que “midiatização (...) é a articulação do funcionamento das instituições sociais com a midia”, ou seja, é o que ele chama de “ethos midiatizado”, que “caracteriza-se pela manifesta articulação dos meios de comunicação e informação com a vida social”. E ele define assim essas contradições de hoje: Ou seja, os mecanismos de inculcação de conteúdos culturais e de formação das crenças são atravessados pelas tecnologias de interação ou contato. Passamos a acreditar naquilo que se mostra no espelho industrial. Capa 33 - Marcos Nicolau Sumário Como não dá para negar a sociedade midiatizada, tem-se que buscar maneiras de se integrar a esses tempos pós-modernos de modo a conciliar essas contradições já citadas com as perspectivas de renovações possíveis com a mediação midiática, cujo foco é a conexão de todas as áreas existentes na sociedade, como a política e a religião, que são os exemplos mais profícuos nessa construção imaginária-visual. É preciso haver uma compreensão dessa realidade para que se possa repensar as práticas comunicativas a partir disso, e utilizar-se desse mundo da visibilidade que ela instituiu para se criar novas legibilidades, novas competências e novas práticas de visibilidade. Se as universidades estão formando profissionais de comunicação para exercer esse fazer, nada melhor do que utilizar os laboratórios e os estúdios das televisões universitárias para elaborar novas práticas profissionais, que vão ao encontro dos interesses públicos. Os novos processos de midiatização requerem uma nova leitura de mundo e uma percepção mais sensível da realidade, no sentido de entendê-la no contexto da vida social e não somente da vida da novela, mesmo quando as narrativas midiáticas se imbriquem com o cotidiano dos indivíduos. Deve-se adequar este quadro descrito por Carlos Sanchotene (2009, p.8) , que tem sido tão comum na audiência brasileira: Em um ambiente midiatizado, os sujeitos se tornam atores da encenação, buscando uma recriação imaginária da própria vida. Através de exacerbadas exposições íntimas dos indiví- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas duos, cada vez mais dramatizada pela tevê, os personagens são compostos por todos os sujeitos,aquele que está na tela e aquele que está assistindo. Os sujeitos atorizados acabam interpretando papéis que carregam todo o enredo da trama, o roteiro que sustenta as subversões que produzem identificações com o público. O que se propõe na midiatização pública na TV digital universitária é o mesmo que Carlos Sanchonete sugere (2009, p.9): E um dos efeitos da midiatização é justamente a capacidade de cada um fazer sua própria edição do real, estabelecendo relações verdadeiras que são mantidas em situações de copresença com os dispositivos midiáticos, uma vez que estes atuam segundo realidades de construções que lhes são intrínsecas, convertendo os indivíduos em cogestores de processos cujas modalidades os nomeiam e legitimam como personagens e atores desta realidade. No desenvolvimento dessas transformações tecnológicas, os pressupostos da midiatização pública do conhecimento vão se manifestando, conforme a lógica das dinâmicas sistêmicas estabelecidas, haja vista estarem aí se consolidando novas práticas de sociabilidade que privilegiarão o pensamento coletivo, a criatividade colaborativa. Canal da Cidadania em Rede O Sistema Brasileiro de TV Digital, desde o seu lançamento, em 2003, e sua instalação, em 2007, vem preCapa 35 - Marcos Nicolau Sumário conizando as seguintes metas: inclusão digital; e-gov; apoio educacional; disseminação cultural; e integração social em nível regional e nacional; tanto quanto a garantia dos requisitos técnicos. Sabe-se que as televisões comerciais são pouco comprometidas com essas metas; portanto, cabe à televisão pública, neste caso aqui principalmente as televisões universitárias, a tarefa de cumprir essas metas e adotá-las como proposta de modificação do papel que a televisão deve ter nestes novos tempos de convergência e flexibilidade tecnológica, que prenunciam maior liberdade de criação e mais espaço de debate. As TVUs públicas são as mais apropriadas para promover a vivência comunitária tanto no campus quanto nas comunidades da cidade onde a universidade está situada, fazendo com que a produção de conteúdo seja realizada por todos os agentes do fazer acadêmico. (TAVARES, 2009, p.104). De acordo com Francisco Machado Filho (2012), este é “a hora e o momento ideal” da TV pública brasileira: Um exemplo importante deste momento é a decisão do governo federal em expandir a rede de TV pública por meio de um operador único. Esta iniciativa permitirá a digitalização dos canais comunitários, legislativos, judiciários e educativos a custos compartilhados em todas as capitais e em cidade com população acima de 100 mil habitantes. Com isso, a TV pública brasileira poderá investir no uso da interatividade em larga escala e fomentar a inclusão social, temas que nortearam toda a política de escolha do padrão brasileiro de TVD, eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas mas que ainda encontra vários obstáculos para serem aplicados pelas emissoras comerciais. Essa integração dos sistemas de transmissão de televisão aos sistemas voltados para os serviços de banda larga e satélites fará um diferencial que tem que ser introduzido o mais rapidamente possível. Além de reduzir custos de transmissão dos sinais eletromagnéticos, ganhando qualidade, haverá também economia de recursos e a melhoria da emissão e recepção de sinais (BARBOSA FILHO;CASTRO, 2008, p.4). Esses autores ainda explicam por que este operador fará sentido no Brasil. Porque o Brasil tem hoje cerca de 600 emissoras geradoras de TV analógica, aproximadamente 3 mil retransmissoras, além de outras 12 mil repetidoras (Anatel, 2008). Ao formatar uma proposta que se viabilize a partir da oferta de sistemas integrados de transmissão de sinais de TV digital, o projeto operador de redes comum vai colaborar com o mercado de pequenas e médias emissoras no país. (BARBOSA FILHO;CASTRO, 2008, p.4-5) E tem-se que aproveitar essa oportunidade de participar e aproveitar essa iniciativa da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) para dar também uma nova perspectiva à TV pública. Segundo Laurindo Leal Filho (2007, p.2): a ausência de uma televisão pública forte no Brasil impediu a formação de um público mais crítico em relação à TV comercial, resultado da falta de modelos alternativos. Também Capa 37 - Marcos Nicolau Sumário impossibilitou a criação de uma massa crítica capaz de exigir da televisão, no mínimo, o respeito aos preceitos constitucionais que determinam a prestação de serviços de informação, cultura e entretenimento. Sob os pressupostos da interdisciplinaridade, as televisões universitárias podem congregar várias áreas do conhecimento para produzir a futura TV digital, adotando, também, o modelo de TV Social, que é um serviço de integração TV-Redes Sociais, que privilegia a ferramenta da interatividade e intenta promover a inclusão social no espaço televisivo. E como o midleware Ginga – o dispositivo da interatividade – foi criado no Laboratório de Vídeo Digital (LAVID) da UFPB, e no Departamento de Informática da PUC-RJ, e ainda estão sendo desenvolvidos novos formatos, é possível viabilizar um design para TV Digital Social a ser aplicado através das TVs universitárias, em um trabalho conjunto dos corpos docente e discente, no sentido de elaborar interfaces que melhorem a comunicação entre as TVs universitárias e a sociedade em geral, através das Redes Sociais, e possam, assim, estabelecer de fato uma comunicação bidirecional que dialogue em outras esferas também. Dados da ABTU indicam que existem no país cerca de 120 tvs universitárias, com possibilidades de alcançar uma audiência de 110 milhões de pessoas. Obviamente que nos dias atuais isso ainda é uma utopia. A maioria das TVs públicas brasileiras tem pífios índices de audiência. Contudo, esse quadro pode ser modificado eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 39 - Marcos Nicolau com as propostas em vigor, como o incentivo a produções independentes e a produções regionais. Além disso, as instituições de ensino podem revitalizar a Ritu (Rede de Intercâmbio de Televisões Universitárias), que é um sistema de recepção e distribuição de programas de televisão, via internet de banda larga, de modo a incentivar a troca de produções televisivas e intercâmbios tecnológicos em todo o país, aproveitando ainda o suporte da Rede Ipê, que é “uma infra-estrutura de rede internet voltada para a comunidade brasileira de ensino e pesquisa”, com conexões também para redes acadêmicas estrangeiras (RNP, 2012). Como enfatizam Lemos e Lèvy (2010, p.111), “a sobrevivência de uma instituição está precisamente ligada a seu suporte a um rede social online”. Os autores ainda completam: Por outro lado, o Brasil é o 24º no ranking que mede o papel da internet na vida das pessoas (A REDE, 2012), em levantamento feito pela World Wide Web Foundation. Esses dados mostram que a internet é um espaço em expansão, tanto quanto de inúmeras possibilidades de midiatização; por isso, sua integração com a TV digital pública poderá ser um ponto relevante na construção do conhecimento coletivo. (...) a verdadeira concorrência entre todas as mídias, empresas e instituições de um planeta dominado pela economia da informação vai se dar na sua capacidade de reunir e estabilizar uma comunidade ou uma rede social de produção de conteúdo.(LEMOS;LÈVY, 2010, p.111-112). Deve-se, portanto, fugir das posturas ingênuas de combater as questões mercadológicas que envolvem as televisões comerciais no país e buscar mecanismos de enfrentamento através da criatividade, da disposição intelectual e do incentivo público aos bens públicos disponíveis nas universidades brasileiras. O que se espera é que as oportunidades não se percam; afinal, o tripé ensino, pesquisa e extensão é o que mantém a expectativa de que as TVs universitárias poderão modificar o papel que estes veículos terão neste novo cenário digital. O Ibope/Nielsen publicou, em agosto de 2012, que já chega a 82,4 milhões de brasileiros com acesso à internet em qualquer ambiente. Esses números vêm aumentando ano a ano, mesmo que ainda estejam defasados em relação a países do norte europeu ou asiáticos, que lideram a lista da inclusão social, por exemplo, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2012). Capa Sumário O aprendizado baseado na internet não é apenas uma questão de competência tecnológica: um novo tipo de educação é exigido tanto para se trabalhar com a internet como para se desenvolver capacidade de aprendizado numa economia e numa sociedade baseados nela. A questão crítica é mudar de aprendizado para o aprendizado-de-aprender, uma vez que a maior parte da informação está online. (CASTELLS, 2003, p.212) A exemplo dos hospitais universitários e dos centros de pesquisa na área de informática, as TVs Universitárias podem eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas cumprir o papel de centro de pesquisa, experimentação e criatividade, desde que haja política de reflexão sobre o fazer. (CARVALHO;COUTINHO, s/d, p.3). Da mesma forma, Felipe Pena (2001, p.4) enfatiza que as TVs universitárias devem contemplar “mecanismos que garantam a pluralidade”, pois esta é muito importante “para a disseminação das discussões sobre cidadania na TV universitária” (2001, p.6). Considerações Finais A TV digital pública ainda requer que as propostas a ela destinadas sejam efetivamente implementadas e asseguradas. Canais abertos para as TVs universitárias são um requisito fundamental para que elas possam participar igualitariamente do projeto de TV digital interativa; ao contrário, será impossível quaisquer projetos no sentido de integrar a TV universitária às redes sociais, por exemplo. Os canais abertos são os mais próximos ainda do público em geral; sendo assim, a polifonia dialógica só pode ocorrer se a sociedade puder interagir nos seus espaços de compartilhamento. Hoje, as TVs universitárias se distanciam da sociedade exatamente porque estão nos canais a cabo, o que limita bastante a intenção de aproximação das comunidades locais à produção acadêmica. Segundo o Censo 2010, do IBGE, os aparelhos de TV estão em 95,1% dos domicílios brasileiros (IG, 2012), configurando-se como a mídia de maior penetração no Capa 41 - Marcos Nicolau Sumário país. A sua permanência nos ambientes familiares e afins vai depender exatamente da adoção de estratégias de integração da TV com os novos dispositivos tecnológicos, bem como conviver com novas propostas televisivas, como a Google TV, que tem um pacote completo de serviços da sua própria linha de produção. Às TVs universitárias caberá ficar atenta a todas as mudanças orquestradas pelo mercado, de modo a conseguir estabelecer linhas de ação que agreguem valores diferenciados e que só os espaços acadêmicos propiciam, como a capacidade reflexiva em relação aos meios nestes tempos de convergência midiática; a possibilidade de uma produção audiovisual sem liames com os requisitos mercadológicos, voltada para a parceria com a sociedade em geral; e uma liberdade maior para repensar o papel da TV e promover a midiatização pública do conhecimento na TV digital no âmbito das TVs universitárias. Referências A REDE. Brasil é 24º em ranking que mede papel da internet na vida das pessoas. 05/09/2012. Disponível em <http:// www.arede.inf.br/noticias/4441-brasil-e-24-em-ranking-que-mede-papel-da-internet-na-vida-das-pessoas> Acesso em 08/09/2012. BARBOSA FILHO, André;CASTRO, Cosete. Nova TV pública convergente: interatividade, multiprogramação e compartilhamento. Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación, vol. X, n. 3, Sep. – Dic. / 2008. Disponível em < www.eptic.com.br> Acesso em 10/07/2010. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 43 - Marcos Nicolau CARVALHO, Lucimar; COUTINHO, Ricardo N. TV universitária:um ambiente tecnológico de aprendizagem. s/d. Disponível em < www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt16/gt161294int.rtf> Acesso em 10/07/2010. CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. FAUSTO NETO, Antonio. A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim. Revista do Instituto Humanitas Unisinos online. 13/04/2009. Disponível em <http://www.ihuonline.unisinos. br/index.php?option=com_content&view=article&id=2479&se cao=289> Acesso em 10/07/2011. FGV. Brasil é o 72º colocado no ranking de inclusão digital. 31/07/2012. 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Este objetivo corrobora com a midiatização ao envolver vários componentes na elaboração das narrativas. Entre os principais teóricos que nos deram o embasamento necessário, destacamos: Henry Jenkins, Fabiane Scorla, Lúcia Santaella, Gustavo Cardoso, Janet Murray e André Lemos. Palavras-chave: Narrativas Transmídias. Midiatização. The Walking Dead. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação - PPGC/UFPB 4 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação - PPGC/UFPB 5 Professor Pós-doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação - PPGC/UFPB 3 Capa 45 - Marcos Nicolau Sumário Na contemporaneidade não há como falar em narrativas transmidiáticas, ou narrativas transmídias, sem situá-las no contexto da convergência das mídias. É certo que as narrativas, fictícias ou não, sempre fluíram de um suporte a outro; de uma mídia à outra: “Quantos livros não explodiram em vendas, depois de terem sido adaptados para o cinema, ou para uma novela de TV?” (SANTAELLA, 2003, p. 53). Esta é a concepção primeira das narrativas transmídias, uma mesma história que transita (não necessariamente nessa ordem) do impresso ao audiovisual e/ou ao ciberespaço entre outras mídias. No entanto, como veremos no decorrer deste capítulo, as formas de criação, produção e consumo destas narrativas vem se transformando sob efeito do que Jenkins (2009) chama de cultura da convergência. A convergência midiática em si não é fenômeno do século XXI surgido no rastro da Internet e das mídias móveis. Santaella já havia constatado, em Cultura das Mídias (1996), um direcionamento antropofágico nas mídias a partir do poder de hibridização da TV, principal veículo de comunicação do século XX. Atualmente, podemos considerar que a Internet é quem possui tal status. A autora, porém, ressalta que, mesmo havendo tendência a se engendrarem como redes, cada mídia em particular eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas tem uma função específica que lhe garante existência em vez de substituição. E mais, para ela: “o aparecimento de cada nova mídia, por si só, tende a redimensionar a função das outras”. (SANTAELLA, 1996, p. 40). Apesar de assumir-se contrário a ideia de convergência e preferir a expressão “articulação em rede”, o pensamento de Cardoso (2007), não se desvirtua, em parte, do universo convergente das mídias. No entanto, para ele: Não há convergência, mas sim articulação em rede de mídias e usos. [...] A hipótese aqui proposta é que o sistema de mídia se articula cada vez mais em torno de duas redes principais, que por sua vez comunicam-se por meio de diferentes tecnologias de comunicação e informação. Essas redes constituem-se respectivamente em torno da televisão e da Internet estabelecendo nós com diferentes tecnologias da comunicação e informação como o telefone, o rádio, a imprensa escrita etc. (CARDOSO, 2007, p. 17). Percebe-se, pela afirmação acima, que o posicionamento do autor não diverge totalmente do princípio de convergência, pois sua hipótese deixa transparecer – através do que ele chama de articulação em redes – a existência de fluxos de conteúdos entre as mais diversas mídias, fenômeno típico da cultura da convergência (JENKINS, 2009), uma das bases conceituais deste capítulo: Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer Capa 47 - Marcos Nicolau Sumário parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais. (JENKINS, 2009, p. 2009) O conceito de Convergência de Jenkins se assemelha ao conceito de Midiatização de Scorla. Segundo esta autora, “[...] a “midiatização” pode ser entendida como múltiplos entrecruzamentos entre tecnologias midiáticas, campos e atores sociais, meios de comunicação social tradicionais e sociedade” (SCORLA, 2009). Ora, tais entrecruzamentos múltiplos são contemplados nas plataformas de mídia, nos mercados midiáticos e no comportamento dos públicos, referenciados no supracitado conceito de Jenkins. É neste ambiente que estão inseridas as narrativas transmidiáticas. Num contexto em que o público assiste, de forma interativa, a programas, séries, novelas etc. através de vários suportes e plataformas midiáticas articuladas. E os produtores dos conteúdos midiatizados e fluidos (isto é, passíveis de serem explorados em várias mídias), por sua vez, fazem uso das mais diversas tecnologias para criar produtos mais interativos que possibilitem a participação do público. Para Murray (2003), o avanço da informatização e o desenvolvimento de mundos virtuais têm propiciado uma “convergência histórica” impulsionada por profissionais (Romancistas, Dramaturgos, Cineastas e Cientistas da Computação) cada vez mais empenhados em criar, em foreLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas matos digitais, histórias multiformes em universos fictícios. Isto ocorreu com a criação de The Walking Dead, lançada no Brasil com o título Os Mortos-Vivos. Neste capítulo adotaremos o título em inglês, visto que os fãs, e a maioria dos produtos relativos à franquia, utilizam este termo estrangeiro. Trata-se da história em quadrinhos (HQ) de um grupo de pessoas que luta para sobreviver num mundo tomado por zumbis. Esta HQ vem se expandindo para outras plataformas como TV, Internet e games. teórico da imagem Josep Català7, afirmou: A princípio, […] pensava que a imagem detinha a imaginação na comparação com a literatura, porque aquele que lê pode imaginar, enquanto a imagem já nos oferece essa passagem por feita. Agora já não vejo assim. A imagem não é um muro que bloqueia a imaginação, pelo contrário: está cheia de impulsos e estímulos que projetam a imaginação para mais além. É possível ficar só com a superfície da imagem, contentar-se com ela, até porque a imaginação é um procedimento que requer esforço, não se produz automaticamente. Penso, então, que há vários tipos de imagem, algumas mais imaginativas e outras que de certa forma fecham as portas. (CATALÀ, 2012) 1 Narrativas transmídias: a articulação de histórias em diferentes suportes Obras literárias são adaptadas tradicionalmente para outros meios, como peças de teatro, cinema e televisão. No século passado, as HQ também serviram como base para adaptações audiovisuais. De acordo com Umberto Eco (1996), “livros são máquinas que provocam outros pensamentos”6. Ampliando esta perspectiva, entendemos que algumas obras impressas são fontes de “concretização” desses “outros pensamentos”, através de processos de tradução e expansão para os audiovisuais. Em outros termos, as histórias dos livros saem do campo abstrato, imaginativo e individual de quem as lê e ganham uma versão “concreta”, constituída por imagens e sons que são compartilhados. Em entrevista à Folha de São Paulo, o “books are […] machines that provoke further thoughts.” (ECO, 1996) - tradução nossa. 6 Capa 49 - Marcos Nicolau Sumário Segundo Will Eisner, um dos mais renomados autores de quadrinhos, a aproximação entre produções audiovisuais e HQ decorre do fato de ambas lidarem com palavras e imagens. “O cinema reforça isso com som e a ilusão do movimento real. Os quadrinhos precisam fazer uma alusão a tudo isso a partir de uma plataforma estática impressa”. (EISNER, 2005, p. 75) No que se refere à expansão de histórias para diferentes mídias, a série de ficção científica Jornada nas Estrelas, criação do autor Gene Roddenberry, que narra às aventuras de uma nave que explora o universo, é um Enquanto o Chaplin dos games não vem. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/15476-enquanto-o-chaplin-dos-games-nao-vem.shtml>. Acesso em 25 de maio de 2012 7 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas dos exemplos mais antigos. Surgida na TV dos Estados Unidos (foi exibida entre 1966 - 1969) e tendo migrado para o cinema, em 1979, Jornada nas Estrelas ganha, desde 1967, inúmeras novas tramas em livros ou histórias em quadrinhos8. O mesmo ocorre com as séries de TV do mesmo universo narrativo: A Nova Geração (produzida entre 1987 - 1994), Deep Space Nine (1993 - 1999), Voyager (1995 - 2001) e Enterprise (2001 - 2005). Ambientados no futuro, os programas respeitam a cronologia ficcional da série televisiva original. Alguns se passam em anos posteriores ao primeiro seriado. Já Enterprise recua pouco mais de cem anos. Chamam igualmente a atenção outras obras que expandem o que era mostrado na TV. Voyager teve aspectos da sua história explorados com profundidade em livros9. Na obra Mosaic (1997), Jeri Taylor, a co-criadora da série televisiva, apresentou o passado - não revelado na TV - da capitã da nave, Kathryn Janeway. Já em Pathways (1999), Taylor faz o mesmo em relação aos demais integrantes da tripulação. Os seis filmes de Guerra nas Estrelas, que abordam a luta de rebeldes para se livrar de um governo ditatorial intergaláctico, cuja primeira película chegou às salas de exibição em 1977, deram origem a várias outras narratiLista de livros de Jornada nas Estrelas. Disponível em <http:// www.well.com/~sjroby/lcars/>. Acesso em 25 de maio de 2012 9 Jeri Taylor’s Voyager Retrospective. Disponível em <http:// www.trektoday.com/news/210301_01.shtml> Acesso em 25 de maio de 2012 8 Capa 51 - Marcos Nicolau Sumário vas10 em jogos eletrônicos, RPG, livros e desenhos animados. O universo ficcional é expandido: há tramas focadas em personagens secundários já mostrados anteriormente e são introduzidos novos personagens. Já Buffy, seriado sobre uma caçadora de vampiros que durou sete temporadas na TV (1997 - 2003), continuou nos quadrinhos11. A oitava temporada do seriado é constituída de 40 edições de HQ. Em setembro de 2011, teve início a nona temporada de Buffy e nos quadrinhos. O trabalho é comandado pelo criador do seriado, Joss Whedon. Não por acaso, coube a Whedon a adaptação para o cinema do grupo Os Vingadores (2012), que reúne super-heróis criados pela Marvel, empresa que inicialmente editava HQ e que passou, recentemente, a também produzir filmes utilizando o seu portfólio de histórias. The Walking Dead é mais um exemplo desse fenômeno. Entretanto, fez o caminho inverso ao de Buffy e outras histórias que tiveram origem na TV. Seu universo narrativo, criado por Robert Kirkman, tem origem nas HQ publicadas pela editora Image Comics, nos Estados Unidos, em 200312. Star Wars: O passado e o futuro no universo expandido. Disponível em <http://www.trektoday.com/news/210301_01. shtml> Acesso em 27 de julho de 2012. 11 Buffy | Temporada 9 do seriado começou nos quadrinhos - veja trailer. Disponível em <http://omelete.uol.com.br/buffy-caca-vampiros/quadrinhos/buffy-temporada-9-do-seriado-comecou-nos-quadrinhos-veja-trailer/>. Acesso em 25 de maio de 2012 12 Disponível em: http://ebooksgratis.com.br/quadrinhos/qua10 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 53 - Marcos Nicolau Assim, os conglomerados de comunicação e entretenimento buscam, cada vez mais, recontar histórias surgidas nos quadrinhos. Nos últimos anos, personagens como Watchmen, X-Men, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e Thor foram adaptados para o cinema. Na TV, a série Smallville (2001 - 2011) contou, ao longo de 10 temporadas, a origem do Super-Homem. O sucesso de bilheteria e a repercussão na TV foram tão grandes que atraíram a atenção das produtoras de filmes. Em 2009, a Disney comprou o conglomerado Marvel por US$ 4 bilhões13. Todos esses exemplos de expansão de narrativas dos impressos aos audiovisuais, ou destes para aqueles, podem ser considerados narrativas transmídias. O fenômeno de expansão das histórias de uma mídia à outra possibilita uma ampliação das mesmas, podendo surgir complementações, tramas paralelas, recriações etc. de que uma narrativa transmídia precisa de autonomia em todos os suportes midiáticos em que (per) passa: Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game e vice-versa. (JENKINS, 2009, p. 138) Na perspectiva dos donos da franquia, o que interessa é o sucesso de público e, consequentemente, de mercado, em todas as plataformas em que a narrativa é contada. Até porque, cada suporte contribui, à sua maneira, para que toda a franquia seja bem sucedida. Além disso, uma narrativa transmídia não tem obrigação de repetir fielmente o roteiro de origem. É aí que reside a au- 2 The Walking Dead: imersão e interação tonomia da trama. Cabe ao público – que cada vez menos Para se compreender a trama de The Walking Dead, não é necessário ter um conhecimento prévio do que vem acontecendo em todos os meios técnicos em que a história está afixada, pois a mesma segue um princípio básico as interseções que deseja a respeito da trama que conso- drinhos-the-walking-dead-robert-kirkman-tony-moore-e-charlie-adlard/ 13 Disney anuncia compra da Marvel por US$ 4 bilhões. Disponível em <http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/2009/08/31/ ult4326u1395.jhtm>. Acesso em 25 de maio de 2012 de consumo desencadear o interesse pelas outras, como Capa se conforma em consumir ficção apenas pela TV – fazer Sumário me. Aqui se confirma a afirmação de Santaella (1996) de que uma mídia redimensiona o interesse em outras. Ou seja, The Walking Dead, coexiste de maneira particular em vários suportes, com grandes chances de uma forma por exemplo, fãs da série televisiva recorrerem aos quadrinhos e vice-versa. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Além da HQ e da TV, o universo narrativo de The Walking Dead se expande para outros meios. Em 03 de outubro de 201114, treze dias antes do início da segunda temporada televisiva15, a AMC, que transmite o programa nos EUA, lançou em seu site a web série “Torn Apart”16. Os seis webisodes contam a história de como Hannah se tornou zumbi. A personagem aparece brevemente na primeira temporada – já transformada em zumbi – logo após o personagem principal Rick sair do hospital e descobrir que o mundo entrou em colapso. A web série mostra que Hannah era uma vizinha com quem Rick se relacionava. Ou seja, uma narrativa paralela ao que foi exibido na TV. Embora sua participação seja pequena, a versão zumbi de Hannah se tornou uma das criaturas mais comentadas da primeira temporada do seriado. Existem outros casos de autonomia transmídia, como personagens que morrem apenas na trama televisiva, como é o caso da garota Sophia. The Walking Dead também caminha nos jogos eletrônicos, talvez a forma mais interativa da franquia, tendo em vista que são as decisões do jogador que conduzirão a narrativa. Assim, em abril de 2012 foi lançado The Walking Dead: a New Day, o primeiro dos cinco títulos http://www.thedreamersedge.com/the-walking-dead-0-01torn-apart/ 15 http://www.imdb.com/title/tt1790548/ 16 http://www.movieweb.com/news/watch-all-six-the-walking-dead-webisodes 14 Capa 55 - Marcos Nicolau Sumário que serão desenvolvidos17 para PC e os consoles PlayStation 3 e Xbox 360. O roteiro novamente é de Robert Kirkman. No game, o jogador assume a pele de Lee Everett, ex-detento que busca sobreviver ao caos no qual o mundo se transformou. No caminho, protegerá uma menina chamada Clementine. Ambos os personagens são novatos no universo The Walking Dead. Mais um exemplo de autonomia narrativa dentro da franquia. O game se estendeu, ainda, para as redes sociais. Em agosto de 2012 foi lançado The Walking Dead Social Game18 no Facebook. Através de um aplicativo adicionado à rede social, é possível vivenciar a narrativa de forma fiel a do seriado, interagindo não só com os personagens, mas também com a lista de amigos do Facebook (daí a denominação de Social Game) de cada jogador. Os amigos podem aparecer, em fotos, transformados em zumbis que precisam ser eliminados. O jogador tem a opção de publicar na linha do tempo o resultado da eliminação de seus amigos. Devido a essas facilidades de acesso a informação e ao avanço e inserção das inteligências coletiva (LÉVY, 1998) e artificial na vida contemporânea, o público consumidor de ficção também não se conforma em ser apenas espectador. Para Murray (2003) os fãs são cada vez mais interator e menos espectador. Em outras palavras, eles querem compartilhar suas impressões com outros fãs, http://telltalegames.com/walkingdead http://clubalfa.abril.com.br/tecnologia/games/the-walking-dead-ganha-jogo-no-facebook/ 17 18 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 57 - Marcos Nicolau opinar sobre os roteiros, criar suas próprias versões remixadas, interagir com os personagens e imergir no universo ficcional. A mesma autora, em seus estudos sobre narrativas no ciberespaço, defende que as novas tecnologias da informação vem potencializando a sensação de imersão em ambientes ficcionais, como no caso dos games mencionados acima: público tem que criar um avatar – uma forma preliminar de estar imerso na trama – no perfil do Facebook do canal. Entretanto, os aficionados pela série não se conformam com o que lhes é oferecido e investigam e comparam as narrativas na HQ, além de criarem outras subnarrativas paralelas ao conteúdo oficial. 3 Quando os fãs criam novos caminhos narrativos Ambientes eletrônicos baseados na tela de um monitor também podem proporcionar a estrutura de uma visita de imersão. Aqui, a própria tela é a tranqüilizadora quarta parede, e o controlador (mouse, joystic [...]) é o objeto liminar que lhe permita entrar e sair da experiência. Quando o controlador está estreitamente ligado a um objeto do mundo ficcional, como um cursor na tela que se transforma numa mão, os movimentos reais do participante transformam-se em movimentos pelo mundo virtual. (MURRAY, 2003, p. 109-110) Dessa forma, admitimos que a busca pela sensação de pertencer a uma trama fictícia transforma a nossa relação com as tecnologias. Lemos (2008) ao tratar de interações, interatividade e interfaces afirma que “o imaginário alimenta a nossa relação com técnica” remodelando a nossa compreensão de interatividade. Em The Walking Dead, a imersão através do site do canal Fox, que exibe o programa no Brasil, se restringe aos conteúdos extras e mini jogos da própria página. No entanto, o canal Fox lançou recentemente uma promoção que garante aos fãs uma imersão efetiva na série de TV. O vencedor fará figuração como um zumbi na terceira temporada. Para isso, o Capa Sumário Embora a versão televisiva de The Walking Dead tenha certa autonomia em relação ao que foi apresentado na HQ homônima, as tramas são similares. Robert Kirkman19, criador da HQe produtor do seriado televisivo, explica a dinâmica das tramas nos dois suportes: A maioria dos personagens foi traduzida para a tevê de maneira quase exata. [...] Agora, as histórias que vamos contar serão diferentes em alguns momentos. A série sempre seguiu os quadrinhos meio de longe, tem divergências de tempos em tempos, e queremos continuar isso na terceira temporada. (KIRMAN, 2012) Isso desperta em alguns admiradores a prática de acompanhar a transposição para a televisão20 traçando Robert Kirkman fala sobre a finale e os planos para a série The Walking Dead. Disponível em <http://www.nerdplus.xpg. com.br/nerd/2012/03/20/robert-kirkman-fala-sobre-a-finale-e-os-planos-para-a-serie-the-walking-dead/>. Acesso em 21 de junho de 2012. 20 http://www.walkingdeadforums.com/forum/f36/differences-between-comics-show-414.html 19 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 59 - Marcos Nicolau um paralelo entre as duas abordagens21, considerando os quadrinhos, onde a história primeiro surgiu, como a abordagem principal. Por isso, todas as demais deveriam “respeitar” essa concepção original. Quando o seriado televisivo opta por caminhos distintos, muitos fãs sentem-se traídos22. Os apelos dos fãs muitas vezes são ouvidos. De acordo com Robert Kirkman, o seriado de TV e a HQ podem se juntar de forma inusitada23: Daryl Dixon, um dos personagens mais queridos do programa televisivo, não existe na versão em quadrinhos. Todavia, Kirkman planeja inserir o personagem na HQ. Jay Bolter e Richard Grusin (2000) consideram que TV e Internet concorrem econômica e esteticamente. O que cada suporte procura é “remediar” o outro24 (BOLTER e GRUSIN, 2000, p. 47). Os mesmos autores lembram, todavia, que a nova mídia pode igualmente buscar implementar a remediação, tentando absorver inteiramente http://www.comicvine.com/news/amcs-the-walking-dead-comics-comparison-and-analysis/142588/ 22 http://www.tivocommunity.com/tivo-vb/archive/index. php/t-483169.html 23 The Walking Dead | Personagem exclusivo do seriado deve entrar nas HQs. Disponível em <http://omelete.uol.com.br/ walking-dead/quadrinhos/walking-dead-personagem-exclusivo-do-seriado-deve-entrar-nas-hqs/>. Acesso em 25 de maio de 2012 24 “In fact, television and the World Wide Web are engaged in an unacknowledged competition in which each now seeks to remediate the other. The competition is economic as well as aesthetic.” (BOLTER e GRUSIN, 2000, p. 47) - tradução nossa. a história pregressa Como resultado, as diferenças são minimizadas e o novo meio permanece dependente do anterior25 (BOLTER e GRUSIN, 2000, p. 57). No caso de The Walking Dead, os apreciadores acompanham com atenção não apenas o que foi mostrado, mas o que ainda está por vir. Veja o caso da personagem Michone. Já presente nos quadrinhos, ela foi introduzida na versão televisiva apenas na terceira temporada, a ser lançada em 14 de outubro de 2012. Durante a produção dos novos episódios, os fãs comentaram a atriz escolhida para o papel, Danai Gurira (Figura 01). Uma única imagem revelada serviu para ser remixada com outras obras, como o filme Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino (Figura 02). 21 Capa Sumário “Finally, the new medium can remediate by trying to absorb the older medium entirely, so that the discontinuities between the two are minimized. The very act of remediation, however, ensures that the older medium cannot be entirely effaced; the new medium remains dependent on the older one in acknowledged or unacknowledged ways.” (BOLTER e GRUSIN, 2000, p. 57) - tradução nossa. 25 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 61 - Marcos Nicolau Figura 01 – A atriz Danai Gurira caracterizada como a personagem Michone Fonte: http://www.boomtron.com/2012/05/danai-gurira-as-michonne-in-walking-dead-season-3/ A segunda temporada televisiva de The Walking Dead, por exemplo, foi muito contestada por telespectadores que viram problemas na condução da trama. Por isso, fãs lançaram várias fotomontagens apontando as incongruências da série televisiva. De acordo com Lawrence Lessig, “vivemos em uma cultura de ‘cortar e colar’ proporcionada pela tecnologia’’ (2005, p. 120). Um dos alvos mais constantes é o personagem T-Dog. Na primeira temporada, era um personagem secundário. No segundo ano da série, virou um extra, com poucas falas (Figura 03). Na imagem, T-Dog reclama do convívio com os zumbis. No que Rick, seu companheiro de acampamento de longa data, pergunta: “Isso é embaraçoso, mas quem é você mesmo?” Figura 02 – Michone encontra Beatrix Kiddo (Uma Thurman): a personagem principal de Kill Bil Fonte: http://michonnedoesntlike.tumblr.com/post/23615959808/ people-stealing-her-poses Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 63 - Marcos Nicolau A família do personagem principal Rick também foi alvo de críticas (Figura 04). Sua esposa lhe dá pouco suporte. Já seu filho vive colocando o grupo em risco. Na imagem consta a seguinte crítica: “Duas coisas farão você ser morto num apocalipse zumbi: mulher histérica e garoto estúpido”. Figura 04 – Crítica feita à família de Rick Fonte: http://weknowmemes.com/2012/03/top-two-things-that-will-get-you-killed-in-a-zombie-apocalypse/ Essas criações derivadas que mostram o descontentamento dos fãs fazem parte da cultura do remix. De acordo com Lemos (2005), o remix pode ser compreendido como: Figura 03 – Diálogo entre T-Dog e Rick Fonte: http://pmb-prettythings.tumblr.com/post/19687675493 Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 65 - Marcos Nicolau [...] possibilidades de apropriação, desvios e criação livre [...] a partir de outros formatos, modalidades ou tecnologias, potencializados pelas características das ferramentas digitais e pela dinâmica da sociedade contemporânea. Agora o lema da cibercultura é “a informação quer ser livre”. E ela não pode ser considerada uma commodite como laranjas ou bananas. (LEMOS, 2005, p. 2) sódio da segunda temporada, o personagem Hershel começa a disparar sua arma sem parar. Na vida real, é algo improvável, já que é necessário recarregar o equipamento. No mundo dos jogos eletrônicos, não. Outros admiradores de The Walking Dead preferem desenvolver tramas derivadas (fan fiction) do seriado, investindo em aspectos pouco explorados da história26, ou Nas figuras 03 e 04 observamos que os fãs fizeram uma leitura paralela ao que é narrado de forma direta na série. Ao observarem, no primeiro caso, que o personagem T-Dog quase não tinha falas, os fãs satirizaram a presença de T-Dog, recriando um diálogo em que Rick desconhece o mesmo. No segundo caso, os fãs demonstram sua rejeição rotulando os personagens Lori Grimes e Carl Grimes (esposa e filho de Rick, respectivamente) de mulher histérica e garoto estúpido. Dessa forma, entendemos que as possibilidades de recriação trazidas com as novas mídias mobilizam o público consumidor de ficção e fazem com que o mesmo expresse seus pontos de vista recriando subtramas paralelas de inúmeras maneiras: através de intertextualidades que remetem uma trama a outra, como nas figuras 01 e 02 (que relacionam a série The Walking Dead ao filme Kill Bill), montagens de paródias, figuras 03 e 04, entre outras. Vídeos também são elaborados. “Hershel’s Shotgun with Infinite Ammo Hack” mistura a imagem da TV com ícones de jogos eletrônicos de First Person Shooter (em tradução livre, games de tiro). Isso porque, no último epi- mesmo criando novas abordagens. A trama de The Walking Dead se passa num mundo atacado por zumbis, no qual os poucos seres humanos não infectados procuram sobreviver. Muitos fan fictions buscam justamente apresentar a vida dos personagens antes dessa epidemia27, mostrando como era o cotidiano deles no mundo normal. Diversos autores (JENKINS, 1992; PUGH, 2005) já afirmaram que o ato de (re)elaborar narrativas preexistentes não é uma prática nova. Walter Benjamin argumentou que: Capa Sumário A obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão de obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro (BENJAMIN, 1994, p. 166). Henry Jenkins (1992) lembra, porém, que o advento da Internet ampliou o fenômeno. Segundo Pierre Lévy, http://www.fanfiction.net/tv/Walking_Dead/3/0/0/1/0/0/0/0/0/37/ http://forum.thewalkingdead.com.br/topico/767-fan-fiction-the-walking-dead/ 26 27 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas “A partir do hipertexto, toda leitura tornou-se um ato de escrita” (LÉVY, 1997, p. 46). Lawrence Lessig (2005) também reforça o papel da rede mundial de computadores nesse processo. Entretanto, este autor acrescenta que o alcance da Internet vai “além dela própria”. Trata-se de “um efeito que afeta a maneira como a cultura é produzida” (LESSIG, 2005, p. 36). Para a pesquisadora Maria Lúcia Vargas, tal prática pode ser explicada como oportunidade do fã interagir “com textos de seu interesse, a saber, na maior parte dos casos, textos bem-sucedidos comercialmente (...), cuja presença, no dia-a-dia do jovem, o motive a prolongar o contato com eles” (VARGAS, 2005, p. 14). Esse prolongamento contribui, até certo ponto, ao processo de desenvolvimento das narrativas fictícias em diversas plataformas, pois embora o público não tenha poder de interferir diretamente nas séries e games, essas formas de recriação publicizadas na Internet funcionam como um termômetro de audiência. Em outros termos, o público não se torna co-autor das histórias, mas suas críticas, elogios, paródias e sugestões podem significar o sucesso ou não de determinados produtos midiatizados. Considerações finais The Walking Dead é uma narrativa fictícia robusta que faz intercâmbio com outros meios, ao mesmo tempo em que expande seu universo imaginativo, propor- Capa 67 - Marcos Nicolau Sumário cionando recriações por parte do público. Diferente de um livro, cuja trama já foi concluída, e que é transposto para o cinema, o trajeto percorrido por The Walking Dead ocorre concomitantemente em diversas mídias. Tal processo de ampliação de participação do público se insere no atual contexto, em que não só empresas de comunicação fazem uso de tecnologias para criar narrativas, mas também a audiência que é cada vez mais ativa na forma de consumo. Podemos constatar, ainda, que The Walking Dead vem se configurando uma legítima narrativa transmídia. Isso se deve à sua crescente aceitação pelos públicos segmentados de diferentes mídias e suportes, ou seja, aqueles que acompanham a saga dos sobreviventes através das HQ e da TV, e o público que consome a história em várias plataformas, incluindo os games e a Web. Consideramos também que a franquia está articulada em rede (CARDOSO, 2007), pois existe um esforço de empreendimento de seus criadores não só em conquistar públicos segmentados, mas também de imprimir sua marca nas mais diversas mídias, ampliando assim, a audiência. Por fim, analisamos como a midiatização se revela ao abarcar transformações tecnológicas, a partir das narrativas em TV, HQ, Internet e games da franquia The Walking Dead, e mudanças sociais representadas pela postura pró-ativa dos fãs da série. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 69 - Marcos Nicolau Referências BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. 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A inteligência coletiva, característica pulsante desta era, passa a ter seus princípios manipulados por discursos mercadológicos, assim como a interatividade passa a ser argumento de venda para serviços online. Atentamo-nos aqui para o Facebook como objeto de análise, pois tal empresa seduz seus usuários através de seus discursos de benfeitor, o que na prática contradiz tal discurso com ações manipuladoras, fazendo-nos aceitar seus termos sem ao menos nos convencer que seja realmente o melhor para nós. Com escolhas que deveriam ser autônomas e livres, a manipulação presenMetranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected] 29 Metranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected] 28 Capa 71 - Marcos Nicolau Sumário Em decorrência das transformações e avanços tecnológicos que vêm acontecendo ao longo dos últimos anos, a sociedade atual presencia e ajuda a formar uma nova era contextualizada pelo processo de midiatização. As tecnomediações agora determinam as formas de relacionamento e as vivências do mundo atual. De acordo com Sodré (2009) uma nova forma de vida está surgindo, o quarto bios, o bios midiático, o qual completa a classificação aristotélica das formas de vida: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política), e bios apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo). Dentro do contexto da midiatização Nicolau (2012) identifica três fatores estruturantes que determinam os acontecimentos inerentes a esta esfera social, são eles: o fator humanológico, o fator tecnológico e o fator mercadológico, sendo este último fator o que nos interessará para esta pesquisa. Com base nos estudos de Sodré (2009) e Fausto Neto (2006) sobre o processo de midiatização, percebeeLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 73 - Marcos Nicolau mos que esta pode ser analisada sobre variados aspectos, visto que tal processo está presente em todos os níveis da 1 Compreendendo o contexto atual pelo processo de midiatização vida social contemporânea. Isso posto, temos como objetivos no presente trabalho, observar como o fator mercadológico se desenrola em meio ao contexto da midiatização, percebendo as estratégias de manipulação de ações de seus usuários pelas chamadas empresas virtuais, tomando como exemplo o Facebook; compreender como a inteligência coletiva se manifesta nos dias de hoje no ciberespaço e como ela chega a ser negada em decorrência das ações de simulação de ambientes de livre expressão na internet. Usando como método a observação empírica, procuraremos fazer uma análise do ambiente proporcionado pela rede social em questão, de sua política de privacidade, em sua página oficial e blog, no intuito de levantar indícios para a confirmação de nossa suspeita sobre a manipulação de nossas escolhas quando utilizamos a sua rede social. Além disso, acreditamos que ela manipula os princípios que norteiam a inteligência coletiva, quando ela disponibiliza uma ambiência que aparentemente tem o objetivo de fazer com que as informações fluam livremente, nos fazendo crer em uma autonomia individual e na espontaneidade da inteligência coletiva que se constrói a partir dela. Com a emergente virtualização das relações nos dias atuais, a sociedade se encontra em outro contexto de vivências. Com as novas formas de comunicação trazidas pelas atuais mídias, as facilidades de compartilhamento, e o desenvolvimento tecnológico têm colaborado para o desenrolar do momento atual. Não se consegue mais estudar, trabalhar, se relacionar com amigos e familiares, ou até mesmo ir ao banco, sem que essas ações sejam permeadas pelas novas tecnologias. Agora vivemos uma época em que as relações estão cada vez mais se tornando tecnomediadas, ou seja, as tecnologias tornam-se mediadoras das relações humanas. O mundo vive no contexto da midiatização. “Estamos diante de numa nova forma de organização e produção social, onde o capital já não estaria mais apenas a serviço das estruturas, mas dos fluxos e da informação.” (FAUSTO NETO, 2006, p.4). A midiatização é um processo social que anda junto com a cibercultura e, como afirma Sodré (2009, p. 16), põe em jogo um “novo tipo de formalização da vida social, que implica outra dimensão da realidade, portanto formas novas de perceber, pensar e contabilizar o real.” A partir desse momento as pessoas estão inseridas numa tecnocultura, fazendo uso variado das tecnomediações. Além da tecnologia, outro fator decisivo para que a ordem social e o modelo cultural contemporâneo tenham atingido as Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 75 - Marcos Nicolau feições atuais diz respeito à localização da mídia no centro da sociedade e à expansão de suas lógicas para os demais campos sociais, processo a que chamamos de midiatização. Podemos dizer que a midiatização é um processo relacional, que resulta do encontro de variados fatores e, ao mesmo tempo, interfere nesses elementos e realidades que lhe originaram de maneira a configurá-los segundo lógicas de mídia. (FLORES; BARICHELO, 2009) 30 Implica a midiatização, por conseguinte, uma qualificação par- É importante também frisar a distinção que Sodré (2009) mostra em seus estudos entre mediação e midiatização, termos que muitas vezes erroneamente são usados como sinônimos. O autor aponta mediação como sendo “a ação de fazer ponte ou fazer comunicaremse duas partes” (SODRÉ, 2009, p. 21). Enquanto que a midiatização: corpo). [...] Partindo-se da classificação aristotélica, a midia- ...é uma ordem de mediações socialmente realizadas no sentido da comunicação entendida como processo informacional, a reboque de organizações empresariais e com ênfase num tipo particular de interação – a que poderíamos chamar de “tecnointeração”. (SODRÉ, 2009, p. 21) Considerando essas afirmações percebemos que é fato que as sociedades estão passando por modificações determinantes, se tornando cada dia mais tecnomediadas e inseridas em um novo bios, que foi estabelecido a partir do processo social da midiatização. ticular da vida, um novo modo de presença do sujeito no mundo ou, pensando-se na classificação aristotélica das formas de vida, um bios específico. Logo nas primeiras páginas de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue, a exemplo do que já fizeram Platão no Filebo, três gêneros de existência (bios) na Polis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política), e bios apolaustikos (vida prazerosa, vida do tização ser pensada como tecnologia de sociabilidade ou um novo bios, uma espécie de quarto âmbito, onde predomina a esfera dos negócios, com uma qualificação cultural própria (a “tecnocultura”). (SODRÉ, 2009, p. 24 – 25) De acordo com Marcos Nicolau (2012) podem ser identificados três fatores básicos que determinam os acontecimentos inerentes a esta esfera social ou bios, sendo eles os fatores humanológico, tecnológico e mercadológico. Faz parte das características do fator humanológico “a necessidade e a possibilidade de participar e compartilhar ideias e opiniões a partir da apropriação e uso das mídias digitais e atuação nas redes sociais” (NICOLAU, 2012, p. 11). Já no fator tecnológico “instaura-se a ubiquidade da comunicação, sem fronteiras de idiomas, raças ou crenças.” (NICOLAU, 2012, p. 5). Como o fator mercadológico é estruturante para o nosso trabalho, trataremos dele com mais profundidade. Artigo disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ppgc/smartgc/uploads/arquivos/2f1351ff7220101009062343.pdf 30 Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 1.2 Fator mercadológico É fácil perceber que o mercado sempre fez e faz o mundo disputar relações de interesses e manipular para vender, tendo como foco principal o lucro. Na atualidade a palavra de ordem é informação. Se a sua empresa não vende informação, ela, pelo menos, deve estar bem representada para atingir seu público com informações sobre seus produtos. Temos também a grande briga para ver quem produz mais e traz mais inovações para os aparatos tecnológicos. Além do lucro, o domínio do mundo também se tornou objetivo. Como afirma Nicolau (2012) os fatores humanológico, tecnológico e mercadológico foram projetados dentro da esfera do novo bios que se instaura na modernidade, estabelecendo uma constante negociação de interesses, que as mantêm interdependentes. O fator mercadológico é determinante para que sejam desenvolvidas as bases inovadoras das tecnologias da informação e da comunicação, proporcionando a produção dos aparatos técnicos capazes de atender as necessidades comunicacionais. Mas é também no cerne deste fator que tem havido os mais acirrados embates entre os que defendem o controle sobre os direitos autorais e os que pregam a pirataria como uma prática natural na internet, por exemplo. (NICOLAU, 2012, p. 5) A economia digital está se tornando muito forte pela sua facilidade de compartilhamento e pelo fato de Capa 77 - Marcos Nicolau Sumário estar em todos os lugares, podendo atingir qualquer público. Sodré (2009) afirma que essa economia tem um grande impacto sobre o mundo do trabalho e sobre a cultura, atingindo a indústria, a pesquisa científica, a educação, o entretenimento, de modo que novas variáveis surgem e transformam de forma muito rápida a vida das pessoas. Ele afirma ainda que é uma tendência mundial que o comércio flua para a rede cibernética abrindo possibilidades para novos empregos e atividades rendosas. “Desenha-se a partir daí a possibilidade de um novo tipo de empresa, a ‘empresa virtual’, definida como uma estrutura híbrida de atividades organizadas” (SODRÉ, 2009, p.18). A partir disso muitas possibilidades econômicas e mercadológicas podem surgir com o intuito de se aproveitar das facilidades encontradas nesse novo bios. Empresas virtuais como as grandiosas Google e Facebook hoje dominam o mercado de buscas online e de redes sociais, respectivamente, de maneira jamais vista. Elas buscam cada vez mais usuários que façam uso de seus serviços afim de que seu número de acessos cresça, atingindo desde crianças até pessoas da terceira idade, apostando na adesão de um público o mais diversificado possível. Já é lugar comum afirmar que o desenvolvimento dos sistemas e das redes de comunicação transforma radicalmente a vida do homem contemporâneo, tanto nas relações de trabalho como nas de sociabilização e lazer. Mas nem sempre se enfati- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas za que está primeiramente em jogo um novo tipo de exercício de poder sobre o indivíduo (o ‘infocontrole’, a ‘datavigilância’). Os sistemas informacionais e as redes de telecomunicações [...] ampliam-se continuamente como gigantesco dispositivo de espionagem global. (SODRÉ, 2009, p. 15) Essas empresas buscam criar novas formas de obter lucro através da internet, fazendo com isso, uma vigilância dos gostos e costumes de seus usuários, o que proporciona um domínio de mercado, levando assim à velha conhecida manipulação, que trataremos mais adiante. Agindo dessa forma, percebemos também que há uma grande influência dessas empresas sobre os ambientes que elas criam para seus usuários se sentirem à vontade para falar, comprar, pesquisar ou compartilhar o que quiserem, mas que na verdade essas pessoas estão sendo manipuladas pelos seus interesses mercadológicos. A internet é um lugar extremamente propício para o crescimento de uma inteligência coletiva, no entanto esses espaços criados por essas empresas demonstram serem ambientes livres para compartilhamento, mas que detêm fortes indícios de que manipulam as ações de seus usuários. Desse modo, considerando que a inteligência coletiva acontece de maneira espontânea, percebemos que nesses ambientes não acontece livremente. Mas antes de nos aprofundarmos nesse assunto, vamos conhecer melhor o conceito de inteligência coletiva e como ela se desenvolve. Capa 79 - Marcos Nicolau Sumário 2 Inteligência coletiva: a onipresença do saber A inteligência coletiva, teoria bastante difundida por Pierre Lévy (2004), define tudo aquilo que envolve as capacidades cognitivas, técnicas, habilidades e conhecimentos de todos os seres humanos individualmente, mas que unidos formam uma grande rede de informações. De acordo com suas afirmações, ela é uma inteligência compartilhada em todos os lugares, avaliada constantemente, coordenada em tempo real, que conduz a uma mobilização efetiva das habilidades, tudo isso acontecendo de forma espontânea. O autor parte do pressuposto de que ninguém sabe tudo, todo mundo sabe algo e o conhecimento, de uma forma geral, está na humanidade. O conhecimento de cada um é a matéria-prima para a formação da inteligência coletiva. Dessa forma um conhecimento é passado de pessoa para pessoa afim de que faça parte de um conjunto de informações Até mesmo nos lugares onde as pessoas são tidas como “ignorantes” existe a inteligência coletiva. “A luz do espírito brilha bem ali onde se trata de fazer crer que não tem inteligência: “fracasso escolar”, “simples execução”, “subdesenvolvimento”, etc. [...] A inteligência coletiva só começa com a cultura e aumenta com ela.”31 (LÉVY, 2004, p.20, tradução nossa). “La luz del espíritu brilla incluso allí donde se trata de hacer creer que no hay inteligencia: “fracaso escolar”, “simple ejecución”, “subdesarrollo”, etcétera. [...]La inteligencia colectiva solo comienza con la cultura y aumenta con ella.” 31 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Quando se pensa em inteligência coletiva, pode-se remeter ao pensamento com diferentes idiomas, com tecnologias cognitivas, mas a inteligência culturalmente informada não é programada. Por transmissão, invenção ou esquecimento, o patrimônio comum passa a ser de responsabilidade de todos. “A inteligência do conjunto já não é resultado mecânico de atos cegos e automáticos, pois aqui é o pensamento das pessoas que o perpetua, inventa e põe em movimento a sociedade.”32 (LÉVY, 2004, p.22, tradução nossa). É importante ressaltar que a inteligência coletiva se desenvolve de maneira espontânea, é uma rede de conhecimentos extremamente vasta sobre a qual ninguém detém domínio algum. Entretanto, a partir do momento que alguém, no caso do nosso estudo, as empresas, simula um ambiente de ações espontâneas, mas na verdade tem um intuito camuflado de manipulação e domínio, aí deixa de haver uma inteligência coletiva. Essa rede de informações passa a ser negada. 3 Passado manipulado, presente manipulável. As instituições, no contexto midiatizado, seguem o desígnio da visibilidade para ganhar seu espaço, instigando diversos tipos de esforços e sucedendo conforme “La inteligência del conjunto ya no es el resultado mecánico de actos ciegos y automáticos, pues aqui es el pensamiento de las personas lo que perpetua, inventa y pone en movimiento el de la sociedad.” 32 Capa 81 - Marcos Nicolau Sumário especialidades das mídias. As suas ações ultrapassam aquelas práticas tradicionais de comunicação com seus diversos públicos e cria novos tipos de relacionamentos. Tal relação é potencializada pelas tecnologias digitais, que surge conforme os caminhos trilhados pela própria sociedade contemporânea. A midiatização vem sendo responsável por mudanças em vários aspectos da vida humana, entre esses aspectos está a economia da sociedade midiatizada. As organizações configuram-se como espaço privilegiado, visto que na maioria das vezes, elas são as próprias proprietárias dos meios que interagem com seus públicos. Com isso, seus interesses são facilmente alcançados, sejam eles de teor sociais, financeiros ou de poder, interesses estes que regem as mídias desde seus primórdios. As estratégias organizacionais frequentemente tentam “esconder” seus reais interesses (por mais que saibamos que seu único e principal interesse seja o lucro), através de discursos que convencem os mais diversos indivíduos. Evidenciamos e defendemos aqui, que estes discursos tentam, de alguma forma, burlar a pura e simples manipulação. E parece-nos importante conceituar tal termo, visto nosso interesse em trazer à tona suas implicações. De forma breve, por manipulação entendemos ser o ato de levar alguma pessoa ou grupo a fazer algo, sem que ela perceba o principal interesse. Nos modelos teóricos tradicionais de comunicação, uma das grandes questões que se estudou foi se o recep- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 83 - Marcos Nicolau tor era passivo ou ativo nos processos de transmissão de informação pelos meios de comunicação de massa. Segundo Braga (2006, p. 61) isso já é coisa do passado: Superamos já uma percepção (vigente pelo menos até os anos 1980), de que os usuários dos meios ditos “de massa” seriam homogêneos, passivos e, portanto facilmente manipuláveis. Reconhece-se hoje uma possibilidade de resistência (baseada em mediações culturais extramidiáticas) do “receptor”. Mas, se o “receptor” resiste, isso não significa necessariamente que faça as melhores interpretações, os melhores usos. (grifo nosso) Contudo, mesmo existindo essas formas de resistência, enxergamos que ainda nos dias atuais, esse caráter de manipulação exista nos novos meios digitais de interação social. E acreditamos necessário, que os usuários aprendam a interpretar e selecionar suas escolhas, desenvolvendo uma “autonomia interpretativa” (2006, p. 63), o que a nosso ver, faria com que estes escapassem do fascínio manipulador nos meios da contemporaneidade. Para Carvalho33 as mídias passaram a ser utilizadas como instrumentos de engenharia social, devido principalmente ao que o autor chamou de “uniformidade da mídia” nos tempos atuais. O autor diz que a mídia não mais se vincula a difusão de informação, e sim ela passou a ter controle sobre o curso das informações que são direciona- dos para gerar certos padrões sociais, produzindo padrões comportamentais específicos. As mídias, em pouco tempo, levam o povo a mudar de atitude ou de valores como se fosse coisa da vida inteira. Alfonso Lópes Quintás em entrevista34 nos revela que: Os meios de comunicação nos oferecem um elenco de possibilidades indefinidas para informar-nos, distrair-nos, compartilhar outras vidas, assistir a toda sorte de acontecimentos relevantes. Dispor de tais possibilidades supõe uma impressionante liberdade de manobra, que nos dá uma impressão de poderio e riqueza. Basta clicar um botão para abrir-nos a um horizonte sempre novo de paisagens, concertos, notícias, acontecimentos de toda ordem. Este aumento diário de nossa “liberdade de manobra” nos embriaga e seduz. Tal fato se propaga evidentemente nas empresas que fazem uso das novas tecnologias digitais, ou melhor, as grandes empresas que estão na internet, e são provenientes dela. Silverstone (1999, p. 47) afirmou que “a nova mídia é construída sobre as bases da velha”, e junto a isso, nasce também, neste mundo da internet, uma nova economia baseada na antiga. Tornando-se para as grandes empresas uma enorme vantagem, uma vez que são elas que detêm o uso que fazemos dos seus serviços, monitorando cada um dos usuários/clientes, e lucrando com o consumo: Entrevista disponibilizada na página: http://www.zenit.org/ article-5976?l=portuguese 34 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IE6IOCsVkvs 33 Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas A esfinge do consumo. Autorizadas por uma economia supostamente livre de atrito, em que as escolhas entre produtos são infinitas, a informação sobre eles acessível e clara, e nossa capacidade de decidir entre eles (finalmente) racional, nossas decisões de compra, como indivíduos e como instituições, não seriam restringidas por nada, a não ser por nossa capacidade de pagar. Ao mesmo tempo, no entanto, essa autorização é comprometida pelas várias estratégias que as empresas, tanto globais como locais, estão desenvolvendo para recrutar e restringir nossas escolhas. Nossas decisões de compra são registradas, preferências são verificadas, gostos definidos, fidelidades reclamadas. (SILVERSTONE, 2002, p.55) Percebe-se com isso que a sociedade cada vez mais, recebe influências dos padrões midiáticos. A presença dos meios de comunicação como mediadores tem sido cada vez mais marcante para as relações sociais. Surpreendem-nos vivermos em uma época dita de maior circulação e acesso a informação e ainda assim, empresas privadas tentarem por várias formas manipular seus clientes, visto que além de termos as informações ao nosso alcance, os estragos causados, caso um usuários se rebele contra as artimanhas da empresa, seriam bem maiores do que quando só existiam os meios de comunicação de massa. Grandes empresas, como Google35 e Facebook36, trazem em sua missão e filosofia um discurso de benfeitor 35 36 Disponível em: http://www.google.com.br/about/company/ Disponível em: http://www.facebook.com/facebook Capa 85 - Marcos Nicolau Sumário resguardando a todo tempo seus principais interesses que muitas vezes passam despercebidos por seus usuários. Tais empresas usam seu modelo de negócio para modular comportamentos, cria novos gostos e padronizar fenômenos que alteram as mais diversas formas de cultura. Nesta discursão trazemos também a visão de Rodrigues (2012) sobre a preocupação nos estudos dos novos meios tecnológicos de mediação que continuam a assegurar o uso de estratégias para os diferentes campos. Sendo assim, Rodrigues mostra que não podemos separar as abordagens do media como responsáveis pelas interações mediáticas, e o seu uso como instrumentos de manipulação. Para o autor é “impensável a inexistência de discurso não manipuláveis” (2012, p. 15) em tais meios: Os discursos veiculados pelos media são manipuladores como manipuladores são todos discursos que circulam no tecido social. Falar é fazer crer e fazer crer é levar os interlocutores a adotar comportamentos conformes com a crença que os locutores pretendem fazer aceitar. É que, a partir do momento em que qualquer discurso visa fazer aceitar pelos seus interlocutores aquilo que o autor crê ser verdadeiro, ter ocorrido, ser razoável e ser relevante, no quadro enunciativo que delimita o mundo desse discurso, não é plausível a existência de um tipo de discurso que não vise levar o interlocutor a aceitar aquilo que pretende fazê-lo aceitar. (RODRIGUES, 2012, p. 16) Tal fato nos faz questionar o que até agora havíamos reprimidos, uma vez que vemos algumas técnicas de manipulação serem utilizadas de forma que prejudique eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 87 - Marcos Nicolau o receptor de determinado discurso, seja para o uso dos seus serviços, ou para a compra de seus produtos. E por mais que todo discurso que tente convencer o outro de algo seja em sua essência manipulável, não podemos nos tornar sujeitos passivos, principalmente quando tais manipulações vão contra o progresso e desenvolvimento de formas de melhorarmos capacidades humanas. Há aos montes empresas que praticam tais discursos, e o Facebook é uma delas, pois ela tenta convencer seu público de que faz algo exclusivamente em benefício social, voltado ao interesse público, quando na verdade ela manipula a usabilidade e as trocas na sua rede, colocando a prova o cerne da inteligência coletiva, que é o que analisaremos em seguida. (2011), acreditamos que para entendermos as transformações sociais atuais, se faz necessário estarmos atentos a como os meios tecnológicos operam. Dispositivos móveis como notebook, celulares, tablets, smartphones, tecnologias wi-fi, tornam-se actantes37 nos processos midiáticos, possibilitando que as barreiras espaço/tempo sejam quebradas, o que modifica a forma de interação do homem com o outro, com as organizações e com as próprias tecnologias. No ciberespaço as instituições se estruturam a partir de ações que reposicionam as diferentes finalidades dos usos de tais meios, o que foram possibilitados pelo desenvolvimento das novas tecnologias. 4.1 A interatividade como discurso 4 Uma ambiência propícia à manipulação O ciberespaço é a ambiência que surgiu a partir da interconexão mundial de computadores e tem as tecnologias digitais como sua infraestrutura. Lévy (1999, p 32) diz ser um “novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento”, sendo aberto a todos, seja indivíduos, instituições ou governo que tenham acesso à internet. Já pudemos perceber que as mídias digitais, na sociedade pós-moderna, têm cada vez mais um papel central sobre as relações humanas. E assim como McLuhan Capa Sumário Atualmente quanto mais interativa for uma ferramenta, rede social ou site, mais interessante ele torna-se aos olhos do público. Mais o que é interatividade? E interação? Existe diferença nestes dois termos? Essas são perguntas essenciais para se compreender a oferta mercadológica de tantos produtos tecnológicos ditos interativos. Alex Primo (2008) revela que são variados enfoques Termo utilizado na Teoria Ator-Rede (TAR) por Bruno Latour e outros, que optaram pelo termo, pois a palavra “ator” se remetia só a seres da espécie humana, quando ele defende que os actantes são seres humanos e não-humanos (objetos, materiais, objetos e sensações), que associados desempenham ações que originam outras ações dentro de uma rede. 37 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas que abordam o conceito de interatividade. São perspectivas tecnicistas, mercadológicas, do comércio informático e informacionais. Para o autor torna-se uma armadilha tentar diferenciar os termos interação e interatividade, pois eles representam, na verdade, a mesma coisa, porém deve-se distingui-los somente qualitativamente. Interação seria a “ação entre” diferentemente da comunicação que é a “ação compartilhada”. Quando estabelecemos acima uma ambiência de desenvolvimento tecnológico – o ciberespaço - não estamos dizendo que ela é a única e que foi dela que surgiram diferentes formas de interação entre os indivíduos. Pelo contrário, é bom termos em mente que a interação faz parte da história da raça humana (sendo a face a face, a mais antiga) e que só se ampliaram as possibilidades, devido ao surgimento de mecanismos de interação mais modernos. Tais mecanismos, no caso os digitais, moldaram a forma das relações sociais na contemporaneidade, e decorrem destes, relações e interações extremamente complexas, que devido à velocidade das transformações, devem ser analisadas levando em consideração seu contexto específico. Raquel Recuero (2009) fez uma análise das redes que se desenvolveram devido ao advento da internet, especificamente as redes sociais online, e delineia as transformações de aspectos sociais e informacionais, decorrentes das redes que se constituem parte estruturante do ciberespaço. Capa 89 - Marcos Nicolau Sumário Para a autora as conexões que são estabelecidas nesta ambiência são percebidas devido aos rastros deixados pelos indivíduos e suas interações. As redes estão em constante mutação, por isso, suas dinâmicas podem influenciar o surgimento de novos padrões estruturais e as relações provenientes destas. Porém, Recuero (2009, p. 30), embasando sua visão nos estudos de Parsons e Shill, afirma que “a interação, como tipo ideal, implicaria sempre uma reciprocidade de satisfação entre os envolvidos e compreende também as intenções de cada um”. Os sites de redes sociais, como Facebook, seriam estruturadores, pois possibilitam que os indivíduos se expressem, sendo compreendidos como ferramentas de auxilio às interações sociais. Com isso, tais sites são utilizados com diferentes fins: “a) Criar de um espaço social; b) Gerar interação social; c) Compartilhar conhecimento; d) Gerar autoridade; e e) Gerar popularidade.” (RECUERO, 2009, p. 105). Contudo, pode-se perceber a existência de outras formas de utilização das redes sociais, principalmente, as que decorrem da lógica do mercado. No que se trata da interação, segundo Recuero, ela deve satisfazer os dois lados, entretanto, quando empresas como Facebook usam de indicadores publicitários para influenciar seus usuários, passando por cima dos reais interesses e necessidades individuais (visto que eles só supõem que precisamos e nos interessamos por determinada publicidade), suas ações eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas publicitárias são invasivas e fogem ao real interesse de estar conectado a tal rede social. Não negamos aqui a importância das interações (e a que nos interessa são as sociais) existentes entre os usuários do Facebook, com seus compartilhamentos e “curtidas”, podendo até se expandir para fora de tal rede, e que estão na maioria das vezes associadas aos interesses e gostos comuns entre tais. Contudo, o simples fato de algumas publicidades existirem o tempo todo em nossos perfis, não nos deixando escolha, em ocultar sua visualização, e nos limitando somente, em clicar ou não na publicidade, nos remete a interação reativa que “é limitada por relações determinísticas de estimulo e reposta” (PRIMO, 2008, p. 57), o que de certa forma não atende as expectativas dos usuários de uma comunicação plena, pois continua com o tradicional modelo de estimulo-resposta. Tal discursão nos remete a uma questão bastante atual sobre privacidade, visto que grande parte do que nos é ofertado na rede, como no caso das publicidades, e também das atualizações dos nossos amigos, são suposições que algoritmos38 criam a partir dos rastros que deixamos por um simples click (que pode ocorrer até por um descuido) em nossas navegações. No que concerne ao termo interatividade, o seu emprego tornou-se bastante apropriado para os tempos atuais, sendo utilizado, principalmente, por diversos mercados publicitários e produtos midiáticos. Seu uso no 38 http://pt.wikipedia.org/wiki/Algoritmo Capa 91 - Marcos Nicolau Sumário discurso publicitário favorece a concepção de novas estratégias de negócios, baseado, contudo, nas propostas sedutoras para seus públicos. Conforme Primo (2008) tal termo se tornou um “argumento de venda”, seja para produtos eletrônicos com uma interação somente homem-máquina, seja nas promessas interativas que determinadas empresas que fazem uso da internet, oferecem em seus serviços, e na maioria das vezes de forma antiética. Vemos claramente o Facebook atuando de tal forma, uma vez que seu discurso de ambiência interativa, encobre todo o jogo que há nas interações que ali ocorre, influenciando e limitando os desdobramentos das relações em sua rede, o que classificamos como falsa interatividade, utilizadas pelos mercados. 4.2 A tentativa de negação O desenvolvimento dos meios de comunicação e informação não só criaram novas formas de interação, como também criaram novos tipos de ações (estratégias) institucionais com particularidades e consequências diversificadas. A particularidade mais geral destes novos tipos de ações é que as formas de manipulação dos indivíduos ganharam ferramentas mais eficientes, as quais determinados modelos de negócio passam a tratar seus usuários como meros objetos e produtos, lucrando com a comercialização de suas informações. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Nos tempos atuais enfrentamos inúmeras contradições, entre elas os discursos das organizações que tentam a todo custo lucrar, passando por cima de barreiras éticas essenciais. Bastos (2003, p. 196) em seu trabalho sobre o que venha a ser contradição nos dá quatro acepções possíveis para tal: • Contradição no sentido eminentemente lógico; • Contradição no sentido de interesses distintos e antitéticos; • Contradição no sentido da junção, da justaposição, da interpretação, ou ainda, da combinação de teorias incongruentes, ou seja, de teorias que contenham um ou mais aspectos díspares entre si. • Contradição no sentido da disparidade entre os elementos adotados para a descrição matemática da realidade com os elementos que constituem em propriedades objetivas da própria realidade descrita. Não querendo correr o risco de misturar tais acepções, o que nos vai interessar aqui é a “contradição no sentido de interesses distintos e antiéticos”, que estão ligados a interesses de pessoas ou de grupos sociais, aplicando-se muito bem às contradições das organizações atuais, no que diz respeito ao seu discurso único de trabalhar para o outro, quando na verdade usa este outro, para dominar o mercado em que atua. O que o Facebook faz é exatamente o que define o Aurélio (p. 264) sobre o termo contradição, pois a Capa 93 - Marcos Nicolau Sumário rede social possui uma: “incoerência entre o que se diz e o que se disse, entre palavras e ações”. Sua missão é de “dar as pessoas o poder de compartilhar e tornar o mundo mais aberto e conectado” 39, porém o que realmente ocorre é a simulação de uma verdade, pois seu discurso nos faz crer que temos liberdade, quando todas as nossas ações dentro de sua rede são manipuladas e direcionadas. Mark Zuckerberg, em seu discurso benevolente diz que fundou “o Facebook com a ideia de que as pessoas querem compartilhar e se conectar com as pessoas que fazem parte de suas vidas, mas para isso todos precisam de controle completo sobre com quem eles compartilham em todos os momentos” (tradução nossa) 40, a sedução no seu discurso nos faz não mantermos a distância necessária para descobrirmos o risco que corremos, e questionarmos se eles realmente fazem o que prometem. A manipulação fica evidente na insistência do Facebook em propor que, em nossos perfis, adicionemos, como amigos, pessoas que “talvez” nós conheçamos, o que aumentaria seu leque de informações a nosso respeito, pois com simples ações como: adicionar um amigo, curtir uma página ou comentário, conversarmos mais com Página oficial do Facebook: http://www.facebook.com/facebook/info 40 Disponível em: http://blog.facebook.com/blog. php?post=10150378701937131. Tradução para: “I founded Facebook on the idea that people want to share and connect with people in their lives, but to do this everyone needs complete control over who they share with at all times.” 39 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas determinadas pessoas - faz com que a empresa crie um perfil que diga coisas sobre nós, que ultrapassa qualquer respeito a nossa privacidade. O Facebook faz parecer que temos o controle das escolhas do que fazemos dentro de sua rede, mas demonstra sua contradição quando optamos por excluir alguma informação. Sua Politica de Privacidade41 alega que algumas informações, mesmo quando excluímos, são mantidas para que eles nos possam “fornecer a melhor experiência possível no Facebook” 42. E para fazermos uso dos seus serviços, precisamos concordar com tal, possibilitando que a manipulação nos vença forçosamente, sem nos convencer de que é a melhor escolha para nós. Sobre manipulação, entendemos que, Manipula o que quer vencer-nos sem convencer-nos, ou seja, o que tenta seduzir-nos para que aceitemos o que nos oferece sem dar-nos razões. O manipulador não fala a nossa inteligência, não respeita nossa liberdade (nível 2); atua astutamente sobre nossos centros de decisão a fim de arrastar-nos a tomar as decisões que favoreçam seus propósitos (nível 1). (QUINTÁS, 2004)43 As pessoas são levadas a pensar que estão ali para satisfazer seus próprios interesses, quando na verdade http://www.facebook.com/about/privacy/ http://www.facebook.com/help/330229433729799/ 43 Entrevista disponibilizada na página: http://www.zenit.org/ article-5976?l=portuguese 41 42 Capa 95 - Marcos Nicolau Sumário elas servem de objeto para o mercado, de lucro que o Facebook obtém quando disponibiliza nossos dados para outras empresas de publicidade que trabalham em parceria, pois seu real interesse é vender produtos, coletar informações, manipular pessoas. Torna-se um grande jogo de interesses, de negação de uma inteligência coletiva que se estrutura em sua ambiência. Embora não tenha expressado claramente que a sua ambiência é voltada à criação da inteligência coletiva, o Facebook prega em seu discurso aspectos dessa inteligência. Quando cria novos aplicativos, por exemplo, a rede social nos oferece novas ferramentas de simples utilização, nos fazendo agir através delas, como se fosse algo espontâneo, que tem um desenrolar natural. Contudo, suas intensões não são tão boas assim, pois ao nos possibilitar novas experiências com suas ferramentas, ela nos mantém em seus domínios, nos monitorando e vigiando a cada “passo”, simulando uma interatividade, uma troca, quando o valor agregado nesta troca torna-se irrelevante, pois temos como já foi dito, nossa privacidade tratada, de forma eticamente negativa. A negação seria aqui uma das contradições que queremos destacar no discurso do Facebook. Quando esta rede social faz uso dos princípios que criam a inteligência coletiva, disponibilizando uma ambiência para que flua livremente, nos fazendo crer em uma autonomia individual, ela nos manipula e seduz, pois tal ambiência só é uma simulação do que deveria ser. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Recentemente a empresa anunciou que chegou à marca de um bilhão de usuários44, mas será que ela levou em consideração quantas destas pessoas realmente usam a rede? Quantos perfis falsos existem? Quantas foram às pessoas que só criaram a conta e deixaram para lá? E também de quantas pessoas possuem mais de um perfil na rede? Parece que a todo custo o Facebook quer nos passar a ideia que valoriza e leva à inteligência coletiva, nos dando liberdade para compartilhar e trocar informações espontaneamente. Entretanto, quando a rede diz tratar-se de um ambiente livre, mas na verdade manipula, ela nega a inteligência coletiva, pois tal manipulação contradiz seu discurso encoberto por seus reais interesses, demonstrando a sua falta de mérito a formação de uma inteligência coletiva, como nos foi apresentada por Lévy (2004). Considerações finais Percebemos diante das reflexões aqui apresentadas que a existência de um novo bios, o bios midiático, dá a mídia centralidade e configura a forma que enxergamos o mundo, nossas experiências e nossas articulações com as pessoas. Estamos cada vez mais influenciados pela padronização midiática, sendo estruturadoras das nossas interações com o outro, com empresas e instituições em geral. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/jovem/redes_ sociais/noticias/facebook-chega-a-1-bilhao-de-usuarios. Acesso em 13 Nov. 2012. 44 Capa 97 - Marcos Nicolau Sumário O fator mercadológico norteia a era da informação na qual vivemos. As possiblidades trazidas pelos meios tecnológicos digitais proporcionam às organizações a utilização de ações estratégias diversificadas, todas no intuito de atingir o maior número de pessoas para fazerem uso dos seus serviços. As empresas se reorganizam segundo a lógica da mídia, com fim de obter visibilidade e legitimação. A participação coletiva é responsável por unir interesses em comum, em espaços coletivos que se sustentam a partir das conexões sociais, trazendo enriquecimento recíproco através da construção de uma inteligência coletiva. Mesmo tendo reconhecido a manipulação como caráter inerente ao discurso, é importante para o desenvolvimento social mais justo, reconhecermos e estarmos alerta para se necessário podermos agir vigorosamente contra. As empresas com seus discursos contraditórios nos levam a crer que estamos fazendo escolhas por nossas próprias necessidades, quando na verdade ela manipula e tenta nos seduzir através de tais discursos contraditórios, que muitas vezes aceitamos, por um baixo teor crítico de nossa parte, dando oportunidade às empresas de dirigir nossa conduta. O Facebook tenta se posicionar como uma empresa que só quer o melhor para todos os seus usuários, nos manipulando ao ponto de sentirmos necessidade de estarmos entre os um bilhão que ela diz fazer parte da sua rede. E como mostramos, ela deturpa o principio da inteligência coletiva que ali se mostra presente, mas que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 99 - Marcos Nicolau é negada a partir do momento que ela manipula as ações dos usuários dos seus serviços que deveriam ser livres e autônomas. Pode-se dizer, portanto, que a negação da inteligência coletiva pelo Facebook, cumpre a missão de organizações como ela, que criam comportamentos que lhes garantam sobreviverem na nova ambiência proporcionada pelas mídias, com a finalidade única de lucrar no segmento de mercado o qual faz parte. Contudo, quando enxergamos tal realidade nos questionamos sobre o domínio que empresas como Facebook têm em nossas vidas, nos manipulando, nos garantindo uma reciprocidade justa para os dois, quando na verdade quem na maioria das vezes sai na vantagem são elas, e quem realmente perde consideravelmente, somos nós, indivíduos, sociedade, sendo usados como peças manipuláveis em seu jogo. Referências BASTOS, Jenner Barretto Jr. O que é contradição? Algumas de suas possíveis acepções. Disponível em: <http://www.fsc. ufsc.br/cbef/port/20-2/artpdf/a3.pdf> Acessado em: 01 Nov. 2012. BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006. 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In: Encontro da Rede Prosul: Comunicação, Socie- Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Série, cartazes e fones de ouvido: a lógica da transmídia publicitária na midiatização Alan MASCARENHAS45 Andréa POSHAR46 Danielle VIEIRA47 Resumo As estratégias mercadológicas hoje passam por mudanças: à medida que a comunicação e interação entre indivíduos é potencializada, novas configurações surgem no fazer publicitário, sobretudo nas mídias digitais. Vários formatos, recursos audiovisuais, narrativas e discursos já não possuem as mesmas estruturas de poucos anos atrás, a exemplo do cartaz publicitário. Mídia secular e impressa que hoje passa por um processo de reconfiguração no qual é digitalizado, com recursos interativos. Metrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). Email: alanmangabeira@ gmail.com 46 Metranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). Email: andrea.poshar@gmail. com 47 Metranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). Email: dani.daniellevieira@ gmail.com 45 Capa 101 - Marcos Nicolau Sumário Criado para reforçar a relação indivíduo/marca e imergi-lo neste “novo” ambiente, podemos encontrar no cartaz digital interativo um potencial meio para campanhas transmídia. Ora, se a transmídia imerge o indivíduo em seu conteúdo, “transborda” as informações permeando todo seu ambiente, incluindo o físico, o cartaz digital interativo pode ser incluso como um meio que respalda sua comunicação. No entanto, o que vemos na prática é o contrário. Temos como objetivo demonstrar estas possibilidades potencializadoras da comunicação: a reconfiguração de meios publicitários, como o cartaz, que podem dar margem à comunicação criativa e imersiva, a exemplo da transmídia através da série de televisão norte-americana The Big Love. Palavras-Chave: Cartaz. Televisão. Transmídia. Midiatização. Publicidade. Introdução Seria um longo título se não tivéssemos pontuado três elementos nele. Os quais de forma alguma são tendenciosos a dizer que alguns meios ou plataforma são mais expressivos da nossa época ou mais “transmidiáveis” do que outros, já que o elemento a apresentar um teor de transmidiação não é o meio, mas sim seu conteúdo, capaz de expandir este meio de uma forma tão elásti- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas ca que ele vira um líquido, um plasma, capaz de fagocitar outros meios com funções distintas, as quais André Lemos dividiu em massivas e pós-massivas. Falamos então de séries, cartazes e fones de ouvido por eles permearem da casa da sala a uma cibercidade entrelaçada por textos midiáticos, como quando a série dramática The Big Love da HBO norte-americana, reintitulada de “Amor Imenso” no Brasil, que além de possuir os já usuais blogs ficcionais de personagem, onde podem expandir a narrativa da televisão, teve uma campanha de divulgação que incluía cartazes interativos da emissora espalhados pelas ruas de Nova Iorque e Los Angeles, nos Estados Unidos, com dispositivo de emissão de áudio para que o usuário conectasse seu fone de ouvido na mente dos personagens e pudesse ouvir o pensamento deles. Baseado no tema do seriado “Todos têm um segredo a esconder”, a imagem do cartaz consistia em uma típica cena do cotidiano: pessoas cruzando uma avenida, caminhando na calçada, umas falando com as outras etc. Assim, fotos de pessoas se confundem com o aglomerado dos grandes centros, exceto pelo fato de que o pensamento dessas pessoas feitas de bytes podem ser lidos ou, mais precisamente, ouvidos quando um fone de ouvido era introduzido no input disponível na cabeça dos personagens. Se temos uma estrutura aparentemente funcional para o transmídia com uma série televisiva que expande-se em um blog repleto de vídeos dos personagens, temos ao mesmo tempo o traço massivo carregado pelas mídias an- Capa 103 - Marcos Nicolau Sumário teriores (cartazes, livros etc) presentes no cartaz interativo dentro dos aspectos transmidiáticos, já que ele atua como uma interatividade reativa (PRIMO, 2008), quando toda resposta da mídia será a mesma para qualquer ação humana diante deste cartaz, ou seja, só uma mensagem será ouvida pelos fones de ouvido e ela não se adapta a novas situações. Nossa questão aqui é trazer o cartaz à tona como uma mídia que se reconfigurou diante das possibilidades de conexão da internet, mas na prática não reinterpreta as funções de outras mídias, como a televisão interfere nas funções pós-massivas da internet e o contrário também acontece. Tratamos da série The Big Love exatamente por ela trazer de forma tão latente este fenômeno no cartaz e no blog. Se a série, representando a internet, reinterpreta o cartaz e o aciona enquanto mídia interativa, ele não interfere de volta na televisão, como o blog que traz conteúdo inédito à narrativa da série faz, mesmo ele tendo grande potencial para isso. No blog temos imersão em uma narrativa fragmentada em plataformas com diferentes funções, trazendo textos informacionais relevantes e exclusivos para a internet, confluindo no que Henry Jenkins (2003, 2008) chama de narrativas transmidiáticas. Tendo um aporte teórico das novas estruturas publicitárias diante da midiatização social, chegamos ao cartaz interativo digital como um dos exemplos desta lógica, que pode reestruturar o conteúdo em uma transmidiação, eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas mostrando sua potencialidade em situação de convergência, com a qual questionamos certa irrelevância das mídias “antigas” em produções transmidiáticas. 1 A publicidade e sua reconfiguração Em tempos de conexões instantâneas, fluidez, velocidade e aparente predominância da imagem, uma constante reconfiguração de padrões se faz presente em nossa sociedade. No âmbito do consumo, tanto as práticas do produtor quanto do consumidor têm sido modificadas. De acordo com McLuhan (2005), desde o século XIX, com a transformação da galáxia tipográfica mecânica em elétrica, temos sido direcionados a vivermos em um mundo de consumo. Sendo assim, as estratégias mercadológicas também passam por mudanças e, em decorrência disso, novas configurações surgem no fazer publicitário, sobretudo nas mídias digitais. Formatos, recursos audiovisuais, narrativas e discursos já não são os mesmos de poucos anos atrás. Permanece o viés persuasivo, entretanto outras dinâmicas vão sendo incorporadas, diante da mudança no fluxo da comunicação e dos novos suportes e modelos de relacionamento, cada vez mais horizontalizados. Vemos surgir, portanto, novas tendências publicitárias, que podem ser mais bem explicadas com o suporte dos estudos da midiatização. Isto porque, as próprias ambiências que observamos no cenário atual são frutos de processos midiatizados. Capa 105 - Marcos Nicolau Sumário Na cibercultura, tais processos são potencializados. As maneiras de se relacionar se modificam e dão espaço para usos e benefícios que não eram possíveis anteriormente. As formas de interação e de sociabilidade são expandidas. Antônio Fausto Neto, pesquisador dos desdobramentos da midiatização, aponta que a relação dos consumidores com os meios não é mais a mesma. Os receptores se aproximam do centro dos processos produtivos midiáticos. Segundo o autor, a midiatização “produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais” (FAUSTO NETO, 2009, p. 1). Sendo assim, as práticas inerentes à publicidade nas mídias digitais refletem esse atual momento, que se intensifica com a conversação das tecnologias comunicativas. Flores e Barrichelo (2009) discutem o papel da tecnologia no processo de midiatização, entendendo-a como potencializadora das formas de atuação. No estudo das práticas publicitárias, percebemos que ela possibilita novas ações, permeando a produção, circulação e recepção dos conteúdos, alterando em muitos casos a própria estrutura das campanhas. Fruto de uma mudança tecnológica e cultural muito forte nas últimas duas décadas, a interatividade é um dos aspectos mais recorrentes nas peças atuais. De acordo com Lemos (2010, p. 115), “Esta nova qualidade da interatividade (eletrônico-digital), com os computadores e o ciberespaço, vai afetar de forma radical a relação entre o sujeito e o objeto da contemporaneidade”. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas A publicidade utiliza essas dinâmicas para construir suas estratégias. Além da interatividade, tem sido nítida a busca pelo envolvimento, participação e sensação de imersão, entre outras características. Os indivíduos não se conformam em simplesmente ter algo novo; eles são movidos por um apetite experiencial, que os fazem querer estar envolvidos com determinado universo. Isso é explicado pelo que Lipovetsky (2007) aponta como “consumo emocional”. A partir dele, os sujeitos têm a possibilidade de vivenciar experiências afetivas, imaginárias e sensoriais, buscando a sensação de imersão em determinada cultura. A cartada da sensorialidade e do afetivo tem sido fortemente presente nas campanhas. Os sentidos (tato, olfato e paladar) passam a ter uma importância no consumo que não possuíam anteriormente. Com o apelo às sensações aumenta-se a possibilidade de envolvimento do consumidor com a publicidade em si e com o produto anunciado. Assim, se estabelece o que Chiminazzo (2008) considera como uma “nova amizade”, uma relação “pseudo-social”, a partir do prolongamento da experiência. Outra mudança se dá nas fronteiras entre informação, publicidade e ficção, que passam a ser mais tênues. O entretenimento é vinculado como uma estratégia eficaz no diálogo entre as partes, aumentando a interação da empresa com o público. Além desses fatores, em muitos casos a convergência entre as mídias é utilizada pelos anunciantes, que exploram o que há de melhor em cada Capa 107 - Marcos Nicolau Sumário uma delas. Em uma contemporaneidade marcada pelo digital, observamos também o aumento da quantidade de suportes midiáticos, sendo perceptível a necessidade de criar linguagens específicas a eles. Cabe destacar que as linguagens publicitárias apre- sentam relações com os espaços engendrados pelos diferentes meios. Isto significa que não basta contemplar apenas as características formais e funcionais de cada meio para que se tenha a dimensão do que cada um deles representa e de como deve ser trabalhado; é necessário considerar também a apropriação dos espaços pelas linguagens publicitárias (PEREIRA, 2009). Sendo assim, a análise acerca da publicidade não deve ser reduzida aos seus aspectos gráficos e dimensionais, sejam eles textos ou imagens. É fundamental observar os novos espaços e a cultura onde eles estão inseridos. Como constata Pereira (2009), cada mensagem em um suporte diferente vai inaugurar novos espaços publicitários, e com as mídias digitais não é diferente. Toda publicidade deve ser formulada de acordo com a linguagem do meio em que se expressa. Para entender a linguagem de um meio é preciso pensar a respeito de um conjunto de fatores: as características materiais dos meios, do corpo humano (cognição do indivíduo) e as práticas de comunicação. Portanto, as linguagens publicitárias se desenvolvem também com base nos usos dos meios. Ou seja, pela maneira como um grupo social se apropria de um meio e interage com ele. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Em todo caso, é fundamental a compreensão de que seu surgimento se dá a partir da convivência com linguagens de outros meios. De acordo com Pereira (2009, p. 76), É possível pensar que as linguagens publicitárias nos meios digitais reproduzem linguagens publicitárias de outros meios anteriores, até que as linguagens dos novos meios em que operam estejam suficientemente maduras para que, então, possam se expressar de modo diferenciado e próprio. O autor explica que algumas características da publicidade criada para as mídias anteriores são mantidas, e sobre elas, são incorporadas outras particulares. Trata-se de um processo indicado por Bolter e Grusin (2001) como remediação. Adaptando a ideia ao cenário midiático atual e à publicidade, Pereira acredita que atualmente o processo de remediação está mais intensificado. As linguagens das novas mídias se mostram como remediações. Observamos na publicidade características comuns as do rádio, TV e outros meios, e vemos também uma tentativa de redefinição de linguagens, tentando incorporar elementos específicos do universo digital. Diante deste cenário de novas configurações e constantes inovações, não há padrões fechados para a publicidade. Cada vez mais vemos surgir uma gama de possibilidades, fazendo com que a prática publicitária atinja novos formatos. Constatamos a presença de estruturas em construção, micromercados descentralizados, além de Capa 109 - Marcos Nicolau Sumário práticas crescentes como o advertainment, product placement, transmedia storytelling e cartazes interativos. Essa expansão adquire uma proporção ainda maior devido às mídias móveis, em decorrência das tecnologias portáteis e dos espaços wireless. Como afirma Di Felice (2008), a partir da computação móvel (celulares, PC portáteis, GPS e outros aparelhos) passa a existir uma nova interação das pessoas com as mídias, já que qualquer indivíduo que faça uso de algum desses dispositivos e esteja conectado à rede poderá participar ativamente no processo de criação e divulgação de conteúdos. O uso dessas mídias provoca também uma ressignificação dos espaços e articula diferentes relações do sujeito com o território. 2 Os “novos” cartazes publicitários É sabido que a partir da cultura eletrônica, surgiram os meios massivos de comunicação e, por conseguinte, o compartilhamento, a distribuição e a procura por informação, tornando o acesso ao conhecimento mais rápido e fácil. Ou seja, foi a partir daí que processos comunicacionais, mídias e necessidades da sociedade se tornaram cada vez mais imediatos e fatores de suma importância no surgimento da cultura pós-eletrônica que, segundo Pereira (2008, p. 4), é “resultado de aprimoramentos tecnológicos e já como efeito das inquietações do homem eletrônico”. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas A cultura digital, ou cibercultura, emergiu como uma forma de satisfazer esta “urgência” tecnológica por novas formas de sociabilidade que desencadearam, de fato, na década de 1960, para proporcionar “outros rumos ao desenvolvimento tecnológico, transformando, desviando e criando relações inusitadas do homem com as tecnologias de comunicação e informação”, como aponta Lemos (2003, p. 2). Estes fenômenos de “base micro-eletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática” (op. cit., p. 1) deu início a uma fase de fusões e confluências tanto entre estas novas mídias e os tradicionais meios, como com as tecnologias da informática: “as novas tecnologias são assim, resultado de convergências tecnológicas que transformam as antigas através de revisões, invenções e fusões” (op. cit., p. 3). Para os pesquisadores Bolter e Grusin (2001) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), estes processos de convergências e inter-relações entre os meios não são novos e o que as mídias estão realizando hoje, seus antecessores já o faziam no passado – o que equivale a dizer que o que nos parece novo é, na verdade, um tradicional meio de comunicação “reinterpretado”, ou seja, com formas renovadas (refashioned). Os autores acreditam que esta seja uma das principais características da cultura digital, dado que as ‘novas’ mídias “se apropriam das técnicas, formas e significados sociais de outras mídias” (op. cit., p.65). Capa 111 - Marcos Nicolau Sumário Segundo estes autores, esta é a lógica formal em que as “velhas mídias” (older medium) são representadas e realçadas pelas novas mídias, recebendo novos usos (repurpose), propósitos e formas, identificando-a como remediação. Neste processo, todo meio é capaz de remediar outro, assumindo o status social e econômico da anterior para logo reinserir-se às redes de tecnologia enfatizando suas melhorias e novidades. Já em 1964, McLuhan (1964, p. 67-68) observou estas “inter-relações” entre os meios e afirma: “o cruzamento ou hibridização dos meios libera grande força ou energia, como por fissão ou por fusão [...]. O fato de que se inter-relacionem e proliferem em novas progênies tem sido causa de maravilha através das idades”. De acordo com Lemos (1997, p. 3) as novas tecnologias não surgiram para “substituir, simplesmente ou linearmente, as anteriores. Antes, elas vão proporcionar convergências e fusões”. Porém, vale ressaltar que acreditamos que nada seria da nossa atual cultura digital não fossem os estudos relacionados às linguagens de representação, ou interface, que foram realizados a partir dos anos ’40, de forma que surgisse, comercialmente, qualquer dispositivo digital que conhecemos hoje. Em outras palavras, foi graças ao surgimento e desenvolvimento das interfaces gráficas que meios massivos de comunicação, tal como o cartaz publicitário, foram “digitalizados” ou, como apontam Bolter e Grusin (2001), remediados. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Segundo Santaella (2003), as interfaces surgiram para cumprir o papel de pivô nas relações que se estabelecem entre homem e máquina, ou seja, são elas as zonas fronteiriças na qual se estabelecem as negociações entre o homem e a máquina. Para Johnson (2001), a interface atua como um intérprete, intervindo entre as duas partes, tornando-as sensíveis uma com a outra e criando uma relação semântica, ou seja, estabelecida por meio de significados e expressões e não pela força física. Segundo o autor, “para que a mágica da revolução digital ocorra, um computador deve também representar-se a si mesmo, ao usuário, numa linguagem que este compreenda” (op. cit., p. 17). O cartaz hoje, graças a múltiplos fatores, tais como o desenvolvimento das interfaces, ao processo de remediação e digitalização dos meios tradicionais de comunicação e à necessidade de novas e interativas formas publicitárias, assume atributos e peculiaridades digitais e interativos, passando pelo processo tecnológico que transforma antigas mídias por meio de “revisões, invenções ou junções” (LEMOS, 1997, p. 3). Possuindo lugar cativo na história dos meios de comunicação e tidos como os “barômetros dos acontecimentos social, econômico, político e cultural, como também os espelhos da nossa vida cotidiana”48 (MÜLLER-BROCKMANN, 2004, p. 12), os primeiros cartazes que se têm registro eram pequenas e rudimentares peças manuscritas, Tradução livre de “Posters are barometers of social, economic, political and cultural events, as well as mirrors o four everyday life” (MÜLLER-BROCKMANN, 2004, p. 12). 48 Capa 113 - Marcos Nicolau Sumário que não passavam de 25 centímetros e inicialmente continham apenas texto, cujo principal objetivo era a venda ou troca de produtos. Seu tamanho era tão minúsculo e sua confecção tão artesanal e desorganizada que era impossível a sua leitura e identificação no espaço público. Hoje, como mídia digital interativa, descendem das tecnologias sensíveis ao toque, comumente vistas em aparelhos celulares, tablets, etc. Com isto, observamos que este mantém algumas de suas principais características e praticamente continua sendo o mesmo meio de comunicação que conhecemos não fossem os novos atributos que o diferenciam do seu antecessor impresso, deixando claro que o desenvolvimento e principal objetivo do cartaz digital interativo é ir além do tradicional modelo de papel. Com novos usos, aplicações e suportes, o cartaz hoje é capaz de provocar inúmeros estímulos que buscam levar o individuo à participar e usufruir de seus mais variados recursos: Novas experiências e estudos repetidamente questionaram a eficácia do cartaz, porém, este renova-se constantemente com a descoberta de novas formas de expressão e afirmação [...]. Na verdade, hoje, o cartaz é um dos mais importantes meios de comunicação entre produtor e consumidor, organizador e participante. Ele cumpre um objetivo económico, cultural, político e social49 (MÜLLER-BROCKMANN, 2004, p. 12). Tradução livre de “New experience and knowledge repeatedly question the efficacy of the poster but it constantly renews itself with the discovery of new forms of expression and assertion […]. Indeed, today, the poster is one of the most important 49 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Além de conter uma tela sensível ao toque, o cartaz hoje é capaz de responder aos estímulos externos como o movimento do corpo do indivíduo, emitir e captar som, bem como ter conexão wi-fi ou bluetooth, etc. Encontramos no cartaz desenvolvido para a série The Big Love um claro exemplo de como o cartaz publicitário pode passar por este processo de digitalização, remediação e reconfiguração do fazer publicitário de tal forma que além de persuadir, principal função deste meio desde suas origens na Antiguidade, transmite seu conteúdo de forma inusitada, ao ponto de atrair o individuo a participar do mesmo. No entanto, enquanto o cartaz se apresenta reformulado dentro de sua própria história e se compreende como suporte para reverberar tais alterações em todo um sistema comunicativo de produção de conteúdo, também na série The Big Love, entre outros, percebemos que mesmo com a interatividade reativa, suas novidades não interferem no conteúdo. Estas novas capacidades sensoriais do cartaz provocam a “hiperestimulação dos sentidos” através de uma linguagem de alta definição tátil e audiovisual o que, segundo Pereira (2008), provoca a imersão do indivíduo. De acordo com o autor, podemos estar a um passo “em direção à constituição do que chamaremos de mídias propioceptivas, ou seja, mídias que sejam operadas e que respondam a partir de um conjunto de informações que means of communication between producer and consumer, organizer and participant. It fulfills an economic, cultural, political and social purpose” (MÜLLER-BROCKMANN, 2004, p.12). Capa 115 - Marcos Nicolau Sumário se relacionam aos movimentos dos corpos dos usuários e das mídias em questão” (op.cit. p. 13). 3 Transmídia Um pensamento que descreve bem a noção de transmídia é quando Clay Shirky (2011) relembra a ultrajante necessidade de precisarmos de uma nomenclatura para classificar algo como “participativo”, quando a participação seria algo inerente ao ser humano, não precisando de tanto destaque por ser algo tão orgânico. Naturalmente que não podemos culpar a mídia por levar tanto tempo a entender esta necessidade humana e só agora desenvolver conteúdo pensando em interação, em um público que apesar de estar fisicamente distante, se encontra para celebrar o capítulo 100 de Avenida Brasil no Twitter e ainda comenta sobre a novela nas ruas. Questões de centro e margem são aqui acionadas por uma hegemonia da mídia e do conteúdo, mas que perpassa sistemas políticos ancestrais. É, no entanto, conquista de um ativismo narrativo, onde se tentava alterar o final de uma novela que se diz largamente como “obra aberta”, com uma abertura que só infere mudanças na trama caso a emissora perceba que a audiência caiu. A lógica do conceito de transmídia proposto originalmente por Henry Jenkins ainda no início dos anos 2000, parte desta necessidade de pertencer à narrativa, de mudá-la, de estar inserido em um universo fictício eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas como quando a Alice do País das Maravilhas atravessa seu espelho para descobrir o que há na casa do espelho, em “Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá”. É esta curiosidade e necessidade de imersão, que move a Alice de Lewis Carroll a entrar pelo espelho e conhecer um universo imaginário, a qual Janet Murray (2003) se refere quando fala sobre a necessidade nata do homem de pertencer à história que lhe é contada. Há, naturalmente, níveis de imersão nestas histórias, indo do mais aguardado uso da holografia a uma imersão através de ações performáticas dos textos, seja em ambiente virtual, na internet e especificamente nas redes sociais, ou quando os personagens ganham as ruas e contam “ao vivo” trechos inéditos da história que era vista de forma episódica na televisão, como é o caso da série Alice, da HBO América latina, quando a personagem homônima usa a rede Four Square para encontrar seus seguidores e narrar-se nas ruas de São Paulo em 2010. Com a série The Big Love não temos personagens encarnados nas ruas em forma física, eles estão no cartaz, como o universo fictício de Alice estava contido no espelho. Há, então, um convite lúdico à participação orquestrado pela série, seus cartazes na rua e principalmente o input disponíveis ao fone de ouvido. Este fenômeno parece constituir o que Henry Jenkins (2005, 2008) chama de narrativa transmidiática, quando textos são dispersos através das mídias ao passo que se preocupa em criar um universo fictício, que chamamos de Capa 117 - Marcos Nicolau Sumário micromundo. Toda a estrutura deste universo possui tocas de coelho (rabbit holes), como em Alice no País das Maravilhas, que reacionam as adormecidas entradas de participação. Em sua definição mais clássica, “Uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2008, p. 135). A noção de transmídia começa a ser tratada por Jenkins ainda no início dos anos 2000 com a série Pokémon quando houve a primeira fase da popularização dos computadores com internet ao final da década de 1990: Consumidores mais jovens têm se tornado caçadores e filtros de informações, pelo prazer de descobrir mais informações sobre os personagens e em fazer conexões entre diferentes textos numa mesma franquia. Em adição, todas as evidências sugerem que computadores não anulam outras mídias; ao contrário, donos de computadores consomem em média significantemente mais televisão, filmes, CDs, e afins do que a população geral (JENKINS, 2003, p.1). Jenkins respondia a uma inquietação da virada do milênio com as novas formas de consumo de entretenimento, ao passo que Arlindo Machado (2012) destaca que novas mídias não anulam as anteriores, mas as tornam mais nobres. Foi assim com o teatro e com o cinema, depois com a televisão. Agora, a internet é responsável por emprestar suas funções para a televisão e torná-la o que Frank Rose (2011) chama de deep media, sendo então eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas uma mídia com profundidade para imersão e participação, o que nos permite dizer que ela fagocita as funções pós-massivas da internet enquanto ainda permanece um meio predominantemente com funções massivas. Diante disto, é necessário delimitar mais a narrativa transmidiática, para não corrermos o risco de contribuir com a promiscuidade inserida no conceito pelas lógicas da indústria e até alguns acadêmicos. É necessário pontuar que, ao contrário do que descreve Jenkins (2008), uma narrativa transmidiática em alguns casos, como o apresentado neste trabalho, não possui cada nova extensão com certa independência do produto central, como quando ele explica que cada nova adição pode ser consumida isoladamente, como um game que pode ser jogado sem a necessidade de ter visto o filme. No caso do cartaz de The Big Love, a produção de sentido sensorial através do conteúdo se perde se não houver um consumo anterior ou posterior da série e então retornamos ao status de mais um cartaz de divulgação, sem desdobramentos. Esta contradição do transmídia é apontada por Christy Dena (2006) ao propor o termo transficção. “Por transficção eu me refiro a histórias que são distribuídas por mais de um texto, uma mídia. Cada texto, cada história em cada dispositivo ou cada site não é autônomo, ao contrário da narrativa transmíática do Henry Jenkins”50 (DENA, 2006). Tradução livre de: “By transfiction I refer to stories thar are distributed over more than one text, one medium. Each text, each story on each device or website is not autonomous, inlike Henry Jenkins’ transmedia storytelling.” 50 Capa 119 - Marcos Nicolau Sumário Cabe-nos também entender que um produto que se transmidia, ainda mantém suas características do meio central. Se temos uma série como The Big Love esta permanecerá sendo série televisiva, mas contando ainda com as funções dos cartazes e imersão proporcionada pelo fone de ouvido, que atua enquanto entrada literal para a transmidiação e o micromundo. Diante de tantas imbricações quase que indissociáveis entre plataformas e entre tecnologia e humanos na criação de uma Alice transcendente de mídias, não seria estranho percebermos esta mistura como um híbrido. Bruno Latour (1994, 2005) demonstra uma ligação entre humanos e não-humanos que não têm possibilidades de pureza em sua classificação, ou seja, temos uma inseparabilidade entre sujeito e objeto. Há então um híbrido, que para Lucia Santaella (2008, p. 20), pode se referir a “formações sociais, às misturas culturais, à convergência das mídias, à combinação eclética de linguagens e signos e até mesmo à constituição da mente humana”. O termo sincronização é inerente ao hibridismo, que devido ao seu próprio significado gramatical traduz “miscigenação” ou certa “aglutição”, resultando em um elemento novo. Ora, se vivemos num momento latente da qualidade do remix, como afirma Lev Manovich (2006), teremos sempre um elemento novo por aglutinação diante da convergência. Estas “reorganizações” que Santaella também usa para exemplificar o termo é algo tão ubíquo que não define tanto nosso objeto, igualmente ubíquo, mas ainda assim pontual. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Se não temos um híbrido, podemos ter, no entanto, uma remixabilidade profunda (deep remixability) ao voltarmos nosso olhar para as imbricações entre diferentes gêneros, suas imbricações estéticas, narrativas, etc., aglutinando ferramentas de produção diferentes, tal como formas de fruição. Manovich explica através do exemplo de certa colagem visual entre efeitos animados com seres humanos: Minha tese é que essa nova linguagem pode ser entendida com a ajudada do conceito de remixabilidade – se usarmos o conceito de uma forma nova. Vamos chamá-lo de “remixabilidade profunda”. O que é remixado não é apenas o conteúdo de diferentes meios, mas suas técnicas fundamentais, métodos de trabalho e formas de representação e expressão. (MANOVICH, 2006, p.1) Sendo assim, percebemos não um produto novo, mas certo remix entre os pontos citados. Isto naturalmente reconfigura as instancias de produção e fruição, além do produto em si, como vimos, mas não apenas. Vemos novos momentos no contrato midiático, na aglutição de gêneros, etc.. Não temos um produto híbrido, ou seja, a união da série, cartaz e demais extensões transmidiáticas não criam um produto novo, apenas reforçam um gênero, o transmídia, e uma situação de midiatização. Para José Luiz Braga, “A midiatização da sociedade corresponde a viabilizar acesso posterior e a ampliar o escopo e a abrangência das mensagens, tornando-as Capa 121 - Marcos Nicolau Sumário diferidas e difusas.” (BRAGA, 2006, p. 22), ou seja, atua exatamente na ubiquidade de informações despeças em mídias distintas, com a possibilidade de arquivamento e consumo em diferentes tempos. Estes pensamentos dos personagens disponíveis em áudio são orquestrados pelo autor procedimental, ou seja, pela emissora/produtora da série e sua equipe responsável e caso fosse um trabalho feito por fãs (fanmade), estaria respondendo à estética da convergência de mídias e conteúdo, mas não seria suficiente para, sozinha, definir um produto enquanto transmídia. Aqui, cabe ressaltar que o autor não se dissolveu. Por mais que fãs sejam convidados a entrar no universo, há passos a serem orquestrados. 4 The big love’s poster O interior de Utah guarda a cidade Sandy, que dá lugar a um bairro que abriga três famílias, as quais compartilham o mesmo homem, Bill Henrickson (interpretado por Bill Paxton), um mórmon fundamentalista. Ele vive com suas três esposas em três casas vizinhas no subúrbio, onde cria seus sete filhos em um quintal que conecta as casas com uma enorme piscina. Ironicamente com estas três casas para cuidar, Bill abre a rede de lojas Henrickson Home Plus, especializada em artigos para casa e ameaçada pelo seu segredo, já que a poligamia é proibida entre os mórmons há mais de um século, além de ir con- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas tra as leis dos Estados Unidos, onde moram. O mistério ronda este drama familiar que conta com onze membros, os quais precisam disfarçar a poligamia ou ainda se adequar a ela, o que não é problema para o personagem Bill, que cresceu em uma comunidade rural fechada onde vivem famílias poligâmicas. Diante deste emaranhado de fatos, é natural que haja possibilidade de densos enlaces no roteiro, os quais podem acionar uma narrativa expandida. Neste aspecto há o blog da terceira esposa, Margene (Ginnifer Goodwin), http://www.margenes-blog.com, onde ela escreve e posta vídeos sobre como é cuidar de uma família não convencional durante as temporadas da série. O blog traz informações exclusivas, o que se caracteriza como uma transmidiação narrativa da série. O que nos chama atenção aqui, no entanto, e cabe como objeto de exposição das reflexões deste trabalho, é a divulgação da terceira temporada da série em 2009 quando a narrativa é contada também através de cartazes que possibilitam ouvir os pensamentos mais escondidos de pessoas em seu cotidiano, fazendo uma ligação clara com a rede de segredos proposta pelo roteiro da série, mas mesmo com um cartaz interativo, com inputs para fones de ouvido e certa “camuflagem” do cotidiano, já que apresenta pessoas normais em paisagem que simulam a rua (ver imagem 1). Capa 123 - Marcos Nicolau Sumário Imagem 1 – HBO Áudio Mural Installations Fonte: http://creativity-online.com/work/hbo-big-love-headphone-jacks/14957 Os cartazes que emitem e captam sons são alguns dos modelos de cartazes digitais interativos identificados por Poshar (2012), que demonstra a capacidade que estes têm para transmitir e reproduzir aúdio através de um sistema de plugs, microfones especiais e micro-dispositivos sensíveis, permitindo assim a ação do cartaz. Por trabalharem com um sistema de alta definição, estes dispositivos são programados para emitirem e/ou captarem o áudio apenas sobre determinados comandos. Para a captação do som, por exemplo, sua tecnologia é voltada especificamente para o reconhecimento de voz: o eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas sistema só é ativado e capaz de emitir uma resposta ao captar a voz do indivíduo ou, ao “escutar” determinadas palavras previamente programadas. Este sistema possui um sistema de microfones e captação especiais para que o programa não grave todos os ruídos do entorno e crie uma lentidão ou pane em seu sistema. Para a emissão de áudio, o cartaz possui duas formas de resposta: ou através de sensores que captam os movimentos do indivíduo e respondem com o áudio, ou através de plugs, os quais, ao detectarem a entrada do headphone do espectador, têm seu sistema acionado dando início à emissão de determinado som – seja uma locução, uma música, jingle, ruídos ou pensamentos de personagens, como identificamos no cartaz da série The Big Love (imagem 1). Com isto, percebemos de fato, que o cartaz ainda cumpre, predominantemente, com suas funções de um cartaz “antigo”, ou seja, a de divulgar um produto, e não avança na possibilidade que as conexões do ciberespaço trazem de reconfiguração em duas mãos, tanto a do cartaz enquanto interativo, algo que já temos, mas também do cartaz reinterpretando os outros meios dessa arquitetura de campanha publicitária, que no caso seria a televisão (série) e a internet (blog). Uma das formas que percebemos de reinterpretação aqui seria através do mesmo movimento transmidiático do blog, propondo então uma situação transmídia especificamente para o conteúdo do cartaz. Capa 125 - Marcos Nicolau Sumário Estas dinâmicas, que passam a incorporar vários outros atributos aos anúncios publicitários, refletem claramente as tendências da publicidade contemporânea, que tem sua estrutura reconfigurada a partir das tecnologias, práticas e usos, com base no processo das tecnomediações humanas. Sendo assim, alguns aspectos já mencionados são facilmente observados no estudo em questão. A convergência, imersão e participação são algumas das características apresentadas que correspondem às atuais formatações da publicidade atual, e que são assim possíveis devido aos processos midiatizados. A publicidade, então, encontra no transmídia uma estratégia capaz de enriquecer e potencializar a participação e interação com o público consumidor. Não basta induzir ao consumo. A própria peça em si se apresenta com uma valoração bem mais expressiva do que anteriormente, já que há um visível crescimento das possibilidades. Dessa maneira, as oportunidades ofertadas através dos dispositivos nas mídias digitais, somadas aos usos dos meios, constituem práticas publicitárias diferenciadas, nas quais a utilização do texto narrativo transmidiático, passando por diferentes suportes, proporciona desdobramentos importantes que antes não eram possíveis. Uma das principais potencialidades do transmídia é uma narrativa (conteúdo) que acione uma reinterpretação dos meios, ou seja, que eles emprestem funções um para o outro, potencializando principalmente a imersão e a participação dentro de um produto cultural que pode ser massi- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 127 - Marcos Nicolau vo, a exemplo de uma novela de televisão. Quando falamos de um canal fechado norte-americano, estamos tratando de algo menos massivo que uma novela da Rede Globo, mas que ainda assim lida com as predominantes funções de enquadramento da televisão (horários na grade, números de audiência e uma comunicação unilateral). Não seria difícil, no entanto, trazer um conteúdo trabalhado com a narrativa da série para os cartazes, dando a eles o duplo sentido de divulgar (função anterior), e atuar enquanto extensão narrativa. Para tanto, bastaria o contrário: ao invés de os cartazes tentarem se “camuflar” nas ruas da cidade, poderiam atuar como portas de entrada narrativa, funcionando como o espelho de Alice do País das Maravilhas do livro Through the Looking-Glass, and What Alice Found There de 1871, como quando ela usa o espelho para atravessar para um novo mundo. A imersão aqui seria na série, através do cartaz. Ele não seria um meio transparente na rua, mas agenciaria uma transparência entre o público e a narrativa da série, já que poderia trazer personagens em suas imagens, no lugar de pessoas aleatórias, e revelar segredos deles que só saberiam os fãs que houvessem participado da ação nas ruas, plugando o fone de ouvido. Uma ação em nível global poderia ser feita com um simulador (como o Google streetview) para fãs de outras localidades ou ainda contar com o spoiler51 dos que ouviram as informações exclusivas. O áudio do cartaz também poderia ser baixado para o MP3 player do participante da ação, que poderia compartilhar nas redes sociais o arquivo. Tzvetan Todorov, ainda na década de 1960, já relembrava a importância do conteúdo narrativo, que nos fazemos uso aqui de outra forma, dentro do cartaz: Mieke Bal, na década de 1980, se posicionava ligando narrativa a relato de narração, sendo um texto narrativo, um que converta história em signos linguísticos: “Un texto narrativo será aquel en que un agente relate una narración” (1990, p. 13), ou seja, que relata a história. A autora trata texto como “un todo finito y estructurado que se compone de signos lingüísticos” (1990, p. 13). Optamos, no entanto, por tratar o texto narrativo transmidiático num sentindo amplo, que pode ser representado por uma imagem, por exemplo, não necessariamente pela oralidade ou pela escrita, devido ao caráter multimídia tão enaltecido na transmidiação. Consideramos então como o texto de uma narrativa transmidiática toda sua conjuntu- Spoiler é uma derivado de “To Spoil”, do inglês “estragar”, designado para alguém que através de um meio público (site, blog) ou fechado (conversa) adianta alguma informação ainda inédita do que vai acontecer em uma narrativa, estragando a surpresa. E se antes da primeira narrativa há “contou-se”, depois da última haverá “contar-se-á”: para que a história pare, devem dizer-nos que o califa maravilhado ordena que a inscrevam em letras de ouro nos anais do reino; ou ainda que “essa história... se espalhou e foi contada em toda parte em seus mínimos detalhes” (TODOROV, 2006, p. 133). 51 Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas ra audiovisual, impressa ou sensorial que contribuam de forma coerente e relevante com a complementação da história contada. A potencialidade do conteúdo em uma transmidiação é algo que demarca a carga narrativa do conceito de Henry Jenkins e que nos interessa exatamente por percebemos que sem esta vertente narrativa, o cartaz, mesmo interativo, não contribui de forma nova para a série. Não dizemos aqui que os meios antigos precisam ter novas funções, mas lembrar da potencialidade que eles têm em uma estrutura publicitária digital, por exemplo, podendo até dar novos espaços às transmidiações, não só nos cartazes interativos, mas em cartazes em 3D ou em cartazes em movimento que ganham a internet neste ano de 2012 para divulgar filmes, onde os elementos se movem até chegar à foto original dos cartazes impressos, ou exibem um trecho da cena em movimento da qual haveria sido tirada a fotografia usada também nos cartazes em papel nos cinemas. Considerações finais Publicidade reconfigurada, cartaz digital interativo e conteúdo transmidiático – três elementos que juntos possibilitam a compreensão do fenômeno comunicacional que temos observado e que é exemplificado na abordagem da série The Big Love. Para entender de que maneira as novas configurações da publicidade se apresentam em diferentes supor- Capa 129 - Marcos Nicolau Sumário tes, inclusive nos cartazes digitais, utilizando-se de uma comunicação mais imersiva e participativa, como é o caso da transmídia, percebemos a importância do suporte da midiatização. Isto porque, é em decorrência dela que delineamos as mudanças nas ambiências e nos processos, que fazem com que as interações sejam crescentes e os indivíduos possam, de fato, se aproximar do centro dos processos produtivos das mídias. The Big Love elucida bem o cartaz como estrutura constituinte de uma campanha, que apresenta a fusão, e não a substituição, de elementos das chamadas mídias tradicionais com aspectos das novas mídias. Visualizamos, portanto, o resultado dessa convivência e verificamos com ele que o cartaz digital interativo potencializa as peças publicitárias e relembramos a intensidade do conteúdo narrativo na particularidade estrutural e conceitual do transmídia. Apesar da limitação da interação reativa no caso contemplado, já é nítida a presença de uma experiência afetiva maior, sobretudo devido ao apelo sensorial, a partir do qual a audição é utilizada como um mecanismo importante na composição da narrativa. Sendo assim, estímulos são gerados e os indivíduos se veem diante de recursos anteriormente não existentes, fomentando a sua participação e imersão. O universo fictício tem um espaço importante dentro da produção publicitária. Não é de hoje que isso acontece, entretanto, o cartaz digital e as narrativas transmidiáticas favorecem as interativas formas publicitárias hibridizando eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas ainda mais a narrativa e a estrutura de promoção. Enquanto na prática percebemos o uso do cartaz, mesmo interativo, com a função publicitária de sempre, destacamos que ele aciona pela sua própria estrutura – um pôster em uma parede da cidade – a função de janela para a narrativa de produto que pode atuar como um caminho imersivo para o produto cultural, não só para sua divulgação, como vemos usualmente. Observamos, portanto, que várias possibilidades foram adotas à ação e refletem uma tendência atual, entretanto, muitas outras poderiam ser incorporadas, tendo em vista as ambiências e aspectos propiciados pela midiatização. É uma situação de midiatização no cotidiano de fãs e consumidores em potencial no qual sintomas massivos e pós-massivos se intercalam a cada nova conexão de um fone de ouvido em produtos tão clássicos, como a televisão e o cartaz e todas as suas funções não tão modernas assim. Referências BAL, Mieke. Teoría de la narrativa: Una introducción a la narratología. Madri, Espanha: Ediciones Cátedra, 1990. BARRICHELO, Eugenia Mariano da Rocha; STASIAK, Daiana. A inserção da comunicação organizacional na nova lógica midiática. Revista de Pesquisa Communicare. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, v.8, n.1, 2008. Disponível em: <http://www. facasper.com.br/_upload/publicacoes/10/Communicare%20 8.1.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2012. BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia: Disposi- Capa 131 - Marcos Nicolau Sumário tivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006. CHIMINAZZO, Ricardo. Tendências e novos formatos das peças publicitárias. In: PEREZ, Clotilde; BARBOSA, Ivan Santo. 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O site, dessa forma, mais que um meio de informações, vem se constituindo como um ambiente, parte desse processo de midiatização, e cujas características serão tratadas no nosso texto. Palavras-chave: cinematográfica. Midiatização. Omelete. Resenha Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: firminojunior83@ gmail.com. 52 Capa 135 - Marcos Nicolau Sumário Diante de uma sociedade cada vez mais dependente da informação como meio de troca e de consumo, regida pela centralidade das mídias nos processos sociais e comunicacionais, lidamos com uma totalidade que certamente transcende o que os meios de comunicação massivos faziam isoladamente antes da Web. Por meios “massivos”, referimo-nos ao que nos diz André Lemos e Pierre Lévy (2010, p. 26), envolvendo mídias de massa que “surgem a partir do século XVI com a formação da opinião, do público, primeiro pela imprensa e, mais tarde, pelos meios audiovisuais como o rádio e a televisão”. Quanto à noção de “pós-massivo”, essa surge com a possibilidade de conversação e compartilhamento de forma ampla e visível através da Web. De uma lógica um-todos, passamos a ter uma lógica todos-todos. Papéis se confundem, em alguns casos, como o de emissor e o de receptor. Meios se tornam espaços. Tempo e espaço se comprimem no instante em que se publica uma opinião ou se envia um arquivo, através de uma rede de computadores online, em que parte de suas ações se tornam visíveis através da lógica hipermidiática, em eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas que imagem, som, vídeo, animação e infográficos se reúnem em uma só tela. Essa realidade vem se tornando mais presente para muitas pessoas e instituições, e altera velhas práticas como a da resenha cinematográfica. Neste artigo, a partir das origens desse tipo de resenha no Brasil, buscaremos mapear, até certo ponto, o meio (ou espaço) em que essas resenhas estão inseridas no site Omelete - um endereço eletrônico que se volta ao entretenimento, com notícias, críticas (basicamente, as resenhas a que nos referimos) e artigos, bem como entrevistas, promoções, indicação de salas de cinema e horários, contato com sites de redes sociais, fotos, vídeos etc., sobre produtos culturais como cinema (nosso foco), jogos eletrônicos, revistas em quadrinhos e outros produtos culturais. A partir do Omelete, teremos por base um caso, o dos comentários do filme “Poder Paranormal” como uma amostra das possibilidades de interações humanas ao redor do que enxergamos como fator primordial de mutação das resenhas: a possibilidade de resposta e interação do público sob uma lógica midiatizada. Essa lógica parte do conceito de midiatização que Muniz Sodré (2012, p. 21) nos traz, em que midiatização é a tendência à “virtualização” ou telerrealização das relações humanas, presente na articulação do múltiplo funcionamento institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicação. Capa 137 - Marcos Nicolau Sumário Essa tendência à virtualização ou telerrealização das relações humanas será demonstrada como algo fundamental para o site que estudamos, como parte da deliberação coletiva sobre os produtos culturais (filmes) e suas resenhas críticas. Por fim, tentaremos descobrir, com base no que mapeamos, do que se trata essa “resenha midiatizada”, tentando encontrar um elo com o conceito de Muniz Sodré que citamos, e na ideia geral de que processos sociais agora estão sendo realizados não só através de plataformas midiáticas, mas também sendo transbordadas para elas, que surgem como espaços próprios das relações humanas. 1 Resenha cinematográfica no Brasil: de suas origens ao Omelete Para termos uma imagem mais clara do que a resenha cinematográfica vem se tornando no Omelete, temos que, antes, entender primeiro o que ela é e, em seguida, como surgiu. Segundo José Marques de Melo (1994, p. 125), a resenha “corresponde a uma apreciação das obras-de-arte ou dos produtos culturas, com a finalidade de orientar a ação dos fruidores ou dos consumidores”. Ou seja, temos uma forma de fazer jornalismo opinativo que, hoje, exerce a função de criticar uma variedade de filmes, sobretudo visando o consumo. Esse formato serve para a eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas exposição de uma análise detida de um filme, podendo ser praticada pela Web através de amadores, jornalistas ou cineastas. Essa análise envolve produtos perecíveis e tem por função vender a imagem de um produto a ser consumido, separando-se da noção de “crítica acadêmica” da seguinte forma: Os grandes intelectuais que continuaram a realizar exercícios críticos estruturados segundo os padrões da análise acadêmica refugiaram-se nos periódicos especializados ou nos veículos restritos ao segmento universitário da sociedade brasileira. E se autodenominaram críticos, em contraposição àqueles que permanecem nos meios de comunicação coletiva, ou que se agregaram ao trabalho de apreciar os novos lançamentos artísticos, cujos textos passaram a se chamar resenhas, traduzindo a expressão review utilizada pelo jornalismo norte-americano (1994, p. 126). Claro que essa separação não deve ser entendida como algo absoluto. Ao menos no que diz respeito ao nome utilizado para o formato resenha no Omelete (referimo-nos ao nome “crítica”). Até porque, de fato, é feita uma crítica através de um determinado formato textual (ou, em alguns casos, audiovisual). Quanto às suas origens, conforme nos traz Arthur Autran (2003, p. 108), remontam aos críticos “cujos referenciais estavam no cinema silencioso, tais como Pedro Lima - que nos anos 1950 ainda atuava nos Diários Associados - ou Octávio de Faria - então escrevendo de cinema de forma esparsa”. Em seguida, vieram críticos como Alex Capa 139 - Marcos Nicolau Sumário Viany, Almeida Salles e Moniz Viana. Mais recentemente, temos exemplos como Isabela Boscov, da “Veja”, e Ivan Cláudio, da “Istoé”. Além do Rubens Ewald Filho e seu blog53. Mas, também, no caso do Omelete, temos Marcelo Forlani, Érico Borgo e Marcelo Hessel. Em comum, todos estão na Web, com a possibilidade de serem possíveis comentários do público, e o acesso a redes sociais, a partir de um material composto por uma convergência de mídias (basicamente, texto, imagem e audiovisual, dependendo do site). Finalmente, hoje em dia, temos as resenhas críticas do Omelete, um site que surgiu em 2000, na época ligado ao provedor iG54, e que se especializa em um tipo de entretenimento que surge através de uma variedade de notícias, artigos e críticas (expostas através do formato “resenha” – apesar desse nome – ou “resenhas críticas”). Essas três formas de se apresentar os produtos culturais, abrangem seções relativas a filmes, jogos eletrônicos, histórias em quadrinhos, músicas, séries de TV e vídeos. O Omelete é editado por Érico Borgo e Marcelo Forlani. O Omelete, como parte do provedor Uol55, segue o que diz seu slogan “Entretenimento levado a sério”, demonstrando ser um território permeado por diferentes ideias dos produtos culturais apresentados, construindo sua credibilidade através, sobretudo, da possibilidade de 53 54 55 http://noticias.r7.com/blogs/rubens-ewald-filho/ http://www.ig.com.br/ http://www.uol.com.br/ eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas resposta do público, com inúmeros comentários. Ao menos até 2012 é um dos websites mais completos em sua área que encontramos no Brasil, explorando bem as funcionalidades da Web e continuamente se atualizando tanto em termos de conteúdo quanto em termos de formato. O objetivo do Omelete é abordar entretenimento de forma a expor textual, audiovisual e imageticamente detalhes sobre os mais diversos lançamentos culturais; sendo o seu ponto forte o largo espaço para comentários do público, com sua interligação a redes sociais, e a seção relativa à cinema, capaz de explorar tanto a resenha textual como, na subseção “Trailers Comentados” (da seção “Vídeo”), o que chamamos de resenhas audiovisuais. Ou seja, daquela velha forma mais associada à imagem do crítico, do cineasta, do especialista “distante”, temos, primeiro, uma popularização da leitura de uma crítica, que se torna mais reconhecível sob o formato “resenha”, até, através da Web, surgir uma verdadeira autonomia do público, que se torna “interagente”, publicando seus próprios comentários abaixo da resenha ou de forma difusa através da conexão com redes sociais – no caso do Omelete, o site é bem presente no Twitter, com suas novidades. Capa 141 - Marcos Nicolau Sumário Figura 1 - Tela inicial do site Omelete Fonte: Omelete (2012) 2 A questão da resposta dos interagentes Analisando o site Omelete, à primeira vista observamos três camadas que tornam mais complexas a mera noção de “emissor-mensagem-receptor”: o produto cultural (determinado filme), a resenha crítica (que não deixa de ser uma primeira resposta ao produto cultural) e os eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas comentários dos interagentes (além desses comentários, participação em promoções, possibilidade de programação de salas de cinema e compras). Quer dizer, o que seria um produto do emissor (a resenha), já corresponde a uma resposta - não do público que interage, mas do site. No entanto, uma resposta costumeiramente mais afinada à disposição em expor, difundir a imagem de um produto cultural para o consumo. A verdadeira “resposta”, evidentemente, ocorre com os comentários, que, em alguns casos, podem se tornar diálogos. E isso nos remete ao que José Luiz Braga (2006, p. 27) chamaria de interação social sobre a mídia, em que “Os sentidos midiaticamente produzidos chegam à sociedade e passam a circular nesta, entre pessoas, grupos e instituições, impregnando e parcialmente direcionando a cultura”. Isso vai se tornando evidente no conteúdo dos comentários, como uma amostragem, ainda que pequena, de como as pessoas estão se apropriando de uma resenha do Omelete, de outros comentários e, quando é o caso, do filme que assistiram - concordando, discordando ou complementando o que o Omelete interpreta. Existe, então, a recepção e o que ocorre “após” essa recepção: os comentários e as eventuais conversas sobre o que foi recebido. Esse retorno, que se torna outra forma de produção de outro tipo de mensagem, torna-se visível no próprio suporte midiático em que se lê resenha. Veremos, adiante, um caso empírico, em que Capa 143 - Marcos Nicolau Sumário não temos propriamente uma “retroalimentação”, algo que mude a resenha que é publicada no site ou que envolva uma interação direta com o autor do texto, mas, certamente, um processo que se destaca da mera “produção-mensagem-recepção”. 2.1 Ação do público na resenha de “Poder Paranormal” Para entendermos o que implica a atual forma tomada pelas resenhas através da Web, precisamos considerar uma noção de conjunto, no site Omelete, entre meio, mensagem e retorno do público. Uma noção que implica no conhecimento do poder da midiatização, demonstrando que determinados processos sociais são realizados também pela internet. Esses processos sociais envolvem uma cultura nativa da Web que vem se tornando representativa de uma identidade móvel, flexível e praticizada. Um exemplo disso está demonstrado nos comentários do público sobre determinadas resenhas e filmes. Trazemos um dos casos para uma rápida análise dos comentários sobre a resenha do filme “Poder Paranormal”, a seguir: eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Observamos o surgimento de uma conversa, entre o “Comentarista” e “Fernando”, curta, mas que demonstra certo grau de socialização emblemática desse meio. Vemos, nesse caso, pelo menos três características do mundo midiatizado que envolve o Omelete: identidade flutuante baseada numa total imaterialidade, contexto em uma “cultura do entretenimento” e autonomia relativa. A maior parte dos casos que verificamos cotidianamente no Omelete, todavia, não envolvem uma sincronia dos contatos, mas meros comentários condenatórios, confirmatórios, ou complementação de informações. A identidade flutuante é, certamente, uma constante que faz parte de um sujeito pós-moderno que, segundo Stuart Hall (2011, p. 13), “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”; além dele, temos o posicionamento de André Lemos (2010, p. 107), em que “O próprio sujeito individualista, filho da modernidade, torna-se um espectro, porque desaparece para vagar em uma ordem simbólica que se tornou transparente”. Temos, então, o que chamaríamos de “identidade” construída na prática de um interesse específico e quase sempre anônima ou indeterminada. No caso que analisamos brevemente, podemos perceber que o dono do perfil “Comentarista” pode ter criado essa identidade falsa apenas para perguntar a outros que leram a resenha, se o autor, Marcelo Hessel, revelou demais sobre o filme. Não podemos dizer, também, claramente, se a identidade “Fernando”, que responde, não Figura 2 - Pequeno diálogo extraído dos comentários do filme “Poder Paranormal” Fonte: Omelete (2012) Capa 145 - Marcos Nicolau Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas poderia ser a mesma pessoa numa conversa consigo mesma. Só podemos confiar no que diz a nossa observação: que, aparentemente, há duas pessoas diferentes numa conversa curta. Essas identidades, geralmente fantasiosas, seguem em comentários encadeados interminavelmente, no contexto de uma “cultura do entretenimento”, que faz parte de um universo histórico que envolve a importância de uma indústria cinematográfica norte-americana. Segundo Sérgio Luiz Gadini (2009, p. 273): “É a partir do término da Segunda Guerra (1945) que a chamada indústria hollywoodiana do cinema registra maior e mais acelerado desenvolvimento, com grande penetração nos mais diversos países do mundo” - uma penetração que também envolve o Brasil e traz uma relevância ao site que analisamos. Com base nisso é que temos uma Web onde as pessoas se apropriam, enquanto fãs ou curiosas, de informações sobre filmes para suas discussões públicas e visíveis em sites que permitem redes sociais, ainda que limitadamente, como é o caso do próprio Omelete. Mesmo assim, no material que analisamos há uma limitação das possibilidades de conversação, numa imaterialidade que não nos deixa claro duas questões: uma, que já citamos, envolve se essas conversas são reais ou fictícias (não temos como saber com certeza), e outra, se diálogos como esse que mostramos não foram editados pelo Omelete. Enfim, temos uma curta conversação, baseada em identidades flutuantes, cuja temática envolve um produto Capa 147 - Marcos Nicolau Sumário da “indústria do entretenimento” norte-americana. Tem-se, então, que não bastam as características da Web que envolvem imediatismo, espaços interativos, confusão entre emissão e recepção, diálogos síncronos ou assíncronos, mas considerar que há o fortalecimento da temática em um universo onde tudo se confunde - plateia e atores. Ou seja, ao menos o tema tem que ser mantido (o filme, a resenha, o trailer ao lado da resenha), e isso depende do contexto maior que citamos, que é a indústria do entretenimento. Evidentemente, esses comentários não são originários de uma autonomia absoluta. Todo comentarista precisa necessariamente se cadastrar e seguir certas regras, como podemos ver no aviso a seguir: Figura 3 - Aviso do Omelete sobre comentários e discussões em seu espaço Fonte - Omelete (2012) Temos aqui, mais uma vez, uma ênfase menos na identidade e mais no conteúdo do que é postado. Não interessa quem, mas o quê; se segue as regras do termo de uso e responsabilidade ou não; e se é um comentário útil, eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 149 - Marcos Nicolau que contribui ou apenas um texto vago que ninguém dará valor, mas que estará disponível para ser lido. Não podemos mensurar até que ponto os textos são editados, mas podemos ver que o espaço para interatividade é semelhante à estética da “Carta do Leitor” da imprensa. Mesmo assim, diferente da “Carta do Leitor”, observamos mais espontaneidade nos comentários (na imprensa, não vemos opiniões dos leitores que envolvam um riso, por exemplo), possibilidade (limitada) de conversação, um quase imediatismo, identidades flutuantes e as interconexões com sites de redes sociais. Ou seja, processos sociais que antes eram limitados a uma mera circularidade proporcionada pela “Carta do Leitor”, transbordam-se para a imaterialidade da Web, onde podemos ver como as pessoas interagem, comentam, demonstram conhecimentos extras sobre determinado filme, diretor, ator etc., ou não. Esse mesmo transbordamento não envolve apenas comentários, mas também participação em promoções e programação de salas de cinema, como podemos ver nas seguintes imagens: 3 A resenha midiatizada Através do exemplo do capítulo anterior temos uma resenha que deve ser entendida não como o velho texto impresso apenas sendo transmitido agora numa tela de computador, tablet ou celular, as como um contexto deliberativo em que temos o texto da resenha apenas como ponto de partida para comentários, discussões possíveis em sites de redes sociais conexos, diferentes plataformas midiáticas em um mesmo meio, auxiliando na ilustração de uma resenha. O contexto maior deve considerar o tipo de jornalismo cultural que é feito no Omelete como algo que responde aos anseios mais originais desse tipo de jornalismo: promover a circulação de diferentes opiniões, levando a futuras deliberações ou apenas a comentários isolados. Capa Sumário Figura 4 - Tela de consulta de salas de cinema por Estado e Cidade Fonte: Omelete (2012) eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 151 - Marcos Nicolau Temos, assim, diversas ações que ocorrem a partir do Omelete, tornando muito mais complexa a mera “leitura” de um texto ou de um vídeo. As pessoas se programam a partir do site (ou podem fazer isso caso prefiram), participam de promoções, comentam, entram em contato com sites de redes sociais, tudo numa identidade praticizada, anônima e flutuante. Outro ponto interessante é que esse mesmo processo midiatizador depende, necessariamente, no Omelete, de um contexto cultural ocidental, consumista, perecível. Algo que ponha todos num patamar equivalente a conhecimentos gerais sobre aspectos de um tipo de filme para o consumo rápido. Além disso, há uma noção, também, de cibercultura, que segundo Rovilson Robbi Britto (2009, p. 172), sua definição “não seria somente de uma cultura especificamente produzida em termos do ciberespaço, mas de uma dimensão da cultura contemporânea que encontra no ciberespaço seu lugar de manifestação”56. Quer dizer, temos dois contextos culturais: o do cinema norte-americano e o da cibercultura, regimentando conteúdos; enquanto a “forma” é flutuante, variável que confunde emissão do autor da resenha com a emissão do “receptor” - que, hoje, está mais para um interagente. Retomando o conceito de midiatização de Muniz Sodré, que citamos no início do texto, essa telerrealização das relações humanas ocorre plenamente no OmeleFigura 5 - Tela com lista de promoções do Omelete Fonte: Omelete (2012) Capa Já o ciberespaço é entendido aqui como um conjunto de redes de computadores, como sendo a própria internet. 56 Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas te, não como novidade, mas como parte de um processo maior e ainda em configuração. E, acima de tudo, essa telerrealização é parte do que pensamos ser a consequência natural da resenha: possibilitar o encontro de ideias, informações e opiniões diferentes da forma mais dinâmica, visível e democrática possível. Isso traz certos ganhos, como o da liberdade de ter publicada com mais facilidade uma opinião, mas, ao mesmo tempo, riscos que são comuns ao anonimato (o que afeta a credibilidade do que é exposto como comentário). A resenha, enfim, vem se tornando não apenas online, mas, aos poucos, um ponto de encontro de identidades anônimas, ideias e textos. E é essa característica de ser um “ponto de encontro” de diferentes plataformas midiáticas (audiovisual, imagem e texto) e de diferentes ideias que traz uma noção de “web-resenha”, muito mais apropriada ao que vem se tornando as resenhas na Web. Considerações Finais Após uma rápida análise do que vem se tornando a resenha no site Omelete no contexto de midiatização, pudemos observar certas características desse tipo de resenha que vem sendo configurada e reconfigurada no Omelete, que envolve mais que a mera exposição na Web de textos de resenhas críticas sobre determinados filmes, mas um ponto onde convergem públicos e interagentes além de vídeos, imagens e textos. Capa 153 - Marcos Nicolau Sumário Essa convergência pode ser entendida como um fenômeno que envolve um “fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia”, bem como a uma “cooperação entre múltiplos mercados midiáticos” e “ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (JENKINS, 2009, p. 29). Ela depende, também, de algo que percebemos ainda em andamento nos comentários do Omelete e que ainda não surgiu completamente: uma verdadeira conversação em rede. Essa conversação é que irá interligar melhor – ao tornar mais visível – a participação do público não apenas em opiniões, mas em programação de filmes, de salas de cinema, promoções, compras etc. O problema dessas conversações é que elas ainda são relativamente raras no Omelete. Temos uma interação muito limitada e movediça. As pessoas não sabem exatamente com quem estão falando, caso apertem “responder” a cada comentário; por outro lado, podem ir medindo isso pelo conteúdo do que é falado, se há solidez no argumento ou apenas ideias soltas. O que realmente nos importa em nosso objeto de estudo, finalmente, está em seu processo de constante mudança, de acordo com uma lógica midiatizadora, que demonstra o quanto a sociedade dita “material” vem se transbordando, em suas diversas ações, para o mundo imaterial da Web, e como isso vem alterando a forma de ter contato com resenhas e de pensar seu conteúdo coletivamente. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 155 - Marcos Nicolau Referências A Midiatização e a Multiconversação nas Redes sociais AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo: Perspectiva, Rio de Janeiro: Petrobrás, 2003. BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006. BRITTO, R. R.. Cibercultura: sob o olhar dos estudos culturais. São Paulo: Paulinas, 2009. GADINI, Sérgio Luiz. Interesses cruzados: a produção da cultura no jornalismo brasileiro. São Paulo: Paulus, 2009. Ana Maria de Sousa PEREIRA57 Patrícia Medeiros de LIMA58 Resumo OMELETE. Disponível em: <http://www.omelete.com.br/>. Acesso em: out. 2012. Vivemos em constantes reconfigurações tecnológicas que alteram nossas formas de interagir e estabelecer conexões. Tais transformações caracterizam nossos costumes que hoje, são marcados por relações virtualizadas e tecnomediadas pelo processo da midiatização. Com o crescente uso das redes sociais, as formas de comunicação ou conversações também são modificadas e reelaboradas no contexto digital. O presente artigo busca analisar a construção das multiconversações nas redes sociais, a partir do uso que fazemos das ferramentas tecnológicas. Apoiadas nos estudos da midiatização e da comunicação mediada por computador faremos esta análise, inseridas nas redes sociais, em busca de entender os processos da conversação e interação. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. Palavras-Chave: Midiatização. Comunicação mediada. Multiconversação. Redes sociais. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 5 ed. Porto Alegre: Sulina, 2010. LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010. MARQUES DE MELO, José. A opinião no jornalismo brasileiro. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1994. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: anasousajornalista@ hotmail.com 58 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected] 57 Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Introdução Num mundo em que as relações humanas estão se tornando cada vez mais relações virtualizadas, a vida coletiva vem sendo tecnomediada pelas tecnologias. Mas não é só isso, com a possibilidade de acesso às ferramentas como sites de redes sociais através dos mais variados dispositivos, a comunicação vem sofrendo modificações. Hoje é possível perceber as mudanças que as formas de comunicação passam a ter através do uso da internet, o que constitui em uma escrita oralizada e mediada por computador. O processo da midiatização permite a rapidez desta nova sociedade online que utiliza diariamente a tecnologia para executar as mais diferentes atividades seja para retirar dinheiro de um caixa eletrônico, escanear fotos antigas através do computador ou conversar com diferentes pessoas através da internet. Dentre estas, destacamos neste trabalho a multiconversação nas redes sociais como facebook, twitter, entre outros. Ao analisarmos as redes sociais como estruturas de agrupamento humano, constituídas de interações e conexões mediadas pelo computador, buscaremos identificar como se dá a conversação através dos suportes digitais. Em busca de estabelecer laços sociais e construir o capital social em rede, as pessoas utilizam a internet, Capa 157 - Marcos Nicolau Sumário em especial, as redes sociais para estabelecer diferentes conversações, simultâneas ou não, que dão sentido, apropriação e reconstrução nas interações existentes nesse ambiente de midiatização. No entanto, fundamentamos nossos estudos em autores como Sodré (2009), Recuero (2012), Primo (2009), Shirky (2011), entre outros, que nos permitem identificar e observar as características dessas multiconversações em ambiente online e entender de que forma se dão as trocas, construções de interações e manutenção de informações na rede. Além de compreender os efeitos, mutações e impactos dessa conversação em rede. Com destaque para o conceito de remediation, analisaremos de forma participativa, ou seja, inseridas nas redes sociais para verificar a utilização destas como espaços de construção de um indivíduo que hoje conversa de forma multimídia, diversos assuntos em um mesmo ambiente, impulsionados pela atual cultura participativa. 1 O processo da midiatização O processo da midiatização manifesta-se de forma heterogênea na vivência social e se configura pelos avanços tecnológicos, onde a natureza da organização em sociedade não é linear, mas descontínua. Sodré (2009) postula que a midiatização se caracteriza como uma nova forma de vida, chamada pelo autor de bios. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Implica a midiatização, por conseguinte, uma qualificação particular da vida, um novo modo de presença do sujeito no mundo ou, pensando-se na classificação aristotélica das formas de vida, um bios específico. Logo nas primeiras páginas de sua Ética a Nicônamo, Aristóteles distingue, a exemplo do que já fizera Platão no Filebo, três gêneros de existência (bios) na Pólis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bio apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo). (SODRÉ, 2009, p. 24). O novo bios, ou bios virtual, seria ainda dentro do pensamento do autor uma terceira natureza, onde a mídia representa uma nova forma de vida. O advento da tecnologia e o surgimento da internet transformaram a existência dos indivíduos principalmente na lógica sociocultural. A Internet neste contexto pode configurar-se como um meio que proporciona outras possibilidades e parâmetros para a construção da identidade dos sujeitos. Esta forma midiática permite hibridizações com potencial de transformação da realidade social. Na lógica deste âmbito, a Internet é um meio de comunicação, de interação e de organização social abrangente e que nos coloca diante da emergência de uma nova sociedade online. Segundo Sodré (2009), a sociedade contemporânea é regida pela midiatização, na qual as interações e relações entre os indivíduos tornam-se cada vez mais virtualizadas. É nesta realidade midiatizada que a mídia alcança espaço central na ordem social e acaba também se tornando referência na vivência social, cultural e comunicacional das pessoas. Capa 159 - Marcos Nicolau Sumário Neste sentido, Fausto Neto (2008), enfatiza que a midiatização está ligada as operações e lógicas da mídia. Ainda seguindo este pensamento, Braga (2006) postula que ocorreram reformulações sociais diante dos processos midiáticos devido à midiatização da sociedade. Houve assim uma reconfiguração das formas e maneiras de viver em sociedade, uma nova ambiência sociocultural surge centrando nos atos, interações e relações nas lógicas dos meios pós-massivos. Contextualizando esta realidade, é possível perceber que a sociedade moderna não está isenta das operações digitais, característica do fenômeno da midiatização. E não há como transitar pela sociedade moderna, sem que se isente de qualquer operação digital: nosso dinheiro, cada vez mais circula pelas maquininhas das lojas; nossos cartões de felicitações já são digitalizados através de e-mails; nossas reclamações e críticas a produtos e serviços, nossas compras e reservas são tecnomediadas; produções, ideias e opiniões, mobilizações e participações em fóruns, cursos e eventos; namoros e casamentos... o que mais nos falta participar via internet? E mesmo aqueles que acreditam estarem livres ou a parte dessa rede de interação midiática, não percebe que toda a vida a sua volta se articula com as redes invisíveis do ciberespaço, uma vez que está inserido em um novo bios, desta feita, instaurado sob o processo social da midiatização. (NICOLAU, 2012, p. 3) Diante desses estudos, consideramos que tanto os meios como os indivíduos estão imersos nesta vida midiatizada, em que a atmosfera informativa é notadamente eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas rápida e efêmera devido ao avanço das tecnologias da comunicação e informação. McLuhan (1964) já afirmava que as tecnologias afetariam a sociedade criando tipos de lazer e trabalho novos e que o globo já representava uma vila. Com a convergência do computador e das telecomunicações, os indivíduos desenvolveram habilidades surpreendentes para guardar e ao mesmo tempo recuperar informações, tornando-as rapidamente disponíveis em vários formatos para quaisquer lugares. O elo entre computador e redes tornou este aparato em mídia e também em um sistema amplo que dá aos usuários a capacidade de criar e distribuir informações. Sendo assim, a sociedade contemporânea está imersa em um espaço midiatizado regido pelas novas tecnologias e moldado pelo virtual que altera a conversação, que discutiremos no decorrer deste artigo. 2 Comunicação e conversação mediada pelo computador O processo da comunicação e da interação mediada pelo computador ou não há muito tempo vem sendo pensado e estudado por vários teóricos da comunicação, como McLuhan (1969), Thompson (1998) e outros. Com o advento dos meios digitais, novas formas de comunicação surgiram e vêm reconfigurando cada vez mais as maneiras de interação entre os indivíduos, como também dos meios de comunicação tradicionais. As tecnologias de Capa 161 - Marcos Nicolau Sumário armazenamento, distribuição e recuperação das informações fizeram surgir novos paradigmas de pensamento sobre a interação na sociedade contemporânea. Neste âmbito, entende-se que a comunicação mediada pelo computador (CMC) é contextualizada como a comunicação que ocorre entre as pessoas por meio da mediação da tecnologia. Recuero (2012) observa que o conceito da comunicação mediada pelo computador não somente se refere aos aspectos técnicos, mas também à pluralidade de elementos socioculturais. Sendo assim, quando nos referimos à CMC, devemos perpassar as fronteiras apenas do contexto tecnicista, como por exemplo, potencial informático, velocidade da máquina, mas também enfatizar o processo das relações sociais que neste ambiente ocorrem. A estrutura multimídia disponibilizada para os usuários interconectados vai além da simples conexão de máquinas. Esse tipo de interação social que ocorre na CMC se diferencia dos demais tipos de comunicação, como o anonimato, distanciamento físico, surgimento de novas formas de linguagens, ambientes etc. Quando nos referimos à interação, Primo (2008) citando o pensamento e análise de Thompson sobre este campo nos apresenta, desde o caráter dialógico das interações face a face que implicam ida e volta de informações, as interações mediadas, como conversas telefônicas e cartas, até a interação quase mediada, que está exatamente centrada e se refere aos meios de comunicação de massa: jornal, eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas televisão, rádio, livro e outros, em que o fluxo de informação é de sentido único. Ainda de acordo com o autor, estas interações não disponibilizam ou não possibilitam reciprocidade. A CMC está exatamente constituída na nova forma de interação que surge com o advento das novas tecnologias e do ciberespaço, que diferentemente do espaço off-line não privilegia a comunicação face a face, mas se compõem de maneira especial de texto, imagens, sons e vídeos. Diante desta realidade que se configura no cotidiano dos indivíduos, Primo (2008) ainda aborda questões sobre interatividade e cognição, dando destaque ao campo de estudo da comunicação, retifica que as relações socioculturais embutidas na interação mediada especialmente pelo computador fazem parte da nossa vida diária e tornam-se cada vez mais realidade para toda a sociedade contemporânea. No âmbito dos estudos da comunicação mediada pelo computador outro fator preponderante está nas práticas da conversação, perspectiva de estudos que foca na mediação digital, ou conversação por meio de suportes digitais. Ao refletirmos sobre as práticas da conversação, podemos observá-la como processo social organizado. A conversação é, portanto, um processo organizado, negociado pelos atores, que segue determinados rituais culturais e que faz parte dos processos de interação social. Não se trata apenas daqueles diálogos orais diretos, mas de inúmeros fe- Capa 163 - Marcos Nicolau Sumário nômenos que compreendem os elementos propostos e constituem as trocas sociais e que são construídos pela negociação, através da linguagem, de contextos comuns de interpretação pelos atores socais. (RECUERO, 2012, p. 31) Sendo assim, a conversação mediada pelo computador é construída por meio de trocas informativas entre as pessoas imersas no ciberespaço e vai muito além da simples troca informacional por meio da máquina, mas é, antes de tudo, um processo organizado que está diretamente ligado aos preceitos sociais e culturais dos atores e faz parte da interação social em todo seu âmbito. O que podemos observar é que estamos imersos em um processo social, cultural e comunicacional diferente do que tínhamos vivenciado até então. O surgimento do computador que muito rapidamente se tornou ferramenta indispensável na interação dos indivíduos, passando de uma simples máquina de processar dados, para uma ferramenta social, fez crescer o ciberespaço ambiente caracterizado pela cibercultura e que fez gerar a nova ambiência dos processos da midiatização. A sociedade rege-se por esta realidade, em que as interações e conversações estão notadamente ocorrendo pela mediação das máquinas, em especial do computador, gerando assim, outros aspectos sociais e culturais na troca de informações. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 3 A multiconversação nas redes sociais Considerada elemento de prática cotidiana e que permite a interação humana, a conversação é reelaborada no contexto digital. Ao ser mediada pelo computador e presente em sites de redes sociais, corpus do nosso estudo, a conversação digital se diferencia da conversação “real” que existe fora do ambiente tecnológico, em função dos usos que fazemos das ferramentas computacionais. São conversações diferentes, pois são capazes de emergir de espaços coletivos para publicações divididas por vários indivíduos e se espalhar em espaços online, como comunidades de Orkut59, debates no facebook 60 ou até mesmo em um espaço formado por uma hashtag.61 Essas conversações diferenciam-se das demais conversações no espaço digital porque, constituídas dentro das redes sociais online, são capazes de “navegar” pelas conexões dessas redes, espalhando-se por outros grupos sociais e por outros espaços. São conversações que permeiam diversas redes sociais, recebendo interferências e participações de indivíduos que, muitas vezes, não estão sequer conectados aos participantes iniciais do diálogo. São conversações públicas que migram dentro Site de rede social que pode ser acessado através do endereço WWW.orkut.com 60 Site de rede social que pode ser acessado através do endereço WWW.facebook.com 61 Representadas pelo Símbolo # determina qual o assunto da postagem. Várias pessoas podem falar do mesmo assunto iniciando a palavra com este símbolo para se juntar aos demais comentários. 59 Capa 165 - Marcos Nicolau Sumário das diversas redes e que, deste modo, interferem nas redes sociais que utilizam as ferramentas. Assim, uma conversação em rede nasce de conversações entre pequenos grupos que vão sendo amplificadas pelas conexões dos atores, adquirindo novos contornos e, por vezes, novos contextos. (RECUERO, 2012, p.123) Através da conexão, os atores sociais estabelecem conversações com outros atores que são capazes de gerar mobilizações, fenômenos musicais, influenciar em opiniões, e republicar para diversos outros grupos que ganham acesso à informação. A partir do momento em que ampliam suas conexões, ocorre uma espécie de migração de redes sociais aumentando a circulação de informações, que caracterizam a conversação em rede. Dessa forma, acontecem a migração e multimodalidade das conversações em várias plataformas, de forma simultânea ou não entre vários indivíduos. Recuero (2012) afirma que uma mesma conversação que tem início em um determinado espaço pode acontecer simultaneamente em diversos espaços onde a rede social do ator pode ser encontrada. A multimodalidade permite que alguém use o e-mail para ter contato apenas com a família, o facebook para conversar com os amigos ou o Messenger (MSN) para resolver problemas do trabalho etc. As conversações são multimodais e espalhadas por diferentes sites de redes sociais, de forma que as interações podem ser recuperadas na rede escolhida, conforme observamos abaixo: eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Twitter A : “Oi amiga, tenho um babado pra ter contar!” Twitter B : “Não acredito. vamos conversar no Face!” Neste exemplo, podemos ver que o primeiro ator direciona a conversa para outra rede. Porém, é possível que os dois permaneçam comentando ao mesmo tempo nas duas ou em outras redes. Interconectados, os atores conversam em rede, em uma conversação que é capaz de migrar e se tornar coletiva. Nesse contexto, elas podem ocorrer de forma imediata, caracterizada como conversação síncrona, onde Recuero (2012), através de estudos em Reid (1991) afirma que esta é definida pelo compartilhamento do contexto temporal e midiático, entre dois atores ou mais. Já a conversação assíncrona se estende no tempo, a expectativa de resposta não é imediata, a exemplo do e-mail e weblogs. No entanto, tais características podem decorrer do uso da ferramenta. De forma que, apesar do e-mail ter característica assíncrona, este pode ser utilizado de forma síncrona quando a resposta é imediata. Ou o MSN, que tem característica síncrona, mas que no momento que o usuário está off-line e mesmo assim recebe mensagens, este passa a ser assíncrono, pela resposta não imediata. Com a multimodalidade, a conversação é constituída de multiconversações que amplificam a participação, na qual a informação não é restrita a um grupo, ela extrapola o caminho, tendo seu alcance em várias redes sociais. A multiconversação acontece quando um único ator mantém diversas conversações simultâneas, em contextos diferentes, com atores diferentes. É um fenômeno interessante, na medida em que a multiconversação não necessariamente precisa acontecer no mesmo espaço ou ser inteiramente síncrona. É o caso, por exemplo, de um ator que mantém várias janelas de conversação no Gtalk com vários amigos enquanto escreve um e-mail a outro e informa a rede de outro fato no Facebook. Graças às ferramentas de CMC e aos sites de rede social, a multiconversação é cada vez mais frequente, exigindo de seus participantes um foco difuso e a capacidade de lidar com diversos contextos ao mesmo tempo. (RECUERO, 2012, p.158) As redes sociais acabam atuando como espaços conversacionais e o uso que as pessoas fazem deste espaço é o que constitui a conversação digital. Tudo isto esta relacionado à midiatização. Como exemplo, temos o site de rede social facebook, na qual podemos publicar fotos, conversar através do bate papo com os nossos amigos, enviar mensagens em grupos, postar vídeos, entre outros. Algumas dessas funções são características e apropriações de outras redes sociais, como exemplos, o messenger (MSN), rede em que conversamos com os amigos que adicionamos, e o Flickr, rede de publicação de fotos. Porém, vale salientar que com o surgimento de uma mídia, a “antiga” deixa de ser tão acessada, como no caso do Orkut, criado em 2004, mas que após o surgimento do facebook sua visibilidade foi caindo e em 2012 contou com 34,4 milhões de usuários62 no Brasil. Enquanto isso, 62 Capa 167 - Marcos Nicolau Sumário Dados disponíveis no site www.secundados.com.br eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas o facebook já alcançou a marca de 800 milhões63 de usuários em todo mundo e 48 milhões64 deles são do Brasil. Já o Twitter alcançou a marca de 200 milhões65 em 2011. Por que isso acontece? Acreditamos que as pessoas frequentam a rede mais “famosa” do momento, aquela em que é possível fazer todas as atividades em um lugar só, as mesmas que antes só podiam ser feitas em mídias separadas. As novas mídias trazem elementos das mídias já existentes. Assim como afirma Poshar (2011), o que nos parece novo, de fato, são formas renovadas de “velhas mídias” (old mídia). Nenhuma mídia, hoje, é uma mídia isolada da outra. Partindo desse pressuposto, podemos destacar aqui o conceito de remediação (remediation) definida como a lógica formal na qual uma mídia renova (refashion) as formas de uma mídia anterior ou, como o processo em que as “velhas mídias” são representadas e, até mesmo, realçadas pelas novas mídias, recebendo um novo propósito, uma nova forma e um novo tipo de acesso ou uso (repurpose). (BOLTER; GRUSIN, 2000 apud POSHAR, 2011, p.3) Bases do processo de remediação, as mídias podem ser caracterizadas pela imediação e hipermediação. A priRECUERO, Raquel. A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.p.15. 64 Dados disponíveis no site www.secundados.com.br 65 RECUERO, Raquel. A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.p.15. 63 Capa 169 - Marcos Nicolau Sumário meira se refere ao contato direto que o observador tem com o objeto, como exemplo, as imagens de realidade virtual ou 3D. Já, a hipermediação é o conhecimento do observador adquirido mediado por algum meio. Acredita-se que o uso que fazemos de cada mídia define uma identidade cultural e pessoal. Segundo Rosa e Islas (2009) com estudos de Paul Levinson (1997), o termo “meio remedial” serve para descrever como nossas sociedades utilizam um meio para reformar ou melhorar o outro. Em termos darwinianos, ele sugere que a seleção do ambiente mediático se dá nas mãos das pessoas, as quais contribuem com sua preferência para a evolução de um meio determinado. Ou seja, a evolução dos meios nada mais é do que as necessidades ou desejo que nós criamos para nos manter conectados e estabelecer diferentes conversações. Assim, conforme afirma Poshar (2011), o próprio indivíduo chamado de “eu virtual” está ligado a hipermediação expressa em um ambiente virtual, porém multimídia. Ela acrescenta que o “eu virtual” é constituído em uma rede que está constantemente se alterando. O observador pode estar em um bate papo, fazendo conferência, dentro de um único ambiente: o ciberespaço. Essa possibilidade de exercer diferentes atividades em um único espaço origina o aparecimento de multiconversações que amplificam as participações e migrações em redes sociais. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 4 O capital social nas multiconversações Seja para trocar ideias ou conectar-se, milhares de pessoas passam parte do dia a dia usando seus dispositivos incorporados no cotidiano de suas práticas de comunicação. Elemento característico das redes sociais na Internet, o capital social representa o valor construído através das trocas de intimidade e proximidade dos atores nas conversações. O que é diferencial nos sites de redes sociais é que eles são capazes de construir e facilitar a emergência de tipos de capital social que não são facilmente acessíveis aos atores sociais no espaço off-line. Por exemplo, no Orkut um determinado ator pode ter rapidamente 300 ou 400 amigos. Essa quantidade de conexões, que dificilmente o ator terá na vida off-line influencia várias coisas. Pode, assim, torná-lo mais visível na rede social, pode tornar as informações mais acessíveis a esse ator. Pode, inclusive, auxiliar a construir impressões de popularidade que transpassem ao espaço off-line. (RECUERO, 209, p.107) Ao proporcionar espaços conversacionais, as redes sociais, seja facebook, twitter, MSN, passam a funcionar como espaços de interação, onde os indivíduos efetuam práticas semelhantes à conversação diária. A busca pela manutenção desta conversa estabelece o que podemos chamar de laços sociais constituídos de laços fortes e laços fracos. Os laços fracos seriam constituídos pelas interações mais pontuais e superficiais, enquanto os fortes, pelas relações de amizade e intimidade. Granovetter mostrou também que pes- Capa 171 - Marcos Nicolau Sumário soas que compartilhavam laços fortes (de amigos próximos, por exemplo) em geral participavam de um mesmo círculo social (de um mesmo grupo que seria altamente conectado). Já aquelas pessoas com quem se tinha um laço mais fraco, ou seja, conhecidos ou amigos distantes, eram justamente importantes porque conectariam vários grupos sociais. (GRANOVETTER, 1973 apud RECUERO, 2009, p.62) Atentos a esse destaque na rede, os indivíduos ou atores sociais constroem e mantêm conexões amplificadas no ciberespaço. A visibilidade, reputação e popularidade na rede são valores construídos através do capital social, que pode ser alcançado, por exemplo, através do um famoso “tweet”66 ou comentário que rendeu várias postagens ou replicações, ou do fato de ter um número maior de amigos ou seguidores, de forma que o ator tenha destaque ou “fama” na rede. Enquanto interativos, fazemos parte constantemente da cultura participativa criando perfis de redes sociais e compartilhando conteúdos em busca de obter um valor social na rede, mas também contribuindo com as informações nesse meio. Assim como afirma Shirky (2011), quando usamos uma rede a maior vantagem que temos é acessar uns aos outros, e o uso da mídia social ativa essa vontade. Essas formas de capital social influenciam a conversação no momento em que as interações são construídas na rede. Segundo Recuero (2012), quanto mais citado 66 Nome dado para postagem feita na rede social Twitter. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas é alguém, quanto mais referências à sua participação na conversação, maior visibilidade. Quanto mais indivíduos têm acesso ao que diz e concordam com esse ator, mais elementos de reputação este soma. E assim, temos grupos e indivíduos espalhando e trocando informações que trazem valores aos participantes. 5 Redes sociais como espaço de interação e de multiconversação A liberdade de criar, expor pensamentos e se relacionar com diferentes pessoas através da telinha do computador ou qualquer outro dispositivo são alguns dos fatores que permitem a proliferação das multiconversações nas redes sociais. As pesquisadoras deste trabalho, por exemplo, no momento em que escrevem este artigo, estão, também, respondendo e-mails com assuntos de trabalho, conversando com amigos através do chat do Facebook, respondendo tweetes e ainda conversando com familiares através dos comentários de uma postagem no facebook. Tudo isso é possível através da estrutura dos sites de redes sociais que nos permitem executar várias atividades ao mesmo tempo. No entanto, a conversação não é constituída apenas da estrutura das mensagens, e sim do sentido construído entre os atores que contribuem na compreensão do significado e conteúdo das mensagens. Recuero (2009) Capa 173 - Marcos Nicolau Sumário afirma que as conversações podem ser pontuadas em aspectos semânticos e estruturais: Esses aspectos são formados pelo: 1) conteúdo e sequenciamento das interações, na qual é preciso compreender o que está sendo dito e para quem, além de ver qual turno vem antes ou depois através do horário, data e links da conversa, como podemos observar na figura abaixo com data e horários de uma conversa: Figura 1 – Comentários de usuários feitos na página de um blog e compartilhado no Facebook Fonte: http://minhavidacrista.com/relacionamentos/antissociais-por-fernanda-paiva/ 2) A identificação e estrutura dos pares conversacionais, onde são identificadas quais mensagens que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 175 - Marcos Nicolau estão relacionadas a quais outras e qual mensagem corresponde a qual fator. Essas interações são muito comuns em conversações assíncronas, por exemplo, podem migrar de um weblog para outro ou outro espaço de comentários. A figura acima também serve para explicar essa estrutura na qual os atores comentam sobre um post feito em um blog e compartilham no facebook. 3) Já a negociação e organização dos turnos de fala podem ocorrer pelo próprio sistema ou pela apropriação do mesmo usuário, fundamental para que as interações possam ser seguidas. Como exemplo, o uso do “@” como forma de identificação do usuário no twitter no momento em que ele conversa, conforme vemos na figura abaixo: 5) E por fim, multiplexidade e migração, onde pode ocorrer a migração da conversação de um meio para o outro e a quantidade destas interações que ocorrem em várias ferramentas formam laços entre os atores. Figura 2 – Postagem retwittada ou “replicada” por um usuário no site de Rede Social Twitter Fonte: http://twitter.com/Rene_Silva_RJ 4) A reciprocidade e a persistência avaliam a quantidade de mensagens que parte de uma conversação entre um par de atores e suas inter-relações para determinar os tipos de conexões que as trocas constituem. Além disso, é possível observar reciprocidade ao fato relatado com o uso de emoticons entre os atores: Capa Figura 3 – Registro de uma conversa estabelecida através do chat do Facebook Fonte: https://www.facebook.com/anasousax Sumário Figura 4 – Postagem feita por um usuário do Twitter Fonte: http://twitter.com/araujojcesar É raro vermos um usuário de rede social com uma pequena quantidade de amigos, a maioria deles tem mais eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 177 - Marcos Nicolau que 150 pessoas, algumas destas fazem parte do seu mundo real e outras são amigos virtuais. Em uma reportagem publicada na revista Época em setembro de 2012, a antropóloga italiana Stefana Broadbent, da Universidade College London, na Inglaterra ao analisar trabalhos do psicólogo britânico Robin Dunbar concluiu que o usuário de uma rede social pode ter centenas de amigos, mas conversa de forma regular com um grupo que varia de quatro a seis pessoas – número semelhante ás amizades mais complexas que as pessoas mantêm na vida real. Porém, embora não ofereça amizades verdadeiras a qualquer um que se aproxime, a Internet pode ajudar a construí-las. A Internet cria a sensação de familiaridade, como se vivêssemos com a pessoa há anos e a manutenção destes laços se dá através da conversação, que muitas vezes, traz à tona assuntos que não seriam revelados em conversas face a face. Através das multiconversações, os indivíduos se sentem a vontade para postar o que desejam, e interagir com diferentes atores sociais em diversas redes. A figura acima mostra uma postagem feita no Facebook, onde uma internauta comenta sobre um debate que está acontecendo em outro meio, mas que ela não precisa ver, pois todas as pessoas já estão comentando na rede. Enquanto, um segundo ator ri abaixo, pois deve também saber da conversação anteriormente iniciada. Além disso, o Facebook ao mostrar a mensagem “escreva um comentário” nos impulsiona a fazer parte da conversação iniciada. Figura 6 – Postagem feita por usuária no sue perfil do Facebook Fonte: https://www.facebook.com/Jessica.Lourencoo?fref=ts Como exemplo, também a imagem acima que retrata uma postagem feita no Facebook, na qual a internauta fala no momento em que aconteceu um apagão na madrugada do dia 26 de outubro de 2012, na região Figura 5 – Postagem feita por usuária no Facebook em seu próprio perfil Fonte: https://www.facebook.com/janaina.souza.9809?fref=ts Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Nordeste, onde a Paraíba ficou três horas sem energia. A usuária usou seu dispositivo móvel para estabelecer uma conversação com outros atores de sua rede em busca de mais informações. Uma pesquisa divulgada em outubro de 2012, intitulada “etiqueta móvel” feita pela empresa de tecnologia Intel67, mostra que a proteção invisível permitida pela tela do computador ou de outro dispositivo faz com que 44% dos adultos se sintam confortáveis de compartilhar detalhes de sua vida pessoal mais online do que pessoalmente. Como participantes e observadoras da atuação dos indivíduos na construção das multiconversações nas redes sociais, podemos ver que estes têm se tornado o principal meio de informação dos usuários, não só para acompanhar notícias, mas também para estabelecer e manter interações com diferentes grupos. Considerações finais A rapidez e características das ferramentas tecnológicas permitem a veiculação e compartilhamento de qualquer conteúdo. Através do processo de midiatização, nossas relações humanas têm se tornado relações virtualizadas. O crescimento e fácil acesso à Internet impulsionaram estas frequentes interações mediadas. Protegidos por uma tela de computador ou dispositivos móveis como iphones, tablets, notebooks, os in67 Disponível em http://migre.me/btFRT Capa 179 - Marcos Nicolau Sumário divíduos acabam fazendo tudo através desta única rede. Conectados a Internet, é possível construir diferentes conversações em sites de redes sociais, o que chamamos de multiconversação. Essas conversações acabam se diferenciando das “reais”, existentes fora do ambiente midiático devido ao uso que nós fazemos. Sentimos a necessidade de participar dessa cultura participativa estabelecendo interações com diversas pessoas de forma imediata ou não. Passando de usuários para atores sociais, somos seres multimídia e navegamos por diversas redes sociais ao mesmo tempo. Como autoras e observadoras da pesquisa, consideramos que é difícil identificar um usuário utilizando apenas uma ferramenta social para conversar. A vida tecnomediada faz com que tudo seja resolvido de forma online e de qualquer lugar, seja assuntos de trabalho, familiares, de estudos etc. De fato, após o crescimento e as plataformas existentes nas redes sociais, a exemplo do facebook, é possível identificar uma preferência dos atores por esta rede provada pela quantidade de pessoas conectadas e que ficam online comparada ao chat do MSN, por exemplo, pouco utilizado ultimamente. Embora esta última rede tenha incorporado elementos de outras, como integrar amigos online do facebook. As pessoas tendem a migrar para rede que proporciona uma maior quantidade de atividades, mesmo assim, permanecem com diferentes e-mails abertos e eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 181 - Marcos Nicolau chats online que promovem a conversação de diferentes ambientes. Mais do que um ambiente para divulgar e compartilhar informações, as redes sociais acompanham a rapidez da vida midiatizada, em que é possível verificar conversas simultâneas, muitas delas abreviadas, mas que dão sentido às conexões entre vários indivíduos que constituem seus laços sociais. Depende de cada um de nós se adequar a essas transformações que dão sentido às multiconversações. Referências BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix LTDA, 1964. mediada pelo computador e redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012. ______. Redes sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. ______. Diga-me com quem falas e dir-te-ei quem és: a conversação mediada pelo computador e as redes sociais na internet, 2009. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs. br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/5309/3879 ROSA, Helaine; ISLAS, Octávio. Contribuições dos blogs e avanços tecnológicos na melhoria da educação.In:AMARAL, Adriana; RECUERO Raquel ; MONTARDO,Sandra Portella.(Orgs.).Blogs. com: estudos sobre blogs e comunicação.São Paulo: Momento editoral,2009. SHIRKY, Clay. A cultura da participação. Criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2011. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria linear e em rede. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. NICOLAU, Marcos. “Menos Luiza que está no Canadá” e o fator humanológico da midiatização. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ppgc/smartgc/uploads/arquivos/907 aad9df920120611090301.pdf NETO, Antônio Fausto. Fragmentos de uma analítica da midiatização. 2008. Disponível em http://200.144.189.42/ojs/ index.php/MATRIZes/article/viewFile/5236/5260 POSHAR, Andréa. Remediation: Understanding new media. 2011. Disponível em http://www.insite.pro.br/2011/Abril/Resenha_remediation_poshar.pdf PRIMO, Alex. Interação mediada por computador: Comunicação. Cibercultura. Cognição. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2008. RECUERO, Raquel. A conversação em rede: comunicação Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Interações religiosas tecno-mediadas: ressignificação da religião no ciberespaço Odlinari Ramon Nascimento da SILVA68 Resumo O presente artigo traz uma análise a respeito das mudanças ocorridas no campo religioso a partir do desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação. Em um momento marcado por uma sociedade midiatizada, busca-se compreender a religião midiática e as diferenças entre as práticas tradicionais do templo feito de pedra e tijolo e as práticas ressignificadas de uma igreja que só existe no ambiente virtual, cujo endereço é o www.miid. net.br. A intenção é fazer entender, através de um estudo de caso do Ministério Interdenominacional Intervasos de Deus, como o campo social religioso - marcado pela tradição - reordena seus elementos simbólicos para continuar a fazer parte da vida dos indivíduos na atualidade. Um olhar mais do que técnico, analisa a mídia como um campo de operações que liga o homem a Deus. Palavras-chave: religião. Midiatização. Ciberespaço. Ciber- Aluno Especial do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Projeto de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected] 68 Capa 183 - Marcos Nicolau Sumário Introdução Com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação, a sociedade do século XX e XXI começou a viver de acordo com as lógicas da cultura midiática. A Idade Mídia, parodiando a maior Era que a humanidade já viveu, interfere em todos os campos sociais que estruturam a sociedade. A mídia mudou a forma de nos comunicarmos uns com os outros. Nosso relacionamento social, hoje, é midiatizado. Já há quem diga que não exista um acontecimento qualquer no mundo, que não seja midiatizado. E se ainda houver, sua existência estará posta em xeque. No caso da religião – campo social marcado pela tradição –, esta abriu as portas para as implicações do fenômeno da midiatização. O homem contemporâneo não só vai à igreja, como também a encontra em toda parte. Em décadas passadas, o templo era “estático” – sempre no mesmo lugar – o fiel era quem ia à sua procura. Hoje, há uma inversão de sentidos. A igreja é quem vai à procura do fiel em toda parte, rompendo com qualquer fronteira particular. E em qualquer tempo. O culto não só existe dentro das quatro paredes do templo, ditas “sagradas”, agora o profano torna-se palco de realização de culto. Seja ele no quarto de uma casa, na sala, no escritório, dentro do carro, no meio eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas da rua, numa caminhada utilizando algum dispositivo tecnológico e etc. A exploração dos novos recursos tecnológicos-informacionais, por parte da ciber-religião, faz com que seja criado um novo ambiente que move as práticas sociais dos fiéis às práticas midiáticas por conta dos processos de midiatização hoje. A tradição religiosa começa a ser reformulada, ou melhor, ressignificada pelas implicações do processo midiático das práticas sociais, que por sua vez, passa a sacralizar-se diante da presença dos elementos simbólicos da religião. O espaço midiático interfere no religioso e o religioso apropria-se do midiático para garantir visibilidade e manutenção dos fiéis, que estão inseridos numa sociedade regida pela mídia. Vivemos hoje sob os ditames da cultura midiática. Uma nova cultura que surge com o desenvolvimento dos novos meios de comunicação, a qual Pierre Lévy (1999) a denomina de Cibercultura. Esse artigo é resultado de um desafio que o Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas (Gmid), do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, estabeleceu como requisito para uma análise teórica, o estudo de algo que está tão presente na sociedade contemporânea: a Midiatização. Nosso objetivo é fazer um estudo de caso a respeito do fenômeno religioso inserido no ciberespaço, ou melhor, tentar fazer uma análise das práticas religiosas Capa 185 - Marcos Nicolau Sumário que surgem com a nova forma de fazer religião, que aqui denominamos de ciber-religião, a partir de uma igreja que só existe no âmbito virtual: o Ministério Interdenominacional Intervasos de Deus, conhecido como MIID. Não partirmos de um ponto de vista do uso institucional-dispositivo, tratando a mídia como suporte, mas observamos as alterações sociais (práticas) causadas devido ao uso midiático. A mídia é uma configuração sociotécnica culturalmente ampla, que abarca parte da vida social. As tecnologias comunicacionais são artefatos culturais, produtos de nossas intenções e propósitos. A relação entre tecnologia e vida social produz um efeito ambivalente: se por um lado a tecnologia determina a sociedade, por outro, os modos como nos apropriamos delas e o uso que fazemos reinventam as características da vida social. Assim, não estamos interessados em saber apenas como a mídia funciona, mas que sentidos ela traz e acrescenta ao mundo (MIKLOS, 2012, p. 13) Qual o impacto que as novas tecnologias trazem ao modo de vida religioso das pessoas comuns? / Que alterações as experiências religiosas sofrem quando se deslocam para o ambiente virtual do ciberespaço? / Em tempos de interferências das novas tecnologias midiáticas, como se dá a interação do fenômeno religioso no âmbito da midiatização? – Perguntas como essas, serviram para nortear essa pesquisa que trata de uma relação intrínseca entre a religião e a mídia. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Midiatização Temos a consciência de que definir o processo de midiatização da sociedade a partir de um ponto de vista comunicacional é analisá-lo de forma periférica, porque segundo Bourdieu69 o funcionamento da sociedade, como um todo, se dá através da estrutura dos campos sociais – midiático, político, científico, religioso, moral e etc. Mesmo sabendo que o campo social dito midiático ocupa uma posição estratégica e privilegiada no centro da estrutura social. Um campo social é resultado da racionalização e autonomização de um determinado domínio da experiência e se consolida na medida em que estabelece suas próprias condições de existência, tanto constitutivas como normativas, que o regulam (GASPARETTO, 2011, p. 31) Existe uma noção de midiatização, segundo Gasparetto (2011), a qual é entendida como fenômeno técnico-social-discursivo pelo qual as mídias se relacionam com outros campos sociais, afetando-os e por eles sendo afetados, segundo se entende as mídias não apenas como foco, mas como campo de operações e, ao mesmo tempo, constituídos por dispositivos que tratam de organizar e reger, segundo certas competências, as interações entre os campos sociais. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Trad. de Jeni Vaitsman. Rio de Janeiro. Marco Zero, 1983. 69 Capa 187 - Marcos Nicolau Sumário Para reforçar esse entendimento do autor, Borelli (2010) afirma que a midiatização constitui-se num complexo e amplo processo em que os dispositivos midiáticos agem sobre práticas sociais dos outros campos, como da religião, estruturando-as e engendrando-as por meio de operações tecnossimbólicas. A reflexão geral da midiatização leva necessariamente o pesquisador a percorrer sobre os conceitos de indivíduo, sujeito, ator, agente, sociedade, instituição, interações, mercados, valores, condutas, subjetividade, cognição, inconsciente, consciência, ideologia, estrutura, linguagem e etc. É uma gama teórica tão vasta quanto é complexa sua análise, segundo nos adverte Ferreira (2007). Acreditamos que a melhor definição, por enquanto, é o diálogo entre os pesquisadores deste fenômeno. Agora, vale salientar que todos eles apresentam uma semelhança ao afirmar que estamos vivendo um novo modo de ser no mundo, representado pela midiatização da sociedade. As mídias se converteram numa realidade mais complexa em torno da qual se constituiria uma nova ambiência, novas formas de vida, e interações sociais atravessadas por novas modalidades do ‘trabalho de sentido’ (FAUSTO NETO, 2007, p. 62) Trazendo aqui a contribuição de Martino (2012) em linhas gerais, a midiatização pode ser entendida como o conjunto das transformações ocorridas na sociedade contemporânea, relacionadas ao desenvolvimento dos meios eletrônicos e virtuais de comunicação. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Nesse sentido, Muniz Sodré (2006) pensa a midiatização como uma tendência à virtualização das relações humanas, presente na articulação do múltiplo funcionamento institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicação. Na visão de Gomes (2006), o processo de midiatização é um fenômeno social que, transcende o universo do midiático, articulando com a problemática das mediações. Para Braga (apud FLORES; BARICHELLO, 2009) a midiatização é entendida como processo de interação que caminha para o lugar de referência na sociedade, porém não sendo ainda um processo estabelecido ou terminado, mas em implantação. Esse conceito se aproxima do que dizem alguns teóricos do campo comunicacional, baseados na filosofia do pré-socrático Heráclito de Éfeso, ao tratar a comunicação como processo social, nunca estático. Berge (2007) nos lembra que a mídia deixa de ser “instrumental” e torna-se “constitutiva” da estrutura social, na medida em que articula um novo modo de pensar, uma nova forma de estruturação das práticas sociais. A mídia deixou de ser apenas um mero instrumento técnico de registro da realidade. Ela passa a ser um dispositivo de produção de certo tipo de realidade espetacularizada produzida pela excitação dos sentidos. Ao construir a realidade, essas maneiras de interação atravessadas pelas lógicas midiáticas vão acarretar a organização de um ambiente igualmente midiatizado, um novo bios ou uma nova ambiência, defendida por Capa 189 - Marcos Nicolau Sumário Sodré (2002). Logo, com a midiatização da sociedade, foi implantado um novo modo de pensar e estruturar a sociedade através da tecno-interação – tecnologia – “um novo bios”. Portanto, dar-nos a entender que a midiatização interfere de maneira reflexiva na compreensão que os indivíduos têm da realidade. Recorrendo mais uma vez a Sodré (2006), as instâncias de uma sociedade midiatizada estão “culturalmente afinadas com uma forma ou um código semiótico específico”. No caso das instituições religiosas, a adoção desse “código semiótico” significa estar em sintonia com as percepções dos fiéis, estar atento às sensibilidades, às formas de percepção e compreensão dos adeptos. É importante ressaltar que a midiatização da religião trouxe alterações não apenas para as dinâmicas do campo religioso, mas introduziu novos fatores nas dinâmicas internas do campo da comunicação. O espaço de ação do religioso na cultura midiática não se separa das formas tradicionais de vivência religiosa, mas adapta-o para as necessidades e demandas do cotidiano em várias instâncias. Em suma, a midiatização da religião traduz-se não apenas como um momento de alteração das práticas das instituições religiosas, mas também como uma aparente reestruturação, mais ampla, dos significados do que é “sagrado”, “religioso” e da “experiência religiosa” em uma sociedade em midiatização (MARTINO, 2012, p. 237) eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas As igrejas midiáticas As relações entre as instituições religiosas e os fiéis, no mesmo sentido, tornam-se mediadas, entre outros fatores, pelo instrumental tecnológico responsável por oferecer uma opção de vivência do religioso que, longe de se chocar com os padrões, fluxos e referenciais do contemporâneo, a eles se adapta, diluindo possíveis contradições entre a mensagem religiosa e as demandas da sociedade atual em novos horizontes e perspectivas para se viver uma religiosidade midiática (MARTINO, 2012, p. 238) Sabendo que esse processo da midiatização se articula com o universo das mediações, para Martín-Barbero (1995), na religião, a mídia não é apenas um elemento técnico, mas torna-se um elemento fundamental do contato religioso, da celebração religiosa, da experiência religiosa. Quanto às novas religiosidades, Fiegenbaum (2006) diz que são produtos gerados por essa nova ambiência midiática, ou seja, elas já são um produto midiático, no sentido em que se apresentam como religiosidades que emergem da mídia. Cada igreja possui seus determinados dispositivos midiáticos para atrair cada vez mais seus fiéis de acordo com sua específica necessidade de manutenção. Mas existe uma lógica no uso dos meios de comunicação por parte do campo religioso, de que essa utilização midiática se faz necessária por motivos de expansão e facilidades em pregar o Evangelho de Cristo de forma masCapa 191 - Marcos Nicolau Sumário sificada. No nosso caso, o Pr. Radamés Gonzaga criou o MIID, como pretexto de que a internet é campo propício para a pornografia on line. E agora com o surgimento das novas mídias, a igreja não só as utiliza para pregar a Palavra como também para manter fiel às instituições, àqueles que têm simpatia em relação aos ideais de uma igreja evangélica. Do ponto de vista histórico, existem distinções entre igrejas tradicionais e igrejas emergentes, o que também estabelece referenciais diferentes de prática e culto. As primeiras, representadas pelo catolicismo e protestantismo, sempre fizeram uso dos meios de comunicação de massa como instrumentos condutores de suas mensagens; já as novas igrejas, nascem geneticamente produzidas pela mídia. O que significa que estas correspondem ao bios midiático, enquanto que as primeiras precisam assimilar esta tendência para sobreviverem num contexto de competição e de constante inovação tecnológica. Ou seja, a relevância religiosa supõe o domínio da lógica midiática. (OLIVEIRA, 2009, p. 42) Quanto às pessoas, Muniz Sodré (2002) afirma que esses não se instituem mais como meros espectadores, e sim como membros participantes de uma ambiência que deixa de funcionar na escala tradicional do corpo humano para adequar-se afetivamente pela imersão na mídia. Uma nova forma de vida feita de fluxos de imagens que reinterpretam continuamente com novos suportes tecnológicos as representações tradicionais do real. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 193 - Marcos Nicolau Muito mais do que técnica Borelli (2010) suscita a questão ao dizer que os dispositivos, no nosso caso, o computador e a internet, são os principais mecanismos de geração e de criação de símbolos para a religião. A religião sempre foi mediada, lembra Hoover70 mas, cada vez mais, ela depende da mídia. Não se trata de uma questão puramente técnica – já que a mídia possibilita que a igreja contate seus fiéis sem a necessidade da presença nos templos -, pois a partir do momento em que o campo religioso reestrutura a sua prática e o seu discurso, são gerados distintos sentidos. Portanto, estamos diante de uma ressignificação da religião, que carrega lógicas da cultura midiática. As formas tradicionais de comunicação estruturadas estritamente nos próprios rituais religiosos dão lugar as estratégias midiáticas concretas – via midiatização. Os antigos púlpitos estão cedendo lugar aos novos espaços midiáticos. Espaços esses de geração de sentidos e de produção simbólica religiosa e midiática. Os pastores pregavam mensagens bíblicas olhando para o público que estava à sua frente, hoje eles anunciam Jesus diante de um dispositivo técnico, ou melhor, tecnossimbólico, que, dentre várias funcionalidades, enHOOVER, Stewart. Media, Religion and Culture: Future Directions. Conferência proferida pelo autor no dia 09 de julho de 2006 na Stora Salen do Sigtuna Stiftelsen, na cidade de Sigtuna, Suécia. via a mensagem para milhões de receptores espalhados no mundo inteiro. Para o pastor, é um público desconhecido, porém sua certeza é única: a existência do mesmo. Hoje, um culto realizado num templo pode ser visto em qualquer lugar do planeta, em tempo real. O uso do termo tecnossimbólico remete-se ao conceito de dispositivo que é compreendido para além de sua função técnica, já que ele abrange linguagens específicas que remetem a uma construção discursiva que se realiza num determinado contexto sociocultural. Lévy (1999) afirma que uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se condicionada, não determinada, por suas técnicas. Deste modo, as tecnologias são produtos de uma sociedade e de uma cultura. E ainda de acordo com Lévy, surge aí um novo modelo social: a cibercultura. Conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço – o novo meio de comunicação que surge a partir da interconexão mundial de computadores (LÉVY, 1999, p.17) Felinto71 é mais direto. Para ele, cibercultura é uma cultura na qual as novas tecnologias de informação e co- 70 Capa Sumário FELINTO, Erick. A religião das máquinas: Ensaios sobre o imaginário da cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2005. 71 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas municação desempenham papel central. Estamos imersos na cultura Ciber. É por esta razão de imersão da nossa vida social, que Miklos (2012) apresenta o conceito de ciber-religião como aquele que destina-se ao conjunto de experiências religiosas que utilizam as tecnologias comunicacionais e que se dão no espaço da rede. Para Lévy, da mesma forma que tratamos o cinema e a música como elementos culturais e estéticos, mesmo tendo noção de que se tratam de elementos da indústria, devemos tratar também a internet sobre o ponto de vista cultural. No contexto da sociedade midiatizada, a técnica se associa a mecanismos de produção discursiva e permite que sejam construídas distintas formas de “estar juntos”. É por meio dessa questão que Gasparetto (2011) formula a ideia de comunidade de pertencimento. Entende-se, assim, que a comunidade de pertencimento é um efeito de operações de comunicação apropriadas pelo campo religioso, que, ao fazer uso dessas novas tecnologias, acaba instituindo novas formas de viver a religião, convertendo os fiéis em atores de suas práticas. (GASPARETTO, 2011, p. 58) Dispositivos como a televisão, o celular, o computador... geram uma forma de sociabilidade, como acabamos de descrever, uma comunidade de pertencimento. Borelli reafirma o trabalho do dispositivo partindo do ponto de que o mesmo gera novas modalidades de Capa 195 - Marcos Nicolau Sumário contato e de interação, em que as normas e os modos de operar anteriores são revistos e reformulados a partir de outras operações de sentidos. Pois são os dispositivos midiáticos que garantem a continuidade do contato entre a igreja e o fiel. Antes as pessoas iam à igreja, hoje as igrejas vêm pelas redes. As novas práticas religiosas Esse contato com o fiel no ciberespaço é diferenciado em igrejas que utilizam outros dispositivos. Podemos fazer aqui um paralelo entre as estratégias de resgate na TV e na internet, por parte das chamadas igrejas “neopentecostais” - ramificação do pentecostalismo brasileiro que surge a partir da década de 70, com o surgimento da ‘igreja eletrônica’ – como é o caso da igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada pelo bispo Edir Macedo, em 1977, no Rio de Janeiro. Corten, Oro e Dozon72 observam que a IURD adota uma estratégia singular em relação às igrejas que estão presentes na mídia televisiva: contata seus fiéis e/ou candidatos a fiéis através da mídia, “chamando-os” para participarem da igreja mais próxima de suas casas. Logo, a mídia é fator central nessa cadeia produtiva. Já as estratégias da ‘igreja virtual’ apresentam outras formas de manutenção do fiel. Por existir apenas no CORTEN, A.; ORO, A. P.; DOZON, J. (org.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2006. 72 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas campo midiático, como é o caso do MIID – recorte empírico dessa pesquisa – as estratégias para resgatar um fiel ficam por conta da divulgação nas redes sociais e nos convites que cada membro do MIID faz aos seus amigos do Facebook e Twitter, para juntos, participarem de uma vigília de oração. Existe alteração simbólica até na nomenclatura das “igrejas virtuais”. Vasos de Deus é uma expressão bíblica que faz referência àqueles que se deixam ser “usados”, ou melhor, aqueles que cumprem a vontade de Deus ou que estão à sua disposição. Um missionário, por exemplo, é um vaso de Deus, segundo a própria Bíblia Sagrada. No caso do MIID, os internautas que participam das reuniões on-line da igreja são chamados de intervasos de Deus, pois eles estão dispostos a cumprir a vontade do Senhor na internet. Em horários programados, o pastor da igreja dialoga, por meio de seus discursos religiosos midiatizados e reconfigurados, com os fieis (seguidores) que estão conectados na plataforma do MIID, podendo esses mesmos internautas frequentar, presencialmente, outras denominações, pois neste caso, o que interessa é o seu pertencimento à comunidade virtual. Deus e o sagrado precisam ser codificados, ressignificados, reapresentados, moldados em uma processualidade informático-computacional-comunicativa. Com uma experiência religiosa mediada pelo computador, o indivíduo espera encontrar ali a mesma experiência que ele encontra no templo tradicional (igreja). Capa 197 - Marcos Nicolau Sumário Figura 1 – Home do site do Ministério Interdenominacional Intervasos de Deus - MIID Fonte: http://www.miid.net.br Na plataforma do MIID, percebe-se um novo local de realização de culto, proporcionado pela ciber-religião. Com interações mediadas, um discurso modificado pelo uso do dispositivo e um novo modo de cultuar a Deus, o MIID é palco de ação de um novo jeito de ser religioso. A conversação mediada por computador possibilita que os membros conversem durante uma pregação, comportamento esse proibido em igrejas presenciais, pois causam barulho no templo. Agora, enquanto nesse último exemplo de interação entre os membros é impossível que o pastor escute a conversa de duas pessoas; no primeiro caso, ocorre justamente o contrário: o pastor monitora a conversa de todos os membros, sabe suas preferências religiosas e suas indagações extraídas num diálogo por chat. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 199 - Marcos Nicolau Vale observar a característica atípica das reuniões dos Intervasos de Deus na internet. Sabemos que o ciberespaço proporciona um novo modo religioso em que o fiel não está condicionado ao espaço/tempo. Em qualquer lugar e em qualquer hora, o fiel pode navegar nessa nova experiência religiosa virtual. Porém, as reuniões do MIID não proporcionam, segundo Sbardelotto (2010), a “estocagem virtual do sagrado”, pois as reuniões são fixas e não acontecem fora de horário pré-determinado. membro, durante o culto, enviar e-mail pra alguém; visualizar as postagens dos seus amigos no Facebook; ler uma notícia num determinado site e etc. Quando trata-se de ciber-religião, faz necessário saber que novas práticas estão em jogo, a começar pela ausência de dois fatores importantíssimos e tradicionais, tanto para a religião quanto para a comunicação: a abolição do corpo físico e a anulação do espaço material. Qualquer membro, portanto, pode discursar. Basta pedir autorização ao moderador da conta do chat e ter um microfone para ministrar uma Palavra bíblica, assim como ocorre nas igrejas protestantes. Considerações finais Figura 2 – Plataforma da sala de adoração dos membros do MIID Fonte: http://login.hotconference.net.br/conference,intersala Na plataforma de interação do MIID observamos que existe um chat em que os membros interagem na hora do culto. Enquanto o pastor, por exemplo, está discursando, os membros estão interagindo com a fala do pastor e com outros membros que estão conectados. Além de estarem conectados em outros sites e redes sociais. É possível ao Capa Sumário Se a internet já traz consigo novas formas de ser, agir e comunicar-se, a ciber-religião também traz. O campo religioso, tradicionalmente como o conhecemos, também se modifica. As pessoas passam a encontrar uma experiência religiosa não apenas nas igrejas feitas de pedra e tijolo, mas também existente na rede. A rede mundial de computadores tornou-se uma ferramenta comunicacional fundamental de existência e manutenção das atividades religiosas da sociedade atual. Hoje, a Palavra de Deus não é transmitida pelos profetas, mas construída pelas redes no sentido de compartilhamento; e a boa nova é sempre tecnológica. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas O que nos dá a entender é que essa busca a uma nova comunidade de pertencimento, ou melhor, de estar ligado ao outro, torna o ciberespaço o melhor espaço para resgatar os valores do religare73. A mídia é pretexto para difundir esse novo comportamento. No ciberespaço, o fiel tem vez e voz. Quando o pastor ou qualquer pessoa está fazendo uso da Palavra, por exemplo, ela fica à vontade para interagir e até discordar de algo que foi proferido. Quanto ao discurso, esse fica flexível às intervenções de seus atores para enfim, adequar-se ao novo ambiente provocado por essa midiatização que a sociedade contemporânea vive. Mesmo com tanto avanço tecnológico, comunicacional e científico o homem continua sendo um agente religioso. No entanto, vale salientar que, na Idade Média o homem se adaptava aos rituais e a tradição das práticas religiosas. Hoje, na chamada Idade Mídia, a religião se adapta ao homem, que busca encontrar nos dispositivos eletrônicos e tecnológicos as práticas que o caracterizam como ser religioso, porém, dessa vez, novas práticas, ou melhor, práticas ressignificadas. A palavra religare é formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). O religare, nesse sentido, é a forma primeira de vínculo, concebida não só como vínculo entre os homens e seus deuses, mas especialmente entre os próprios homens. Vale salientar que o termo religare não é exclusivo do campo religioso, ele também é antropológico, já que é “matéria-prima” do elemento básico de constituição da comunidade. Nas sociedades pré-modernas esse sentimento era bem notável. 73 Capa 201 - Marcos Nicolau Sumário Referências BERGE, C. Tensão entre os campos midiático e religioso. In: MELO, J. 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Para tanto, aqui se apresenta o resultado do estudo de caso da Fan Page da empresa de telefonia móvel TIM. Uso dos sites de redes sociais como serviço de atendimento ao consumidor na sociedade midiatizada: estudo de caso da Fan Page TIM Brasil Palavras-chave: Comunicação organizacional. Sites de redes sociais. SAC. Midiatização. Gustavo David Araújo FREIRE74 Introdução Resumo O descaso enfrentado pelos consumidores junto aos tradicionais serviços de atendimento ao consumidor das empresas tem levado-os a adotar um novo comportamento na atual conjuntura da cibercultura. Fazendo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação, os consumidores enxergam no ciberespaço, e mais especificamente nos sites de redes sociais - estes ancorados pela lógica da Web 2.0 -, uma forma de compartilhar sua insatisfação na rede. A midiatização, que tem por base os fatores humanológico e tecnológico, é determinante para o desencadeamento de acontecimentos que culminam na geração de um novo bios. Nessa perspectiva, a midiatização de alguns casos de rápida resolubilidade por parte da empresa tem Aluno Especial do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected] 74 Capa Sumário A convergência da informática com as telecomunicações na segunda metade do século XX proporcionou uma nova dinâmica social ao que se refere, sobretudo, às novas formas de se comunicar e relacionar. Estas, cada vez mais processadas por intermédio da tecnologia configurou e continua configurando novos hábitos no dia a dia das pessoas, formando assim, uma conjuntura de várias ordens que culminou no surgimento da cibercultura. Progressivamente, passamos para além da mídia de massa, caracterizada por centralizar as informações sob seu poder e controlar a sua emissão, para as mídias digitais interativas, onde qualquer pessoa pode produzir informação e difundi-la no ambiente preferível, no formato que achar adequado. Os interlocutores a partir da comunicação mediada pelo computador e dos dispositivos móveis conectados, se organizam no ciberespaço em redes de troca e colaboração, onde ações interativas são uma constante e o processo de eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas comunicação se constitui numa estrutura comunicativa de livre circulação de mensagens, o que caracteriza o modelo comunicacional todos-todos discutido por Lévy (1999). Nesse sentido, a internet sob a lógica da web 2.0 ditou novas formas de interação, publicação, compartilhamento e organização de informações (PRIMO, 2007). Adjacente a isso, um novo comportamento por parte dos consumidores emergiu exigindo das organizações um novo posicionamento ao considerar o forte poder de influência dos interlocutores que pode ser desencadeado na rede. Devendo a organização se ater também, ao monitoramento dos espaços do qual o público consumidor se apodera para compartilhar suas experiências de compras e de relacionamento, podendo estas, serem de ordem positiva ou negativa. A lógica de o consumidor constituir elogio, sugestão e principalmente uma reclamação nos sites de redes sociais, seja no seu próprio perfil ou no perfil da organização, se deve entre tudo, as inúmeras falhas registradas no processo dos diversos canais de Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) instituído pelas empresas, cujo propósito central é dar resolubilidade aos problemas enfrentados pelos consumidores. O que leva o consumidor a constituir sua insatisfação nas redes sociais na internet expondo-a a outros? Quais são as motivações para tal feito? O que se busca? Muitos são os questionamentos a serem levantados na busca de se compreender o comportamento do consumidor no tocante Capa 207 - Marcos Nicolau Sumário ao relacionamento com a empresa. No entanto, algumas respostas que interessam a discussão aqui apresentada, podem ser evidenciadas a partir da perspectiva da midiatização. Afinal, como bem disse Gomes (2006, p. 121), “se um aspecto ou fato não é midiatizado, parece não existir”. Ao acessar as redes75 sociais na internet é cada vez mais perceptível o uso destas pelos consumidores como forma de expor o seu sentimento com dada marca, ora de satisfação, ora de insatisfação. Nesse sentido, buscamos aferir a partir da observação como tal processo se constrói numa dada realidade. Para tanto, a pesquisa se concretizou a partir do estudo de caso da empresa operadora de telefonia móvel TIM que possui uma Fan Page no Facebook. Comunicação organizacional em tempos de cibercultura A interação entre empresa e consumidor na perspectiva de construir um relacionamento de aproximação como estratégia mercadológica, nunca foi tão pensada e buscada como atualmente pelas organizações. Não obstante e sabíveis que para a sua sobrevivência o sistema organizacional tem que responder aos estímulos e se posicionar de forma coerente aos anseios da sociedade, as organizações fazem uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) na busca de captar e compreender as mudanças ocorridas no macroambiente. 75 Sobre sites de redes sociais consultar Recuero (2009). eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Impulsionado, sobretudo pela inovação tecnológica, o universo organizacional vem sofrendo mudanças muito rapidamente neste novo século. A competitividade cada vez mais acirrada e as novas tendências de mercado exigem muito mais das organizações que não apenas desejam sobreviver, mas se tornarem/manterem líderes de mercado. As TIC’s possibilitam à organização variados meios para que possam estabelecer sua comunicação e manter um relacionamento mais próximo dos públicos. Para Kunsch (2003, p. 69), “o sistema organizacional se viabiliza graças ao sistema de comunicação nele existente, que permitirá sua realimentação e sua sobrevivência.” Assim, percebemos o papel importante a ser desempenhado pela comunicação na organização, dada a sua relação com o aperfeiçoamento e vitalidade. A comunicação organizacional não é composta apenas pelas vias formais, aquela que é pensada, planejada e executada pela organização, mas também constituída pelos meios informais, brotada entre aqueles que se relacionam direta ou indiretamente com a empresa. Nesse sentido, Baldissera (2009) fundamentado nos três princípios básicos da complexidade76 - o dialógico, o recursivo O princípio dialógico compreende “a associação complexa [complementar, concorrente e antagônica] de instâncias necessárias ‘junto’ à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado.” (MORIN, 2000a, p. 201 apud BALDISSERA, 2009, p. 117). O princípio recursivo consiste em “processo em que os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os produziu.” (MORIN, 2001, p. 108 76 Capa 209 - Marcos Nicolau Sumário e o hologramático - propostos por Edgar Morin, redimensiona a noção de Comunicação Organizacional de duas formas: organização comunicada, correspondendo à fala oficial e planejada; e, organização comunicante, referente a toda forma de comunicação estabelecida pelos sujeitos (públicos) com a organização. Existem variadas formas e maneiras da “organização comunicante” se concretizar, tanto no ambiente offline como no online. Oportunamente citamos um exemplo que é um dos pontos de discussão deste trabalho, que são as referências/menções à organização nas redes sociais na internet promovidas pelos consumidores. Devendo assim, a organização estar atenta, sobretudo à comunicação que não é produzida por ela e foge ao seu controle. Com as TIC’s e as mudanças ocorridas na internet é notável o aumento potencial da presença das organizações e usuários no ciberespaço, como também a rede informal de comunicação que neste ambiente se configura. Sendo até mais verificável que nos ambientes offline, pois mais facilmente é realizada a captação do conteúdo gerado devido ao registro daquilo que é postado, uma lógica que é própria de algumas plataformas na internet. Assim, a mensuração se torna muito mais prática a partir dos sistemas de busca. apud BALDISSERA, 2009, p. 117). O princípio hologramático contempla a ideia de que “a parte não somente está no todo; o próprio todo está, de certa maneira, presente na parte que se encontra nele.” (MORIN, 2002, p. 101 apud BALDISSERA, 2009, p. 117). eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas “A abertura de canais e a prática da ‘comunicação simétrica’ requerem uma nova filosofia organizacional e a adoção de perspectivas mais críticas, capazes de incorporar atitudes inovadoras e coerentes com os anseios da sociedade moderna.” (KUNSCH, 2003, p. 73). Nesse sentido, pensar a comunicação organizacional não envolve apenas refletir as estratégias com vista na comunicação oficial, como também buscar tomar conhecimento do que é construído e produzido sobre si por aqueles que compõem o hall dos públicos, tanto no ambiente offline como no online. “O ciberespaço, identificado a um espaço feito unicamente de redes, se caracteriza pela interconexão sem fim. De fato, esse território não tem topografia, mas exclusivamente topologia.” (MORAES, 2006, p. 195). Ainda conforme este autor, no ciberespaço o território não existe, subsiste apenas um espaço liso, fluido, de circulação. Por isso que as trocas informacionais, de conteúdo e outros, são muito vislumbrados em tal ambiente. Monitorar, verificar e acompanhar o que é dito sobre sua marca já não é uma opção para muitas organizações, e sim um dever, pois estas devem estar preparadas para situações das mais adversas. Dessa maneira, a organização poderá posicionar-se mais adequadamente e melhor gerir os fluxos informacionais. Fluxos formais e informais compõem o contexto da comunicação organizacional, o gerenciamento dos conflitos internos e externos, dá dinamismo à sua administração e, a soma destes, com a gestão integrada das ferramentas comunicacionais, for- Capa 211 - Marcos Nicolau Sumário ma a imagem da instituição frente aos públicos com os quais ela se relaciona. (ALMEIDA, 2004, p. 2-3). Tal imagem é algo que a organização deve estar constantemente avaliando na busca de verificar a consonância e/ou dissonância com o seu conceito, isto é, aquilo que ela é no seu cerne. Assim, levam-se em consideração dentre outros aspectos que caracterizam a cultura organizacional, os valores e princípios. Para tanto, o olhar clínico sobre os fenômenos e mudanças na sociedade deve ser uma constante na busca de responder aos estímulos. E quando falamos em mudanças, nos referimos principalmente àquelas desencadeadas pelos aparatos tecnológicos da informação e comunicação que impulsionam um novo comportamento social que possa vir a refletir nos negócios. Os sites de redes sociais usados pelos consumidores como SAC Como já foi dito, as formas e os canais para se estabelecer/manter um relacionamento vêm mudando e atualizando muito rapidamente na última década. Nesse sentido, como estratégia mercadológica as organizações foram se apoderando de alguns meios para compor o leque de comunicação junto aos públicos. Uma das preocupações se refere à constituição de elogio, sugestão, reclamação e/ou insatisfação em relação a um produto ou serviço feito pelo consumidor. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas No Brasil, notoriamente um posicionamento que se iniciou com o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). A implantação do SAC pelas empresas foi acentuada após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor77 (CDC) no início da década de 90. O CDC foi criado na perspectiva de preencher uma lacuna existente que o direito civil, o direito comercial e algumas leis esparsas não satisfaziam os direitos do consumidor em sua plenitude. Assim, o CDC estabeleceu normas de proteção e defesa ao consumidor, isto é, um consumidor lesado que ao adquirir um produto/serviço de determinada empresa estará respaldado pela Lei de Nº 8.078, poderá recorrer aos órgãos de defesa do consumidor com o objetivo de solucionar o problema e fazer valer seus direitos. Segundo Zülzke (1997), os SACs tornam-se setores essenciais para evitar que as insatisfações e problemas transformem-se em custosas e desgastantes pendências judiciais em termos de imagem e recursos financeiros. Além de pretensiosamente tentar restringir os problemas Como direito novo, o Direito do Consumidor busca inspiração no Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Financeiro e Administrativo, para de uma forma coerente atingir seus objetivos sem ofender os demais princípios e regras existentes. Dessa união de sistemas e legislações surgiu em 1990 o Código de Defesa do Consumidor, lei nº 8078/90, que foi criado para regulamentar as relações de consumo, entendidas essas como sendo o vinculo estabelecido entre fornecedor e consumidor, ligados por um objeto que será, necessariamente, um serviço ou um produto. RIBEIRO, F. Direito do consumidor. Serviços. [S.l.]: online, 2011. Disponível em: <http://bit.ly/tgkDE2>. Acesso em: 15 jun. 2012. 77 Capa 213 - Marcos Nicolau Sumário apenas à empresa, evitando a evasão de informações que possam causar maiores danos à sua imagem. No entanto, com as vertiginosas mudanças ocorridas nos últimos anos proporcionadas pelas TIC’s, as empresas no contexto da cibercultura não estão livres da exposição de suas marcas no ciberespaço por meio de conteúdos sob a forma de texto, imagem, áudio e/ou vídeo, produzidos por consumidores ou prosumers satisfeitos e insatisfeitos. O termo prosumer vem da junção das palavras em inglês, producer e consumer, isto é, produtor e consumidor. Também chamado de prosumidores por alguns brasileiros que fazem a tradução e junção das palavras no português, estes são indivíduos produtores e consumidores de informação que fazem uso dos sites de redes sociais para publicar e compartilhar o que pensam. Muitas vezes, questionam as empresas publicamente e, por conseguinte prejudicam a imagem organizacional. O que muitas vezes impulsiona o consumidor a publicar em seu perfil ou no perfil da empresa sua insatisfação com esta são as diversas falhas ocorridas no serviço de atendimento ao consumidor. Muitos são os casos de consumidores que não tiveram seus problemas resolvidos por meio do SAC causando uma insatisfação ainda maior e fazendo com que postassem nos sites de redes sociais sua indignação e mensagem de alerta. Alguns casos, como o da Renault, tomaram uma repercussão tão grande que o dano de imagem causado foi maior do que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 215 - Marcos Nicolau se tivesse ficado apenas na aplicação de ônus pelos órgãos competentes. Esclarecendo o caso da empresa acima citada, a consumidora Daniely Argenton, perto de completar quatro anos tentando resolver o problema do seu carro, um Renault Megane, junto à empresa e sem obter uma solução satisfatória, resolveu criar em 2011 o site <www.meucarrofalha.com.br>, além de perfis no Facebook78, Twitter79, recortes, Albuquerque, Pereira e Bellini (2010, p. 3) nos explicam que: Orkut e postar dois vídeos no YouTube com o intuito de compartilhar sua insatisfação com a dada marca. De acordo com o site “meu carro falha” (2011), Daniely conseguiu o apoio de milhares de consumidores de diversas partes do País, que demonstraram seu apoio através dos comentários e e-mails recebidos. Em termos quantitativos, em menos de um mês o site teve mais de 700.000 acessos, o Twitter alcançou a margem de pouco mais de 2.000 seguidores e aproximadamente 500 amigos no Facebook. Isso, sem contar o Buzz gerado no ciberespaço e a repercussão na mídia tradicional. O ato de recorrer ao ciberespaço como forma de propagar sua insatisfação com o posicionamento da empresa frente a um problema não solucionado, configurou uma ação de retaliação e vingança. Num conjunto de te um tipo de comportamento agressivo, físico ou verbal, do 80 Endereço do perfil: <http://www.facebook.com/people/Meu-Carro-Falha/100002066918736?sk=info>. 79 Endereço do perfil: <www.twitter.com/meucarrofalha>. 80 Apesar dos vídeos terem sido deletados por determinação justiça por uma ação promovida pela Renault, pode-se assistir a um vídeo no canal de outro usuário: Disponível em: <http:// www.youtube.com/watch?v=45Fd7W3wNIc>. 78 Capa Sumário O fenômeno da retaliação representa comportamento de resposta e reação à insatisfação de consumidores em suas experiências e relações de consumo [HUEFNER e HUNT, 2000; HARRIS e REYNOLDS, 2003]. Retaliar significa revidar com dano igual ao dano sofrido, exercendo represália, desagravo ou desforra [FERREIRA, 1988]. Retaliação no consumo consisconsumidor com a legítima intenção de ferir, infligir dano, estabelecer equidade psicológica [HUEFNER e HUNT, 2000], dar o troco, punir [AQUINO et al., 2001] e reparar o dano sofrido [SKARLICKI e FOLGER, 1997] sempre em resposta a experiências insatisfatórias [HUEFNER e HUNT, 2000; HARRIS e REYNOLDS, 2003] e injustiças percebidas [SKARLICKI e FOLGER, 1997; AQUINO et al., 2001] por parte de marcas, corporações, produtos ou serviços. Tal comportamento levou a empresa a entrar com processo judicial contra a consumidora para que esta retirasse da web todo o conteúdo promovido por ela contra a montadora. Como resultado, a justiça determinou a retirada de tal conteúdo sob a pena de multa diária. Como encerramento do caso, a Renault após uma desgastante briga de interesses resolveu solucionar o problema da consumidora e dar a situação por encerrada. Em síntese, um caso inusitado que rendeu grande repercussão nacional e forte prejuízo de imagem para a empresa, ilustrando assim, o alcance e engajamento que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas determinado fato pode ter no cenário comunicacional que nos encontramos hoje. O consumidor e a midiatização de sua insatisfação O feitio dos diversos consumidores na atual conjuntura da cibercultura proporcionado, sobretudo pela tecnomediação, caracterizou um processo que pode melhor ser analisado a partir da ótica da midiatização. A conceituação desta segundo Sodré (2006) está intimamente ligada à sociedade contemporânea, na qual se rege pela tendência à virtualização das relações humanas, presente entre tudo, em determinadas pautas individuais de conduta fundamentadas nas tecnologias da comunicação. “A transformação da ‘sociedade dos meios’ na ‘sociedade midiatizada’ é uma consequência da interrupção do ‘contato direto’ (LUHMMANN, 2005) entre os indivíduos pela presença das mídias.” (SANCHOTENE, 2009, p. 250). Isso é facilmente perceptível quando se pensa na forma da comunicação mediada pelo computador ou pelos dispositivos móveis conectados cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas. A midiatização implica, assim, uma qualificação particular da vida, um novo modo de presença do sujeito no mundo ou, pensando-se na classificação aristotélica das formas de vida, um bios específico. Em sua Ética da Nicônamo, Aristóteles concebe três formas de existência humana (bios) na Pólis: Capa 217 - Marcos Nicolau Sumário bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bio apolaustikos (vida prazerosa). A midiatização pode ser pensada como um novo bios, uma espécie de quarta esfera existencial, com uma qualificação cultural própria (uma “tecnocultura”), historicamente justificada pelo imperativo de redefinição do espaço público burgês. (SODRÉ, 2006, p. 22). Nesse sentido, a internet como artefato cultural cria uma ambiência com sua própria lógica de funcionamento na qual, entre tantos aspectos, a velocidade de surgimento dos fatos, “apagamento” destes e a visibilidade são regidos e contornados por ela mesma. Assim, sob o processo social da midiatização, os interlocutores/usuários estão inseridos em um novo bios com novas possibilidades de interpretação. De acordo com Fausto Neto (2008), na dita “sociedade da midiatização” a instalação de uma nova ambiência interacional, cujas práticas sociais são atravessadas por fluxos, operações e relações técnico-discursivas constituídas por fundamentos midiáticos são resultados da intensificação e da generalização das operações midiáticas de construção de práticas de sentidos. Nessa perspectiva, a ação de retaliação e vingança no ciberespaço por parte de diversos consumidores como forma de provocar dano, alertar outros consumidores sobre o descaso da empresa consigo, entre outros motivos, é capaz de gerar um buzz no ciberespaço provocado pela adesão de outros atores na propagação e repercussão do fato, a exemplo do caso “Meu carro falha”. Dessa maneira, a midiatização do fato faz o caso existir não somente eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas para si, mas para uma coletividade que compartilha de uma prática midiática capaz de incomodar a empresa e até mesmo podendo fazê-la solucionar o caso. Na busca de compreender e definir o comportamento dos consumidores, recorremos ao fator humanológico81 descrito por Nicolau (2012, p. 2), o qual diz ter: [...] um peso significativo, porque envolve mais especificamente aspectos subjetivos da psique humana, responsável pela situação do ser no ambiente que o rodeia, pela maneira como este vai reagir aos estímulos que instigam seu complexo sistema nervoso e se configuram em mediações simbólicas de âmbito coletivo. Dessa maneira, percebemos que a realidade em questão foi circunscrita por sua lógica na esfera da circulação substanciada inicialmente por aspectos subjetivos dos consumidores. Além disso, outro fator a ser levado em consideração é o tecnológico, que é quem proporciona o aparato para que o processo possa ser desencadeado. Voltando ao princípio de que o fator humanológico tem como base as vontades humanas mais intrínsecas de usar os aparatos tecnológicos para relacionamento, participação, opinião, compartilhamento é de se compreender que este se articula com o fator tecnológico. (NICOLAU, 2012, p. 5). Em vista disso, é verificável que a midiatização de Em seu citado artigo, Nicolau explica que a midiatização tem base em três fatores: humanológico, tecnológico e mercadológico. 81 Capa 219 - Marcos Nicolau Sumário determinado caso pode ser o ponto crucial para que o mesmo possa ser solucionado pela empresa como forma de interromper os fluxos discursivos de ordem negativa, agora não mais de um consumidor, e sim, de uma coletividade inserida em uma nova esfera existencial regida sob sua própria lógica de funcionamento. Todavia, pode não surtir efeito substancial capaz de sensibilizar a empresa em empregar os seus esforços na solução do caso. Isso é uma questão que envolve entre tudo o posicionamento organizacional da empresa na sociedade no que se referem à sua filosofia, princípios e valores cultuados. Metodologia De natureza quantitativa e qualitativa e sob a abordagem inicialmente exploratória, a análise do objeto investigado se constituiu na forma de estudo de caso. Ao observar o ambiente da Fan Page da TIM, verificou-se que mesmo havendo um espaço específico fechado (local onde o conteúdo fica restrito à empresa) para atendimento dos consumidores, estes registravam o conteúdo tipicamente de reclamação, elogio e sugestão nas postagens feitas pela empresa. Espaço este aberto para visualização de todos que são cadastrados na plataforma, o que veio agregar para a escolha da referida empresa como estudo de caso em questão. O locus de observação ocorreu na identificação dos sites de redes sociais onde a empresa possuía perfil e eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas se relacionava com o público consumidor e/ou usuários. O guia para a possível identificação foi o próprio site da organização que oferecia tal informação indicando os sites de redes sociais que a empresa estava presente, sendo eles: 1. 2. 3. 4. Twitter <http://twitter.com/timtimportimtim>; Twitter <https://twitter.com/tim_ajuda>; YouTube <http://www.youtube.com/tim>; Facebook <http://www.facebook.com/timbrasil>. Como forma de delimitação, o presente estudo se ateve a análise do conteúdo produzido pelos consumidores na Fan Page da empresa TIM no Facebook. De acordo com o seu teor, o conteúdo gerado foi enquadrado numa das seguintes categorias: reclamação, sugestão, informação, elogio, outros. Além da delimitação espacial, conforme Gil (2002, p. 162) é indispensável à delimitação temporal, isto é, o período em que o fenômeno a ser estudado será circunscrito. No caso em questão, o período correspondeu a 14 dias de observação, especificamente de 08/10/2012 à 21/10/2012. O universo da pesquisa constituiu os usuários que possuem perfil no Facebook, pois para que seja feita alguma postagem é necessário que se esteja cadastrado na plataforma. O tipo de amostragem utilizada foi a probabilística, que segundo Lakatos e Marconi (1991) baseia-se na escoCapa 221 - Marcos Nicolau Sumário lha aleatória dos pesquisados, de forma que cada membro da população tem a mesma probabilidade de ser escolhido. Assim, todos os conteúdos produzidos pelos consumidores/usuários que entraram em contato com a empresa de acordo com o corte temporal tiveram a mesma chance de ser analisado. Desse modo, preferiu-se fazer a leitura e análise de todo o material coletado no corte temporal já mencionado. Para a coleta do conteúdo, utilizou-se a ferramenta “MW Snap 3.0”. Ferramenta esta que faz o print screen (recorte) da área selecionada de uma determinada imagem. Estudo de Caso – TIM Brasil A descrição do Perfil da TIM Brasil na Fan Page evidencia o uso de tal ambiente como espaço de trocas entre empresa e consumidor/usuário conforme mostrado abaixo. Um lugar para potencializar e compartilhar novas ideias. Fique conectado com as últimas novidades e mova-se com nossas ações. Participe, comente, curta, compartilhe. Para não ter dúvidas sobre como usar nossa página consulte os termos de uso. http://ow.ly/cgjZH No último dia de observação, 25.892 (vinte e cinco mil, oitocentos e noventa e dois) usuários haviam curtido a Fan Page da empresa. O conteúdo produzido pelo consumidor que seja de competência do Serviço de Atendimento ao Consumidor eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 223 - Marcos Nicolau como reclamação, sugestão ou solicitação de informação era indicado ser postado no espaço “Atendimento” (aba) da Fan Page, de acordo com a empresa. a empresa de acordo com as finalidades do SAC, far-se-ão através do atendimento por telefone, pelo autoatendimento no site da empresa e por meio do perfil @tim_ajuda no Twitter. Com exceção deste último, o conteúdo constituído em todos os outros canais fica a conhecimento apenas da empresa. Uma lógica própria do SAC e que resguarda a empresa de que problemas individuais ganhe força externa ocasionando uma possível repercussão do fato. No período de observação, a empresa realizou sete postagens cujos detalhes se encontram no quadro a seguir: Quadro 1 – Dados das Postagens da Fan Page TIM Brasil Mês/Outubro 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 Nº de Postagens 01 01 01 01 01 01 - 01 Compartilhamentos 59 89 29 60 - - - 141 29 - 39 - Curtir 247 381 285 470 - - 530 121 - 94 - Comentários 59 164 70 109 - - - - 119 61 - 68 - - Fonte: Pesquisador, 2012. Imagem 1 – Aba de Atendimento da Fan Page TIM Brasil Fonte: URL: < http://www.facebook.com/timbrasil/ app_320126858027239>. Acesso em: 21 out. 2012. Conforme percebido na imagem acima, os canais pelos quais o consumidor pode entrar em contato com Capa Sumário Do dia 08 ao dia 21 de outubro, o perfil TIM Brasil em suas postagens recebeu 446 (quatro centos e quarenta e seis) compartilhamentos, 2.128 (dois mil cento e vinte e oito) usuários curtiram as postagens e obteve 615 (seiscentos e quinze) comentários até o último dia em que foi realizada a coleta de dados. É válido ressaltar que não foram contabilizados os comentários repetidos que se subseguiam, pois além do conteúdo de ter sido o mesmo, muitas vezes a repetição é ocasionada por falhas no próprio site. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 225 - Marcos Nicolau As postagens em geral versavam sobre os serviços oferecidos, assuntos de entretenimento e no tocante a divulgação de evento patrocinado pela empresa. Ao observar os comentários dos consumidores/usuários percebeu-se que uma parcela considerável não tinha ligação alguma com o conteúdo do post. Com isso, categorizamos os conteúdos de acordo com o seu teor cujo objetivo inicial foi de quantificar para que pudéssemos em seguida tecer uma análise. guma ligação com o conteúdo da postagem ou não se enquadra em nenhum dos outros tipos. 4,5% (quatro e meio porcento) dos comentários referem-se a elogios por parte dos consumidores. E o restante, isto é, 63,5% (sessenta e três e meio porcento) dos comentários se referem à soma dos seguintes tipos de conteúdo: reclamação, sugestão e solicitação de informação. Comentários cujo teor deveria ser constituído num daqueles canais já citados de acordo com a própria empresa. É válido salientar que muitos dos comentários cujo teor era tipicamente de reclamação, também tinham um tom de xingamento com a intenção de causar dano. Isso devido ao alto nível de insatisfação com os serviços prestados e a não resolubilidade dos casos. Um comportamento que será perceptível com a exemplificação de alguns comentários utilizados como exemplo mais adiante. Alguns consumidores que postaram comentários do tipo reclamação relataram que tais comentários haviam sido apagados pelo administrador da Fan Page conforme demonstra as ilustrações abaixo. Gráfico 1 – Categorização do Conteúdo Gerado pelos Consumidores/Usuários Fonte: Pesquisador, 2012. Conforme o resultado apresentado pelo gráfico, 32% (trinta e dois porcento) dos comentários possui al- Capa Sumário Imagem 2 – Consumidor relata que comentário está sendo apagado Fonte: Pesquisador, 2012. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 227 - Marcos Nicolau Imagem 3 – Consumidora relata que comentário está sendo apagado Fonte: Pesquisador, 2012. Imagem 5 – Reclamação constituída na Fan page Fonte: Pesquisador, 2012. Imagem 4 – Consumidor relata que comentário está sendo apagado Fonte: Pesquisador, 2012. Tal comportamento da empresa, talvez se deva ao fato de que ela disponibiliza canais específicos para que o conteúdo possa ser registrado. E ainda, possivelmente tal prática deve ser uma medida tomada na tentativa de evitar que outros consumidores e usuários tomem conhecimento do caso. Não podemos inferir que todos os consumidores tenham conhecimento da aba “Atendimento” e lançam os seus comentários abertamente como forma de provocar retaliação e ofensa à empresa. Mas, alguns consumidores têm conhecimento daquele espaço, e que além de registrar o seu problema junto ao SAC prefere também expô-lo na Fan Page. Capa Sumário Imagem 6 – Comentário otimista de uma consumidora Fonte: Pesquisador, 2012. Conforme o comentário do consumidor Antonio Jordão, várias foram as tentativas de solucionar o seu problema junto à empresa pelos canais oficiais do SAC, mas que não obteve o resultado esperado. A insatisfação gerada pelas diversas falhas no serviço levou o consumidor a prestar sua reclamação na Fan Page para que outros consumidores e usuários tomassem conhecimento da situação. Numa perspectiva colaborativa, a consumidora Roziley Batista que também estava com um problema junto à empresa, acredita que por meio da rede social é possível buscar a solução dos casos de maneira conjunta a partir da exposição dos fatos. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas No entanto, existem aqueles usuários a exemplo do Bruno Gangi Jr. que devido a sua insatisfação, faz uso da Fan Page para alertar outros possíveis consumidores quanto aos problemas enfrentados a fim de que não passem pela mesma situação. Imagem 7 – Comentário de alerta a outros possíveis consumidores Fonte: Pesquisador, 2012. Outro perfil de consumidor identificado se refere aquele que não acredita na resolubilidade do caso ao postar o problema na rede social, pois o posicionamento da empresa perante os consumidores evidencia tal percepção, além do quê não há interação por parte da empresa em responder os consumidores e usuários. Tal posicionamento é visto no comentário do consumidor Jean Lima. Imagem 8 – Comentário de um consumidor desacreditado na empresa. Fonte: Pesquisador, 2012. Capa 229 - Marcos Nicolau Sumário Conforme com o que foi exposto até aqui, percebemos que um espaço que deveria ser explorado na perspectiva de trocas interacionais entre empresa e consumidor e vice-versa, termina por ser quase que na sua totalidade um depósito de reclamações e insatisfações dos consumidores. Isso, devido entre tudo às inúmeras falhas ocorridas nos canais oficiais do Serviço de Atendimento ao Consumidor de acordo com os vários comentários observados. Além disso, muitas são as formas do consumidor agir e enxergar o ambiente da Fan Page. Alguns com o comportamento mais otimista e outros descrentes tendo em vista o posicionamento da empresa. Posicionamento este em não dar uma resolubilidade para os diversos casos expostos, e não dar feedback aos anseios dos consumidores e usuários. É verificável que muitos usuários compartilhavam suas insatisfações com o intuito de alertar outros a não fazerem uso dos serviços prestados pela empresa. A explicitação dos diversos casos pelos próprios consumidores cujos objetivos e motivações são dos mais variados possuem um ponto em comum, o tornar visível a sua insatisfação diante de uma rede composta por um elevado número de pessoas. Isto é, a midiatização do fato para que este possa parecer existir não somente para si e para a empresa, mas também para uma coletividade que daquele ambiente faz parte. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Considerações finais Diante das mudanças comportamentais do consumidor proporcionadas pelas TIC’s, as empresas têm que se adequar ao novo cenário que se estabelece ao mesmo tempo em que se modifica cotidianamente. No caso de algumas organizações, estas não somente podem como devem acompanhar o que é dito sobre suas marcas no ciberespaço, assim se antecipará a determinados fatos, e poderá ter um posicionamento com tempo de reflexão para uma melhor solução. É notório que muitos consumidores vejam os perfis das empresas nos sites de redes sociais como mais um canal de serviço de atendimento ao consumidor, e que muitas vezes não é o sentido que a organização quer que os consumidores tenham. Pois estrategicamente podem ter outras funcionalidades a exemplo de ser um canal com o objetivo de estabelecer/manter um relacionamento mais próximo dos públicos. Segundo Simon (2011) do portal Exame, o site ‘Reclame Aqui’82 que atua como um canal online direto de comunicação entre consumidor insatisfeito e marca, registrou em 2010, uma média de 4 milhões de visitas por mês, número quatro vezes maior do que o alcançado em 2009, e também superior à contagem de atendimentos realizados pelo Procon – Procuradoria de Defesa do Consumidor – neste ano, fechada em 630 mil. Isso aponta 82 para uma mudança no comportamento dos consumidores, pois é crescente o número destes que enxergam o ciberespaço como meio de registrar e compartilhar sua experiência com dada marca. São casos como o da Renault que nos fazem acreditar que ao midiatizar um fato, este estará sujeito a rápida resolubilidade. Um pensamento que não pode ser tido como verdade, pois existem casos e mais casos compartilhados na rede em que a empresa faz “vista grossa” e não apresenta alguma perspectiva de mudança aparente, a exemplo do caso aqui analisado – TIM Brasil. Se dada organização não quer que os seus perfis nos sites de redes sociais sejam compreendidos como um SAC, cabe a ela verificar dentre tantos pontos, se os canais oficiais do SAC estão cumprindo com o seu propósito de existência. Além do que, nos sites de redes sociais, os casos relatados ficam expostos na rede podendo gerar problemas maiores e até mesmo configurar crises. Referências ALBUQUERQUE, F. M. F.; PEREIRA, R. C. F.; BELLINI, C. G. P. Retaliação e Vingança no Ciberespaço: Motivações e Comportamentos de Consumidores em Comunidades Virtuais Antimarca. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DO CONSUMO, 5., 2010, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: ENEC, 2010. Disponível em: <http://estudosdoconsumo.com. br/wp-content/uploads/2010/09/2.1-+F%C3%A1bi..1.pdf>. Acesso em: 10 set. 2011. ALMEIDA, P. R. de. A comunicação organizacional na socie- Disponível em: http://www.reclameaqui.com.br/ Capa 231 - Marcos Nicolau Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas dade da Informação: o caso de uma agência reguladora. In: ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISA DA INTERCOM, 4., 2004, Porto Alegre. Anais eletrônicos... Porto Alegre: PUC-RS, 2004. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2004/resumos/R1524-1.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2011. BALDISSERA, R. Comunicação Organizacional na perspectiva da complexidade. Organicom, São Paulo, ano 6, n. 10, p. 115120, 2009. Disponível em: <http://www.revista organicom.org. br/sistema/index.php/organicom/article/viewFile/194/294>. Acesso em: 18 jun. 2012. FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma “analítica” da midiatização. In: Revista Matrizes. Vol. 1, n. 2. São Paulo: USP/ ECA, 2008. Disponível em: <http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/88>. Acesso em: 26 maio 2012. GIL, A. C. 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A partir de uma pesquisa exploratória e bibliográfica, cujos principais autores utilizados foram Wolton (1999), Sodré (2002), Braga (2006) e Lemos (2010), buscou-se situar tais discursos de forma que se pudesse compreender o sujeito contemporâneo, o ambiente no qual ele está inserido e como as suas relações sociais se estruturam, inclusive no tocante às normas de conduta e às leis vigentes. Considerando, especificamente, a questão do anonimato digital e como o iminente Marco Civil da Internet abordará o tema, diante de uma época de amplas possibilidades comunicativas Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas – Gmid (PPGC/UFPB). 83 Capa 235 - Marcos Nicolau Sumário e de uma notável pluralidade das fontes de informação, percebe-se que o processo de midiatização tem causado profundas alterações nas dinâmicas sócio-comunicacionais. O artigo introduz, também, uma discussão sobre a ausência de leis brasileiras específicas para o universo on line, além de ratificar a necessidade da elaboração de um Marco Civil e, posteriormente, de um Marco de Lei da Internet eficazes que modificariam os discursos, as relações e as práticas na rede. Palavras-Chave: Midiatização. Marco civil da internet. Anonimato Introdução Motivado pela necessidade de compreender como se dá a atuação do sujeito contemporâneo, mais especificamente, dos indivíduos que compõem, constroem e comunicam-se nesta atual fase de convergência tecnológica, radicalizada pelo processo de midiatização, este trabalho propõe-se a discutir as relações entre a Internet, as formas de conversação advindas desse universo on line e os crimes digitais. O alcance global e a conveniência do conteúdo compartilhado transformaram as principais formas de comunicação e cultura vigentes. Da música ao cinema, passando pela economia, política, televisão, literatura, as relações eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas pessoais, de trabalho, tudo se adaptou às peculiaridades da rede mundial de computadores. Partindo dessa premissa, buscou-se, então, depreender e identificar algumas características, anseios e necessidades do indivíduo contemporâneo, bem como a forma como ele expõe-se, interage e, até, transgride as normas ou, ironicamente, é impelido a adequar-se à ausência delas. Conscientes de que a partir da chegada da Internet, esse sujeito tem a seu dispor um amplo leque de possibilidades de utilização da tecnologia para pesquisar, aprender, se apresentar aos seus pares, se divulgar e, até mesmo, simular ser quem não é, reputa-se como objetivo geral realizar um estudo sobre os impactos dessa avalanche de conteúdos disponíveis que são absorvidos e utilizados, em face da reconfiguração dos diálogos estabelecidos e ambientados, principalmente, nos blogs, redes sociais digitais e sites pessoais. Se considerarmos, ainda, o fenômeno da globalização, cujo conceito aponta, como o próprio nome sugere, para uma visão global da Terra, através da interconexão de culturas, crenças, ideias e, principalmente, economias geradoras da expansão do capital, faz-se notória a transformação poderosa e irreversível a que estamos sujeitos. Assim, tomando como base esse espaço fecundo de dispositivos, analisamos e buscamos entender mais criteriosamente como o fenômeno da midiatização cooperou para a difusão de práticas antiéticas, amorais e, em muitos casos, seriamente destrutivas. Capa 237 - Marcos Nicolau Sumário É inegável que a quantidade de informação disponível tem propiciado aos usuários da rede um valioso processo pedagógico. Afinal, abriu-se uma perspectiva inédita sobre o mundo que aumenta o poder de argumentação, modifica os juízos de valor, transformando, inclusive, os relacionamentos interpessoais. A facilidade do acesso a todo esse conteúdo parece, em um primeiro momento, algo justo, democrático e saudável. Entretanto, como sequela desse pródigo acesso informocomunicacional, suscita a questão da prática de crimes digitais, potencializada, em especial, pela frágil constatação da veracidade da autoria dos atos e, notoriamente, da veloz difusão das informações publicadas na rede. Portanto, é parte integrante dos objetivos específicos desse estudo inferir de que maneira o mundo digital é capaz de atuar no terreno das relações sociais, a exemplo do crescente uso das redes sociais digitais, como meio de fomentar calúnias, discriminações, situações constrangedoras e vexatórias que, não raro, ultrapassam as barreiras do universo on line. Notoriamente, os impactos provocados por essas tecnologias integradoras ocorrem nas mais variadas esferas pessoais, carreados pela passagem do “antigo mundo” para a contemporaneidade e, de modo mais pontual, no que tange aos padrões comportamentais, são fortemente marcados pelo individualismo e pelo consumo (BAUMAN, 2007). A mudança aparente que a Internet trouxe, então, foi apenas a ponta do iceberg: o mundo eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 239 - Marcos Nicolau parece menor, eliminaram-se as fronteiras, além de o ordenamento artificial do mundo e suas resultantes, em acesso à informação ocorrer mais fácil e rapidamente. termos de poder, identidade, conduta e mentalidade, Barreiras geopolíticas, sociais e financeiras foram der- que entendem, agora, a comunicação como um proces- rubadas, espargindo conhecimento a despeito de credo, so informacional tecnomediado (SODRÉ, 2002). Diante cor, classe social e dos mais variados propósitos. A priva- das múltiplas plataformas de mídia, das características cidade é, portanto, cada vez mais relativizada. Preferên- dos sites de relacionamento e da permanência das inte- cias e gostos pessoais seguem expostos publicamente, rações, as conversações são ampliadas, resultando em sendo utilizados, muitas vezes, como base para boatos, redes mais participativas e abrangentes. Não se sabe, a repressões, golpes e crimes diversos que, na rede, têm partir de então, quem são os receptores, uma vez que a seus alcances ampliados exponencialmente. Embora mensagem veiculada pode ser republicada, comentada passíveis das atuais implicações jurídicas, as dificuldades e, com isso, migrar para pontos distantes da rede. Cria- e demoras para obter providências contra tais abusos -se, assim, um solo fértil para discussões acaloradas, são notórias. Tornou-se lugar comum o ato de repassar que acabam tencionando as interações e provocando, uma informação sem que haja um mínimo de visão críti- em muitos casos, desavenças ainda assaz difíceis de ca, visto que divulgar um crime na rede gera ainda mais serem dirimidas. Analisar a postura desse ator social publicidade ao fato e visibilidade ao infrator, acredita- em relação aos diálogos potencializados pela Internet -se e julga-se sumariamente, quando não se condena é, com efeito, mais um objetivo específico desse estu- à rechaça física ou moral, praticando, paradoxalmente, do, usando, como exemplos, diversos casos de conflitos mais violência em resposta. Sendo assim, outro ponto comunicacionais ocorridos nessa sociedade mediatizada considerado como objetivo específico desse conjunto de que não é adequadamente legislada. pesquisas é construir uma visão panorâmica da aplica- Algumas produções científicas que abordam as tec- ção das leis nesse vasto universo on line, destacando a nologias de informação e de comunicação, além das leis controversa questão do anonimato quando associada ao vigentes, foram cuidadosamente analisadas, a exemplo iminente Marco Civil da Internet. das obras de autores como Lemos (2010) que trouxe As formas atuais de comunicação libertam o ho- conceitos, elucidações e características do fenômeno da mem das condicionantes ancestrais do tempo e do cibercultura e sua onipresença na vida contemporânea. espaço, permitindo-lhe ver, falar e estabelecer inter- Wolton (1999) trata das redefinições de tempo e espaço câmbios globais e permanentes. Trata-se de um novo que estão afetando e reajustando os processos comuni- Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 241 - Marcos Nicolau cacionais, enquanto Sodré (2002) traz a ideia de que a 1 O bios midiatizado mídia implica uma nova qualificação da vida, cunhada por ele “bios virtual ou midiatizado”. Outro aporte importante é feito por Bauman (2008) ao explicitar e analisar um traço marcante da época atual: a transformação dos indivíduos em mercadorias, fato que reflete uma mudança fundamental na forma como as pessoas pensam seus relacionamentos e expõem suas vidas. Todos esses conceitos foram, lógica e meticulosamente, organizados em cinco capítulos e seus subitens. O primeiro capítulo, por exemplo, intitulado O bios midiatizado, trata de assuntos como globalização, convergência tecnológica e midiatização. No capítulo seguinte, A questão do anonimato dentro e fora da rede, traz, em linhas gerais, um breve apanhado sobre as divergências e concordâncias da obrigatoriedade da identificação no universo on line e no off line. O terceiro capítulo, Internet, “terra de ninguém”?, aborda o tema da clandestinidade na Internet, dos discursos de violência em blogs, redes sociais digitais e sites pessoais, além de apresentar alguns cases para reflexão. Os esclarecimentos sobre as leis existentes e o iminente Marco Civil da Internet constam no capítulo quatro, As leis e a Internet, e, finalizando, o quinto capítulo apresenta um paralelo analítico entre a nossa atual sociedade midiatizada e a ausência de leis específicas para a web. Capa Sumário A globalização, concomitantemente à maturação e à convergência tecnológica, tem redimensionado a atuação dos meios de comunicação e afetado intensamente as relações entre os atores sociais contemporâneos. É nesse contexto que se desenvolve o processo no qual as tecnologias, formas e linguagens das mídias passam a fazer parte das dinâmicas dos mais variados ambientes sociais. Trata-se de estratégias cognitivas que promovem não a explicação das relações comunicacionais, mas a compreensão sensível do complexo mecanismo entre códigos e nexos semióticos, emissores e receptores, sujeito e objeto do conhecimento, forma e conteúdo expandidos pelo contexto analógico-digital. É o fenômeno de passagem da “sociedade dos meios” para a “sociedade midiatizada” (SODRÉ, 2002). A aceleração temporal, por intervenção tecnológica nas coordenadas do tempo e espaço, altera modos de percepção e práticas correntes na mídia tradicional, modificando, inclusive, comportamentos, atitudes e crenças. O jornalista e professor Antônio Fausto Neto expõe um pensamento bastante elucidativo sobre esse modo atual de instalação do corpo humano na rede social, agora, “tecnologizada”: A Midiatização pode ser conceituada como a emergência e o desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade, alterando os atuais processos socio-técnico-discursivos eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas de produção, circulação e de recepção de mensagens... Ela produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais... Trata-se da ascendência de uma determina realidade que se expande e se interioriza sobre a própria experiência humana, tendo como referência a existência da cultura e da lógica midiáticas. (FAUSTO NETO apud WOLFART)84 Os processos de midiatização são potencializados, principalmente, com a difusão das tecnologias digitais, ligadas à Internet, transformando a comunicação centralizada, unidirecional e vertical em descentralizada, multidirecional e horizontal. A ambiência proporcionada pelas redes digitais metamorfoseou as práticas e relações sociais que, agora, passam a ser mediadas por protocolos apoiados nas lógicas midiáticas e mercadológicas. A comunicação ganhou novos matizes que, por meio dos fluxos, se depreende infinitos significados e sentidos configurados sob o tripé tecnologia, indivíduo e estratégia. O espaço midiatizado caracteriza a hibridização das formas discursivas que acelera o processo de circulação de informações, manifestadas em um cenário de heterogeneidades trazidas, em sua maioria, pelos avanços tecnológicos. Nesse sentido, a Internet configura-se como um meio que proporciona possibilidades e parâmetros nunca antes imaginados para a construção da identidaEntrevista concedida por Antonio Fausto Neto à repórter Gabriela Wolfart para a revista do Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index. php?option=com_content&view=article&id=2479&secao=289 84 Capa 243 - Marcos Nicolau Sumário de dos sujeitos. Não se trata apenas de uma mídia de convergência técnica e possibilidades interativas, mas de uma ambiência que transforma as informações em experiências: a fluidez dos diálogos e a interatividade presentes redimensionaram os processos comunicacionais. O grande número de informações disponíveis contribuiu para consideráveis mudanças sociais, acarretando, inclusive, em uma reordenação das culturas, que dispõem suas práticas e seus discursos, agora, completamente imersos em um mundo globalizado. A significação cultural da Internet parece ser mais importante do que a batalha econômica e industrial, pois essas redes condensam todas as aspirações da sociedade individualista de massa: indivíduo, números, igualdade, liberdade, rapidez, ausência de obrigações... Uma espécie de nova figura do universal que se liberta dos territórios, autorizando as comunidades a reforçar suas identidades e seus laços por meio das redes extraterritorializadas. (WOLTON, 1999, p.243) A vida cotidiana é permeada pela diversidade de regras e condutas de uma determinada sociedade. Nesse processo de regramento, cada vez mais a midiatização dá perspectivas de uma ética atravessada pelas demandas tecnológicas e mercadológicas. A mídia apresenta, então, uma moralidade diversa e objetiva, com poder simultâneo, global e instantâneo, potencializada pela Internet que, mais do que encenação, fomenta uma verdadeira “virtualização” do mundo, com possibilidades de caos e acaso (SODRÉ, 2002). eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Na rede, cada receptor torna-se, também, um emissor, produtor e distribuidor de informações. A ausência de um pólo centralizador da emissão pulveriza as formas de agendamento e de enquadramento, contribuindo para que a mensagem circule rapidamente por diversos mediadores. A mídia criou um novo bios, uma forma de vida diferente, que vêm se juntar ou, talvez, se sobrepor aos três outros apontados por Aristóteles: o bios do conhecimento, do prazer e da política. Atualmente, a mídia pode ser vista como o quarto bios, o bios midiático, “virtual” (SODRÉ, 2002). Há o encolhimento do espaço público e sua substituição pela tela, aliado ao fenômeno da estocagem de dados e à sua rápida transmissão, acelerando, em grau inédito, aquilo que se tem revelado como uma das grandes características da Modernidade: a mobilidade da informação. A mídia (“meios” e “hipermeios”) implica em uma nova qualificação da vida, um bios virtual. Sua especificidade, em face das formas de vida tradicionais, consiste na criação de uma eticidade (costume, conduta, cognição, sensorialismo) estetizante e vicária, uma espécie de “terceira natureza”.... A virada do século coincide com a passagem da comunicação centralizada, vertical e unidirecional, com as possibilidades trazidas pelo avanço técnico das telecomunicações, relativas à interatividade e ao multimidialismo. Há quem a elas se refira como tecnologias “pós-midiáticas”. (SODRÉ, 2002, p.11) A mídia tem o poder de iluminar fatos, permear os discursos sociais e influenciar as decisões dos indivíduos. O discurso constrói um real próprio do campo midiático, que Capa 245 - Marcos Nicolau Sumário se traduz, também, no atual modelo de presença do sujeito no mundo. Há uma ética, advinda dos movimentos sociais, ecológicos, das lutas pelos direitos dos negros, das mulheres, dos desfavorecidos e injustiçados que infunde força, coesão e validade aos discursos midiáticos. Se isso é verdade no campo da circulação de informação por empresas jornalísticas ou pessoas comuns, o mesmo acontece com a dimensão política dos movimentos sociais que usam as ferramentas da Internet. Não há líderes, nem partidos políticos, mas há constituição de multidões engajadas que usam as novas tecnologias para fazer circular informações e ideias, como em uma ampla conversação. Nesse processo, novas vozes surgem e se agregam, disseminando ideias, sentimentos, protestos, reivindicações e, não raro, difamações, injúrias, notícias falsas e injustiças, também. Não se sabe exatamente de onde ou como as mensagens surgem, garante-se, apenas, a circulação rápida, de forma viral. Fato é que a sociedade em rede proporcionou ao indivíduo maior exposição, mais força e poder dos discursos, mas possibilitou, também, que novos ilícitos fossem praticados, causando, por vezes, prejuízos incalculáveis, visto que a extensão do dano pode ser muito maior quando praticada na Internet. 2 A questão do anonimato dentro e fora da rede O advento da Internet dinamizou e expandiu o conceito de trabalho em conjunto, favoreceu o compartilha- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas mento de dados, informações e documentos, proporcionando um crescimento meteórico da rede. A falta de uma administração central assim como a natureza aberta dos protocolos catalisou o acesso a um grande número de informações. Pessoas, ideias, culturas e intenções diversas misturam-se nesse grande caldeirão cunhado Internet. O fato é que essa miscelânea pode acarretar tanto em uma melhora dos juízos de valor e das posturas da sociedade como em um declínio, a depender do uso que se faz das informações disponibilizadas. Vivemos uma era de grande mobilidade tecnológica, o que significa dizer que cada passo dado dentro e fora da rede deixa rastros tanto na “vida digital” quanto na trajetória off line das pessoas. Alguns sites oferecem ao internauta a opção de fazer observações e comentários acerca dos conteúdos publicados. Há casos em que é possível registrar dados pessoais como nome, sobrenome, foto e e-mail para um possível contato futuro ou, simplesmente, para uma identificação dos leitores. Esse procedimento, que deveria ser seguido por todos aqueles que fazem uso da Internet, é frequentemente descartado, visto que, muitas vezes, não se trata de uma ação obrigatória. Sendo assim, não raro, os autores são surpreendidos por comentários, repressivos, maldosos, ofensivos e, até, ameaçadores advindos dos usuários que discordam do conteúdo disposto. É bem verdade que os casos mais extremos estão tipificados no Código Penal Brasileiro, caracterizando crimes assaz co- Capa 247 - Marcos Nicolau Sumário nhecidos como Calúnia, Difamação ou Injúria. Todavia, o ideal seria que as pessoas tivessem a consciência de que a Constituição Federal traz entre os seus dispositivos mais importantes um inciso que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, preceituando a livre manifestação do pensamento, mas vedando o anonimato. Ou seja, todo cidadão tem o direito de expressar o seu pensamento, manifestar o seu ideal publicamente, porém, constitucionalmente, não deveria fazê-lo de forma anônima. Ao ler o inciso, é simples perceber a preocupação do legislador, ainda nos idos de 1988, ano em que a Carta Magna foi promulgada: era necessário criar uma forma de coibir os meios de comunicação, que à época se resumiam, principalmente, aos jornais impressos, televisão e rádio, de divulgar informações levianas ou inverídicas sobre determinadas pessoas, empresas, políticos ou órgãos públicos, minimizando, assim, constrangimentos, prejuízos à imagem e outras consequências que, do contrário, seriam maximizadas pelo fato de a vítima não conseguir identificar o autor das manifestações. O anonimato, anteviu o legislador, seria um desastre para as relações pessoais e econômicas, pois sem a identificação do autor, não haveria a possibilidade de defesa, nem de responsabilização pelos danos causados. Atualmente, se existem processos no judiciário com lides sobre os crimes contra a honra, calúnia, difamação e injúria, é porque existe um autor identificado para responder pelos seus atos. Tomando como base a vedação eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas do anonimato, torna-se mais fácil apontar um “suspeito”, ainda que seja um “provável autor”, sem a devida comprovação legal. 3 Internet, “terra de ninguém”? Quando o ambiente é a Internet, evitar o anonimato não é algo tão simples. Afinal, embora alguns sites preocupem-se com o assunto e exijam as informações pessoais do usuário, nada garante a veracidade dos dados fornecidos. Contudo, incentivar a clandestinidade na Internet pode significar torná-la um mundo em que ninguém tem obrigações, nem responsabilidades. Não seria exagero dizer que, on line, todo tipo de anonimato é possível. Ataques pessoais, por exemplo, surgem comum e diuturnamente. Uma das maneiras mais corriqueiras de ataques anônimos na rede são os comentários ofensivos em blogs e fotologs. Através de alguns mecanismos, é possível enganar os servidores, fazer com que um determinado dispositivo seja identificado como outro completamente diferente, acessar perfis em redes sociais sem senhas ou autorizações, recuperar conversas em sites de bate-papo e muitos outros “pequenos delitos”. Tal como para os crimes menores, esses mecanismos são usados, também, por crakers85 para ações como invasão de contas em Indivíduo que invade computadores e sistemas de segurança de forma antiética ou criminosa. 85 Capa 249 - Marcos Nicolau Sumário bancos e transferência ilegal de dinheiro. É claro que, na maioria das vezes, o rastreamento torna possível a identificação do criminoso. Porém, isso dificilmente ocorre em casos menores. O anonimato invade, ainda, a privacidade de cada um. As redes sociais são ótimos exemplos de territórios nos quais a honra das pessoas pode ser facilmente maculada. Criando perfis falsos, comunidades e tópicos, anônimos criticam, denigrem e difamam livremente qualquer um que os contrariar. O problema é que, apesar de ser possível excluir os comentários e até denunciar a pessoa ou o perfil ao site responsável, em muitos casos, não há meios legais de repreensão do agressor, e os entraves podem ser tantos que as vítimas acabam desistindo no meio do processo. 3.1 Blogs, redes sociais digitais e sites pessoais como ferramentas de propagação dos discursos de violência A regulamentação dos discursos on line de protesto ou das manifestações pessoais de opinião, sem que para tanto seja necessário infringir o direito, há muito estabelecido, da liberdade de expressão, é uma das mais polêmicas questões contemporâneas. Encontrar uma linha limítrofe entre a censura e o direito de opinar na Internet, principalmente em blogs, páginas e sites pessoais, tem sido o cerne de discussões dentro e fora da rede. Ocorre que devido à característica eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas descentralizada, pulverizada e dinâmica da comunicação mediatizada, os processos sociais “da mídia” passam a incluir e abranger os demais, que não desaparecem, mas se ajustam (BRAGA, 2006). Os indivíduos, grupos e setores que constroem a realidade social por meio de processos interacionais, utilizam, agora, dispositivos como computadores, tablets e celulares, redes e mídias sociais da Internet como SMS, Facebook, Orkut, Twitter, YouTube e blogs para que os discursos ocorram e ganhem força. Entremeadas pelos aparatos tecnológicos, as informações e ideias circulam como em uma ampla conversação. As pessoas, nessa atual conjuntura, fazem valer suas opiniões, protestam e maximizam seu poder de influência. Trata-se de um processo incitador de novas vozes que se agregam e corroboram o discurso prévio ou chacoteiam-no. Não se sabe exatamente de onde ou como esses comentários surgem, mas eles circulam rapidamente, de forma viral86. A força dos processos midiáticos está, justamente, nesse compartilhamento de conteúdos descentralizado, sem líderes, com uma capacidade exponencial de processamento e velocidade de circulação sem precedentes na história da comunicação. Os mais diversos dispositivos impulsionam esses diálogos ocasionando uma aceleração temporal advinda de uma intervenção tecnológica No dado ao artigo, idéia, vídeo, imagem, conteúdo ou informação que se tornou rapidamente conhecido e compartilhado na Internet. Por vezes, sendo discutido e comentado, inclusive, nos meios de comunicação off line e na Academia. 86 Capa 251 - Marcos Nicolau Sumário nas coordenadas de espaço e tempo. Alteram-se, assim, modos de percepção, comportamentos, práticas e atitudes. Afinal, os mecanismos de disseminação de conteúdos e de formação de opiniões e crenças sociais são, agora, atravessados pelas tecnologias de interação e contato. É bem verdade que o binômio Internet e tecnologia são os propulsores de uma revolução no campo comunicacional. Contudo, todas essas facilidades têm gerado, também, novas oportunidades para as condutas ilícitas ou mal intencionadas, mais especificamente, para os casos de anonimato na web. A natureza sem fronteiras e a máscara do anonimato que a Internet outorga a seus usuários podem, de fato, ser uma excelente oportunidade para a expansão ilimitada dos discursos depreciativos. Os casos de pessoas que usam e-mail, sites, blogs e outras formas de comunicação digital para ser rude, rancoroso, intimidar e, até, perseguir seus desafetos pululam na rede. Os discursos que fomentam o ódio, embora sejam inconsistentes quando confrontados com os valores fundamentais da democracia liberal, geram preconceito e marcam suas vítimas como inferiores, em razão, muitas vezes, de motivos assaz banais: a cor da pele, descendência, religião, profissão ou, apenas, idéias defendias podem ser pretextos suficientes para deflagrar um verdadeiro massacre on line. A autonomia que a mídia e nós mesmos gozamos para nos mover, visando construir nossas inteligibilidades faz com que reduzamos a compreensão do mundo às nossas próprias auto- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas -referências. Significa a perda da “pugna com a diferença”, é a emergência da sociedade da desatenção. (FAUSTO NETO apud WOLFART) Não há dúvidas de que estamos diante de um fenômeno em curso, um tema ainda considerado emergente, mas que a partir de demandas muito particulares, cujos portadores serão os atores que estão vivendo a midiatização na própria pele, encontrará formas de regulamentação, de definir as orientações de como usar esse espaço público, tanto quanto se faz necessário ser socialmente responsável no mundo off line. 3.2 Escondidos pela capa do anonimato Com base nessa realidade digital, agora, indissoluvelmente imersa em nosso cotidiano, a 30ª Vara Cível de São Paulo determinou que a Google Brasil, dona de um site que abriga contas de e-mail informe os dados de um leitor responsável por deixar comentários injuriosos em diversas reportagens de um portal de notícias. A empresa que teve a imagem arranhada resolveu ir à Justiça depois de o leitor deixar incansáveis comentários com o objetivo de minorar a credibilidade das notícias, usando nome falso, CPF de outra pessoa e endereço inexistente. O portal alegou que, como responsável por suas publicações, por dever de oficio, convicção e filosofia, deve tomar todas as providências necessárias para colocar um basta na atitude Capa 253 - Marcos Nicolau Sumário do acusado que tem como finalidade denegrir a qualidade de seus trabalhos. Um caso, também, polêmico, é a situação de Xuxa ao tentar restringir a busca por conteúdos que façam referência ao início de sua carreira como atriz. A apresentadora entrou com uma ação contra a Google Brasil por referências à pedofilia que aparecem no site quando o nome “Xuxa Meneghel” é digitado. Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o provedor de Internet serve apenas como intermediário e, como não produziu nem exerceu fiscalização sobre o conteúdo transmitido, não pode ser responsabilizado por eventuais excessos. Dessa forma, a decisão que impedia a empresa de exibir, em seu mecanismo de pesquisa, imagens relativas à busca por “Xuxa pedófila” ou por qualquer expressão que associasse o nome artístico de Maria da Graça Meneguel a alguma prática criminosa foi cassada. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 255 - Marcos Nicolau site Blogspot, mantido pela empresa, obteve a tutela antecipada determinando a remoção das mensagens, mas a ordem não foi cumprida. Houve, então, a condenação no Fig.1 Resultados para a busca do termo “Xuxa pedófila” no Google Fonte: Disponível em: https://www.google.com/search?hl=en&safe =off&output=search&sclient=psyab&q=xuxa+ped%C3%B3fila Outro exemplo muito divulgado que envolveu a questão do anonimato na rede foi o caso da condenação da Google Brasil. O Superior Tribunal de Justiça impôs à empresa a pena de pagamento de indenização por danos morais quando se comprovou a não retirada de oito páginas com conteúdos ofensivos publicados em um blog contra o diretor de uma faculdade em Minas Gerais. A Terceira Turma do STJ entendeu que não se pode responsabilizar direta e objetivamente o fornecedor do serviço pelas ofensas de terceiros, mas sua omissão pode ser penalizada. O diretor da escola, que acionou a Google depois de encontrar conteúdo difamatório produzido por alunos no Capa Sumário valor de vinte mil reais. A empresa recorreu alegando que não poderia ser responsabilizada pelo conteúdo criado por seus usuários, mas a desembargadora do caso confirmou a sentença esclarecendo que se uma empresa provedora de conteúdo disponibiliza na Internet um serviço sem dispositivos de segurança e controles mínimos, permitindo, com isso, a publicação de conteúdo livre, sem sequer identificar o usuário, deve responsabilizar-se pelo risco. A verdade é que a obrigatoriedade da identificação no universo on line ainda é uma questão polêmica. Assim como os exemplos supracitados, muitos outros poderiam ser usados para atestar que a proibição ao anonimato deve ser ampla, abrangendo todos os meios de comunicação, inclusive as mensagens da Internet. Em tese, o que se pretende é minimizar os danos causados por conteúdos injuriosos, difamatórios ou caluniosos, buscando, para tanto, atribuir a cada manifestação uma autoria certa e determinada. A Constituição Federal, então, veda o anonimato, justamente, para evitar a publicização de opiniões fúteis, infundadas, inverídicas que tenham como propósito o desrespeito à vida privada, à intimidade e à honra. Todavia, a necessidade de um código próprio é latente quando consideramos, exclusivamente, os ambientes digitais. Atualmente, a ideia que se tem é que a Internet é um campo propício para salvaguardar crackers, pedófilos, eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas terroristas e pessoas mal intencionadas, capazes de provocar danos irreparáveis aos seus alvos de ataque. Por outro lado, há casos em que a garantia do anonimato é essencial. Pensando nos grupos classificados como “minorias”, nas denúncias e nos sites que divulgam informações de interesse público, percebe-se que a integridade dos diálogos produzidos só é possível devido à preservação da fonte. Questões como a Primavera Árabe, o grupo hacker87 Anonymous, o site Wikileaks e outras revoluções que não possuem um rosto definido, apenas corroboram a tese de que o anonimato é a causa motriz das grandes mudanças iniciadas na Internet, que muitas vezes saltam das telas dos monitores e dispositivos móveis para o mundo off line. pessoais, como as que incorrem em danos morais, também podem ser adaptadas, mas jamais poderiam ser consideradas como “leis digitais”. Talvez, a criação de uma legislação adequada inibisse ações como roubos de contas e invasões de privacidade. O fato é que vivemos uma época de comunicação em rede, de movimentos multitudinários e interligados. Vivemos uma situação revolucionária e, sob muitos aspectos, ainda desconhecida. Esse conflito entre ação, diálogo, produção, comunicação e compartilhamento, em rede e transversal, quem sabe, ainda possa ser percebido como um “período de adaptação”. As adversidades indissociáveis da tutela das inovações criadas pela era digital dão origem a situações cuja solução pode causar certa perplexidade... Há de se ter em mente, no entanto, que a internet é reflexo da sociedade e de seus constantes avanços. (ANDRIGHI88 apud BEREZIN) 4 As leis e a Internet No Brasil, a Internet não dispõe de leis muito concretas, nem normas de conduta obrigatórias. Há, apenas, algumas mínimas adaptações das leis correntes. As lojas on line, por exemplo, são regidas pela mesma legislação aplicada às lojas físicas, no que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, não havendo, portanto, um tratamento apropriado para as demandas criadas pelo comércio eletrônico. As leis contra ataques Especialista em quebrar códigos de sites, desbloquear celulares e invadir sistemas digitais. Não é, necessariamente, um criminoso. Pode usar suas habilidades para desenvolver programas, achar soluções de segurança ou estudar o mundo digital. 87 Capa 257 - Marcos Nicolau Sumário Acenar com a ideia de novidade, contudo, não quer dizer render-se ao discurso do comodismo. É importante pensar que exatamente nesse espaço determinado pelas rupturas, pelas inovações e revoluções, nesse universo híbrido convergente e hipermidiático, no qual se dá, primordialmente, a conexão do conhecimento e do compartilhamento de informações, é justamente aí que se abre, Nancy Andrighi é ministra do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jun-28/google-nao-responsavel-fotos-xuxaexibi-las-stj 88 eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas também, a possibilidade de conquistas imanentes que respeitem e preservem os direitos individuais de cada cidadão, até no mundo digital. 4.1 Entendendo o Marco Civil da Internet (PL2126/2011) A internet não é um espaço sem regras ou imune às normas que regem o país. Racismo e falsificação de dados, por exemplo, são crimes, e isto independente do meio onde foram cometidos. Mesmo assim, a ausência de algumas leis específicas para a rede provoca um vazio jurídico que deixa brecha para interpretações e decisões inconsistentes. Um dos exemplos mais famosos, que ratifica a atual insegurança jurídica a que estamos sujeitos, foi o caso de Daniela Cicarelli: Após processar o site de vídeos YouTube, pelo fato de usuários terem postado um vídeo íntimo da modelo, um juiz determinou o bloqueio do site no país. Na tentativa de dirimir essas lacunas e impor alguns direitos e deveres para uso da Internet, um projeto de lei, intitulado Marco Civil da Internet, vem sendo aperfeiçoado. O objetivo é preservar o usuário e garantir que a Internet continue sendo elemento de inovação e espaço de criação de novas tecnologias e ferramentas, que não poderão ser monitoradas ou filtradas... A ideia é que ninguém fique com medo de publicar opiniões e comentários. Mas há exceções: casos de pedofilia deverão ser retirados do ar imediatamente. (MOLON89 apud POLATO) 89 Alessandro Lucciola Molon é Advogado, Professor Universi- Capa 259 - Marcos Nicolau Sumário Para entender o princípio do Marco Civil da Internet, é preciso retroceder às primeiras leis que queriam controlar e monitorar a web. Temendo que as propostas restringissem a liberdade dos usuários, o Ministério da Justiça e a Fundação Getúlio Vargas propuseram, em 2009, algo semelhante a uma “Constituição” online. O texto passou por uma consulta pública, sofreu modificações, foi para a Casa Civil e, em 2012, finalmente, chegou à Câmara. Sem previsão, contudo, de um desfecho próximo. O assunto é polêmico. Muitos entraves ainda precisam ser dissolvidos. Recentemente, o projeto de lei recebeu diversas sugestões para melhoria nas regras e normas de utilização da Internet. Os avanços ocorreram, principalmente, em quatro pontos: A proteção dos dados dos usuários e a privacidade, a neutralidade, a liberdade de expressão, objetivando evitar qualquer forma de censura, e, por fim, a transparência, corroborando que os termos de uso da Internet devem ser públicos. Apesar do progresso em tantos assuntos relevantes, a questão do anonimato merecia maior destaque. O projeto de lei estabelece que o internauta tenha direito parcial ao anonimato, visto que os logs90 deverão ser armazenados tário e Deputado Federal pelo PT/RJ. Atualmente, é relator do Marco Civil da Internet e membro titular da comissão especial da Câmara criada para analisá-la. Disponível em: http:// revistaepoca.globo.com/Brasil/noticia/2012/06/marco-civilda-internet-vai-reforcar-o-direito-privacidade-do-usuario-eimpedir-limitacoes-navegacao.html. 90 Também conhecido como log de dados, refere-se a uma expressão utilizada para descrever o processo de registro de ativ- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas pelos provedores por um período de até seis meses. O impasse reside justamente nessa preservação das informações do usuário. Alguns acreditam que a “parcialidade” pode representar uma ameaça velada à liberdade de expressão, mesmo sabendo que o acesso aos dados das pessoas dependerá de uma autorização prévia da Justiça. É bem verdade que vestígios de acesso são encontrados quando ocorre a identificação do endereço IP 91, registrado ao se comentar um artigo em um portal de notícias, por exemplo. Em muitos casos, o log do servidor de Internet vinculado ao endereço IP rastreado ajuda no processo de identificação do responsável pela manifestação do pensamento ofensivo. Ocorre que todas essas questões podem até encontrar respaldo no Marco Civil proposto, mas ainda não há conseqüências legais para os internautas que cometem os delitos. A ausência de um Marco de Lei e da “tentadora”, e não rara presença da impunidade incita a prática dos cibercrimes. Algo também perturbador é a ideia de que nem sempre as sentenças são proferidas por pessoas que, de fato, compreendem a natureza da rede. O caso torna-se ainda mais preocupante quando nos deparamos com as inúmeras redes sem fio, desprovidas de qualquer idades em um sistema computacional. Através do log, há a possibilidade de identificar a autoria de ações na Internet. Os logs também podem ser entendidos como provas digitais. 91 Sigla para Internet Protocol ou Protocolo da Internet. Trata-se do endereço único pertencente a cada dispositivo que se conecta à uma rede local ou à rede mundial de computadores, Internet. Capa 261 - Marcos Nicolau Sumário tipo de criptografia de conexão, permitindo, assim, que pessoas, com os mais diversos propósitos, se conectem à Internet resguardados pela certeza de que a sua identidade não será revelada. Talvez, devido ao traumatizante período da ditadura, o brasileiro fique tão receoso com qualquer possível menção à censura. O ideal seria que a imposição de regras à condição de anônimo na rede fosse valorada e sopesada, não em detrimento da liberdade de expressão, mas tanto quanto se deseja fazer valer qualquer outro princípio legal. 5 Os conflitos comunicacionais de uma sociedade que não é propriamente legislada Quando analisados através da ótica que considera os processos de midiatização, os valores que identificam uma sociedade ganham dimensões e territórios mais amplos. Em um mundo cada vez mais conectado, o conhecimento se torna comum a distintos grupos sociais. Além disso, o avanço tecnológico que ocorre paralelo às transformações naturais do comportamento de cada ator social implica em uma aderência quase que inconsciente desses aparatos digitais ao cotidiano. A partir dessa concepção, podemos afirmar que, sem perceber, imergimos em um universo dominado pela computação pervasiva: pessoas, máquinas e ambientes se comunicando através do mesmo código, compartilhando informações, diuturnamente. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Vivemos em um ambiente progressivamente interdiscurso. Agora, a rede é o computador e o computador é um dispositivo de conexão (LEMOS, 2003). A Internet transformou-se em uma gigantesca máquina de contato e troca de conteúdo. O compartilhamento de dados é a atual forma de conhecimento. Isso, porque o intercâmbio de informações é um dos pontos nevrálgicos da sociedade contemporânea. À medida que a enunciação parece não ter mais origem e fim, mas desdobra-se em camadas de falas, discursos e pareceres, dissolvendo competências de campos, perguntar-se-ia não só como se pronuncia a ciência, mas a sociedade e a jurisprudência brasileiras, visto que os movimentos feitos no mundo midiatizado, hoje, podem produzir efeitos contrários à lógica, à coerência e à consistência das leis vigentes. Em meio às ordens de discursos que roubam, dentre outras coisas, a autoridade, maculam o conceito de hierarquia e de respeito, trazendo danos à imagem e à reputação, ocasionando o vazamento de informações pessoais e sigilosas, praticando crimes contra a honra, também conhecidos como ofensa digital, ou difamando pessoas, entidades e empresas, torna-se até intuitiva a ideia de que uma sociedade estruturada, com um sistema político estabelecido e regida por regras é um contraponto a essa realidade digital: um espaço autoregulado, onde as ações praticadas, em sua maioria, fogem de um controle externo ao indivíduo, promovendo certo nível de autonomia para os integrantes do ciberespaço. Capa 263 - Marcos Nicolau Sumário Para o enfrentamento dos perfis falsos, por exemplo, inexiste na legislação brasileira, atualmente, tipo penal que defina que a criação de perfil falso na internet seja punível. Apesar de este ato em si violar as regra dos Termos de Serviço dos sites de relacionamento, que obriga o criador do perfil a zelar pela integridade dos dados cadastrais, a punição será apreciada e aplicada pelo provedor, podendo este culminar, ou não, com a retirada do perfil. Com efeito, o imbróglio da criação de uma lei para crimes cibernéticos estende-se, entre outras razões, porque parte das autoridades envolvidas empunha a bandeira de que é preciso resguardar a privacidade de todos os internautas, enquanto outros acreditam que a Polícia Federal deve estar autorizada a investigar os cibercrimes, quebrando, sim, o sigilo dos usuários. Fenômenos assim tão complexos e distantes de um senso comum, apenas, ratificam a ideia de insegurança na rede, afinal registros e soluções truncadas são, em muitas situações, apenas incipientes. Um caso que ilustra bem a defasagem da justiça brasileira é o da jornalista Rose Leonel, moradora de Maringá, Paraná. Em 2006, ao terminar um namoro de três anos, ela viu o caos instalar-se: seu companheiro, anonimamente, difamou-a na internet. Fotos feitas na intimidade do relacionamento foram transformadas em montagens. O nome, o endereço, o telefone e o rosto de Rose surgiram aplicados sobre imagens veiculadas em sites de pornografia. Cerca de quinze mil e-mails foram enviados. Imprensa, chefes, clientes, amigos e conhecidos da jor- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas nalista tiveram acesso ao conteúdo. Repentinamente, havia perfis de Rose em sites de pornografia na Holanda, na Rússia, em Portugal e na Alemanha. O telefone não parava, assim como os convites para programas vindos das mais diversas partes do país. A vingança arquitetada pelo namorado abandonado ocorreu, sistematicamente, por três anos com consequências imediatas, não apenas para Rose Leonel, que, à época, era colunista social, como para toda a família. O filho de Rose decidiu deixar o Brasil, por não suportar a pressão. A jornalista, que foi demitida e permaneceu desemprega por muitos anos, julgou-se vítima de um processo de exclusão social com perdas emocionais e psicológicas. Na tentativa de impedir que os e-mails fossem espalhados Rose procurou a Justiça: “Havia uma dificuldade imensa para se trabalhar com cibercrime em Maringá, por ser uma área nova do Direito. Perdi a causa e ele saiu revigorado, difamando-me ainda mais. Foi quando peritos digitais se ofereceram para atuar no meu caso, porque eu, desempregada e sem dinheiro, não via mais saída. Entramos na Justiça, novamente. Houve busca e apreensão dos equipamentos dele. Só, então, foi constatada a presença do material nas máquinas, os horários, o que ele fazia, enfim, a autoria do crime”. A jornalista levou cinco anos para conseguir que a Justiça aceitasse a culpa do ex-namorado. Todavia, ele foi condenado. Criminalmente, foram quase dois anos de detenção, convertidos em trabalho comunitário mais multa de mil e duzentos reais Capa 265 - Marcos Nicolau Sumário mensais, durante o período estipulado. Civilmente, Rose recebeu trinta mil reais de indenização. Embora a legislação brasileira não seja tão detalhista e contextualizada quanto a norte-americana ou a européia, por exemplo, não seria correto afirmar que exista uma total impunidade para os desvios de conduta praticados na internet. O caso de Rose Leonel mostra que os cibercriminosos podem ser encontrados e condenados, também, no Brasil. Não tardará, e ajustes na legislação serão feitos, invariavelmente. Além da previsão específica de crimes cibernéticos, a comissão de juristas que discute a reforma do Código Penal Brasileiro no Senado sugere que algumas condutas típicas do universo on line, como é o caso da criação de perfil falso para cometimento de ilícitos, aumente a pena de crimes previstos no código. É bem verdade que as autoridades brasileiras ainda estão distantes de um consenso, e que as conseqüências desses posicionamentos tão divergentes, certamente refletirão nas futuras discussões sobre o tema, abrindo margem para infinitas esteiras de raciocínio, mas a simples ponderação sobre o assunto pode, de certo modo, ser considerado um avanço. Considerações finais Desde a década de 80, com a popularização da Internet e, posteriormente, com o radical desenvolvimento da computação sem fio, pervasiva e senciente, que a so- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas ciedade atravessa um processo complexo e irrevogável de transformação na vivência do espaço urbano, nas práticas sociais, na forma de produzir e consumir informação. Quase todas as antigas formas de consumo e produção midiática estão evoluindo. Há uma multiplicidade de mudanças em curso que requerem níveis mais profundos de participação dos sujeitos para que sejam formados laços mais fortes com os conteúdos. É certo que se, por um lado, a midiatização, imprescindível no processo de formação de ambientes digitalmente imersivos e permanentemente conectados, tem influenciado e modificado positivamente a ordem social, por outro, tem facilitado a prática e a disseminação de ilícitos. Considerando, ainda, a velocidade e o caráter interativo do processo, leis apropriadas para o ambiente digital precisam ser rapidamente elaboradas com o intuito de proteger o direito das partes integrantes desse regime tecnointerativo. Talvez, a regulamentação ocorra pela demanda intrínseca de manter a ordem social, inclusive no universo on line, determinando, assim, características próprias para os conceitos de público e privado. O fato é que tutelar a liberdade de expressão e limitar seus efeitos sempre foram um desejo dos déspotas e uma necessidade das vítimas. Na busca do equilíbrio, muitos embates ocorrem: governos usam maneiras sorrateiras para violar a privacidade dos cidadãos e convencer a população de que a atitude é correta. Autoridades usam o argumento da segurança como uma desculpa para impor limites à liberdade da in- Capa 267 - Marcos Nicolau Sumário formação. Por outro lado, a incidência de perfis falsos em redes sociais digitais ou de blogs difamatórios, por exemplo, cresce exponencialmente. O uso não autorizado da imagem de terceiros, ataques à reputação e à honra, exposição a situações constrangedoras e, até, perigosas não são fatos isolados. Pedófilos, nazistas, homofóbicos, sujeitos que, por outros meios, não encontrariam seus pares facilmente, agora, fazem seguidores com o esforço de um clique. Quando há um episódio qualquer de violência no mundo real, os agressores são reconhecidos e confrontados, pois os envolvidos são pessoas físicas identificáveis. Já no caso da “perturbação online”, a situação é mais complexa. A identificação dos agressores é difícil, pois o autor pode criar um perfil falso, fazendo da sua captura um processo assaz árduo, e das agressões, momentos dramaticamente perturbadores. Para tornar o tema ainda mais controverso, há casos em que o anonimato é vital para a lisura do depoimento, garantindo a segurança da testemunha. A questão é bastante densa, certamente. A evolução tecnológica impõe novos desafios, ordena imperiosamente a instituição de novas fronteiras para garantir uma proteção adequada dos dados no ambiente digital. A fusão dos mundos conectado e desconectado trouxe uma realidade híbrida que faz reverberar, tanto no ciberespaço aspectos dos âmbitos profissional, social, familiar e pessoal, como os acontecimentos do on line pautam as interações do off line. A ética do ciberespaço, também, acaba assemelhando-se à deontologia configu- eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas rada no mundo desconectado. Com as novas tecnologias, a Internet vem rompendo as barreiras entre o privado e o público, deixando, muitas vezes, uma linha tênue entre os dois ideários. Se o crime é um problema endêmico das sociedades, na Internet não poderia ser diferente. Redes sociais, cloud computing, motores de pesquisa com algoritmos mais sofisticados e sistemas de localização geográfica são apenas alguns exemplos do quanto essas tecnologias podem afetar a privacidade dos usuários, escancarando a necessidade urgente de uma proteção ampla e eficaz. Talvez seja justamente em um estudo mais acurado desta interface entre o Direito e a Comunicação, entre a liberdade e o abuso de poder, que resida uma nova história a ser construída. O primeiro passo já foi dado. Caso aprovado, o Marco Civil será o primeiro projeto a tentar definir os princípios básicos da Internet, no Brasil. Embora necessite de ajustes por deixar de fora pontos importantes como a tipificação de crimes cibernéticos, o projeto de lei é um texto importante para a ratificação do conceito de democracia no país. É fundamental, então, que a cidadania digital se manifeste, exercendo devidamente o seu papel, para que o Marco Civil cumpra aquilo a que se propõe: ser base para um Marco de Lei que proscreverá, também, a impunidade on line e resguardará os interesses da população. Entretanto, para que esse projeto de lei saia do papel, uma longa estrada ainda precisa ser percorrida. Alguns Capa 269 - Marcos Nicolau Sumário dos que se posicionam contra o projeto dependuram-se no mastro da censura, esgrimindo que a liberdade de expressão não pode ser ameaçada, sob hipótese alguma, nem mesmo pela imposição de regras à condição de anônimo na rede. Contudo, não é propriamente a liberdade de expressão que está sendo solapada, erodida, mas a sua soberania, sua prerrogativa de estabelecer o limite entre os direitos e deveres de cada integrante dessa sociedade dita midiatizada. Levando-se em conta que o Direito tem como função primordial acompanhar a evolução da sociedade, a conclusão a que se chega é que as mudanças sócio-culturais contemporâneas necessitam de uma redefinição tal da jurisprudência de forma que a torne capaz de abarcar a revolução informacional em curso, utilizando todo o aparato hipermídia, com o propósito de moldar democrática e eticamente os atores sociais para essa realidade midiatizada, já tão acelerada. 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Capa em: eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas O livro digital e a interdependência dos fatores da midiatização Introdução Rennam VIRGINIO92 Resumo Mediante a relevância do processo de midiatização na sociedade e os fatores que compõem esse processo, nosso objetivo é apresentar o livro digital como um exemplo da relação de interdependência entre estes fatores. As interações e recursos possíveis com o livro digital traz aos leitores uma nova ferramenta de leitura, capaz de permitir uma rede de compartilhamento e troca de informações e conteúdos, característicos da midiatização. A partir dos fatores mercadológicos, humanológicos e tecnológicos da midiatização, faremos uma análise de suas atuações e influências no mercado do livro digital, também conhecido como eBook. Palavras-chave: Livro digital. Midiatização. Fatores da midiatização. Mercado editorial. Graduando do Curso de Comunicação em Mídias Digitais – DEMID/UFPB. Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC), Cnpq. Integrante do Grupo de Pesquisas em Processos e Linguagens Midiáticas - GMID/PPGC/UFPB. E-mail: virginiorennam@ gmail.com 92 Capa 273 - Marcos Nicolau Sumário Séculos se passaram desde o surgimento do livro impresso como conhecemos hoje. Até chegar ao modelo atual, o livro se apresentou em formato de rolo e foi publicado em papiro e pergaminho. Entretanto, não foram apenas as mídias que sofreram transformações e alteraram os materiais e modelos mercadológicos de certos produtos. Com as novas tecnologias da área comunicacional, os comportamentos e as relações sociais também sofreram mudanças significativas e que hoje caracteriza a “sociedade midiatizada”. De acordo com Fausto Neto (apud SGORLA, 2009, p.63), essa “sociedade” apresenta: sua estrutura e dinâmica calcada na compressão espacial e temporal, que não somente institui, como faz funcionar um novo tipo de real, cuja base das interações sociais não mais se tecem e se estabelecem através de laços sociais, mas de ligações sociotécnicas. Sgorla (2009) resume midiatização como múltiplos entrecruzamentos entre as tecnologias midiáticas, campos e atores sociais, e meios de comunicação social tradicionais e a sociedade. A partir de tal afirmação, podemos incluir o livro digital – também conhecido eBook -, segundo Horie (2011, p.15) “uma versão digital de um eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas livro que pode ser lido em computadores ou em aparelhos portáteis”, como um exemplo de produto integrante do processo de midiatização. O livro digital têm gerado discussões sob as mais diversas perspectivas ideológicas, culturais e mercadológicas, o que aumenta a relevância do produto como um objeto de estudo. As vantagens apresentadas pelo livro em formato eletrônico são várias, como a facilidade de portabilidade e a dispensa do uso do papel para impressão, o que consequentemente torna o livro digital mais barato que o livro impresso. Entretanto, diversos fatores contribuem para que o crescimento do livro digital não seja tão grande quanto o esperado pelos apostadores desta tecnologia, como as artimanhas praticadas pelas editoras e vendedoras de eBooks numa tentativa de impedir a pirataria e manter seus lucros. Todo esse processo, que vai desde a produção dos livros digitais para atender a demanda dos leitores até os entraves mercadológicos, constitui o processo de midiatização, pois altera relações sociais e cria novas situações e modelos de negócios, protagonizado pelo jogo de interesses dos vendedores de eBooks, o que acaba gerando uma situação de heteronomia aos compradores, tornando-os “reféns’ das vontades do mercado, com a impossibilidade de compartilharem seus livros e conteúdos. Diante da relevância desses dois objetos aqui apresentados – midiatização e livro digital -, neste artigo, iremos analisar e exemplificar três dos principais fatores Capa 275 - Marcos Nicolau Sumário que compõem a midiatização, a partir do estudo de Nicolau (2012): fator mercadológico, humanológico e tecnológico, demonstrando a relação de interdependência de tais fatores. 1 O livro digital: panorama atual de um mercado em crescimento Percebemos hoje no meio dos livros digitais uma crescente aceitação por parte dos novos leitores desta mídia. Consequentemente, o mercado tem acompanhado este crescimento, sobretudo nos Estados Unidos e no Oeste Europeu, onde estão localizados os países mais ricos deste continente. Nos EUA, a Amazon já vende – desde o ano passado -, mais eBooks do que livros impressos. Vale salientar que esse sucesso deve-se principalmente ao fato de que a Amazon oferece aos leitores um eReader (Kindle) de baixo custo e uma grande variedade de títulos a venda com preços em torno de dez dólares. Deste modo, os usuários tem o “suporte” necessário para comprarem eBooks e continuarem usando essa tecnologia. O mercado é dominado por poucas empresas que detém a maior fatia do mercado, como a norte-americana Amazon – maior vendedora de eBookse e Readers do mundo – e a Kobo, empresa canadense que ganhou espaço nos último anos e já ameaça a Amazon. É importante ressaltar que a Kobo já se instalou no Brasil e iniciou as vendas de seu leitor, enquanto que a Amazon deve iniciar eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas suas atividades no início de 2013. Ambas já adiantaram acordos com editoras brasileiras. Inevitavelmente, a chegada dessas empresas cria uma forte expectativa quanto ao impacto mercadológico que podem causar. Amazon e Kobo encontrarão no Brasil um mercado de livros digitais, ainda pequeno, com poucos títulos e adeptos a esta tecnologia, reservada a um pequeno nicho de consumidores. A aposta destas empresas está no potencial econômico do Brasil e na própria cultura de sua população, movida pelos anseios de compartilhar e interagir com novas tecnologias. Esses anseios são apenas um dos elementos que movem o fator humanológico da midiatização presente no contexto dos livros digitais. Uma nova tendência que vem ganhando espaço e investimentos no mercado dos livros digitais é a “auto-publicação”, que funciona da seguinte maneira: o autor envia seu livro em arquivo PDF ou DOC para uma empresa que oferece este serviço. A empresa contratada fará a editoração digital e a intermediação com as livrarias para que o autor – caso deseje vender -, ganhe a sua porcentagem relativa às vendas do livro digital. No Brasil, a Simplíssimo é a empresa que tem investido neste serviço, firmando parcerias com importantes livrarias, como a Saraiva, Cultura e a iBookstore (Apple). Assim, a empresa consegue atrair clientes, pois garante a venda legalizada do livro digital (em formato ePub) em uma grande livraria. Capa 277 - Marcos Nicolau Sumário Para os autores independentes, esse serviço surge como uma interessante opção para aqueles que querem publicar suas obras. Os livros digitais permitem um alcance maior da obra, pois a reprodução é ilimitada, além de não haver gastos com impressão e transporte, o que reduz os custos de produção e, consequentemente, amplia os lucros gerados pelas vendas. 2 Os fatores da midiatização Os livros digitais representam, sem dúvida, um produto decorrente do processo de midiatização, definida por Sodré (2006) como uma ordem de mediações socialmente realizadas, configurando um tipo particular de interação, que podemos chamá-la de tecnomediações. Estas, por sua vez, ainda segundo o autor, são caracterizadas por uma espécie de prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível. O conceito de mediação também é definido por Sodré (2006) a fim de diferenciá-lo do termo midiatização. Segundo o autor, mediação é a ação de fazer ponte ou fazer comunicarem-se duas partes, através de diferentes tipos de interação. Também é importante explicitar o processo e o contexto histórico no qual se dá a midiatização. De acordo com Fausto Neto (2006, p. 2-3), A midiatização situa-se em processos e contextos históricos e em percursos de desenvolvimento de alta complexificação que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas impõem a necessidade de considerar mecanismos de explicação que são atualizados no movimento destes próprios processos históricos e nos quais se passa o desenvolvimento das técnicas, dos processos e das práticas de comunicação. Nestes termos, a sociedade na qual se engendra e se desenvolve a midiatização é constituída por uma nova natureza sócio-organizacional na medida em que passamos de estágios de linearidades para aqueles de descontinuidades, onde noções de comunicação, associadas a totalidades homogêneas, dão lugar às noções de fragmentos e às noções de heterogeneidades. A partir da afirmação de Fausto Neto (apud GARCIA, 2011) de que a midiatização manifesta-se no momento em que surgem novas formas de fazer, de perceber e de apropriar-se dos produtos midiáticos, isto é, quando as práticas sociais são afetadas pela lógica midiática, podemos afirmar que os livros digitais estão incluídos no processo de midiatização, pois os livros digitais trazem uma nova experiência para a leitura e o livro em si, baseada não só nas inovações tecnológicas - aqui representadas pelos eReaders e outros dispositivos eletrônicos compatíveis, além dos formatos de publicação que vem ganhando novos recursos e encriptações -, como também nas questões mercadológicas, quem impõem barreiras visando combater a pirataria e aumentar seus lucros. O cenário de conflito provocado pela tecnologia e o mercado, ocorre ao mesmo tempo em que os usuários – aqui entra o fator humanológico -, querem compartilhar seus conteúdos, mas se veem presos as “artimanhas” provenientes do conflito tecnologia x mercado. Capa 279 - Marcos Nicolau Sumário O eBook traz ao campo social um situação nova, que contradiz o papel histórico do livro, até então “livre” de barreiras mercadológicas. As tecnologias atuais são capazes de proporcionar aos adeptos dos livros digitais uma experiência de compartilhamento e interação ampla, baseadas nos recursos de hipertexto que, segundo Levy (1997, p.33), é “um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequencias sonoras, documentos complexos que podem ser eles mesmos hipertextos.” O alcance e as possibilidades do hipertexto podem ir além da imaginação humana: “Navegar em um hipertexto significa, portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira.” (LEVY, 1997, p.33). Entretanto, essas possibilidades esbarram no atual modelo de negócio utilizado pelas editoras e livrarias que exploram a venda de livros digitais, conseqüente das ações anti-pirataria impostas pelo mercado. Aqui encontramos uma situação de incongruência protagonizada pelos fatores mercadológicos e tecnológicos da midiatização, que por fim acaba prejudicando os usuários, atores que movem o fator humanológico. Por se tratar de um processo complexo, a midiatização apresenta-se, portanto, alimentada por “agentes”, aqui denominadas como “fatores”: eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Existem inúmeros fatores atuantes na cibercultura, capazes de provocar fenômenos comunicacionais os mais diversos e que vêm sendo apontados por muitos autores, como responsáveis por novas ordens sociais que deflagram a midiatização. Flores e Barrichello (2009) afirmam que, além da tecnologia, outro fator decisivo para que a ordem social e o modelo cultural contemporâneo alcancem a feitura atual diz respeito à localização da mídia no centro da sociedade, bem como à expansão de suas lógicas para outros campos sociais. Para essas autoras, também baseadas nos estudos de Sodré (2006) e Fausto Neto (2006), a midiatização é um processo relacional resultante de fatores que interferem nas realidades de origem, sendo configurados de acordo com as lógicas das mídias. (NICOLAU, 2012, p.2) Existem diversos fatores que influenciam na midiatização, entretanto, tomaremos aqui os três fatores apresentados por Nicolau (2012) – Humanológico, Tecnológico e Mercadológico – e suas respectivas ações, influências e consequências no contexto do mercado editorial digital. 2.1 Fatores humanológicos Segundo Nicolau (2012), o fator humanológico se baseia no desejo latente de participação cultural a partir do compartilhamento de ideias e opiniões através das tecnomediações, além de sustentar-se em Sodré (2006) ao afirmar que a virtualização das relações humanas presente em determinadas pautas individuais de conduta baseadas nas tecnologias da comunicação, é um dos aspectos que confirma a hipótese de que a sociedade contemporâ- Capa 281 - Marcos Nicolau Sumário nea rege-se pela midiatização, processo muito diferente da mediação por este ter um caráter meramente relacional, embora consolidado socialmente. Além dos anseios de compartilhar suas idéias e opiniões fazendo uso das tecnomediações, também podemos destacar como um dos componentes do fator humanológico da midiatização - no que tange a questão dos livros digitais - , a necessidade de portabilidade, pois um único dispositivo eletrônico pode armazenar milhares de livros. Também podemos destacar o interesse dos usuários de acompanharem as tendências tecnológicas e podemos citar como exemplo os produtos da Apple, que viraram uma tendência e hoje atrai uma legião de fiéis usuários que cresce a cada dia. A questão já abordada anteriormente da “auto-publicação” também pode ser considerada: agora os autores não precisam mais de gráficas ou assinar contratos com editoras para terem seus livros produzidos, publicados e vendidos, e isso sem dúvida representa uma alteração no modelo de produção e comércio de livros, que agora pode ser feito totalmente online. “A nossa necessidade premente de participar desta esfera existencial de compartilhamentos, baseada nos aparatos tecnológicos e movida pelos impulsos mercadológicos, reforçam a grande influência do fator humanológico no processo social da midiatização.” (NICOLAU, 2012, p. 4) No que tange a experiência de ler livros em dispositivos eletrônicos e quais seriam as motivações que eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas estruturam o fator humanológico, podemos considerar a seguinte afirmação de Levy (1996, p.40): “A digitalização e as novas formas de apresentação do texto só nos interessam porque dão acesso a outras maneiras de ler e de compreender” Temos, portanto, uma relevante quantidade fatores humanológicos, constituído de interesses e transformações sociais que hoje movimentam e participam do processo de midiatização. 2.2 Fatores tecnológicos Destacamos o fator tecnológico por este exercer uma função de destaque no processo de midiatização, atuando em constante relação com os fatores humanológicos e mercadológicos – que serão conceituados e exemplificados na sequência do presente artigo -, embora essa relação não se configure de forma harmônica. A indústria é quem movimenta este fator, produzindo os aparatos tecnológicos necessários para a realização das tecnomediações. Entretanto, esta mesma indústria produz softwares e hardwares que acabam possibilitando ações danosas, como a pirataria, que gera incalculáveis prejuízos ao mercado. Percebe-se então a forte relação, tanto positiva quanto negativa, do fator tecnológico e como as funções pensadas a priori para os produtos tecnológicos podem ganhar outros usos, atrapalhando a própria indústria e o mercado. Capa 283 - Marcos Nicolau Sumário Os aparatos tecnológicos produzidos pela indústria, disponibilizados aos milhões e com alcance global, chegam às mãos das pessoas e ganham vida própria. São transformados, manipulados, adaptados para que possam cumprir funções, muitas vezes, diferentes para as quais foram criados. No âmbito do cenário mundial de tecnologia, instaura-se a computação pervasiva que permeia toda a vida social do planeta em suas distintas sociedades; instaura-se a ubiquidade da comunicação, sem fronteiras de idiomas, raças ou crenças. (NICOLAU, 2012, p.5) O fator tecnológico apresenta, portanto, uma contraditória relação do fator tecnológico com os outros fatores do processo de midiatização aqui destacados e que serão discutidos detalhadamente mais adiante. 2.3 Fatores mercadológicos Este fator apresenta importante participação no processo de midiatização no contexto dos livros digitais, uma vez que, as movimentações do fator tecnológico são decorrentes das demandas do fator mercadológico. A partir disto, podemos afirmar que o fator tecnológico é uma consequência do fator mercadológico, e que este, por sua vez, atende aos anseios explicitados no fator humanológico. Temos agora, uma nítida demonstração de que os fatores da midiatização atuam em uma relação de constante interdependência, a qual iremos aprofundar no decorrer deste artigo. As afirmações de Nicolau (2012, p.5) reforçam esta ideia, além de chamar atenção para questão dos direitos eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 285 - Marcos Nicolau autorais, presentes em todos os ramos do mercado das mídias digitais, inclusive dos eBooks: 3 Os fatores da midiatização no mercado dos eBooks: uma relação de interdependência O fator mercadológico é determinante para que sejam desenvolvidas as bases inovadoras das tecnologias da informação e da comunicação, proporcionando a produção dos aparatos técnicos capazes de atender as necessidades comunicacionais. Mas é também no cerne deste fator que tem havido os mais acirrados embates entre os que defendem o controle sobre os direitos autorais e os que pregam a pirataria como uma prática natural na internet, por exemplo. Após apresentar os três fatores da midiatização escolhidos para serem abordados neste artigo, podemos agora aprofundar no objetivo principal, que é expor a relação de interdependência existente entre estes fatores, elencando um fator ao outro. Essa relação interdependente apresenta-se como uma espécie de “ciclo” contínuo, onde as ações de um fator acabam por influenciar nas ações praticadas e sofridas pelos outros fatores. Podemos elencar diversas situações onde os fatores atuam de forma harmônica ou contraditória, porém, para o presente estudo, exemplificaremos apenas alguns casos. Tomando por base o já mencionado desejo dos usuários de estarem sempre compartilhando informações, opiniões, ideias e conteúdos – caracterizando, portanto, o fator humanológico -, temos por consequência a ação do fator mercadológico, representado pelo interesse das empresas de venderem produtos que atendam a essa demanda, buscando obter o maior lucro possível. Nesse momento, a indústria produz os aparatos tecnológicos necessários para que o mercado atenda às necessidades humanas. Até então, podemos visualizar uma relação de interdependência entre os fatores da midiatização, mas que ocorre sem conflitos entre as partes. Entretanto, a partir No mercado dos livros digitais, os fatores mercadológicos tem se apresentado como o maior empecilho para o crescimento deste produto, sobretudo no Brasil, onde as editoras ainda se mostram inseguras neste mercado, lançando poucos livros em formato eletrônico e aplicando preços semelhantes aos praticados nos livros impressos. O fator mercadológico se apresenta, portanto, como um fator decisivo para a midiatização, pois não só age na busca de atender aos anseios do fator humanológico, como também entra em conflito com este mesmo fator e com o fator tecnológico a partir do momento em que começa a impor barreiras e dificuldades comerciais. Tais ações, caso ocorram de modo brusco e duradouro, pode gerar consequências graves, como o desinteresse dos usuários (fator humanológico) em seguir usando tal tecnologia, o que afetaria a indústria (fator tecnológico) e o próprio mercado (fator mercadológico). Capa Sumário eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas do momento em que o fator humanológico desperte interesses que busquem maior autonomia no uso dos produtos, como o compartilhamento livre de conteúdos, o que ameaça os lucros do mercado e gera os primeiros conflitos e contradições dos fatores da midiatização. Vale ressaltar, que os produtos tecnológicos quase sempre permitem brechas – intencionais ou não -, para a pirataria e o livre compartilhamento, que prejudicam o mercado e a própria indústria. Quando os anseios dos fatores humanológicos não são atendidos, não temos apenas um conflito mercadológico x tecnológico, mas também humanológico x mercadológico, conforme afirma Nicolau (2012, p.5): Voltando ao princípio de que o fator humanológico tem como base as vontades humanas mais intrínsecas de usar os aparatos tecnológicos para relacionamento, participação, opinião, compartilhamento é de se compreender que este se articula com o fator tecnológico e entra em conflito com o fator mercadológico, estabelecendo uma negociação constante. A figura a seguir exemplificará as relações expostas no presente artigo para uma melhor compreensão do estudo. Capa 287 - Marcos Nicolau Sumário O ciclo contínuo da relação interdependente entre os fatores da midiatização Necessidade de compartilhar informações, opiniões e conteúdos através das tecnomediações Produz os aparatos tecnológicos necessários para a realização das tecnomediações Fator Humanológico Fator Tecnológico Midiatização Fator Mercadológico Gera as condições que atenderão as demandas do fator humanológico Fig.1 – O ciclo contínuo da relação interdependente entre os fatores da midiatização Fonte: o autor No contexto do mercado dos livros digitais, temos como principal entrave para o crescimento deste produto, protagonizado pelo fator mercadológico, motivado pela questão dos Direitos Autorais. Os leitores de livros digitais não têm a mesma “liberdade” que um leitor de livro impresso, capaz de emprestar ou tirar cópias sempre que quiser, ou seja, o adepto dos eBooks parece não ter a mesma autonomia sobre sua propriedade se comparado a um leitor de livros impressos, gerando um descontentamento e uma pressão sobre as empresas, que, por sua vez, impõem táticas para impedir o livre compartilhamento e pirataria, a fim de evitar prejuízos. eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas Esse caso reforça a ideia de que as relações de interdependência dos fatores da midiatização se constroem tanto de formas positivas e complementativas quanto de formas negativas e conflituosas. Certamente, existem outros tantos casos que podem ser explorados nesta perspectiva, mas que serão tratados neste artigo. Algumas poucas transformações e novidades vêm acontecendo no mercado de livros digitais, principalmente no Brasil, e que merecem atenção, pois podem significar o surgimento de novas formas de relacionamento entre os fatores da midiatização e que deverão ser estudadas futuramente. Considerações finais O processo de midiatização alterou de várias formas as relações não apenas sociais, mas também mercadológicas, e tal processo é decorrente da influência dos fatores da midiatização apresentados neste artigo. O livro digital apresenta-se como um produto de forte potencial mercadológico, bem como cultural e educativo, pois permite um alcance inestimável após ser lançado na rede mundial de computadores. Esse alcance, que pode representar a difusão de conhecimento é o mesmo alcance que preocupa as editoras, ameaçadas pela pirataria, cuja prática reduz seus lucros. Nos EUA e em alguns países europeus, o eBook já atinge bons números de vendas e aceitação, enquanto Capa 289 - Marcos Nicolau Sumário que, no mercado brasileiro, o livro digital ainda dá seus primeiros passos e as razões para esse “atraso” são várias, como a resistência das editoras em apostar neste mercado, a falta de mão-de-obra especializada na produção de eBooks em formato ePub, a oferta de e-Readers com preço acessível e indisponibilidade de títulos em português a preço competitivo. Os fatores da midiatização atuam de forma conjunta e interdependente: tanto pode se apresentar de forma harmônica, em que se complementam e beneficiam umas as outras, como também em situações de conflito, quando os interesses de um ou mais fatores são contrariados por outro. De acordo com Garcia (2011), temos a interatividade como principal ferramenta da comunicação no processo midiatizado, isto é, existe a efervescência desse modelo comunicacional participativo, colaborativo e convidativo. O livro digital apresenta essas características, pois é capaz de permitir aos leitores uma troca de conteúdos e, inclusive, de opiniões a partir de softwares e aplicativos que dispõem de recursos como: inserir comentários e marcações no texto, para ser compartilhado e alterado de forma cooperativa entre vários usuários. Nitidamente, existe um impasse, no qual, tanto o total controle dos livros digitais por parte das editoras, quanto à liberação exacerbada desses conteúdos para os leitores, são atitudes extremas e que sugerem a necessidade de se encontrar um meio-termo que atenda ao interesse eLivre midiatização e cotidiano: reflexões sobre as interações tecnomediadas 291 - Marcos Nicolau de todas as partes, gerando assim um modelo de negócio atraente do ponto de vista econômico, mas também garantindo a autonomia dos leitores de livros digitais. Portanto, temos no livro digital um exemplo de como os fatores da midiatização se relacionam de forma interdependente, expondo os anseios dos usuários e os conflitos gerados pelas divergências de interesses entre estes fatores - e é isso que contribui para uma situação de constante negociação que pode vir a beneficiar toda a sociedade. Referências vel em: <http://www.cchla.ufpb.br/ppgc/smartgc/uploads/arq uivos/907aad9df920120611090301.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2012. SGORLA, Fabiane. Discutindo o processo de midiatização. In: Mediação. Belo Horizonte, v. 9, n. 8, jan./jun. 2009. Disponível em: <http://www.fumec.br/revistas/index.php/mediacao/article/view/285/282>. Acesso em: 21 de nov. 2012 SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, Dênis de (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. Disponível em: <http://www. scribd.com/doc/23350785/Eticidade-Campo-Comunicacional-e-Midiatizacao-Muniz-Sodre>. Acesso em: 22 de nov. 2012. 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