ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO:
O PENSAMENTO DA ELITE INTELECTUAL E DIRIGENTE
NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO (1869-1889)
Professora Doutoranda Aldaíres Souto França
SEDU/PPGE/CE/UFES
[email protected]
Palavras-chave: escravidão – educação – História da Educação
1. Introdução
Esta comunicação se insere no eixo temático “Etnias e Movimentos Sociais”
e tem como objetivo apresentar algumas questões que foram problematizadas na
investigação que realizei no decorrer do Mestrado (PPGE/CE/UFES, 2004 - 2006) –
Uma educação imperfeita para uma liberdade imperfeita: escravidão e educação no
Espírito Santo (1869-1889).
O que proponho com este texto? Compartilhar com o leitor o desafio de
investigar sobre a educação no século XIX, principalmente sobre a interface escravidão
e educação. Um segundo desafio, possibilitar ao leitor reunir dados muito dispersos,
esmiuçar o implícito e conjecturar possibilidades sobre a relação escravidão e educação
de modo compreender o processo de acesso dos trabalhadores negros escravizados,
livres e libertos à educação. Outro desafio seria mergulhar em um processo de
superação do reducionismo de uma abordagem mecânica e linear sobre a relação
escravidão e educação.
Para tanto, procuro imergir nessas questões da seguinte forma: no primeiro
tópico apresento as grandes tensões – trabalho (escravidão e imigração),
modernização e educação que se entrelaçavam no pensamento e nas ações da elite
intelectual e dirigente da Província do Espírito com o aos ideais de “civilização” e de
“modernização” proclamados pelo Império, principalmente ao que se refere à educação
dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, nas últimas décadas do século
XIX (1869-1989).
Evidencio também a partir dessa trajetória as transformações sociais,
econômicas, políticas e culturais no Império e na Província do Espírito Santo no
decorrer das últimas décadas do século XIX. Trata-se de adentrar não só no contexto
socioeconômico e cultural da Província do Espírito Santo nas últimas décadas do século
XIX, mas também vislumbrar alguns detalhes do cotidiano sociocultural vivenciado
pelos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Por fim estabeleço um
percurso sobre as representações da elite intelectual e dirigente em relação à educação
dos trabalhadores negros, ou seja, trata-se de compreender essas representações da elite
sob uma ordem de submissão e de controle social. É importante salientar que isso não
aconteceu de forma pacífica e nem consensual, mas sob uma tensão, pois a legitimação
de uma identidade passou pela desqualificação de outras.
Este trabalho fundamenta-se no campo da historiografia da História da Educação
com uma proposta de abordagem ancorada na História Cultura.
A investigação baseou-se em fontes impressas, especificamente a imprensa
espírito-santense, e no cruzamento com outras fontes documentais correspondentes ao
período, tais como: leis provinciais, regulamentos, relatórios de presidentes da
Província, jornais de outras províncias e da Corte, e Anais das Assembleias
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Legislativas, disponibilizadas no Arquivo Estadual do Espírito Santo (APEES), no
Arquivo da Cúria Diocesana e no Arquivo da Assembleia Legislativa. Além disso,
foram consideradas outras fontes bibliográficas específicas sobre a Província do Espírito
Santo neste período, como, por exemplo, Basílio Carvalho Daemon (1879), Amâncio
Pereira (1914), Maria Stela de Novaes (1963 e 1964), Primitivo Moacyr (1940), Serafim
Derenzi (1965) e José Teixeira Oliveira (1975). Também foram de suma importância os
relatos e imagens de Jean-Baptiste Debret (1978), as fotografias de George Ermakoff
(2004) e os relatos de Saint-Hilaire (1974).
Por que fiz a opção pelo século XIX? O interesse pela temática escravidão
sempre esteve presente no meu fazer enquanto “ser professora de história”, ou seja, na
minha prática pedagógica, mas foi o desejo de enfrentar o desafio do “ser
pesquisadora” que me impulsionou ao curso de Mestrado em Educação pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo – PPGE, sob a linha de pesquisa História, Sociedade, Cultura e Políticas
Educacionais. As questões que nortearam o meu projeto de pesquisa surgiram em sala
de aula, junto e a partir dos questionamentos feitos pelos meus alunos, principalmente
quando realizávamos a análise comparativa entre as imagens de negros no período da
escravidão e as imagens atuais.
A principal imagem, a obra de Jean-Baptiste Debret (1978): “Uma senhora
brasileira em seu lar”, permitiu desenvolver um trabalho sobre as questões do contexto
da escravidão, especificamente, questões étnicas, de gênero e poder; e trouxe à tona
inquietações que nortearam o meu projeto inicial de pesquisa (a apropriação do ler, do
escrever e do contar pelos trabalhadores negros escravizados); e, possibilitou a
aproximação entre a temática escravidão e educação. Costumo me referir a essa
imagem como o “meu porto inseguro”, já que foi a partir dela que um turbilhão de
perguntas, incertezas e inquietações afloraram de forma intensa, como, por exemplo, as
questões: Como foi possível aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos
apropriarem-se do ler, do escrever e do contar? Quais foram as condições históricas
que possibilitaram aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos terem
acesso à educação? A princípio, foram estas questões que nortearam o enfoque
metodológico, as ferramentas conceituais e operacionais e permitiram dar início ao
desenvolvimento do percurso de investigação da minha pesquisa.
Todavia, alguns fatores dificultaram o processo investigativo, como por
exemplo, as limitações pessoais, a corrida contra o tempo (apenas dois anos para
defender a dissertação), a escassez, na historiografia espírito-santense, de estudos
relacionados à interface escravidão e educação, as dificuldades enfrentadas nos
arquivos, principalmente, em relação à manutenção e preservação das fontes. Não
poderia deixar de mencionar o “silêncio” das fontes, principalmente devido à ausência
do testemunho dos próprios trabalhadores negros escravizados, livres e libertos sobre o
seu fazer histórico. Essas circunstâncias e a produção de dados impulsionaram-me a
atentar para as representações da elite intelectual e dirigente em relação à educação dos
trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, não se tratou de uma mudança de
percurso, mas de uma ampliação das possibilidades para a interface educação e
escravidão.
Diante dessas considerações iniciais, convido a você leitor a realizar esse
mergulho ...
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2. As grandes tensões – trabalho (escravidão e imigração), modernização e
educação
Procurando compreender a dimensão social, econômica e política do
pensamento da elite intelectual e dirigente em relação às medidas educacionais voltadas
para os trabalhadores negros nas últimas décadas do século XIX, iniciei minha busca
por “pistas” nos jornais que circulavam no Império e na Província espírito-santense no
decorrer desse período.
Os impressos analisados evidenciaram que as grandes tensões da época estavam
relacionadas ao trabalho (escravidão e emigração), modernização e educação. O Diário
Official do Império do Brazil divulgou como essas tensões foram articuladas no
Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, evento aconteceu do dia 8 ao dia 12 de
julho de 1878, sendo divulgado a partir de 9 de julho do mesmo ano. Tal evento surgiu
como resposta às reivindicações dos agricultores que solicitavam ao Império
providências em relação ao problema da falta de mão-de-obra e de capitais para a
grande lavoura de café. Os congressistas (representantes da elite intelectual e dirigente)
assumiram, então, a postura de investir em um projeto educacional que acompanhasse o
processo abolicionista de forma lenta e gradual (festina lente), atribuindo a educação à
responsabilidade da preparação para o trabalho, e, ao mesmo tempo, aguardando por
uma resposta imediata, optaram por investir no incentivo à imigração européia.
Pretendiam resolver, assim, as questões voltadas para a carência de braços (trabalho) e
ao mesmo tempo obter o controle da ordem e da hierarquia social.
Desse modo, aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, restaria
apenas uma educação imperfeita para uma liberdade imperfeita, ou seja, uma educação
que priorizava a formação para o trabalho e também procurava manter a ordem e a
hierarquia social que privilegiava uma elite proprietária de escravos.
Ao analisar os impressos que circulavam na Província do Espírito Santo nesse
período, foi possível acompanhar o desdobramento das grandes tensões no contexto
sócio histórico da província, principalmente, nos discursos oficiais da elite intelectual e
dirigente espírito-santense, que, com os seus contornos moralistas, promoveram o
sentimento “caráter excepcional e filantrópico” em nome do processo de “civilização”
e “modernização”. Para tanto, anteciparam as medidas educacionais que reproduziram
os interesses do Império brasileiro, mas, principalmente, dos grandes proprietários no
sentido de realizar a abolição da escravatura de forma lenta e gradual (festina lente),
principalmente sob a égide da educação para o trabalho.
Os impressos analisados evidenciaram que as grandes tensões da época estavam
relacionadas ao trabalho (escravidão e emigração), modernização (civilização e
urbanização) e educação. Nesse contexto, algumas medidas legislativas foram
aprovadas na Província do Espírito Santo e até mesmo apresentadas de forma
antecipada das decisões tomadas pelo governo imperial. Nesse sentido, posso destacar a
Lei Provincial nº 25 de 4 de dezembro de 1869 (Leis da Província do Espírito Santo.
Tomo XXXIII, Victoria: Typografia do Correio da Victoria, 1869), aprovada no
decorrer do governo do presidente de província Antônio Paes Leme, que autorizava a
despesa anual de seis mil reis (6:000$) com alforrias de escravas de 5 a 10 anos de
idade. É interessante observar que a sua aprovação aconteceu em torno de um ano antes
da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871).
Não poderia deixar de mencionar também a aprovação da Lei nº32 (Decreto
647) de 23 de dezembro de 1869 (Leis da Província do Espírito Santo. Tomo XXXIII,
Victoria: Typografia do Correio da Victoria, 1869), que permitiu o acesso de ingênuos
nas aulas do Colégio Espírito Santo (Colégio Normal). O artigo 5º da Lei nº 32
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apresentava as exigências mínimas que permitia o acesso dos candidatos a Escola
Normal: habilidades elementares como ler, escrever e contar as quatro operações, noção
de gramática portuguesa, terem acima de 16 anos de idade, bem como uma “ótima
conduta social” e serem “cidadãos brasileiros, ingênuos ou adotivos, em pleno gozo
dos seus direitos”. A primeira exigência, o candidato deveria ter habilidades suficientes
para leitura e escrita, dependia da avaliação do diretor do Colégio Espírito Santo (Escola
Normal).
Apesar do silenciamento em relação à cor (raça e etnia), as exigências estavam
relacionadas à moral, aos bons costumes e a boa educação, sendo que a avaliação da
“ótima conduta social” dependia do aval de um juiz de paz. Tais exigências além de
atenderem os interesses da elite intelectual e dirigente no exercício do controle social
através da educação, são pertinentes em relação à ocultação da diferença,
principalmente em um contexto caracterizado pela degradação do trabalhador negro.
Assim, a Lei nº 32, como outras medidas legislativas, foi aprovada objetivando
atender a necessidade de educar o trabalhador negro “adequadamente”, ou seja, inseri-lo
no modelo de sociedade que começava a se constituir nas últimas décadas do século
XIX, caracterizado pelas grandes tensões apresentadas.
Dessa modo, o pensamento da elite intelectual e dirigente foi manifestado na
imprensa e nos discursos registrados na documentação oficial, mostrando-se
comprometidos com as questões sociais e políticas do Império, bem como com o
processo de modernização econômica e, simultaneamente, também com os interesses
das oligarquias regionais. Foi interessante observar que a imprensa se manifestou
claramente favorável aos projetos educacionais implementados pela elite intelectual e
dirigente, teve o papel de divulgá-los e de enfatizar a importância de medidas
educacionais voltada para a camada popular, visando principalmente à preparação para
o trabalho, especificamente por meio da implementação da educação agrícola e da
criação das escolas noturnas.
Uma das preocupações centrais era o controle sobre as práticas cotidianas dos
trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e sobre a sociedade em geral. Dessa
forma, pensar em educação e escolarização para esses trabalhadores negros significava
colocar em evidência nas ações da elite intelectual e dirigente em relação à manutenção
da ordem de submissão e do controle social, isso dizia respeito ao desenvolvido dos
discursos voltados para a moralidade e a filantropia em relação aos todos os desvalidos
e aos desamparados, camuflando assim as questões raciais e étnicas.
3. As transformações sociais, econômicas, políticas e culturais no Império e na
Província do Espírito Santo
A busca pelos detalhes nos jornais das últimas décadas do século XIX contribuiu
para a reconstituição do processo de transformações ocorridas tanto no Império como na
Província, nas últimas décadas desse período. Tais transformações se caracterizaram
pelo processo de modernização e urbanização (comunicação através de vias terrestres e
marítimas, construção de telégrafos, disponibilidade de hotéis e o crescimento do
comércio de tecidos, luvas, sapatos, lustres, bebidas, mobiliários, remédios, chocolates,
chás, charutos e outros produtos), bem como pela presença de epidemias e vacinas
(febre amarela, varíola e outras).
No que se refere especificamente à escravidão, os impresso divulgavam de
forma acentuada as fugas de escravos rurais e urbanos, os editais relacionados ao fundo
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de emancipação de escravos, as leis abolicionistas, as iniciativas particulares de doação
de cartas de alforrias.
Não poderia deixar de mencionar as colunas relacionas aos aspectos culturais:
publicação livros, textos e obras de pensadores europeus e norte-americanos, festas
religiosas, teatros, concertos musicais, colunas literárias e outros.
Sobre as medidas legislativas educacionais era comum nos jornais noticiarem a
criação de escolas, salientarem o processo de inserção da educação feminina, as
reformas educacionais caracterizadas pela obrigatoriedade e liberdade de ensino, acesso
de ingênuos e libertos às escolas, etc.
Enfim, os detalhes evidenciados nas notícias dos jornais possibilitaram o
vislumbre de um processo de transição caracterizado pela diversidade e ambiguidade
com aspirações “civilizatórias” e uma implícita preocupação com a “modelação” social
das camadas populares, formada na maioria pelos trabalhadores negros escravizados.
É importante destacar, que tanto no Império como na Província do Espírito
Santo a amplitude das mudanças e das ideias sobre liberdade que envolvia o contexto
histórico da escravidão, ainda não se apresentava em sua forma completa, de modo que
essa incompletude torna muito difícil determinar onde terminam as práticas de
manutenção da ordem e onde iniciam as projeções de modernização e transformação
social, elas mesmas enredadas, ainda que em níveis diferentes, no contexto de social
elitista, escravista e patriarcal.
3.1 Adentrando o universo urbano da Província do Espírito Santo
Adentrando o universo urbano da Província do Espírito Santo, especificamente
da Vila de Vitória, sob o olhar do viajante europeu Auguste Saint-Hilaire (1975), que
esteve nesta província no início do século XIX, foi possível rastrear, registrar,
interpretar e classificar indícios infinitésimos e semelhantes sobre alguns aspectos da
organização do cenário urbano tanto da região da Vila de Vitória e de outros eixos
econômicos, como por exemplo, Cachoeiro de Itapemirim.
As ruas de Vitória são calçadas, porém mal; têm pouca largura, não
apresentando qualquer regularidade. Aqui, entretanto, não se vê casas
abandonadas ou semi-abandonadas, como a maioria das cidades de
Minas Gerais. Dedicados à agricultura, ou a um comércio
regularmente estabelecido, os habitantes da Vila de Vitória não estão
sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de ouro e não têm motivos
para abandonar sua terra natal. Cuidam bem de preparar e embelezar
suas casas. Considerável número delas tem um ou dois andares.
Algumas têm janelas com vidraças e lindas varandas trabalhadas na
Europa. A Vila de Vitória não tem cais; ora as casas se estendem até a
baía, ora se vê, na praia, terrenos sem construção, que tem sido
reservado ao embarque de mercadorias. A cidade de também é
privada de outro tipo de ornato: não possui, por assim dizer, qualquer
praça pública, pois a existente diante do palácio é muito pequena, e
com muita condescendência é que se chama de praça a encruzilhada
enlameada que se prolonga da Igreja de Nossa Senhora da Conceição
da Praia até a praia. Há, na Vila da Vitória, algumas fontes públicas,
que também não concorrem para embelezar a cidade, mas, pelo
menos, fornecem aos habitantes água de excelente qualidade (SAINTHILAIRE, 1974, p. 45).
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Foi interessante observar que essa configuração se manteve, nas ultimas décadas
do século XIX, quando o comércio passou a ocupar quase todo o centro da Vila de
Vitória e dos demais centros populacionais da Província.
Nas últimas décadas do século XIX, a Província do Espírito Santo se beneficiou
de inovações e de iniciativas de reformas urbanas como o serviço telefônico, o
telégrafo, bastante divulgados pelos jornais locais, e a instalação da fábrica de tecidos e
calçados, reformas na cadeia pública e construção de albergues os desamparados e
desvalidos. No decorrer do tempo, a paisagem urbana foi se modificando com novos
estabelecimentos, agremiações literárias, biblioteca, escolas, hotéis, teatros, construção
de fontes, calçamento das principais ruas das principais cidades e iluminação a gás e em
consequência disso o crescimento populacional e espacial, o incentivo a vinda de
imigrantes europeus intensificou-se, criando-se, então, a necessidade de novos locais de
moradia, predispondo de meios para a fomentação de novas colônias. Os antigos
espaços de ocupação habitacional já não correspondiam à demanda populacional da
cidade. Surgiram, então, projetos oficiais de ocupação como também os núcleos
espontâneos de ocupação populacional da província, principalmente nas proximidades
da Vila de Vitória.
A documentação analisada permitiu o registro da presença dos trabalhadores
negros escravizados, livres e libertos neste cenário configurado por aspectos
socioculturais tanto urbanos e como rurais. A integração desses trabalhadores negros no
cenário espírito-santense, não deve ser vista somente do ponto exclusivamente de sua
participação no processo produtivo, mas principalmente por um estudo das suas formas
socioculturais de organização que se manifestaram no cotidiano das transformações
sociais, econômicas, políticas e culturais das últimas décadas do século XIX.
O estreitamento de relações entre a produção da economia cafeeira e o restante
da economia do Império e da Província do Espírito Santo é um fator importante quando
se quer caracterizar a inter-relação entre o urbano e rural. O cenário espírito-santense
no século XIX foi marcado pela pobreza, pelos limites entre o sagrado e o profano,
entre o rito religioso e a festa popular. Sendo caracterizado também pela oposição entre
o rural e o urbano, ou melhor, entre o “atrasado” e o “moderno”.
De modo geral, essas evidências contribuíram para elucidar as modificações
econômicas, políticas e socioculturais que provocaram uma grande transformação no
perfil da província espírito-santense, nas últimas décadas do século XIX, principalmente
na dinâmica na vida cultural: teatros, jornais, lojas, criação de escolas e incipiente
atividade literária, bem como o entremostrar de intelectuais envolvidos nas campanhas
abolicionistas e republicanas.
Não poderia deixar de mencionar que no contexto do processo de urbanização e
modernização, uma complexidade de problemas foi evidenciada pela imprensa,
principalmente os relacionados às camadas populares, especificamente aos desvalidos e
aos desamparados, como por exemplo: a falta de moradia, a insalubridade, as
epidemias, a pobreza, a escassez de escolas, o incentivo as obras de caridade, entre
outros.
Para Serafim Derenzi (1965), no entanto, “dois fatores concorreram para que os
passos do Espírito Santo fossem curtos no vencer a distância entre as necessidades
fundamentais do povo e a grandeza econômica da Província: Educação e Saúde”
(DERENZI, Serafim, 1965, p. 144), ou seja, a falta de escolas e médicos. Havia a
presença de epidemias como febre amarela, peste bubônica, paludismo, disenteria e
varíola. Além disso, segundo o mesmo autor, a cidade de Vitória apresentava um
aspecto caracterizado pela sujeira, sem esgotos e as fezes eram guardadas em tonéis de
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madeira a espera do despejo, à noite. Além, “a pobreza havia crescido
assustadoramente” (DERENZI, Serafim, 1965, p.147).
Em relação aos trabalhadores negros escravizados, na dimensão urbana “havia
ainda outras formas de exploração lucrativa [...] Prêtos [sic] e prêtas [sic] de ganho,
Trabalhavam [sic], como artífices, pequenos negócios, vendeiras, amas de leite,
teceladeiras, etc.” e os que “eram alugados, pelos senhores, que recebiam os
proveitos” (NOVAES, Maria Stela de, 1963, p. 40). A autora ainda salientou a
presença de constante de anúncios com intenção de alugar esses serviços típicos dos
escravos de ganho (tal fato foi possível de ser observado também pela imprensa
espírito-santense).
Leila Mezan ALGRANTI (1988) define escravos de ganho como aqueles que
eram enviados pelos seus senhores à rua, para prestar serviços obrigatórios e no final do
dia entregavam-lhe determinada quantia. Enquanto os escravos de aluguel ficavam sob
a responsabilidade dos locatários e o dinheiro era entregue diretamente ao senhor sem a
intermediação do escravo.
Foi interessante observar que esses anúncios também evidenciaram as variações
de mobilidade espacial (ir e vir) possíveis aos trabalhadores negros escravizados, livres
e libertos e as suas formas de sociabilidade bastante ampla, revelando toda uma
organização de formas de solidariedade manifestada nas formas de resistências tanto
contestadora como silenciosas.
Diante dessas considerações, posso afirmar que os trabalhadores negros faziam
parte desse cenário de aspectos híbridos, ocupando o espaço urbano, com maior ou
menor intensidade, submetidos às medidas de controle do governo provincial, e
desencadeavam suas experiências de vida e de cultura, sendo escravizados, livres,
libertos, pobres, desamparados, desvalidos, vendedores ambulantes, moleques de
recado, criados, de aluguel ou de ganho, enfim, eram trabalhadores, devotos ou
profanos, tinham cheiro, voz, rosto, ... sonhos ... e .... eram, principalmente, resistentes,
que traçavam seu dia-a-dia sob uma tensão característica de uma sociedade elitista,
escravista e patriarcal.
Tendo isso em vista, penso que seja possível articular com a proposição de que
os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos poderiam apropriar-se de um
arsenal intelectual e cultural que permeava o cotidiano urbano, como o ler, o escrever, o
contar, e provavelmente superar os aspectos elementares, tornando-se um letrado.
Enfim, eram sujeitos históricos capazes de criarem formas culturais de adaptação
autônoma, sendo capazes de reinventarem novas possibilidades de experiências de vida.
Conforme apontam os estudos de Eugene Genovese (1988), Kátia M. De
Queirós Mattoso (1990), Sidney Chalhoub (2003), Eduardo França Paiva (2000 e 2003)
e outros, os trabalhadores negros sejam escravizados, livres e libertos não podem ser
vistos como sujeitos passivos diante de diversas medidas legislativas impostas, podendo
tomar decisões em relação à educação que deveria receber ou não receber, pois os
estudos sobre o cotidiano dos trabalhadores escravizados já desvendaram a presença de
uma experiência cumulativa de improvisação e resistência ao poder por parte destes
sujeitos históricos.
4. Representações sob a ordem da submissão ao controle social
A análise dos jornais permitiu também o conhecimento de alguns detalhes
relacionados às representações da elite intelectual e dirigente sobre a educação dos
trabalhadores negros. Conforme já salientei, o estabelecimento de representações não é
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pacífico nem consensual, mas conflituoso, pois se cada grupo ou indivíduo compreende
a si mesmo e ao outro de uma determinada forma, a legitimação de uma identidade
passa pela desqualificação de outras.
O modelo de “civilização” e “modernização” que pretendiam implantar na
Província do Espírito Santo era semelhante ao modelo já implementados em outras
províncias do Império, apresentando alguns aspectos veiculados aos padrões europeus e
norte-americanos. Por outro lado, em contraste com esse modelo, a maior parte da
população vivia principalmente no limiar da pobreza e afligida pelas epidemias
aluidoras. Tal fato evidencia que nem sempre o que era representado pelos registros e
discursos da elite intelectual e dirigente estava de acordo com a realidade enfrentada
pelas camadas populares.
Conforme já mencionei no contexto do processo de modernização, evidenciado
por anúncios de jornais que destacavam a organização das redes de comunicação
(telegrafo, correios, abertura de estradas), construção de fontes, praças, aumento do
número de escolas, entre outras medidas. Entre as diversas contradições, a implantação
de políticas higienistas ganhou ainda mais força com as grandes epidemias que
atingiram a Província e o Império (febre amarela, cólera, varíola e outras), e
consequentemente surgiram às campanhas de aplicação de vacinas e saneamentos
públicos. Assim, conforme pontuou Lilia Schwarcz (2000), essas epidemias chamaram
atenção para a “missão higiênica” defendida pelas duas faculdades nacionais:
[...] enquanto o Rio de Janeiro atentará para a doença, já na Bahia
tratava-se de olhar o doente. [...] Se a escola do Rio de Janeiro lidou,
sobretudo, com as epidemias que grassavam no país, já na Bahia, a
atenção centrou-se, em primeiro lugar, nos casos de criminologia e, a
partir dos anos 1890, nos estudos de alienação. [...] Sob a liderança de
Nina Rodrigues, a faculdade baiana passou a seguir de perto os
ensinamentos da escola de criminologia italiana, que destacava os
estigmas próprios dos criminosos: era preciso reservar o olhar mais
para o sujeito do que para o crime. Para esses, cientistas, não foi
difícil vincular os traços lombrosianos ao perfil dos mestiços – tão
(mal) tratados pelas teorias da época – e aí encontrar um modelo para
explicar a nossa “degeneração racial [sic]. Os exemplos de
embriaguez, alienação, epilepsia, violência ou amoralidade passavam
a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do
cruzamento, em seu alerta à “imperfeição da hereditariedade mista”
(SHWARCZ, Lilia, 2000, p. 27).
No que diz respeito a essas questões sanitaristas, os anúncios de jornais
confirmaram a situação de dramática e também evidenciaram que:
[...] o passo para a eugenia e para o combate à miscigenação racial foi
quase que imediato. Afinal, as doenças teriam vindo da África, assim
como o nosso enfraquecimento biológico seria resultado da mistura
racial. É assim que, a partir do século XX, uma série de artigos
especializados passa a vincular a questão da higiene à pobreza e à
população mestiça e negra, defendendo métodos eugênicos de
contenção e separação da população (SHWARCZ, Lilia, 2000, p. 29).
Na verdade, implicitamente havia uma preocupação com a mudança de costumes
e hábitos da população no sentido de não desestruturar as ordens públicas, sociais e
econômicas. Além disso, estabeleceram “correlações entre a imigração e a entrada de
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moléstias estranhas a nosso habitat. Isso tudo em meio a um contexto em que os negros,
agora ex-escravos, transformavam-se mais e mais em estrangeiros: nos africanos
residentes no Brasil” (SHWARCZ, Lilia, 2000, p. 29).
Hoje as questões higienistas e sanitaristas são encaradas como necessárias e com
naturalidade, mas na época referente ao recorte deste estudo, últimas décadas do século
XIX, não eram assim consideradas nem mesmo entre a elite intelectual e dirigente,
principalmente devido às incertezas diante da novidade. Assim, essas questões foram
consideradas caso de polícia. Consequentemente, desencadearam uma série de ações
coercitivas por parte da elite intelectual e dirigente e a indignação das camadas
populares, marcadas principalmente pelo confronto. Tal confronto foi de forma explicita
pautado tanto pelas diferenças sociais e implicitamente pelas diferenças raciais e
étnicas.
Afinal, como salientou Almada (1984), o trabalhado negro escravizado “não
passava de um objeto, de uma coisa que se podia legalmente comprar, vender, alugar,
avaliar, emprestar, doar, penhorar, hipotecar, arredar, devolver [...] como qualquer
objeto, anúncio de vendas em jornais [...]” (ALMADA, Vilma, 1984, p.103).
Dessa maneira, por diversas vezes “folheei” os jornais locais da província
espírito-santense e deparei-me com anúncios que caracterizados por esse conjunto de
ideias colocadas por Almada (1984), e, principalmente encontrei as representações que
evidenciaram a falsa ideia de que o cativeiro seria, por excelência, um espaço social
“conformador” de uma vivência marcada pelo desregramento social que apontava para
uma suposta incapacidade genética e sociocultural desses sujeitos construírem suas
experiências de vida baseada na sua própria concepção sobre o cativeiro e das
possibilidades de liberdade de forma consciente.
Os anúncios permitiram o vislumbre das informações que circulavam na época,
como também possibilitaram perceber as questões que permearam o pensamento da
elite intelectual e dirigente, os aspectos da vida sociocultural deste período. Além disso,
alguns desses anúncios deram nomes, rostos e mostraram a subjetividade dos
trabalhadores negros escravizados, livres e libertos; bem como sua autonomia diante das
fugas, o sonho pela liberdade tão almejada e a diversidade de atos sociais praticados.
5. Considerações, por hora, ... finais...
As medidas educacionais, sob a égide de uma educação para o trabalho,
apresentaram um caráter disciplinador e coercitivo sobre as camadas populares, em
especial, os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Isso se explica pelo fato
de evidenciarem os trabalhadores negros como parte degradada da camada popular.
Dessa maneira, tais medidas procuram equacionar os problemas relacionados à
educação dos trabalhadores negros aos problemas das camadas populares,
especificamente por meio de criação de escolas agrícolas e de escolas noturnas. Assim,
realizou-se a ocultação das questões raciais e étnicas, objetivando dar invisibilidade e
descaracterizar os trabalhadores negros enquanto sujeitos históricos capazes de
reinventarem o seu cotidiano e conquistarem a liberdade do corpo e da mente de forma
consciente.
É importante destacar, que tanto no Império como na Província do Espírito
Santo a amplitude das mudanças e das ideias sobre liberdade que envolvia o contexto
histórico da escravidão, ainda não se apresentava em sua forma completa. Essa
incompletude impossibilita determinar os limites entre as práticas de manutenção da
ordem e as projeções de modernização e transformação social, elas mesmas enredadas,
ainda que em níveis diferentes, no contexto de social elitista, escravista e patriarcal.
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Os trabalhadores negros faziam parte de um cenário de transformações políticas,
sociais e culturais, caracterizado pelos aspectos híbridos. Assim, esses trabalhadores
ocupavam o espaço urbano, com maior ou menor intensidade, submetidos às medidas
de controle do governo provincial, e desencadeavam suas experiências de vida e de
cultura, sendo escravizados, livres, libertos, pobres, desamparados, desvalidos,
vendedores ambulantes, moleques de recado, criados, de aluguel ou de ganho, enfim,
eram trabalhadores, devotos ou profanos, letrados ou não, tinham cheiro, voz, rosto,...
sonhos ...
Ao analisar os discursos oficiais da elite intelectual e dirigente espírito-santense,
escritos e publicados no decorrer da segunda metade do século XIX, percebi que sob a
égide de uma educação para o trabalho envolvida por princípios moralistas, atribuíram a
educação para os trabalhadores negros escravizados o “caráter excepcional e
filantrópico”. Isso em nome do processo de “civilização” e “modernização”
desencadeado tanto no Império como na Província do Espírito Santo, mas
implicitamente objetivando o controle sobre ordem social e da unidade política.
No contexto sócio histórico específico da Província do Espírito Santo, foi
possível observar que o projeto educacional defendido pela elite intelectual e dirigente
espírito-santense, nas últimas décadas do século de XIX, estava consonância com as
ideias defendidas no âmbito nacional. Posso até afirmar que algumas das medidas
educacionais até anteciparam as proclamadas pelo Império brasileiro, principalmente as
ações disciplinadoras e coercitivas sobre as camadas populares, em especial, os
trabalhadores negros escravizados, livres e libertos.
Diante disso, sublinho as estratégias de “modelação social” (civilização) e
preparação para o trabalho que visavam atender às novas exigências da modernização
do Império brasileiro e da província espírito-santense.
Nesse contexto, a elite dirigente e intelectual, das últimas décadas do século
XIX, procurou equacionar os problemas relacionados à educação dos trabalhadores
negros aos problemas das camadas populares. Consequentemente, evidenciaram os
trabalhadores negros como parte degradada dessa camada social e, por outro lado,
intencionalmente ocultaram as questões raciais e étnicas.
A busca pelos “detalhes” permitiu uma aproximação com o cotidiano da
Província do Espírito Santo, isso foi importante, considerando que não pode está
dissociado de todo o contexto da sociedade escravista. Conforme visto anteriormente, o
percurso realizado por meio desses “recortes” permitiu ler nas entrelinhas do
pensamento da elite intelectual e dirigente que os trabalhadores negros escravizados,
livres e libertos da Província do Espírito Santo, assim como muitos outros espalhados
por todo o Império, souberam utilizar as contradições impostas pelo jugo da escravidão,
abrindo novos arranjos de vida, alterando até mesmo sua configuração social e cultural.
Proporcionaram, também, reconhecer as práticas culturais autônomas por parte desses
trabalhadores; bem como evidenciou Sidney Chalhoub (2003) como esses sujeitos
pensavam e organizavam seu mundo mesmo sob a violência, as condições adversas do
cativeiro e o descontentamento com as condutas ditadas pela prática cotidiana da
dominação do senhor escravizador.
Tais experiências foram, na realidade, exercícios de criatividade e reinvenção
diante do caos que se manifestava nas vidas desses sujeitos históricos submetidos ao
controle social, econômico e cultural. Além disso, essas ações que demonstraram a
possibilidade de mobilidades espaciais e até sociais, resistências, enfrentamentos e
acomodações não podem continuar sendo entendidas ora como exceção ora como
bondade do senhor, devendo ser percebidas como possibilidades de conquistas e
reinvenção de experiências de vida. Conforme afirmou Sidney Chalhoub (2003), “os
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negros tinham suas próprias concepções sobre o que era o cativeiro justo, ou pelo menos
tolerável” (CHALHOUB, Sidney, 2003, p. 27), e, principalmente tinham uma visão
própria do significado da liberdade do corpo e da mente, mesmo que imperfeita.
Penso que este trabalho possa contribuir fortalecer estabelecer a relação entre o
presente e o passado, permitindo a compreensão de que a educação dos negros hoje
também pode ser tratada apenas como uma exceção explicitada pelas políticas
educacionais.
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