Fazer dos Mortos Gente de Hoje
Manuel Monteiro na 1ª Pessoa (1879 – 1952)
Carlos Jaca
DIÁRIO DO MINHO 11, 18 e 25 Maio2006
Foi, apenas, há cerca de vinte anos que comecei a descobrir a figura de Manuel
Monteiro, ou melhor, a sua existência, embora possa invocar como atenuante o facto de
não ser natural desta cidade.
Aconteceu que ao leccionar pela primeira vez na Escola Secundária Alberto
Sampaio, no já longínquo ano lectivo de 1983-84, notei, com algum espanto, que as
folhas de exercício utilizadas pelos alunos estavam timbradas no cabeçalho com o
nome de Manuel Monteiro.
Esta situação, tão estranha como confusa, ficou esclarecida, para mim, quando
a Dra. M. Etelvina Nunes de Sá, actual professora da Escola e Presidente da sua
Assembleia e à época Presidente do Conselho Directivo, em introdução a uma breve
mas interessante biografia de Manuel Monteiro afirmava que, em 1977, a então
denominada Escola Técnica Alberto Sampaio, «achou por bem encetar um processo de
mudança do seu patrono, substituindo Alberto Sampaio por Manuel Monteiro. O
processo arrastou-se durante anos no Ministério da Educação, sem nada ser decidido.
Foi retomado em 1984, e em 1985 esteve prestes a ser despachado
favoravelmente, mas, inexplicavelmente, e mais uma vez, ficou metido na gaveta.Desde
então assim permanece, votado ao esquecimento».
Terminando este esclarecimento, a Dra. Etelvina Nunes de Sá refere as razões
invocadas para a mudança de patrono na Escola, apontando para dois argumentos
considerados fundamentais: «Alberto Sampaio, sendo uma figura digna das maiores
homenagens, não era natural de Braga, onde a Escola se situa, e a sua memória já se
encontrava preservada através de um importante Museu com o seu nome em
Guimarães; Manuel Monteiro é um vulto da 1ª. República, com projecção
internacional, bracarense, e o seu nome não estava ainda consagrado como patrono de
qualquer instituição».
No “depoimento” que irá fazer ao suplemento “Cultura” do “Diário do Minho”,
Manuel Monteiro poderá, ou não, se o entender, pronunciar-se sobre essa questão.
Carlos Jaca
1
Curiosamente, em 17 de Março de 2003, e sem atropelar Alberto Sampaio, o
ilustre bracarense “entrou” na Escola e…lá ficou! É a Biblioteca Manuel Monteiro.
Entretanto, coincidindo com a minha entrada na Escola Secundária Alberto
Sampaio, passei a frequentar com alguma assiduidade o Arquivo Distrital e B.P.B. /
U.M. requisitando, por vezes, obras pertencentes à Sala M. M.
Fundamentalmente, as “Notas Bio-Bibliográficas”, elaboradas pelo Dr. Barreto
Nunes, Director da referida Instituição, levaram-me à recolha de novos e variados
elementos sobre o eminente homem público e Mestre de crítica e história de arte, que
foi Manuel Monteiro.Deste modo, passei a ter da sua vida e obra o conhecimento
suficiente para poder afirmar, em consciência, ser grande injustiça que a sua figura
não esteja, ainda, presente num busto, em zona nobre, ou que o seu honrado nome não
esteja perpetuado em qualquer instituição da cidade de Braga, a sua cidade.
«Depoimento» de Manuel Monteiro.
Por motivos óbvios, recorri, com frequência, às opiniões de contemporâneos e
também a pessoas ou instituições, nomeadamente à Biblioteca Pública de Braga / U.
M. e à A S P A, que depois do meu falecimento se interessaram pela minha vida e obra.
Recordo, ainda, as actividades programadas, e cumpridas, pelas referidas instituições,
quando das comemorações do 1º Centenário do meu nascimento.
Apesar de me terem considerado um dos mais ilustres bracarenses de todos os
tempos e que na 1ª metade do século passado fui figura de extraordinário relevo tanto na
vida política da nação, como na investigação e crítica de Arte, no estudo da etnografia e
no Direito Internacional de que terei sido Mestre, nunca de tal me vangloriei.
Quem me conheceu sabia da minha simplicidade; quer nos gestos, quer nas
palavras, quer nas atitudes fui sempre um homem discreto e de sóbria e modesta
maneira de ser.
A minha renúncia ia até à escusa de singelas homenagens.Em 1919 a Câmara
Municipal de Braga deliberou por unanimidade que à Rua Nova de Santa Cruz, onde
nasci e havia de morrer, fosse dado o meu nome.Recusei, embora sensibilizado com a
lisonja da Municipalidade Bracarense e que a simples lembrança dessa iniciativa
saldava «com larga generosidade a dívida contraída com aquele a quem a mesma é
tributada», e que a mais nada me julgava com direito…
Carlos Jaca
2
Todavia, neste caso, tratando-se de um “depoimento,” ver-me-ei obrigado a referir
algumas situações que, julgo, honraram a minha pessoa e obra.
Para este “depoimento” que, por motivos de ordem vária não poderá ser exaustivo,
daí naturais lacunas, considerei três aspectos fundamentais, mesmo indissociáveis, da
minha personalidade: a qualidade de bracarense, intelectual e político. Sabe-se bem
que amei muito a minha terra, o seu património cultural, as suas gentes.Braga sempre
esteve no centro dos meus interesses intelectuais e das minhas preocupações políticas.
Embora a faceta mais perdurável da minha personalidade tenha sido a de critico e
historiador de arte, foi certamente o conjunto multiforme das minhas qualidades e
aptidões, realizadas através dos múltiplos caminhos que percorri, que me tornaram,
dizem, um homem excepcional da minha geração.
Do Colégio do Espírito Santo a Coimbra.
De meu nome completo Manuel Joaquim Rodrigues Monteiro, filho de José
Joaquim Rodrigues Monteiro e de Rosa Maria Pereira Monteiro, abri os olhos à luz do
dia a 29 de Setembro de 1879, no prédio nº 164, da Rua Nova de Santa Cruz, freguesia
de São Victor, da cidade de Braga.
Aqui cresci, fiz estudos preparatórios e convivi, levando uma infância
descuidada.Desse tempo recordo com saudade alguns professores, o Costa Lima e o
João de Deus para os latins e o Costinha para a ciência dos números, bem como os meus
condiscípulos do Colégio do Espírito Santo onde entrei em 1890 e em cujo edifício
funciona, desde o ano lectivo de 1921 – 1922 a Escola Secundária Sá de Miranda.
Recordo, ainda, que à esquerda da Rua de Santa Margarida, perto do Senhor de
Infias, havia uma moça que vendia castanhas assadas.Era a tentação de todos nós…as
castanhas, não a moça, claro, e, por isso, raro dia se passava sem irmos a elas, que por
vezes se regavam com vinho do Herdeiro.
De vez em quando, até se gazeteava, faltando à aula.Então dava-se um passeio
mais largo, para matar o tempo.Ainda me está na lembrança um que demos a
Cabanas.Ao chegar ao portão que dá para a quinta, que então era de um brasileiro muito
simpático chamado Rodrigues, num abrir e fechar de olhos trepei ao cimo do muro que
servia de encaixe ao portão de ferro e de lá arenguei às massas que de baixo,
Carlos Jaca
3
boquiabertas, admiravam a minha eloquência de futuro tribuno e parlamentar, que
jamais sonhara vir a ser.
Todos os condiscípulos me tratavam por Monteirinho, mas era o Vieira aquele
que mais privava comigo, chegando a apresentá-lo a familiares meus, como foi o caso
de meu tio marceneiro, especialista em conserto de carruagens, que morava em
Guadalupe, nas primeiras casas depois do Campo Novo, e que visitávamos com
frequência sobretudo porque na mesma casa existia uma pequena fábrica de elásticos e
nós íamos lá comprá-los para fazer fisgas.
Também o apresentei a um outro tio, que estivera nos Brasis, e era muito meu
amigo, encontrando-nos com frequência debaixo da Arcada, junto ao café Faria, onde
hoje está o Astória.
Depois a vida separou-nos, Coimbra seria o meu próximo destino.
Apesar de ter apenas dez anos, idade com que entrei para o Colégio do Espírito
Santo, dei-me conta da situação conturbada que se vivia no País.
Nesse ano, em 11 de Janeiro de 1890, o Ultimatum britânico ao Governo de
Lisboa provocou uma vaga nacional de indignação contra a Inglaterra e contra a
submissão e o servilismo da Monarquia face à coroa inglesa, registando-se
manifestações e tumultos aqui e além.
Em Braga, os estudantes estiveram em plano de evidência.Criaram-se comissões
com diversos objectivos, enviaram-se telegramas ao Chefe do Estado e aos estudantes
de Lisboa, Porto e Coimbra manifestando total apoio pelas suas patrióticas decisões.
A 13 de Fevereiro, no Teatro S. Geraldo (onde está hoje o Banco de Portugal) a
Academia bracarense deliberou, correspondendo às propostas feitas ao País pelo célebre
e combativo poeta Guerra Junqueiro, não realizar os tradicionais festejos carnavalescos,
propondo em substituição a «realização de um cortejo cívico para proclamar bem alto, e
publicamente, o luto na nação perante o procedimento vil da Mesquinha Albion»
Cerca de um ano depois, em 31 de Janeiro de 1891, eclodiu no Porto a primeira
revolta republicana.Embora sufocada, serviu para revelar a existência de uma ameaça
real às instituições vigentes.
Sete anos depois, em 12 de Outubro de 1898, concluídos os estudos secundários,
tive acesso à 1ª matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.Nesta
cidade, e por recomendação de meu primo, Rocha Peixoto, relacionei-me com António
Augusto Gonçalves, professor, pintor, escultor, arqueólogo e notável crítico de arte,
cuja casa passei a frequentar e me introduziu no seu círculo de amigos, iniciando-me no
Carlos Jaca
4
estudo da arte românica.Aquele meu primo, arqueólogo e etnógrafo, foi, sem dúvida,
uma das pessoas que maior importância tiveram no meu futuro desenvolvimento
intelectual dando-me a conhecer o mundo inexplorado da etnografia portuguesa.
A partir do ano lectivo de 1903-1904 passei a viver na “2ª República do Norte”, na
Rua de Sub-Ripas, aí convivendo, entre outros, com Alberto Feio, Domingos Pereira e
Justino Cruz, bracarenses que vieram a desempenhar acção relevante na cidade, na
região e no País durante a 1ª República.Outros companheiros, eram Carlos Olavo, Sousa
Pinto, Luís de Almeida Braga, a figura lendária que foi o Pad-Zé, etc.
O ambiente de Coimbra, tal como aconteceu com a “Geração de 70”, não poderia
ter deixado de influenciar a minha formação intelectual e cívica, que se foi consolidando
até ao advento da República.
Durante o curso colaborei no jornal republicano conimbricense “Resistência”,
dirigido por Quim Martins e colaborei na revista “Arte e Vida” de cuja direcção fazia
parte com João de Barros e Manuel Sousa Pinto.
Em Abril de 1905 fui admitido como sócio do Instituto de Coimbra e, em Junho
do mesmo ano, concluía o curso de Direito, sendo aprovado “simpliciter”no último
exame.Era o meu regresso a Braga.
Mentor das ideias republicanas. Intervenção na actividade política.
Concluída a formatura e de novo instalado na terra natal, e montando banca de
advogado no Campo da Vinha, o ano de 1905 iria marcar o início da minha projecção
pública.
Braga era, por este tempo, uma pequena cidade de província mergulhada numa
tradição de marasmo e imobilismo.A população da cidade andava pelos vinte mil
habitantes e a tendência do crescimento era de lentidão.Centro de uma região rural
com elevado índice de emigração para o Brasil, não havia na cidade um espírito de
abertura às correntes do progresso e do fomento cultural.
Considere-se, no entanto, que ao lado de manifestações obscurantistas, também as
havia já de progresso e de sentimentos de fraternidade social.
Registo que, em 1903, quando ainda me encontrava em Coimbra, realizou-se em
Braga um congresso operário socialista internacional.Este era o III Congresso GalaicoPortucalense, o I fora realizado em Tuy (1901) e o II em Viana do Castelo (1902).
No de Braga, efectuado entre 20 e 26 de Abril, estiveram presentes 47 associações
Carlos Jaca
5
portuguesas com mais de sete mil associados, e 30 espanholas com cinco mil.As sessões
realizaram-se no Teatro de S. Geraldo, e a sua organização esteve a cargo da Associação
das Operários Chapeleiros, que era ao tempo o grande organismo sindical dos
trabalhadores bracarenses.Nas conclusões do congresso reclamava-se a diminuição das
horas de trabalho nas fábricas e oficinas.
O movimento operário era já intenso em Braga no princípio do séc. XX.Havia um
forte movimento associativista local, que era animado pelo apoio dos trabalhadores do
Porto.Aos domingos vinham de lá comboios repletos de empregados comerciais, que se
espalhavam na cidade a propagar as ideias novas, como então se dizia.Além da grande
Associação dos Chapeleiros, havia também, organizado pelo Centro Socialista local, a
Associação das Quatro Artes da Construção Civil, com Cooperativa anexa.O grande
mentor do movimento operário português, que foi Azedo Gneco, e o grande animador
Felizardo Lima vieram várias vezes a Braga promover conferências públicas.Pode
dizer-se que a vida cultural e intelectual de Braga era animada predominantemente pelo
movimento operário.Por influência da “Voz do Operário” de Lisboa, organizou-se em
1904 o Centro Operário de Braga, que se propunha criar algumas escolas e chegou a
manter uma Universidade livre destinada principalmente a trabalhadores
Foi neste ambiente, já um tanto ou quanto agitado, que eu, como outros jovens
intelectuais burgueses, me liguei ao movimento popular da minha terra natal,
colaborando nas iniciativas culturais dos operários bracarenses.
Devo dizer que, ainda na juventude, revelei o meu interesse pelos problemas
sociais e pela questão da governação do país, intervindo em movimentos de propaganda
política.Naturalmente, a minha formação intelectual e ideológica conduzir-me-iam à
aceitação da doutrina republicana que então se radicava no espírito da camada
intelectual e da pequena burguesia. Foi assim que, com o início da minha actividade
profissional de advogado, me tornei um dos mentores das ideias republicanas no
meio social bracarense.
Confrontando-nos com a hostilidade persistente dos meios sociais dominantes,
mas em contrapartida apoiados pelos sectores populares da cidade e, no meu caso, bem
relacionado em Coimbra e no Porto com vultos notáveis da corrente republicana fui,
com Domingos Pereira, Simões de Almeida, Justino Cruz, Manuel de Oliveira,
Alberto Feio e outros, um dos organizadores locais do Partido Republicano que então
passou a ter aqui em Braga, as suas próprias estruturas.
Carlos Jaca
6
Como já referi, o ano de 1905 iria marcar o início da minha projecção pública.De
facto, foi nesse ano que se realizou o primeiro comício republicano em Braga, nos
terrenos da Cruz de Pedra, onde até há alguns anos se encontravam instalados os
Serviços Municipalizados, tendo sido orador juntamente com o Eduardo de Abreu e o
Sousa Fernandes.
No ano seguinte participei activamente em vários comícios de propaganda
republicana merecendo, por isso, os elogios de Bernardino Machado que me foram
endereçados por carta datada de 21 de Dezembro de 1906.
Neste mesmo ano, foi promovida a fundação do Centro Republicano com sede
inicial no Campo de Touros, hoje Praça do Município, tendo sido eleito Presidente da
Comissão Municipal de Braga do Partido Republicano e membro de um grupo de
“resistência, propaganda e acção.”
Efectivamente, a minha intervenção na actividade política não se limitava ao
exercício da palavra em que aliás, dizem, era exímio.Assim, e ainda no ano de 1906,
disputei as eleições municipais de Braga numa lista do partido republicano, em que
participaram o advogado João José de Freitas, o médico Custódio Pereira, o negociante
Bento de Oliveira, os farmacêuticos José Fernandes de Macedo, Henrique José Alves e
ainda outros conterrâneos.
Como era possuidor de uma palavra fácil e calorosa, e com alguma atracção
pessoal, fui ganhando adesões sempre crescentes, o que me estimulava a preparar e a
intensificar grandes manifestações republicanas em Braga no período final da
Monarquia – o comício de Março de 1908, presidido por António José de Almeida, e o
de Agosto presidido por Alfredo de Magalhães.
No ano seguinte, ao mesmo tempo que actuava como político, como advogado
reclamava a favor do concelho de Amares, reivindicando a propriedade pública das
águas termais de Caldelas.
Em finais de Agosto de 1910 ocorreram as últimas eleições antes da queda do
regime monárquico o que, ao fim e ao cabo, era mais que previsível, era fatal.Comigo,
eram candidatos pelo Círculo de Braga, António Martins de Sousa Lima, João Caetano
de Fonseca Lima, José Joaquim de Oliveira, Joaquim de Sousa Fernandes e José
Summavielle Soares.
Numa sessão de propaganda que antecedeu as referidas eleições, afirmei esperar
«que todos os cidadãos votem no próximo dia 28,não como carneiros ou cousas, como
Carlos Jaca
7
são a maioria dos monarchicos, mas como homens perfeitamente conhecedores das
suas responsabilidades nesta hora tremenda».
A 1 de Setembro o “Radical” órgão oficioso do Centro Escolar Bernardino
Machado, anunciava, ou prenunciava, que «a velha monarchia toca a finados porque a
republica está em marcha.Viva a REPUBLICA! Para que viva a PATRIA»!
Assim foi.Em 5 de Outubro de 1910, enquanto o rei se refugiava em Inglaterra, a
República era aclamada oficialmente na Câmara Municipal de Lisboa sendo depois
proclamada telegraficamente ao resto do país, onde se aceitou sem grandes problemas o
novo regime político, verificando-se apenas a mudança de algumas personalidades e a
conversão de outras à nova situação.
1º Governador Civil de Braga após o advento da República.
A Revolução de 5 de Outubro de 1910 veio assim encontrar o povo da cidade de
Braga predisposto para aceitar o novo regime.
Logo que o Dr. Domingos Pereira trouxe da capital a notícia da implantação da
República, fui nomeado Governador Civil do Distrito aguardando comunicação de
Lisboa para tomar posse, visto o último Governador Civil da Monarquia, Dr. Ferreira
Botelho, assim o pedir – não queria abandonar o seu posto sem ordens superiores o que,
naturalmente, compreendi.
Instalando-me no dia 6 de Outubro no Grande Hotel, que existiu na Avenida
Central, fui alvo de grandiosas manifestações populares, tomando posse do cargo no dia
seguinte, posse que me foi conferida pelo Comandante da 5ª Brigada Militar, fazendo
guarda de honra uma força de Infantaria 8 com a respectiva banda.
Ao mesmo tempo Domingos Pereira era designado Administrador do Concelho
dando posse, no dia 8 de Outubro, à nova Comissão Administrativa da Câmara
Municipal que era constituída por Francisco José de Faria, Francisco Baptista da Silva,
Alberto Feio, Luís Augusto Simões de Almeida, Miguel Menezes Ribeiro Braga, José
Fernandes Macedo e Domingos Palha. O Domingos Pereira viria a acumular o cargo de
Presidente da Câmara, enquanto Justino Cruz era o novo secretário do Governo Civil.
Desempenhei o cargo de Governador Civil durante mais de dois anos, até Março
de 1913. Apesar dos tempos conturbados e incertos do novo regime, não obstante as
dificuldades inerentes a um período de profunda mutação política e social, dizem que a
minha actuação no exercício do cargo foi notável, eu diria antes, equilibrada e prudente.
Carlos Jaca
8
Não me inclinei nunca em excesso para um lado ou para o outro, não agravei
ninguém, não cultivei o dogma, não bajulei as “elites”, mas também não pactuei com a
“rua” embora a não desprezasse nem blasfemasse contra ela. Servi a minha terra com
carinho bairrista. Pretendi ser atencioso com todos, diligente na resolução dos
problemas resultantes das circunstâncias, protector constante dos humildes e defensor
incansável do património histórico e cultural.Foi através de uma nobre conduta de
homem sério e leal, que pude superar, ou anular, tanto a oposição dos adversários
políticos como as intrigas de alguns correligionários mesquinhos.
Logo à partida surgia uma situação de alto melindre.
Uma vez implantada, a República identificava-se com a luta contra a
Igreja.Todas as Ordens Religiosas seriam expulsas. Em Abril de 1911, Afonso Costa
determinava a Lei da Separação da Igreja e do Estado. Desde já, esclareço que, nesta
questão de anticlericalismo, não líamos todos pela mesma cartilha, é que havia
republicanos e … republicanos!
Pela minha parte, obviamente apoiado por outros republicanos, nomeadamente o
Domingos Pereira, estive sempre sensibilizado para a questão religiosa procurando,
dentro do possível, evitar ou diminuir alguns dos graves prejuízos que as leis
anticlericais de Lisboa provocavam no território bracarense.
Assim, a 11 de Outubro, recebi, cordialmente, o Arcebispo de Braga, D. Manuel
da Cunha, que me apresentou cumprimentos, retribuindo-lhe a cortesia no dia seguinte.
Igualmente, recebi uma comissão enviada pelo Cabido.De facto, e sem hipocrisias,
pretendíamos, aqui em Braga, criar um clima de entendimento.
Embora o Arcebispo tivesse enviado ao titular da Justiça um ofício, em que
manifestava a sua adesão à República, e tivesse aconselhado o clero bracarense, através
de uma pastoral, a adaptar-se à nova conjuntura política, a extinção das Ordens
Religiosas e Colégios onde estudavam centenas de estudantes, Colégio do Espírito
Santo, Colégio do Sagrado Coração de Maria, Seminário de Montariol, Colégio de S.
Tomás de Aquino e Colégio Inglês, estava em marcha.
Em face da forte oposição a esta medida governamental parti para Lisboa, a 20 de
Outubro, acompanhado do Administrador do Concelho, Domingos Pereira, a fim de,
entre outros assuntos a tratar, dialogarmos com o Governo acerca do decreto de
expulsão das referidas instituições.
Carlos Jaca
9
Numa altura em que o Governo Provisório anunciava a Lei da Separação da Igreja e do
Estado, receando-se em Lisboa a reacção do sector clerical de Braga, o jornal “O
Século” sabendo da nossa presença na capital, entrevistou-nos (24/10/1905) a esse
respeito.
Sobre essa questão, respondi ao jornalista que «o fanatismo de Braga não é bem o
que se imaginava; e quanto ao clero minhoto não se importa com isso, todos acatarão
bem a nova situação desde que os não prejudiquem economicamente». E, acrescentei,
que «o poder constituído seria exercido com toda a benevolência e com o mais intenso
respeito pelos sentimentos e pelos direitos de cada um».
A questão religiosa prosseguiu durante os anos de 1911, 1912 e 1913.
No entanto, muita gente reconhecia a necessidade de uma situação diferente, que
suavizasse as relações entre a República e a Igreja. Bernardino Machado, quando
Presidente do Ministério pela 1ª vez, 1914, (tutelava eu a pasta da Justiça), pronunciouse a favor de um entendimento e actuou nesse sentido.
Ainda a propósito da questão religiosa, logo no início do meu mandato, devo
referir o apoio e a protecção concedida ao Colégio da Regeneração, fundado em Braga
por Monsenhor Airosa.
Existe um manuscrito, que presumo ser de Monsenhor Airosa, ou pelo menos do
seu total conhecimento, onde se pode ler o seguinte: «Quando se proclamou a
República em Portugal, era então governador civil em Braga Manuel Monteiro. (…)
Nessa ocasião o Padre Director do Colégio foi entender-se com o snr.Governador Civil
e mostrando-lhe a necessidade que tinha das religiosas e o bom resultado moral e
social dos seus serviços – (Manuel Monteiro) não insistiu, calou-se como que fechou os
olhos; e elas foram ficando no Colégio. (…) Ao bondoso Coração de S. Ex.ª deve o
Colégio a sua conservação e progressos».
O apoio que dei ao Colégio não se limitava apenas ao aspecto institucional ou
moral, porquanto ao visitá-lo deixava sempre um donativo, muitas vezes do meu bolso e
o Colégio acabou…por não ser extinto.
Já não recordo bem, mas os franciscanos de Montariol, embora obrigados a
deixar o seu Colégio após a República, foram autorizados a levar uma boa parte dos
seus bens móveis.Diz o investigador bracarense, Eduardo de Oliveira, que «é bem
possível que aí tivesse havido a mão e o bom senso de Manuel Monteiro».
O período durante o qual exerci o cargo de Governador Civil não foram tempos
fáceis, e não o poderiam ser em tal conjuntura. Curiosamente, nem sempre eram os
Carlos Jaca
10
opositores ao regime a provocar e a complicar as situações, mas sim os próprios
republicanos e a tal ponto que, por duas vezes, cheguei a pedir a demissão do cargo.
A primeira sucedeu em Março de 1912, quando da tentativa de realização de uma
sindicância ao Administrador do Concelho, tendo, para o efeito, vindo a Braga o
Secretário do Ministro do Interior. Perante o facto, despropositado, e que tomei como
uma desconsideração, a sindicância não se realizou e, então, retirei o pedido de
demissão.
O segundo pedido de demissão sucedeu a 10 de Fevereiro de 1913,devido a uma
luta que travei contra a transferência do Arquivo Episcopal para Lisboa, o que se
acontecesse seria uma perda irreparável para a nossa cidade.
Júlio Dantas, encarregue de fazer o levantamento do acervo existente no Arquivo
do Cabido da Mitra da Sé Catedral, pretendia transferir o referido espólio para a Torre
do Tombo.
Este propósito pôs toda a cidade em polvorosa, provocando uma onda enorme de
adesão e protesto, republicanos, membros da Igreja, associações de comerciantes e
industriais, Governo Civil, apoiados por enorme movimento popular.
O caso chegou mesmo a ser levado ao Parlamento. Domingos Pereira, deputado
por Braga, em sessão de 7 de Fevereiro de 1913, enviou para a mesa uma representação
aprovada num comício em Braga contra a saída dos arquivos para Lisboa, afirmando
que a referida representação não ia assinada por todos os habitantes da cidade «porque
tal era materialmente impossível, mas a vontade d’elles está alli bem expressa».
O certo é que o Governo acabou por ter o bom senso de voltar atrás em tal
proposta, os arquivos continuaram em Braga, a minha demissão não foi aceite e a 17
de Março fui alvo de uma manifestação de apoio por parte do sector conservador da
cidade.
Precisamente dois meses depois fui exonerado do cargo de Governador Civil, por
via de ter sido nomeado Juiz do Supremo Tribunal Administrativo. A parti daí, e até ao
regresso definitivo a Braga em 1939,a minha vida iria sofrer profundas modificações.
Porém, apaixonado por tudo quanto dizia respeito à minha terra natal, e antes de
prosseguir o relato da minha passagem por Lisboa (1913-1916) e Egipto (1916-1940),
permitam-me, por uma questão da mais elementar justiça, recordar um bracarense a
quem a cidade muito deve – refiro-me ao Tenente – Coronel Albano Justino Lopes
Gonçalves a quem, nas cartas enviadas de Alexandria, sete das quais quando já se
encontrava à frente da Confraria do Bom Jesus, eu tratava por “Albaníssimo”.
Carlos Jaca
11
Lopes Gonçalves merece ser recordado porque deve considerar-se como um dos
grandes renovadores de Braga, cuja série costuma ser encabeçada pelo famoso
Arcebispo D. Diogo de Sousa.
No início de 1912, procurei Lopes Gonçalves e pedi-lhe que aceitasse a
presidência de uma comissão administrativa destinada a substituir a que vinha
administrando o Município desde o advento da República e que, já por mais de uma
vez, havia manifestado o empenho de ser substituída.
Aceitou, (presidiu à Câmara de Braga desde 6 de Dezembro de 1912 a 15 de
Julho de 1915) e eu acertei no homem preciso para dinamizar a vida da cidade e do
seu concelho, resolver-lhe os problemas e delinear-lhe um futuro que a caminho de
meaados do século se mostrasse digna da sua rica e milenar história.
Lopes Gonçalves tinha antecedentes, já havia dado sobejas provas de larga
capacidade empreendedora à frente de um município do Ultramar, visto que fora
Presidente da Câmara de Lourenço Marques o que lhe valeu o ser agraciado com o
hábito de Santiago, em Novembro de 1904. Note-se que logo ao terminar o seu curso,
na Escola do Exército, seguiu para Moçambique onde exerceu vários cargos públicos
sempre com a maior eficiência e distinção.
Além do mais, Lopes Gonçalves ficou com o cargo da Secretaria e Obras, sendo
aí, justamente, que se revelou o carácter inovador de um dos mais distintos edis da
cidade de Braga.
O seu bem elaborado programa de acção patenteia-se no curto período de pouco
mais de dois anos, em que imprimiu à cidade fisionomia condizente com o século XX:
foi a abertura da Avenida Central, novos arruamentos e ajardinamentos, a construção
do mercado, os transportes urbanos por tracção eléctrica, a conclusão das obras de
abastecimento de água à cidade, iniciadas ao tempo da presidência do Dr. Domingos
José Soares, modificação do sistema de iluminação pública tornando-o misto, pelo
emprego da luz eléctrica nos pontos mais centrais e importantes da cidade, e por gás
nos restantes. Também lançou um plano de construção de casas económicas a que deu
o nome de”bairro social”, mas apenas se concluíram duas, ao cimo da Rua do Taxa.
Obviamente, que o plano traçado para o projecto de Braga não era isento de
erros. Foi o caso do novo mercado, ou melhor, a sua localização, uma vez que não teve
em conta os dois belos edifícios, Câmara Municipal e Paço dos Arcebispos que
ornavam a velha Praça do Pão ou Campo de Touros.Diga-se, em abono da verdade, que
neste ponto Lopes Gonçalves terá falhado, mas a obra levantada por ele na cidade é de
Carlos Jaca
12
tal maneira valiosa que o erro da implantação desse mercado que, de resto era uma
construção funcional e não destituída de beleza, fica inteiramente absolvido.
Por último, uma faceta curiosa do “Albaníssimo” – o culto da música que o
acompanhou toda a sua vida.Poderei até afirmar, e prestando-lhe justiça, que Lopes
Gonçalves foi o percursor do Conservatório de Música de Braga, já que idealizou, em
1914, a criação de uma Escola Municipal de Música. Numa carta que escreveu ao
“Correio do Minho” e publicada em 24 de Julho de 1929, atribuía a essa escola o ensino
dos rudimentos de música e de solfejo dos instrumentos de corda e dos instrumentos
mais usuais das madeiras e dos metais.
Só muito mais tarde, já depois do meu falecimento, na década de sessenta se
concretizaria a escola de música em Braga com a fundação do Conservatório, graças à
acção da musicóloga D. Maria Adelina Caravana Rigaud de Sousa.
Julgo que, embora muito sinteticamente, foi justo e oportuno recordar este ilustre
bracarense cuja memória parece ter caído no esquecimento.
Juiz do Supremo Tribunal Administrativo.Ministro da Justiça.
Ministro do Fomento. Presidente da Câmara dos Deputados.
Antes de me fixar em Lisboa, recebi dos meus conterrâneos provas de grande
estima e consideração e manifestações de carinho, que muito me sensibilizaram. Aliás,
as minhas visitas pelos concelhos do Distrito eram sempre festivas e geralmente
rodeadas de apoios de simpatia.
Recordo o banquete de despedida realizado a 13 de Julho no Teatro de S.
Geraldo, contando com mais de duzentas pessoas, entre as quais um representante do
Dr. Afonso Costa, chefe do Partido Republicano, o partido dominante da 1ª República.
Nesta confraternização, entre os muitos elogios, tocou-me, particularmente, a
nota bairrista dada por Lopes Gonçalves, o “Albaníssimo,” quando a determinada altura
do seu discurso, afirmou: «Perdemos um governador civil excelente, que era a honra
da República, mas lucramos com o advogado junto da capital na defesa do
progresso desta cidade».
Já agora, e por achar curioso, reproduzo um apontamento publicado no jornal de
Vieira do Minho, “A Cabreira” (20 / 7 / 1913), comentando o meu processo de
Governador: «com firmeza, calma, decisão e energia – com o melhor dos sorrisos a
Carlos Jaca
13
bailar-lhe nos lábios, muito delicado, muito atencioso – sempre prevenido – de pé atrás
contra a manha hipócrita de uns e os arranjos demagógicos de outros».
Colocado em Lisboa como Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, não
tardou que, ainda nesse mesmo ano, tivesse sido eleito deputado por Barcelos nas
eleições suplementares.
Para além das funções parlamentares, a partir de Fevereiro do ano seguinte,
passei a desempenhar o cargo de titular da Justiça no Gabinete de Bernardino
Machado, não havendo incompatibilidade, uma vez que, segundo a Constituição da 1ª
República, era permitida a acumulação de funções parlamentares com funções
governativas.
A nova modalidade de constituição do Gabinete obrigou a procurar nas massas
partidárias elementos conciliadores, mas que fossem conciliáveis também. Todavia,
tornou-se impossível, porquanto os partidos da Conjunção Republicana (unionista e
evolucionista), ressentidos do predomínio do nosso partido, recusaram colaborar num
Ministério com participação interpartidária que implicaria o regresso de elementos
democráticos ao Poder. Contudo, o novo Gabinete ficava definitivamente constituído a
9 de Fevereiro
Com a Presidência, Bernardino Machado chamou a si a pasta do Interior e
interinamente a dos Negócios Estrangeiros. As restantes distribuíram-se por quatro
extrapartidários e por três democráticos em que me incluía eu, sobraçando a já referida
pasta da Justiça.
Damião Peres, um dos maiores historiadores portugueses, afirma que de todos os
componentes do Gabinete «se podia dizer serem intelectualmente e profissionalmente
assinaláveis. Manuel Monteiro, historiador de arte românica portuguesa, era um
considerado jurista, que, já sendo Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, viria a sêlo nos Tribunais Internacionais do Egipto».
No dia seguinte à posse, a 10 de Fevereiro, o Gabinete fazia a apresentação
parlamentar, tendo Bernardino Machado, Presidente do Ministério, declarado ser
intenção do Governo promover quantas medidas fossem necessárias à acalmia dos
espíritos, e entre elas, como primeira, a promulgação de uma lei de amnistia
beneficiadora dos acusados de crimes políticos contra o regime.
O esboçado programa ministerial incluía também a revisão da Lei da
Separação, «mantendo a supremacia do poder civil, mas também os direitos
Carlos Jaca
14
invioláveis das crenças religiosas», e a reforma do estatuto das classes laboriosas.Era
um programa de pacificação, que por um lado procurava estabelecer um clima de
convivência com os adversários do regime, e por outro, atenuar o antagonismo
manifesto com o sindicalismo operário.
De facto, desde logo, as atenções do Gabinete se voltaram para o problema
reputado mais urgente, o da amnistia. Assim, em 19 de Fevereiro, como Ministro da
Justiça apresentei na Câmara dos Deputados, em nome do Governo, a respectiva
proposta de lei.
Embora acaloradamente discutida por numerosos oradores, a proposta passou a
lei com inusitada celeridade. Imediatamente promulgada pelo Presidente da República,
a lei amnistiadora tornou-se executiva em 22 tendo sido publicada em suplemento do
Diário do Governo do dia 21, no desejo ministerial de antecipar o mais possível, mesmo
só por algumas horas, a libertação dos presos políticos.
A revisão à Lei de Separação da Igreja e do Estado iria, finalmente, possibilitar a
reabertura de vários templos e o regresso ao múnus episcopal de vários bispos e
sacerdotes emigrados desde 1910, como era o caso do Bispo do Porto, D. António
Barroso e do Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo.
Considere-se, ainda, a legislação no sentido de fomentar prédios de renda
económica, liberalização das associações de classe, contratos colectivos de trabalho
proposta do deputado socialista Manuel José da Silva e o ensaio de uma reforma do
ensino primário (8 de Junho), quinze dias antes da minha demissão.
Efectivamente, exerci o cargo de Ministro da Justiça, apenas, entre 9 de
Fevereiro e 22 de Junho de 1914.
A discordância com Bernardino Machado esteve na origem do meu pedido de
demissão.
O caso era o seguinte: tratava-se da concessão de direitos de instalação de uma
central hidroeléctrica nas Portas de Ródão a um grupo de quatro engenheiros, do qual
fazia parte António Maria da Silva, destacado vulto do partido democrático. A
concessão tinha sido atribuída em 28 de Março de 1914.
Em meados de Junho levantou-se contra ele grande campanha, ao abrigo do
art.º21 da Constituição nos termos da qual «deputados ou senadores não podiam fazer
parte de administrações de empresas ou sociedades constituídas por contratos ou
concessão especial do Estado ou que hajam deste privilégio» … O ataque era sobretudo
contra o partido democrático.
Carlos Jaca
15
Na Câmara dos Deputados a discussão foi acirrada. António Maria da Silva
chamou canalha a um deputado, e este, por sua vez, chamou-lhe tolerado o que levou o
deputado democrático a tentar tirar desforço! As galerias intervieram na contenda e
deram morras ao Afonso Costa. Nos Passos Perdidos houve bofetões. Toda a gente
andava armada.
Francamente esta não era a minha “guerra,”por isso não tardaria a abandoná-la
em breve e definitivamente.
Em 23 de Junho Bernardino Machado formava novo Governo com os ministros
do anterior, excepto os três do partido democrático: eu, Tomás Cabreira e Aquiles
Gonçalves. A minha saída do Governo levou à organização de um jantar de homenagem
que se realizou, ao terminar as férias de Verão, em 29 de Setembro.
Antes de findar o ano de 1914, em 18 de Dezembro, talvez pelo meu bom
relacionamento e capacidade de diálogo quer com correligionários, quer com
adversários políticos, fui eleito Presidente da Câmara dos Deputados.
Entretanto, em Agosto eclodira a 1ª Grande Guerra Mundial.Era necessário
defender as colónias, militarmente das arremetidas alemãs e diplomaticamente das
arremetidas britânicas, alegando neste caso a secular aliança.
Interesse nacional, interesse colonial e interesse republicano apontavam para a
intervenção na guerra ao lado dos Aliados. Neste aspecto, nós, os Democráticos, e os
Evolucionistas estávamos de acordo. Já os Unionistas, e com eles muitos dos
monárquicos e clericais, pensavam o contrário ou, pelo menos, queriam esperar por uma
melhor compreensão do desenlace do conflito.
De qualquer modo, os militares passaram a desempenhar um importante papel
na vida política portuguesa.
Foi assim que no mês seguinte ao da minha eleição para Presidente da Câmara
dos Deputados, ou mais precisamente a 28 de Janeiro de 1915, o Presidente da
República, Manuel de Arriaga resolveu intervir, realizando aquilo que se pode chamar
um autêntico golpe de Estado. Arriaga provoca a demissão do Governo e confia ao seu
amigo pessoal, General Pimenta de Castro, a Presidência, que acumula com a função
de Ministro da Guerra, e o encargo de organizar ministério. Pimenta de Castro entregou
sete das nove pastas a oficiais do exército e da marinha, facto sem precedentes.
Carlos Jaca
16
Era um golpe anticonstitucional desferido contra a 1ª República, com o
objectivo de afastar do Poder os partidos políticos republicanos que defendiam Portugal
na Guerra, ao lado das potências aliadas.
O novo Governo constituído à sombra da Presidência da República (Manuel de
Arriaga), precisava, para lograr os seus fins, de atingir o outro órgão de soberania que
era o Poder Legislativo.
A 20 de Fevereiro as eleições foram adiadas “sine die.” A 24, saía a nova lei
eleitoral, em que só a tenaz resistência dos outros ministros impediu Pimenta de Castro
de implantar o sufrágio universal, uma das suas ideias favoritas de inventor de sistemas
eleitorais. A 27 de Fevereiro, depois de receber uma manifestação de apoio por 600
oficiais, anunciou que o Congresso da República já não abriria na data prevista.
Apesar da proibição persistimos em reunir o Parlamento como estava marcado
para o dia 4 de Março. Em S. Bento fomos recebidos pela G. N. R. e quando, como
Presidente da Câmara dos Deputados pretendia entrar, o comandante impediu-me, bem
como o senador Bernardino Machado, o General Correia Barreto, então Presidente do
Senado e outros mais.
Na previsão do que iria acontecer, tinham os parlamentares recebido indicação
para seguir para o Palácio da Mitra, em Santo António do Tojal, antiga residência de
Verão do Patriarca de Lisboa e daí o nome.
Reunidos numa sala, que então servia de escola primária, foram tomadas várias
decisões, entre as quais, declarando o Ministério e o Poder Executivo fora da lei,
negada validade a quaisquer actos ditatoriais do Governo, incitando todos os cidadãos
portugueses, e, especialmente, os funcionários públicos, a não cumprirem alguns dos
decretos, considerando-os nulos e sem efeito algum.
Mesmo sabendo, antecipadamente, ser impotente para fazer prevalecer os
valores que defendia, não prescindi de deixar o meu protesto como testemunho de
dignidade.
Este acto, único nos nossos anais parlamentares, teve um eco enorme no país, e
contribuiu poderosamente para mobilizar as forças políticas e populares contra os
objectivos ditatoriais do Governo.Como era mais que previsível, fui destituído do cargo
de Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, ao mesmo tempo que, eu próprio, requeria
ao Juízo Criminal procedimento judicial contra o Presidente da República, o Presidente
do Ministério e mais quantos, quer como mandantes, quer como executantes, tomaram
parte activa neste acto de violação de um dos poderes do Estado.
Carlos Jaca
17
Estas pendências, porém, não se haviam de resolver pela via normal do Poder
Judicial, porquanto não havia neste caso, independência de poderes. Assim, a partir de 4
de Março já não era possível evitar a prova de força entre os poderes executivo e
legislativo. A solução do conflito entre os órgãos de soberania seria encontrada ao fim
de dois meses por via revolucionária – refiro-me ao levantamento militar e popular de
14 de Maio de 1915 que derrubou o Governo de Pimenta de Castro e levou à renúncia o
Presidente da República, substituído provisoriamente por Teófilo Braga.
O Parlamento reabriu de novo a 27 de Maio e eu fui reintegrado no meu lugar de
Juiz no Supremo Tribunal Administrativo, preparado, eventualmente, para outras
funções no aparelho do Estado o que, de facto, veio a acontecer. Em princípio chegou a
constar que seria nomeado futuro embaixador no Brasil, mas passei a desempenhar o
cargo de Ministro do Fomento, tendo sido também, a 13 de Junho, eleito deputado,
agora, pelo Círculo de Braga.
O cargo da pasta do Fomento, que exerci durante cerca de meio ano, abrangia,
ao tempo, múltiplas atribuições que, mais tarde, passaram a ser distribuídas por
diferentes e novos ministérios: Agricultura, Comércio e Indústria, Comunicações
Obras Públicas e Trabalho.
Logo de início, três ordens de problemas me preocuparam especialmente e
mereceram a minha atenção: o abastecimento; procurando diminuir a carestia de
géneros de primeira necessidade, era tempo de guerra; melhoria das condições de
trabalho, nomeadamente pela fixação das 8 horas em várias indústrias, a proibição do
trabalho nocturno das mulheres nas fábricas e regulamentação de desastres de trabalho
no fomento, a melhoria das termas e centros de vilegiatura. Este último sector já fora
objecto do meu interesse, ainda antes da implantação da República e quando
Governador Civil de Braga.
Na situação de Ministro promovi a ampliação das termas de Melgaço e da Curia,
a construção de arruamentos nas Taipas, a ligação ferroviária de Vidago a Chaves, etc.
Assim, talvez possa dizer que fui um pioneiro do termalismo em Portugal
.Igualmente, promovi melhoramentos em Ponte de Lima, o abastecimento de água à
cidade de Évora, a construção da nova variante da estrada municipal de Guimarães à
Penha, a abertura da estação postal em Arco de Baúlhe, etc.
Durante a minha administração, chamei para assessor em questões florestais o
engenheiro agrónomo – silvicultor Tude de Sousa, que desde 1904 era o responsável
florestal da Serra do Gerês, e nessa qualidade tinha continuado os estudos que eu
Carlos Jaca
18
iniciara ainda estudante com meu primo Rocha Peixoto. Pouco tempo antes de
abandonar o cargo ministerial, fiz publicar no Diário do Governo um decreto sobre a
arborização do Sameiro e Falperra, o mesmo aconselhando para o Bom Jesus.
Desta minha passagem pelo Governo refiro, ainda, a criação da estação de
vilegiatura do Estoril que, mais tarde, a construção da linha de caminho de ferro veio
transformar numa zona de grande implantação turística, tanto a nível nacional como
internacional.
Foi efémera a minha carreira como homem público.
À medida que se aproximava o final do ano de 1915 não tinha dúvidas de que a
minha carreira política estava por pouco. Sentia o adensar das nuvens sobre o horizonte
da vida social e económica. O levantamento popular contra a carestia de vida e a falta
de géneros ia em crescendo, reagindo cada vez mais violentamente contra o
açambarcamento praticado pelos endinheirados.
Com o início da Guerra na Europa, os interesses populares foram postergados
em favor dos interesses militaristas e colonialistas. Havia mobilizações para fazer
marchar para África contingentes destinados a oporem-se aos ataques alemães, ao
mesmo tempo que se preparava a intervenção portuguesa nas frentes de guerra na
Europa. A política imperialista e militarista não interessava ao povo português, mas
apenas a certas camadas da burguesia estreitamente ligadas à política económica e
diplomática das Grandes Potências.
A 18 de Novembro, o Presidente do Ministério, José de Castro, apresentou a
demissão do seu Governo, tendo sido, de imediato, substituído por Afonso Costa, que
conservou alguns dos ministérios anteriores (Justiça, Estrangeiros, Guerra e Colónias) e
substituindo os restantes, entre eles, o meu, o do Fomento. Esta pasta foi ocupada pelo
Eng.º António Maria da Silva, o “tal”, que já no ano anterior dera motivos à minha
demissão de Ministro da Justiça, por via de ser declarada a inconstitucionalidade do, já
referido, decreto de concessão de direitos de instalação de uma central hidroeléctrica
nas Portas de Ródão. O Eng.º António Maria da Silva veio a ser Presidente do
Ministério por seis vezes, entre 1920 e 1926, e numa delas durante oito dias, 30 de
Novembro a 7 de Dezembro de 1922. Nesses anos, eu já estava em Alexandria mas, de
qualquer modo, nunca me sentiria, decididamente, a ser comparsa em “filmes” de “Far
– West.”
Carlos Jaca
19
Cerca de um mês depois de ter sido exonerado do cargo de Ministro do Fomento
fui nomeado Presidente da Câmara dos Deputados, da qual viria a pedir a demissão um
ano depois.Politicamente, para mim, era o “fim da linha”.
Haja em atenção que o próprio estilo da Primeira República assentava no culto
da personalidade individualista. Os partidos políticos designavam-se mais pelos nomes
dos seus chefes do que pelo ideário e objectivos dos seus programas.Eram os
“afonsistas”, os “almeidistas”, os “camachistas”.
Na verdade, eu era um disciplinado partidário de Afonso Costa, que chefiava o
Partido Republicano, só que Afonso Costa não era só ele, era também toda a camarilha
que o rodeava e que actuava em seu nome, nomeadamente, o irmão Artur Costa.
Acontece que, exactamente, em Janeiro de 1916 um jornal de Lisboa (“A
Capital”, 26 – 1 – 1916) dava a seguinte notícia comentada, sobre a Câmara dos
Deputados:
«Não assistiu hoje à sessão o Sr. Dr. Manuel Monteiro, ilustre presidente da
Câmara dos Deputados.
Pelos seus correligionários, o Sr. Dr. Manuel foi arguido de incorrecto e de
desrespeitador do regimento.
O Sr. Manuel Monteiro não é o presidente que convenha à maioria. Substituamno pelo Sr. Artur Costa. Este sim… deve ser pau para toda a obra» …
Nem o meu temperamento, nem a minha formação, me predispunham para os
jogos da luta pela conquista do poder que então se travavam. Acomodava-me melhor ao
ambiente de estudo e ponderação. Por isso… preparei com dignidade a minha discreta
retirada, e a 8 de Novembro comuniquei à Câmara dos Deputados a renúncia do meu
mandato por ter de me ausentar do país «a fim de desempenhar, em comissão de
serviço, o cargo de Juiz nos Tribunais Internacionais do Egipto», para o qual já fora
nomeado
Em relação ao ano de 1916 posso, ainda, referir que em 23 de Março fui
admitido como sócio correspondente da Academia Real das Ciências, cuja
candidatura foi apresentada por Henrique Lopes de Mendonça, autor de “A
Portuguesa”, hoje Hino Nacional, cuja música é de Alfredo Keil
No mês seguinte fui homenageado no Grande Hotel de Itália, no Monte Estoril,
promovido por dirigentes da Associação Industrial, da Associação Comercial e da
União da Agricultura, Comércio e Indústria e onde estiveram presentes individualidades
da alta finança.
Carlos Jaca
20
Não foi fácil convencerem-me a aceitar tal manifestação de apoio. Ao mesmo
tempo que me homenageavam por algumas providências que porventura os tivessem
beneficiado, estes homens pensariam, por certo, valer-se do meu prestígio político para
me lançar em novas funções públicas.
Aos brindes agradeci a festa, mas sublinhei que não via motivo nem razão para
ela, pois no Ministério não fizera mais que cumprir o meu dever.
Juiz dos Tribunais Mistos de Massurá e Alexandria (Egipto).
Presidente do Tribunal Internacional de Alexandria (predecessor do
Tribunal Internacional de Haia).
Parti para o Egipto a 11 de Novembro, fazendo a viagem através da Espanha na
companhia de Columbano Bordalo Pinheiro, que me pintou o retrato, e João Barreira.
Na França visitei a Provença e cheguei ao Egipto (Cairo) em Dezembro, instalando-me
em Massurá onde me mantive até 1921, aí exercendo a magistratura judicial nos
Tribunais Mistos do Egipto como representante de Portugal.Em Março do referido
ano sou transferido para Alexandria, continuando como Juiz do Tribunal
Internacional. De 1930 a 1940, data da minha aposentação, fui Presidente do
Tribunal Internacional, eleito pelos meus pares onde também era Juiz o consagrado
jurista Prof. Machado Vilela, especialista em direito internacional privado e que tinha
sido professor de Oliveira Salazar em Coimbra. O Município de Vila Verde, muito justa
e reconhecidamente, ergueu-lhe uma estátua em sua homenagem no jardim ao lado do
Tribunal da Comarca.
Ausente no Egipto durante 24 anos e embora sempre atento e interessado em
tudo o que se passava no meu país, que todos os anos visitava, jamais voltaria a
desempenhar qualquer função política.
Em 1923, numa situação de crise política, (aliás estas situações eram “normais”)
o meu nome voltou às parangonas dos jornais (“Diário de Lisboa”, 28-6-1923)
lembrado como eventual candidato à Presidência da República. Jugo ter-se tratado de
uma lembrança de amigos de Lisboa e Porto, a que eu era completamente estranho.
Já agora posso referir mais duas situações, depois do meu regresso definitivo a
Portugal.Embora mantivesse a minha coerência política afastei-me sempre do
intervencionismo activo e da promiscuidade dos velhos políticos.
Carlos Jaca
21
Acontece que em 1945, no final da 2ª Grande Guerra e na sequência da derrota
dos exércitos nazi-fascistas que haviam devastado a Europa, em Portugal surge em
Outubro o MUD, Movimento de Unidade Democrática.
Em Braga ia realizar-se um comício de apoio às reivindicações de eleições
livres.Desse comício um dos promotores era o, então, jovem Victor de
Sá.Demonstrando, já nessa altura, inegáveis qualidades que o viriam a projectar como
grande
referência
panorama
político
no
e
cultural português, foi a este
jovem bracarense que eu
enviei
de
Lisboa
um
telegrama de adesão e apoio à
iniciativa.
Não
estive
presente, mas também não
me mantive indiferente.
Três anos depois, em
1948, ao ser proposta a
candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, candidatura
oposicionista, os políticos locais do meu tempo não acreditavam que eu viesse a ter
intervenção no processo. Depois de analisar a situação com outros amigos, não hesitei
em subscrever o processo de propositura a entregar no Supremo Tribunal
Administrativo.
A este propósito, devo dizer que nunca pus em causa a minha fé nos princípios
da República, antes procurei servi-la sempre, e através dela servir Braga, minha terra
natal.Porém menos sólida terá sido a minha fé nos homens políticos do meu tempo e
mais, do meu partido.
A cultura, a contemplação estética dos testemunhos artísticos, a investigação
histórica, voltaram a preencher as minhas disponibilidades de espírito e as necessidades
de comunicação humana.
Do que foi, durante quase um quarto de século, em terras egípcias, em reputação
pessoal e prestígio para o país a minha acção, existem vários testemunhos. Destes,
permitam-me, apenas, uma breve referência em minha memória, do Prof., Machado
Vilela: «Onde quer que se manifestasse a sua actividade, o Dr. Manuel Monteiro nunca
deixava de revelar o seu temperamento e a sua intenção de verdadeiro artista. E essa
Carlos Jaca
22
intuição conduziria naturalmente o seu espírito a um conhecimento e a uma penetração
dos factos e das ideias que lhe facilitavam a percepção daquela certeza e daquela
verdade que devem constituir o fundo de toda a certeza judicial, a qual por isso mesmo
se chama veredictum e é tida como expressão da verdade, o que bem traduz o
conhecido adágio jurídico – res judicata pro veritate habetur (coisa julgada deve ser
tida por verdade) … e neste delicado trabalho de investigação e de crítica para a
qualificação precisa dos factos submetidos à apreciação do juiz e para a determinação
rigorosa da regra de direito que os rege, muito auxílio pode prestar a intuição do
verdadeiro significado dos factos e do exacto sentido das leis. E essa intuição tinha em
grau elevado o juiz Manuel Monteiro, o que fez com que ele fosse considerado no
Egipto, não só um juiz amado, mas um juiz seguro».
De facto, diziam, que a minha intuição de julgador faziam de mim um juiz
superiormente seguro e possuidor das grandes qualidades que inspiravam confiança aos
litigantes e firmavam o prestígio dos magistrados.
Durante os largos anos que vivi no Próximo Oriente, e apesar do trabalho e
responsabilidade que o cargo exigia, nunca deixei de manter e aperfeiçoar a minha
vocação de crítico e historiador da arte, bem como ainda arranjar tempo e disposição
para o convívio espiritual com os meus numerosos amigos que se espalhavam pelo país
e por terras do exílio.
Uma dessas relações de amizade, especialmente significativa, foi a que mantive
com Afonso Costa. Conhecia-o bem, nunca deixando de apreciar os seus méritos, a
profunda amizade e a elevada consideração e apreço com que me distinguia.
Correspondi-me com muitos homens de letras, entre os quais, Guerra Junqueiro,
Afonso Lopes Vieira, João Penha, Leonardo Coimbra, Malheiro Dias, Duarte Leite,
Antero de Figueiredo, João de Barros, Ferreira de Castro, João de Araújo Correia,
Joaquim Manso, Alfredo Pimenta, Sousa Costa, Feliciano Ramos e Júlio Brandão.
Historiadores e críticos de arte, como: João Barreira, Joaquim Vasconcelos, José
Figueiredo, Diogo de Macedo, Alberto Feio, Reinaldo dos Santos, Aarão de Lacerda,
Mário Cardoso, Alberto Vieira Braga e Artur Magalhães Bastos.
Como não podia deixar de ser, políticos.Para além do Afonso Costa, já referido,
Bernardino Machado, o meu conterrâneo Domingos Pereira, Alfredo Magalhães, Nuno
Simões, José Relvas, João Chagas, Bazílio Teles, João Soares (pai de Mário Soares) e
António Luís Gomes.
Carlos Jaca
23
O Regresso a Braga.
No ano de 1939, vim do Egipto passar as minhas férias em Braga, como tinha
feito quase todos os anos. Nao vim, porém, directamente para Portugal, detendo-me
alguns dias no sul de França, para fazer uma cura de águas minerais em La Preste,
procurando aí tratamento para um sofrimento que desde há muito me vinha molestando.
Contudo, não só não encontrei os alívios que esperava, mas contraí naquela
estância de águas uma colibacilose tão grave, que pôs a minha vida em perigo.
Entretanto, surgia a 2ª Guerra Mundial, os meus velhos sofrimentos
agravaram-se com aquela doença e, logo que foi possível, recolhi ao Hospital do Carmo,
no Porto, onde me submeti a uma delicada operação de alta cirurgia e onde estive
internado de Janeiro a Maio de 1940.
Como a guerra continuasse, e de Alexandria reclamassem a minha presença no
Tribunal Internacional daquela cidade, do qual era Presidente, e eu mesmo desejasse lá
voltar para completar a minha carreira, pela promoção ao Tribunal de Apelação, que
também funcionava como Tribunal de Correcção, e a hora que passava era uma hora de
grandes incertezas, decidi fazer o meu testamento antes de partir.
A seguir procurei preparar a minha viagem de regresso ao Egipto, tendo ido
nesse intuito a Vichy, onde então se encontrava o governo francês, por a cidade de Paris
estar ocupada pelos exércitos alemães, para o efeito de pedir, por intermédio do
Ministro de Portugal junto daquele governo, as permissões necessárias para embarcar
em França e seguir para o Egipto pelo Mediterrâneo.
Aquele Ministro, que era oficial da Armada, Humberto da Gama Ochôa, disse
que poderia conseguir todas as licenças necessárias para o meu embarque e para a
minha viagem, mas que não me deixava partir, pois a guerra no Mediterrâneo, tanto
guerra de superfície como guerra aérea e submarina, e a guerra terrestre tanto na Síria
como na Palestina, por onde teria de passar para entrar no Egipto, não me deixariam lá
chegar
Obedeci, regressei a Portugal, pedi a minha exoneração das Jurisdições Mistas e
a 14 de Novembro de 1940 fui aposentado pelo Governo egípcio. Assim, fechei a
minha carreira naquele país, a qual teve, como já referi, a duração de 24 anos.
Em Portugal, e quase sempre em Braga, vivi os onze anos restantes da minha
vida, votado sempre, e até quase ao meu último momento, à minha grande paixão de
Carlos Jaca
24
romeiro, historiador e crítico de arte, sendo desse período alguns trabalhos que são
considerados dos mais notáveis.
Não obstante o nível atingido no desempenho de cargos políticos e judiciais, isso
constitui, apenas, uma pequena parte, e não a mais relevante, da minha vida.
Uma outra actividade me ocupava permanentemente nas horas de lazer e essa é
que estava em perfeita consonância com a minha vocação natural – foi a que dediquei
ao estudo dos monumentos medievais. Elaborar a história desses monumentos e
divulgar o seu sentido e o seu valor cultural foi a tarefa que me impus e dediquei com
persistência.
De qualquer modo abordar aqui esta grande paixão da minha vida, que foi a
faceta de Historiador e Crítico de Arte, não poderá ser senão de uma forma muito
breve, porquanto só a leitura da minha obra poderá oferecer-vos uma visão mais
completa, recorrendo para isso, fundamentalmente, aos “Dispersos” (1980) que, devido
ao seu alto valor, merecerão, a seu tempo, referência especial.
O Historiador e o Crítico de Arte.
Os primeiros passos no domínio da etnografia e arqueologia dei-os pela mão de
meu primo, António Augusto Rocha Peixoto, grande etnógrafo poveiro e que veio a
falecer, prematuramente, em 1909, aos 43 anos de idade Treze anos mais novo,
acompanhei-o a pé nas suas digressões por serras e vales do Noroeste, iniciando-me na
recolha e dados de observação.
Já estava em Coimbra quando, nas férias da Páscoa e nas férias grandes de 1902,
jornadeámos em visita de estudo a Castro Laboreiro, à Serra do Extremo, ao Soajo,
Lindoso e Serra Amarela. Muitas vezes, a pé, calcorreámos as freguesias ao redor da
Póvoa de Varzim, para apreciar os trabalhos nos campos e a vida dos pescadores.
Madrugávamos para nos dirigirmos a Rates, a Rio Mau, ao castro de Terroso, a Vila
do Conde, a Azurara, a Vairão…Guiado pelo saber seguro de meu primo fui-me
inclinando, gradualmente, mais para os assuntos da Arte, procurando que os meus
trabalhos fossem de leitura agradável e acessível e, ao mesmo tempo, sensibilizar as
pessoas para a defesa dos monumentos antigos, tantas vezes ameaçados de ruína quer
pelo tempo, quer pela incúria ou ganância dos homens.
Assim, logo em 1905, no início da minha vida profissional, aqui em Braga, reagi
veementemente quando tive conhecimento do projecto de demolição do Castelo, velho
Carlos Jaca
25
monumento que D. Dinis mandara construir em 1300 e que desde esse tempo, com 600
anos de história sempre ali se mantivera.
O decreto, datado de 1875, previa a alienação pelo Governo dos terrenos das
praças de guerra que já não fossem necessárias para a defesa. Dizia o Relatório: «Muito
mais vale para o futuro do País o proveito que há-de resultar para muitas terras de
poderem as municipalidades abrir boas ruas ou espaços largos e os particulares
levantarem importantes estabelecimentos, em lugares ocupados hoje por muralhas ou
castelos meio derrocados e de todo inúteis para a guerra».
No início de 1906, publiquei na revista coimbrã, “Arte e Vida”, o opúsculo
“Defesa de um Castelo Medieval”- depoimento de um combatente. Tratava-se,
obviamente, de defender com toda clareza e combatividade, o património artístico e
monumental de Braga. Iam demolir o Castelo, quando apenas precisava de quem o
libertasse das excrescências e o reabilitasse com um fácil restauro, porém, «num outro
país haveria empenho em o expurgar (o Castelo) das superfectações que o
mascaravam, reconduzindo-o tanto quanto possível à pureza originária.Mas, como
entre nós se caminha sempre pela inversa, já não seria para descontentar a sua
conservação em tal estado».
A verdade, porém, é que os edis da Câmara e seus acólitos reagiram
intempestivamente e a causa foi perdida. A pouco e pouco, Braga, graças ao camartelo
dos insensíveis governos locais, deixaria de ter história, de ter fisionomia
própria.Constou-me que este “filme,”agora de longa metragem, e com novos actores,
tem estado em “reposição,” em cópia nova e… a cores, obviamente! Adiante.
O Castelo começa a ser demolido a 16 de Setembro do mesmo ano, depois da
publicação do meu opúsculo e de muita polémica, tanto mais que, sendo eu um jovem
de 27 anos, ousara contrariar os planos de quem então tudo mandava em Braga.Perderase também a oportunidade sobre a sua adaptação a um Museu, que fora a sugestão por
mim apresentada para o seu aproveitamento. O Castelo foi demolido, e em seu lugar
existe hoje a rua que lhe tomou o nome. Só a Torre de Menagem acabou por ser
poupada ao camartelo municipal, certamente graças ao meu alerta bem secundado, entre
outros, pelo genealogista bracarense Dr. José de Sousa Machado e o arqueólogo Albano
Belino.Neste ano de 1906, ainda dei à estampa nos “Serões”, publicação lisboeta, um
estudo subordinado à epígrafe “Castelos do Norte de Portugal” com o subtítulo de
“Como se organizava a defesa territorial do país durante a Idade Média”. Henrique
Lopes de Mendonça, na Academia Real das Ciências, saudou a referida publicação
Carlos Jaca
26
afirmando: «deixa no nosso espírito o pesar de que a um pequeno artigo de revista se
circunscrevesse o fruto de sábias investigações, utilíssimas à história».
Em Dezembro, admitindo, talvez, o reconhecimento de todo um trabalho que
vinha desenvolvendo, a Associação dos Arqueólogos Portugueses admitiu-me como
sócio correspondente.
Seria, porém, em 1908, com a monografia do Românico Português intitulada “S.
Pedro de Rates que eu conquistaria, dizem, a consagração definitiva, passando desde
então a ser considerado uma grande autoridade no domínio da arte românica em
Portugal – «Mais do que uma monografia que escalpeliza um monumento e o coloca no
seu verdadeiro tempo, longe das lendas e escritos produzidos por gente que não se
importava com o rigor histórico, “S. Pedro de Rates” é, também, devido à sua longa
introdução, a primeira súmula produzida entre nós sobre a arte românica em
Portugal».
No Verão de 1912, exercendo já o cargo de Governador Civil de Braga, promovi
e organizei uma Exposição de Arte Sacra montada no Paço Arquiepiscopal e interferi
no sentido de ser concedida uma avultada verba para obras da Biblioteca Pública.
Considere-se que, durante o largo período vivido no Egipto (24 anos) nunca
deixei, embora com menos frequência, de produzir alguns trabalhos, sendo desse tempo
os seguintes: “As nossas origens”, em “O Primeiro de Janeiro” (29 de Maio de 1924);
“Capela de D. Gonçalo Pereira: quem lhe acode?” (“Correio do Minho” – 3 de
Março de 1932); “A Catedral”( de Braga) – “Latina”, Agosto de 1935; “Dois artistas
inéditos do século de Quinhentos” “O Primeiro de Janeiro”, 15 e 19 de Fevereiro de
1936; “A escultura românica em Portugal: os tempos historiados da porta
principal da Sé de Braga”, onde são analisadas pormenorizadas composições
figurativas modeladas nas velhas pedras dos nossos monumentos antigos, como por
exemplo a decoração existente nas duas arquivoltas românicas do portal principal da Sé
de Braga (publicação de 1938).
São deste mesmo ano diversos artigos sobre o românico português, tendo por
fulcro a igreja de Cedofeita e a Sé Velha de Coimbra. Em 1939,publiquei uma das
minhas obras consideradas das mais notáveis, “S. Frutuoso: uma igreja moçárabe”.
A partir deste ano, isto é, após a fixação definitiva na minha cidade, apesar de
muitas vezes me encontrar adoentado, recomecei um labor intenso sobre temas de Arte,
quer em jornais, quer em revistas, quer preparando obras de maior fôlego, como a
Carlos Jaca
27
monumental, “Igrejas medievas do Porto”, publicada já depois do meu falecimento
(1954), com prefácio de Alberto Feio.
Em 1941,no nº 4 da “Revista de Guimarães”, apresentei uma compilação da
correspondência
entre
meu
primo
Rocha
Peixoto
e
Alberto
Sampaio,
“Correspondência Inédita de Alberto Sampaio (Alberto Sampaio e Rocha
Peixoto)”, aproveitando o ensejo para testemunhar o meu apreço por ambos,
salientando «as relações de Alberto Sampaio, que eu muito venerei, com Rocha Peixoto,
que eu muito amei». Apesar de ser muito mais novo do que Alberto Sampaio conhecia-o
bem e ambos colaborámos na “Revista de Guimarães” e na “Portugália”, onde
pontificavam Ricardo Severo e Rocha Peixoto, que era íntimo de Alberto Sampaio.
A propósito da “Revista de Guimarães”posso ainda dizer que, em 1948, aquela
prestigiada publicação divulgava o meu estudo, “O Românico Português”:
(SobrevivênciasVimaranenses), onde falo do antigo palácio real reconstruído pelos
arquitectos de Cluny no local do antigo mosteiro fundado por Mumadona nos começos
do século X. Neste estudo esclareço, também, a origem da pequena igreja de S. Miguel
do Castelo.
Neste mesmo ano, em Abril de 1949, fui relator da secção de Arte Pré –
Românica Peninsular, no Congresso Internacional de História de Arte realizado em
Lisboa.
Entretanto, ia-me ligando a outras iniciativas. Em 1944, publicava-se o primeiro
número da revista “Mínia” (órgão do Instituto Minhoto de Estudos Regionais), da
qual fui director e colaborador.Fui igualmente sócio fundador da “Liga da Defesa da
Região de Braga” e 1º Presidente do Rotary Club de Braga.
Já agora, não queria deixar de vos apresentar uma outra faceta da minha
actividade cultural, praticamente esquecida, talvez porque efémera – professor
Pouco depois de ter chegado do Egipto, anuí ao pedido do Dr. Egídio
Guimarães que eu conheci ainda criança, tinha onze anos, em casa de seu tio, o Dr.
João Amorim de quem eu era grande amigo e visitava em todas as férias na sua quinta
da Tomada, no Bom Jesus.
O Dr. Egídio Guimarães, que veio a ser ilustre Director da Biblioteca Pública e
Arquivo Distrital de Braga, e na altura, durante dois anos professor no Colégio de S.
Tomás de Aquino, fundado pelo Dr. Sérgio da Silva Pinto, convidou-me,
argumentando o meu muito saber no campo da Arte, a proferir uma série de lições a um
Carlos Jaca
28
público interessado.Após algumas hesitações, aceitei o convite devido às pessoas
intervenientes e aos objectivos pretendidos.
De facto, era uma boa oportunidade para dar ao público de Braga uma série de
lições de arte (de generalidades, dizia eu) que teriam o mérito de alertar alguns espíritos
mais inclinados ao assunto e que até ajudariam e contribuiriam para a defesa do
património em que sempre me empenhara.
As lições eram dadas no salão nobre do Grémio do Comércio, instalado por
cima da Confeitaria Ferreira Capa, na Rua dos Capelistas, ao sábado pelas 21,30 horas.
O público correspondeu, acorrendo a essas lições, enchendo sempre por
completo a grande sala.
A imprensa referiu-se largamente a este acontecimento cultural. Assim, o
“Correio do Minho” de 18 de Janeiro de 1942, noticiava: «No Grémio do Comércio,
iniciou-se ontem o curso de arte regido pelo Senhor Dr. Manuel Monteiro. O vasto
salão nobre do Grémio do Comercio foi pequeno para conter a escolhida assistência
que ali acorreu, ontem à noite, para ouvir a lição do distinto arqueólogo, Senhor Dr.
Manuel Monteiro. “Correio do Minho” ao afirmar que o facto ia assumir proporções
de verdadeiro acontecimento intelectual, não se enganou. Braga interessou-se duma
maneira invulgar pela iniciativa feliz do Centro de Artes e Letras do Colégio de S.
Tomaz de Aquino. A apresentação foi feita pelo ilustre Director da Biblioteca Pública,
Dr. Alberto Feio.
Recebido com uma prolongada e significativa salva de palmas, o Senhor Dr.
Manuel Monteiro começou por dizer que acedera ao convite de “dois jovens de
iniciativa fecunda e que se encontrava, por um lado, satisfeito por corresponder ao
interesse mostrado em o ouvir em singelas palestras sobre arte» …
Foram vinte lições magistrais, dizem, que se prolongaram pelos anos lectivos de
1942 e de 1942 – 43. Abrangeram desde a Pré – História, ao Egipto, à Mesopotâmia, à
Grécia, a Roma, à Arte Cristã da Idade Média, ao surto espectacular do Gótico, à
Renascença.
As lições eram sempre ilustradas com projecções, trazendo de casa assinaladas
as gravuras a projectar.
Porém, julgo ter sido este o único trabalho que se perdeu. Como não me servia
de qualquer texto, nem de notas, nem estando ainda, ao tempo, vulgarizada a gravação,
aquelas lições – conferências apenas deixaram um pouco de fermento entre os jovens de
então.
Carlos Jaca
29
A chegar ao fim da caminhada ainda publiquei dois trabalhos na “Bracara
Augusta”, a pedido do meu inesquecível amigo Dr. Sérgio da Silva Pinto.
No primeiro,“La Chanson de Roland no Românico Português” (1950),
interpreto a história figurada que se vê num capitel existente na Sé de Braga.Segundo
a minha leitura interpretativa, aceite sem a mínima discordância, «na maior das
arquivoltas medievais acham-se figurados três episódios do Roman de Renart, a
epopeia alegoricamente satírica de tão retumbante voga na Baixa Idade Média
Este facto é de uma importância singularmente reveladora quanto à origem dos
artistas a quem se deve a feitura da catedral metropolitana de Braga.
Dela se deduz com incontestável certeza que eram franceses, e, pela rigorosa e
racional contestação dos acontecimentos históricos, se achavam subordinados à
poderosa Ordem de Cluny sob cujos auspícios se formou o Condado Portucalense ao
qual forneceu os primeiros prelados – S. Geraldo e Maurício Burdino -, assim como as
colónias de monges para o povoamento dos mosteiros, então, reconstruídos, ou de novo
erguidos, além dos elementos para a sua organização eclesiástica e, consequentemente,
dos arquitectos para actualizar a expressão da sua fisionomia monumental».
Três meses antes de falecer era publicado o meu último trabalho, “Uma Obra
de Arte da Renascença”, onde alertava os meus conterrâneos para a situação
lamentável em que se encontrava o antigo coro da Sé de Braga.Construído entre 1570
e 1580, veio substituir um anterior coro medieval e que, por sua vez, foi substituído pelo
actual, quando no segundo quartel do século XVIII, quando o Cabido Primaz em “sede
vacante”, «acometido do delírio das grandezas, transformou a severa nave da Catedral
em salão de festas, um pouco à maneira italiana da época mandou fazer em 1738 novo
coro e novos órgãos, sendo estes executados por Fr. Simão Fontana da Galiza».
Acontece que o Prelado desfez-se do coro substituído, importante espécimen do
património artístico bracarense do século XVIII, jazendo agora «escalavrado, a
apodrecer e a ruir, num abandono confrangedor, na igreja do antigo Convento de
S. Francisco da suburbana freguesia de Real». Chamei a atenção para a edilidade
bracarense que, aliás, vinha manifestando grande sensibilidade para os problemas da
Cultura, no sentido da «remoção deste coro, como notável documento da arte
quinhentista, procedendo ao seu restauro e expondo-o para sempre num Museu, onde
dignamente salvaguardado, ficará ao alcance do estudo dos espíritos artistas e à
admiração carinhosa dos sentimentos estetas».
Carlos Jaca
30
Julgo que mantive um combate pela defesa do património até ao último dos
meus dias.
Morte. Testamento. Homenagem
Ao aproximar-se o Natal de 1951, sentia que o fim estava próximo, via a tristeza
nos olhos dos amigos que ainda tinham coragem para me visitar. Os sofrimentos eram
constantes e as sufocações insistentes, mas se o físico denunciava já um fim doloroso
que se aproximava, a lucidez nunca me abandonou até aos últimos momentos, quando a
morte me veio buscar cerca das 22 horas do dia 18 de Janeiro de 1952, na Rua Nova de
Santa Cruz.
Referi ter feito testamento quando, em pleno período de guerra, reclamaram a
minha presença em Alexandria e, também, que as circunstâncias não me permitiram o
regresso ao Egipto.
Desse testamento, e para que conheçam melhor a minha personalidade, irei
divulgar algumas disposições naquilo que, discretamente, pode e deve ser revelado,
tendo sido testamenteiro o Dr. Machado Vilela que só o soube após o meu falecimento:
«Eu, Manuel Monteiro, adiante assinado, achando-me na posse plena das
faculdades mentais, resolvo fazer, por este meio, as disposições de última vontade.
Morro pobre, tendo granjeado, sempre, com o meu trabalho, o pão de cada dia, para
mim e para uma numerosa família fraterna que o destino e a afeição do sangue me
impuseram.No entanto conservei intacto, e até melhorando, o que herdei, procurando
perpetuar assim, com piedoso respeito, o nome e a memória dos meus maiores.Essa
minguada herança faz o objecto principal deste testamento. Como vim modesta e
obscuramente para o tumulto e para a luz da vida, também obscura e modestamente
quero entrar na treva e na paz do túmulo. Portanto, se falecer em Portugal, desejo que
o meu funeral seja simples, sem qualquer ostentação inútil, que só serve para lisonjear
a vaidade humana.Se no além, como diz o grande poeta, “memória desta vida se
consente,” apenas me vastam as lágrimas e as magoadas preces daqueles a quem fiz
bem e sentirem a minha falta» …
Dispus dos meus bens como melhor entendi fazê-lo, fechando o testamento com
as seguintes palavras:«Terminam assim as minhas disposições testamentárias, sentindo
Carlos Jaca
31
não possuir uma grande fortuna, para deixar todos os que viveram do meu amparo ao
abrigo da desventura, e ainda para melhorar as condições materiais e financeiras das
simpáticas instituições de beneficência da minha terra natal, a fim de lhes permitir uma
eficiência mais larga à sua obra ou acção altruísta de assistência. Procurei sempre
fazer o maior bem possível e evitar praticar o mal, pelo que desço à cova com a
tranquilidade na consciência, embora me atribuíssem por vezes factos cuja
responsabilidade não me cabe, porque nunca os consenti, nem os ordenei.No entanto,
se porventura alguém por mim se considerar ofendido, com o mais sincero
arrependimento lhe peço perdão, apagando da minha memória o gravame de uma
acusação. Despeço-me assim deste mundo e que no outro. Na mão de Deus, na sua mão
direita, descanse afinal meu coração. Braga, 19 de Outubro de 1940.Manuel
Monteiro».
Ao completar-se o primeiro aniversário do meu falecimento, a Câmara
Municipal de Braga promoveu-me uma homenagem, simples mas de grande
significado. Consistiu em três actos separados entre si, porém ligados ao pensamento
comum, de marcar tal efeméride nos fastos citadinos.
Foi celebrada uma missa de sufrágio na Igreja dos Terceiros, que estava cheia de
fiéis e com a presença de altas personalidades. Foi celebrante o Reverendo Padre João
Pinto da Silva, meu particular amigo e Director do Instituto do Fraião, da Congregação
do Espírito Santo, em cujo Colégio iniciara os meus estudos.
Após o acto religioso, na Rua Nova de Santa Cruz, na casa onde vivi e morri,
foi descerrada uma lápide em minha memória.
No local, o Presidente do Município, António Maria Santos da Cunha, apesar
de comungarmos ideias diferentes, num breve mas brilhante improviso, proferiu
algumas palavras de «saudade e gratidão, exaltando a figura prestigiosa do
homenageado, indelevelmente marcada no coração dos Bracarenses». Depois falou o
Padre João Pinto da Silva que descreveu as minhas actividades desde os bancos da
escola, passagem pelo Colégio do Espírito Santo, os tempos de Coimbra e como
homem público e investigador.
Carlos Jaca
32
Seguidamente a lápide, que estava coberta com a Bandeira Nacional, foi
descerrada pela minha sobrinha-neta, menina Ana
Maria da Rocha Peixoto.
A inscrição na lápide dizia o seguinte:
NESTA CASA VIVEU E MORREU
O INSIGNE BRACARENSE
DR. MANUEL MONTEIRO
EMINENTE HOMEM PÚBLICO
E MESTRE DE CRÍTICA E HISTÓRIA DE ARTE
HOMENAGEM DA CIDADE DE BRAGA
NO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DO SEU
FALECIMENTO
XVIII-I- MCMLIII
Ao fim da tarde, realizou-se uma sessão
solene no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
A mesa que presidiu era constituída pelo Dr.
Cunha Matos, em representação do Governador Civil, minha irmã Etelvina Monteiro,
o Reverendo Cónego Dr. Martins Gonçalves, em representação de S. Ex.ª
Reverendíssima o Senhor Arcebispo Primaz, e os Drs. Machado Vilela e Alberto Feio.
Discursaram o Presidente da Câmara, que me havia visitado em casa pouco
tempo antes do meu falecimento, o Dr. Sérgio da Silva Pinto, o Dr. Alberto Feio e o
Professor Dr. Machado Vilela, encerrando a sessão o Governador Civil substituto Dr.
Cunha Matos.
Também o Rotary Club de Braga, do qual fui Presidente, como referi, me
recordou em variadíssimas ocasiões, quer em conferências, quer no nosso “Boletim.”
1ºCentenário do Nascimento. (1879 – 1979)
Este meu “regresso,” motivado pelo “depoimento” que estou a fazer ao
suplemento “Cultura” do “Diário do Minho,” proporcionou-me a oportunidade de
saber que, felizmente, algumas pessoas e instituições não se esqueceram de mim,
enquanto outras, julgo, são insensíveis à cultura e “inoxidáveis,” ou “impermeáveis”
em relação à defesa do património, como por exemplo foi o tão badalado caso do
Castelo de Braga, em 1906…
Saúdo todas as pessoas, entidades e instituições que, de algum modo, estiveram
envolvidas na série de iniciativas comemorativas do 1º Centenário do meu nascimento,
Carlos Jaca
33
balizado entre 29 de Setembro de 1979 e 29 de Setembro de 1980, o ano “Manuel
Monteiro,” como “ouvi” chamar-lhe.Atendendo a que o meu nome e obra andavam
muito esquecidos, poderei mesmo falar em“renascimento,” porquanto foram
“desencantados” estudos, trabalhos, artigos, de que eu próprio já não me lembrava.
Logo na primeira reunião do Conselho de Gestão da Biblioteca Pública de
Braga, realizada em 15 de Setembro de 1978 foi proposto que, entre as actividades a
programar, se devia incluir a comemoração do centenário do meu nascimento, decisão
que não era de todo estranha, mas louvável, dado o prestígio dos seus responsáveis e,
ainda, o facto da minha livraria particular e espólio literário ser pertença da Instituição
bracarense.
Efectivamente, em 1956, a Biblioteca Pública de Braga adquiriu, por 90.000$00,
aos meus herdeiros, a
referida
livraria,
constituída por cerca de
4000 livros e revistas,
incluindo centenas de
páginas manuscritas e
um
bom
arquivo
fotográfico, herdado de
Rocha Peixoto e, ainda,
por 50.000$00, o meu
retrato
pintado
por
Columbano.No ano seguinte, a 25 de Fevereiro, era inaugurada a “Sala Manuel
Monteiro.”
Dois meses depois da reunião do Conselho de Gestão da Biblioteca Pública de
Braga, era a Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural
– ASPA – que, a 17 de Novembro, alertava as chamadas “forças vivas” da cidade para o
dever
de
se
comemorar
com
a
maior
dignidade
e
amplitude
o
meu
centenário.Efectivamente, naquela data, e com o referido objectivo, a ASPA enviava ao
Governador Civil de Braga, Presidente da Câmara Municipal, Reitor da Universidade
do Minho, Presidente da Associação Jurídica de Braga e Presidente do Rotary Club de
Braga um ofício-carta, juntamente com o meu “curriculum.”
Carlos Jaca
34
A iniciativa teve o acolhimento esperado delineando-se, desde logo, um
programa que, para além dos eventos comemorativos, deixasse documentação bastante
para conhecimento da minha vida e obra.
Sob este ponto de vista, notável foi a publicação de “Dispersos” e das “Notas
Bio-Bibliográficas.”
Os “Dispersos,” colectânea organizada pela ASPA e patrocinada pela
Assembleia Distrital de Braga, são constituídos por uma série de trabalhos nos campos
da Etnografia e da Arte, muitos deles esgotados ou dispersos (daí o título) pelas mais
variadas publicações, tanto jornais, como revistas de difícil acesso e que, desse modo,
facilmente cairiam no esquecimento.
Nos “Dispersos” estão incluídas as monografias e a minha colaboração em
várias revistas, contando quarenta e seis títulos, sendo trinta e dois relativos a assuntos
de arte.
Trata-se de um trabalho de grande envergadura, e paciência, a que se
propuseram o Dr. Henrique Barreto Nunes e o investigador e historiador de Arte,
Eduardo de Oliveira, ambos “umbilicalmente” ligados à ASPA.
A sua persistência levou-os, inclusivamente, a recolher artigos até em pequenos
e desconhecidos periódicos de Trás-os-Montes, além de que os meus estudos foram
publicados, na sua maior parte, em revistas da especialidade, e aí permaneceriam
inacessíveis à generalidade das pessoas.Tarefa de grande dedicação, sem a qual ficariam
para sempre ignorados alguns escritos que, hoje, estou, não sem alguma emoção, a
gostar de “rever” e “reler.”
Ao Dr. Henrique Barreto Nunes devo as “Notas Bio – Bibliográficas,” uma
publicação de indiscutível mérito ilustrada na capa com o meu retrato magistralmente
ilustrado por António Carneiro, e que teve o apoio e o interesse da Universidade do
Minho.Esta publicação, trabalho moroso e delicado «representa, porém, muitas horas
de leitura de livros e documentos, de pesquisa bibliográfica e de recolha de elementos».
Constituída por cerca de 40 páginas laboriosamente preparadas, coligindo os
seus dados sem olhar a canseiras, julgo que o Dr. Barreto Nunes terá pensado numa
dupla convergência: recordar as fases mais relevantes da minha obra e proporcionar a
“ferramenta”, a bússola orientadora, a todos aqueles que vierem a interessar-se por
qualquer aspecto da minha personalidade.
Carlos Jaca
35
Para além destas memoráveis publicações que, pelo seu significado e
objectivos marcam, em minha opinião, o ponto alto das iniciativas comemorativas,
todas as actividades programadas foram plena e brilhantemente cumpridas.
Assim, em 29 de Setembro de 1979, data do meu aniversário natalício,
iniciaram-se as comemorações no Instituto Monsenhor Airosa inaugurando-se a
exposição “Manuel Monteiro e Monsenhor Airosa”, tendo sido palestrante o Dr.
Costa Lopes numa cerimónia alusiva ao acontecimento.
A 12 de Dezembro o Dr. José Ferreira Salgado, por iniciativa da Câmara
Municipal, proferiu uma conferência abordando a minha faceta de historiador de arte.
A Universidade do Minho divulgava o programa das comemorações a efectuar
em 1979-1980, e de que constaria a organização de uma exposição bio-biblioiconográfica, a publicação de uma bio-bibliografia, a que já me referi, a publicação
do catálogo da minha livraria e uma conferência sobre a minha actividade como
intelectual e político.
Foi, precisamente, a 16 de Junho de 1980, com a conferência intitulada “Manuel
Monteiro, ou a República inviável” (Braga no seu tempo), proferida pelo Dr. Victor
de Sá, que a Universidade do Minho e a Biblioteca Municipal iniciaram as
comemorações do centenário do meu nascimento.Foi, também cunhada uma medalha
com a minha efígie, cuja execução pertenceu ao arquitecto Ilídio Fontes.
Também o Professor Ferreira de Almeida pronunciou uma brilhante
conferência em sessão solene na Câmara Municipal.
Finalmente, a 29 de Setembro, seria inaugurada uma exposição sobre a minha
vida e obra, organizada pela Casa Museu Nogueira da Silva.
E aqui dou por findo o “meu depoimento.” Bem-haja a todos aqueles que muito
têm contribuído para que a minha memória e obra permaneçam vivas e activas na
cidade onde nasci e que tanto amei.
Bibliografia consultada
Cardoso, José – «Perfis de ilustres bracarenses» – Quem foi Manuel Monteiro.
Braga, APPACDM, 1994.
Garibáldi, A. – «Elogio Académico do Dr. Manuel Monteiro». Edições
Península. Porto, 1953.
Gomes, Joaquim da Silva – «Antologia de Bracarenses Ilustres». Braga, 2004.
Carlos Jaca
36
Guimarães, Egídio Amorim – «Sete Cartas de Alexandria». Uma trilogia:
Manuel Monteiro, Albano Justino Lopes Gonçalves e Braga.Separata de «Bracara
Augusta». Vol.XL
Homenagem ao Dr. Manuel Monteiro no 1º aniversário do seu passamento
(discursos de A. M. Santos da Cunha, Sérgio S. Pinto e Machado Vilela). «Bracara
Augusta». Braga, 4 (4) Ago. 1953.
Malheiro, A. Ménice – «Braga Contemporânea». Vila Nova de Famalicão,
1933.
Mendonça, Aníbal – «Folhas que reverdecem» (Crónicas de Braga) – «O Dr.
Manuel Monteiro». Livraria Cruz, 1957.
Monteiro, Manuel – «Dispersos, Inéditos e Cartas» – Artigos em publicações
periódicas. Monografias. Prefácio de Egídio Amorim Guimarães. Recolha, Organização
de textos e Bibliografia por Henrique M. Barreto Nunes. Assembleia Distrital de
Braga.Edição da ASPA, 1980.
Nunes, Henrique Barreto – «Manuel Monteiro». Notas Bio-Bibliográficas.
Universidade do Minho / Biblioteca Pública de Braga., 1980.
Oliveira, Eduardo Pires de – «A Freguesia de São Victor-Braga». Junta de
Freguesia de S. Victor. Braga, 2001.
Peres, Damião – «História de Portugal». Edição monumental Barcelos,
Suplemento. Portucalense Editora. MCMLIV.
Rego, Raul – «História da República». Vols. II e III. Prefácio de Mário Soares.
Círculo de Leitores, 1986.
Sá, M. Etelvina Nunes de – «Um pouco de História da Escola: Mudança de
Patrono». Objectivo: homenagear um ilustre bracarense – Manuel Monteiro.
Sá, Victor de – «Manuel Monteiro ou a República Inviável». Universidade do
Minho / Biblioteca Pública de Braga, 1980.
Salgado, José Ferreira – «Manuel Monteiro no centenário do seu nascimento».
Braga, 1980
Serrão, Joaquim Veríssimo – «História de Portugal» – Vol. XII. Editorial
Verbo, 1990.
Sousa, Amadeu José Campos de – «Braga do entardecer da Monarquia ao tempo
da 1ª República (1890 – 1926)». Abordagem de História Política. 2ª Edição.Edições
Casa do Professor, 2004.
Carlos Jaca
37
A história da cidade de Braga já não pode fazer-se sem recorrer a esta obra,
fruto de notável e laboriosa investigação fornecendo, ainda, pistas para novas
investigações. De leitura agradável, a publicação do que foi originariamente uma
dissertação de mestrado, está plenamente justificada.
Carlos Jaca
38
Download

MANUEL MONTEIRO - Escola Secundária de Alberto Sampaio