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O GINÁSIO DO ESPÍRITO SANTO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
EDUCACIONAIS DO ESTADO BRASILEIRO (1933-1957)
Regina Helena Silva Simões
Maria Alayde Alcantara Salim
Johelder Xavier Tavares
Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
Após a revolução de 1930, o Estado liderado por Vargas promoveu a organização sistemática da educação
por meio do Ministério da Educação e Saúde Pública, órgão centralizador instituído em 1930 para
controlar e avaliar instituições de ensino em todo o território brasileiro, de modo a homogeneizar as
práticas nelas desenvolvidas. Dessa forma, nos anos 1930 e 1940, as reformas educacionais
implementadas incumbiram-se de estruturar organicamente o ensino nas escolas brasileiras em um
movimento realizado sob a égide do autoritarismo que caracterizou o populismo varguista. Em nosso
estudo, focalizamos o processo de inspeção ao qual foi submetido o Ginásio do Espírito Santo em
atendimento às exigências governamentais. Trata-se de um corpo documental contendo informações sobre
a organização e o funcionamento do ensino, com referências aos corpos docente e discente, às condições
de funcionamento, aos recursos didáticos e à organização curricular. Com base na documentação analisada
buscamos conhecer o Ginásio do Espírito Santo em sua gênese, interrogando as fontes em três dimensões:
aspectos infra-estruturais, condições para o exercício do magistério e grade curricular. Fundado em 1906,
o Ginásio do Espírito Santo foi equiparado ao Colégio Pedro II em 1908 e pouco depois entregue, por
contrato, aos Congregados do Verbo Divino. Novamente equiparado ao Pedro II em 1915 e mantido pelo
governo estadual, funcionava em regime de externato misto atendendo em 1923 a 147 alunos. Se até 1927
esse número mostrava-se estável, no ano seguinte as matrículas revelam uma curva ascendente chegando a
305 alunos em 1932. Tomando por base o conjunto dos documentos que compõem o processo de inspeção
do Ginásio, iniciado em 1933 e entendido até 1957, tornou-se possível conhecer, inicialmente, a gênese do
Ginásio do Espírito Santo. Em seguida, exploramos movimentos de organização institucional, na tentativa
de responder às exigências expressas nas reformas educacionais empreendidas pelos ministros Campos e
Capanema. Ao final do Estado Novo (1945) encontramos também registros das relações estabelecidas
com o governo federal, culminando com a tardia construção, em 1957, da primeira sede exclusivamente
destinada ao Ginásio então já denominado Colégio Estadual do Espírito Santo. Segundo o relatório da
inspeção realizada em 1933, o Ginásio funcionava precariamente no prédio construído para abrigar um
grupo escolar. Da “pedagogia duvidosa” revelada pelo horário reduzido até o “ruído ensurdecedor” dos
navios que entravam no porto de Vitória, o relator pinta um quadro bastante desfavorável do ensino no
qual se mesclam críticas dirigidas à ausência de material, às péssimas condições do mobiliário, a tibieza
dos inspetores e a necessidade do registro docente. No desenrolar do processo, percorremos pistas que nos
permitiram explicitar estratégias do governo local para “adequar-se” às exigências legais do governo
federal por meio de soluções improvisadas freqüentemente justificadas pela falta de recursos financeiros
(leia-se, por exemplo, crise do café). No cruzamento com outras fontes, buscamos relacionar aspectos da
política, da economia, da sociedade e da cultura capixabas, na tentativa de compreender traduções locais
das políticas públicas instituídas no âmbito federal para a educação. Nessas análises focalizamos três
dimensões consideradas no conjunto das políticas públicas educacionais desencadeadas em 1930: o
exercício do magistério e a constituição da profissão docente, considerando as demandas dirigidas aos
professores em face das mudanças pretendidas e a precariedade dos programas para a formação de
professores oferecidos localmente, a configuração da grade curricular e a avaliação das condições de
ensino e da infra-estrutura escolar. No contexto capixaba, a complexidade e as implicações mútuas dessas
dimensões se expressam, por exemplo, nos contratos assinados com ordens religiosas, por volta de 1908 e
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posteriormente em 1943, visando transferir-lhes a responsabilidade pela instituição de ensino ainda que
mantido o suporte legal e financeiro do poder público. Encontram-se expressas também no
“deslocamento” do grupo escolar para que o prédio a ele destinado abrigasse o Ginásio e no
funcionamento do Ginásio no mesmo prédio da Escola Normal até 1957. Fatos como esses deixam
abertas algumas questões: Como se configuravam as relações estabelecidas entre forças políticas regionais
e o governo federal no cumprimento da legislação educacional? De que formas se articulavam forças da
política, da economia e da sociedade civil capixaba na instituição dessas políticas educacionais? Como se
configuravam as relações entre o público e o privado na oferta do ensino? Como as políticas públicas
locais relacionavam a formação e a prática do magistério? Quais as relações estabelecidas entre as
condições para o exercício do magistério e a avaliação do ensino? Nas dobras dessas questões, buscamos
compreender de que maneira os sujeitos locais, responsáveis pela implementação do Ginásio do Espírito
Santo, transitavam entre os critérios de avaliação, a prescrição curricular, os limites e as insurgências do
mundo vivido, nos momentos em que o ensino tomava formas locais para “adequar-se” à legislação
federal. No percurso delineado, se as fontes entrecruzadas tanto silenciam como contam a história, é por
suas brechas que esgueiramos os olhares lançados sobre o Ginásio do Espírito Santo.
TRABALHO COMPLETO
Na historiografia da educação brasileira, identificamos instituições educacionais consideradas
emblemáticas de orientações modelares preconizadas pelo Estado, por meio de políticas públicas
engendradas nacionalmente. É o caso, por exemplo, do Colégio Pedro II, parte do projeto imperial cujo
propósito seria, em última análise, a unificação e a consolidação da nação brasileira. No Império, e em
tempos republicanos, o Colégio Pedro II foi tomado como padrão para o ensino secundário no Brasil,
vinculando, dessa forma, o reconhecimento legal das instituições de ensino à expectativa do espelhamento
desse modelo em espaços/tempos locais.
Em Vitória, capital do Espírito Santo, o Ginásio do Espírito Santo (GES), fundado em 1906,
representava uma tentativa de impulsionar o ensino secundário, fragilizado pela descontinuidade de
políticas públicas educacionais localmente implementadas. Neste estudo, tomando como fio condutor o
processo de institucionalização do GES, nos marcos das políticas públicas nacionais para a educação,
pretendemos interrogar leituras e traduções dessas políticas no contexto capixaba, entre 1933 e 1957.
O elemento disparador de nossas análises foi o Processo nº. 6.657/33, por meio do qual o GES
postulava a concessão “Colégio” “[...] de acordo com o modelo oficial constante na portaria de 15 de abril
de 1932” (f. 84, grifo nosso).1 Os autos desse processo possibilitaram-nos, no cruzamento com outras
fontes, interrogar o conjunto de exigências apresentadas pelo Ministério da Educação e analisar medidas
anunciadas localmente para atender a essas demandas. Seria a instituição “merecedora” da chancela
oficial? Quais os critérios estabelecidos oficialmente para aferir o “mérito” de instituições de ensino?
Mais importante ainda, na perspectiva aqui proposta, como os sujeitos locais respondiam a esses critérios?
Essas questões, consideradas historicamente, apontam dois vértices imediatamente visíveis
representados pela busca da excelência (abstratamente concebida ou supostamente “ausente”) e por um
presente de carência (supostamente constituída no processo de alargamento do acesso às escolas públicas
ou justificada pela falta de recursos). Porém, como terceiro e menos visível vértice, consideramos a
(im)possibilidade da inclusão na “excelência” idealmente definida, via centralização e espelhamento de
modelos externamente constituídos.
Entendemos que essas e outras questões relativas à institucionalização de políticas públicas para a
educação brasileira possam ser pensadas por meio de estudos sobre a gênese e a organização de
instituições como o GES que, em cem anos de existência, teria experimentado a busca da “excelência” e o
exercício da “carência” em diferentes momentos da sua história.
1
Folhas numeradas pelos autores deste artigo.
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Tentando escapar à bifurcação reducionista, quando se trata de contrapor quantidade e qualidade
do ensino, interrogamos critérios que historicamente têm embasado a noção de qualidade necessária ao
reconhecimento de instituições escolares pelo Poder Público no Brasil, buscando compreender a
visibilidade e a invisibilidade das prescrições e das suas circunstâncias consideradas na tensão entre o
local e o global.
Tomando como eixo o processo de institucionalização do GES, pretendemos trazer para a cena
relações estabelecidas entre o global, o local, assim como as circunstâncias que, naquele momento,
circunscreveram a implementação de políticas públicas para a educação e os seus sujeitos. Em outras
palavras, interessou-nos analisar os documentos em suas dobras, na tentativa de fazer aflorar questões que,
mesmo estando fora do texto, nele se encontram contidas (GINZBURG, 2002).
O Ginásio e Colégio do Espírito Santo: marcos de uma construção
O GES foi criado durante o governo de Henrique da Silva Coutinho. Nos termos da lei, 2 criava-se
“[...] um instituto de ensino secundario equiparado ao Gymnasio Nacional” (art. 1º ). No discurso de
Coutinho3, a iniciativa justificava-se pela necessidade de possibilitar o acesso ao ensino público
secundário à juventude local que, não dispondo “[...] de bens de fortuna está privada de habilitar-se n’esta
capital em estabelecimento público para a matrícula nas academias da união” (1905, p. 20).
Em 1908 o ginásio foi equiparado ao Colégio Pedro II. Em fevereiro do mesmo ano, Jerônimo
Monteiro,4 alegando escassez de recursos “[...] para manter o importante estabelecimento” (1909, p. 14) e
também dificuldades enfrentadas por professores e alunos “[...] devido a condição das instalações” (1909,
p.14), transferiu aos Congregados do Verbo Divino a direção e a manutenção do estabelecimento:
Esse contrato foi rescindido quando a Lei Orgânica acabou com os privilégios dos
ginásios, sendo grandes as vicissitudes porque o Ginásio passa até 1915. Em maio de 1915
foi novamente equiparado ao Colégio Pedro II, depois de declarado idôneo pelo Conselho
Superior do Ensino [...] (f. 3).
Segundo Romanelli (2001), a Lei Orgânica5 que tanto prejudicara o ginásio local, ao “[...]facultar total
liberdade e autonomia aos estabelecimentos e suprimir o caráter oficial do ensino” (p. 42) teria
representado um “[...] retrocesso na evolução do sistema” (p. 42).
A segunda equiparação ao Colégio Pedro II coincide com a implementação da menos “desastrosa”
(RIBEIRO, 1993, p. 80) reforma Carlos Maximiliano. Posteriormente, a reforma Rocha Vaz (1925)
buscou estabelecer um acordo entre a União e os Estados e sistematizar o ensino. Considerados menos
desastrosos quando comparados com a Lei Orgânica de 1911, avaliados em função das suas conseqüências
práticas, esses textos legais aparecem como letra morta ou como idéias isoladas, submetidas aos humores
instáveis de grupos políticos regionais.
Em 1919, o diretor do GES6 relata ao secretário da Instrução Pública a precariedade da iluminação
(insuficiência de lâmpadas), das condições sanitárias e da biblioteca escolar (reduzida a três livros), bem
2
ESPÍRITO SANTO. Lei nº. 460, de 24 de outubro de 1906. Leis do Congresso Legislativo do Estado do
Espírito Santo votadas nas sessões ordinárias de 1906. Victória: Papelaria e Typographia Nelson Costa & C.,
1907.
3
Mensagem dirigida pelo Coronel Henrique da Silva Coutinho, presidente do Estado, ao Congresso Legislativo do
Espírito Santo na segunda sessão da quinta legislatura. Victoria: Papelaria e Tipografia Nelson Costa, 1905. p. 20.
4
Mensagem dirigida pelo Dr. Jerônymo de Souza Monteiro, presidente do Estado, ao Congresso Legislativo do
Espírito Santo na terceira sessão da sexta legislatura. Victoria: Imprensa Oficial, 1909. p. 14-24.
5
Reforma Rivadávia Corrêa.
6
Relatório do Diretor do Gymnasio Espirito Santense: Período abril de 1918 – abril de 1919. Manuscrito.
Lê-se no relatório: “[...] o número de moringas é insuficiente, as latrinas não funcionam, há tempo, no referente, as
descargas de água estão quebradas, o que é verdadeiramente lamentável em um estabelecimento desta ordem, onde a
hygiene deve privar sempre”.
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como a suspensão da publicação de trabalhos de professores e alunos por falta de verbas. Lembra, ainda, a
existência de uma planta para a edificação de novo prédio escolar nas imediações do Convento de São
Francisco. Parecia-lhe injusto que um corpo discente proveniente “das melhores famílias da capital e do
interior” enfrentasse a precária situação da escola.
Em 1930, o GES ocupava um lugar de prestígio na sociedade capixaba, constituindo, junto com a
Escola Normal, os únicos estabelecimentos de ensino secundário públicos da Capital.7 Naquele ano, tendo
presenciado as provas orais do concurso para professores, o governador Borges de Aguiar (ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO, 1930) demonstrou grande satisfação. Contrastando o longo histórico de dificuldades
enfrentadas, observava que: “[...] a fiscalização tem distinguido o Gymnasio [...] com apreciações
elogiosas” (p. 104).
Em meio à instabilidade e às crises da economia e da política capixabas, o GES permanecia refém
do improviso e da péssima gestão de recursos públicos. Indicando a precariedade das instalações, o relato
de inspeção (1933) registrava a existência, junto ao almoxarifado, de um depósito de galinhas “mantido
por um particular” (f. 5). Registrava também a reforma recente do prédio, porque, sendo o terreno “[...] de
aterro moderno [...] o solo cedeu e as paredes fenderam-se” (f. 5). Finalmente, destacava-se o ruído “[...]
por vezes ensurdecedor, sobretudo quando os navios que entram e saem do porto lembram de apitar” (f.
5). Para completar o quadro, “[...] a avenida Capichaba é a rua de maior movimento e o edifício [escolar]
fica a flor da rua” (f. 5).
O inspetor federal recomendava as seguintes medidas para tornar aceitáveis (com baixo custo) as
condições de funcionamento do GES: a) transferir o Grupo Escolar (que funcionava no mesmo prédio); b)
nomear um instrutor militar para exercer, mediante gratificação, a chefia de disciplina (considerada fraca);
c) nomear mais um inspetor; d) instalar bebedouros; e) providenciar o conserto dos lavatórios e melhorar o
abastecimento de água; f) substituir o mobiliário (destinado a crianças) por outro compatível com as
características dos alunos adolescentes do ginásio; g) adaptar salas pequenas para funcionarem como salas
especializadas para o ensino de ciências; h) observar o limite de quarenta alunos por turma; i) murar o
terreno para o campo de Educação Física; j) manter o piano (quando o Grupo Escolar fosse transferido); k)
adquirir mapas modernos, modelos para desenho e laboratórios para o ensino de Ciências.
Não encontramos indicações precisas quanto ao atendimento a essas recomendações. Há, porém,
duas correspondências datadas de 23 de dezembro de 1942, requerendo autorização para o funcionamento,
no ano seguinte, do segundo ciclo e especificamente do curso científico. Mais uma vez, o GES procurava
adequar-se às disposições legais, desta feita sob o efeito da reforma educacional proposta pelo ministro
Capanema, motivo pelo qual foi gerado um novo relatório de inspeção.
Graças a esse relatório, ficamos sabendo que o GES ganhara um novo endereço em 1939.8 Em
1942, localizava-se na “[...] vizinhança do Palácio do Governo – sobre a elevação do terreno, isento de
poeira, no centro da cidade” (f. 30). O inspetor federal avalia positivamente esse novo sítio nos quesitos
salubridade, quietude e segurança:
Não ha ruídos que obriguem o professor a elevar a voz. Ha ausência de perigo para os
alunos porque o local [...] é afastado do cruzamento de linhas férreas, de bondes ou de
outros veículos – Como também não há perturbação da atenção dos alunos, por pregões
de anúncios, casas de diversão, casas vizinhas etc. (f. 30).
Em princípio, as informações contidas no documento poderiam sugerir investimentos para atender
às recomendações da Inspetoria Federal. De outra forma, como explicar a materialização de salas
7
Em 1930 existiam quatro estabelecimentos particulares em Vitória: o São Vicente e Nossa Senhora Auxiliadora
(Normal) e a Missão Batista e Academia do Comércio (Técnico).
8
O GES teve localização itinerante, em determinados momentos, compartilhada com outras instituições de ensino:
“Ao longo dos anos o Gymnasio, depois Ginásio, depois Colégio Estadual, andou de seca e meca: no final da rua
Wilson Freitas, onde hoje está o Gomes Cardim, no Convento dos Franciscanos, na Escola Normal, e depois, por
muitos anos, no prédio do Gomes Cardim, na Avenida Capixaba, onde hoje é Escola de Artes Fafi”. (PACHECO,
1996. p. 126).
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especiais, de material didático adequado, enfim de uma infra-estrutura mais favorável ao ensinoaprendizagem? A resposta aparece adiante, quando entendemos que
Existe um turno somente. Turno da tarde, das 12 ás 5 horas, porque pela parte da manhã
pertence á Escola Normal ‘Pedro II’ a freqüência ao mesmo Edifício.A garantia de
funcionamento e a organisação da escrita financeira pertence ao Governo do Estado que
mantêm no mesmo prédio os dois cursos: o Ginásio do Espírito Santo e a Escola Normal
[...] (f. 34).
Como pode ser deduzido, o deslocamento do ginásio para o prédio, originalmente destinado à Escola
Normal, resultou do improviso e do adiamento das intenções declaradas pelo secretário do Interior e
Justiça, em 1933, quando afirmou haver uma “planta pronta” (f. 8) para o novo prédio do ginásio.
O corpo docente incluía dois catedráticos, “[...] sendo o resto nomeado interinamente e todos
registrados” (f. 34). A listagem do material didático disponível para cada uma das disciplinas ocupa
dezoito páginas (f. 36-53). Aparecem listados também os títulos dos 605 livros pertencentes ao acervo da
biblioteca escolar, além dos títulos de 13 periódicos.
A autorização para o funcionamento do GES como Colégio data de 1943. De acordo com a ficha
classificatória, o GES foi avaliado como “BOM” (f. 96). Observados os quesitos situação, edifício,
instalações, salas de aula e salas especiais e materiais didáticos, as ressalvas apresentadas fixaram-se no
mau estado de conservação do material didático destinado ao ensino de História Natural e na insuficiência
de mictórios.
Direcionando o foco dos inspetores, esse instrumento classificatório tornava invisível, por
exemplo, a altíssima seletividade na 5ª série (curso fundamental), verificável pelo número de matrículas
efetuadas por série em 1942. Os números apresentados (que não merecem qualquer comentário) registram
uma variação de 63 matrículas na primeira série a 13 na 5ª série.
Em 7 de fevereiro de 1943, uma correspondência, assinada pelo diretor do Ginásio Salesiano,
registrava que, em janeiro daquele mesmo ano, o Estado do Espírito Santo havia contratado “[...] com a
Congregação Salesiana a direção do Ginásio Espírito Santo” (f. 89). Coube ao interventor Jones dos
Santos Neves restituir-lhe a condição de estabelecimento oficial, impedindo, dessa forma, que a
equiparação concedida se convertesse “[...] em simples reconhecimento, na forma da legislação em vigor”
(f. 100) caso a instituição perdesse o caráter público.
A equiparação do Colégio Estadual (CE) do Espírito Santo datou de 1943. No dia 23 de março
daquele ano, Santos Neves enviava ao Ministério da Educação a relação de professores, tendo fixado em
vinte o número de lentes. Na exposição, encontram-se especificadas questões relativas ao corpo docente e
ao financiamento. As nomeações de professores foram publicadas no Diário Oficial, em 18 de março de
1943.
Em princípio, a correspondência trocada com o Ministério da Educação expressa preocupação
com a melhoria do ensino, pela via, inclusive, da contratação e da valorização de professores. Como
registra a historiografia, Eurico Sales, secretário de Educação do primeiro governo de Jones dos Santos
Neves, empreendeu campanha “[...] visando ao aprimoramento do nível intelectual do magistério
capixaba” (OLIVEIRA, 1975, p. 435). E, de volta ao governo estadual (1951-1954), Santos Neves
novamente priorizou a educação, trazendo de São Paulo o professor Rafael Grisi, responsável pela
reestruturação do ensino primário e pela instituição de cursos de aperfeiçoamento docente. No caso do
GES, entretanto, dois pontos merecem reflexão: dos professores, apenas dois haviam sido nomeados por
concurso e os salários permaneceram inalterados: “Continuam fixados em CR$790,00 (setecentos e
noventa cruzeiros) os vencimentos mensais dos lentes” (f. 108)
Em resposta ao pedido de revisão da ficha classificatória, produziu-se, em 1945, um novo
relatório, no qual se encontram dados referentes ao registro de professores e disciplinas lecionadas, acervo
(800 volumes e 700 revistas) da biblioteca escolar, descrição de ambientes de ensino e material didático.
Pelo tom de normalidade que transpirava do relato oficial, nada levaria a supor que, três anos
depois, o início das aulas teria que ser adiado “[...] já que o estado atual do edifício não permite ambiente
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condigno para o funcionamento do Colégio” (f. 178). Para completar o quadro, dos sete professores
nomeados, “[...] 3 estavam afastados do magistério por exercerem cargos públicos, um estava licenciado e
o professor de Sociologia passara a lecionar Filosofia em razão da extinção da cátedra de Sociologia no
currículo escolar” (f. 184).
Não encontramos informações referentes ao período do segundo mandato de Jones dos Santos
Neves (1951-1954). Há referência, porém, ao funcionamento, no mesmo prédio, do Ginásio Estadual
Maria Ortiz, do Colégio Estadual do Espírito Santo e da Escola Normal Pedro II, no ano de 1955 (f. 222).
O Processo nº. 6.657/33 encerra-se com a solicitação da transferência do Colégio Estadual para
um novo prédio, a partir do dia 31 de outubro de 1957: “A obra foi iniciada no Governo Jones dos Santos
Neves, um ex-aluno. O projeto arquitetônico é de outro ex-aluno, Elio Viana e ganhou prêmio
internacional” (PACHECO, 1996, p. 125). Contrariando a legislação vigente, o Ministério da Educação
autorizou a mudança em meio ao ano letivo, argumentando que o novo prédio estava mobiliado e havia
custado vinte milhões de cruzeiros. Contou favoravelmente o fato de a mudança ter sido programada para
o recesso dos feriados ao final do mês de outubro (f. 232).
O Ginásio do Espírito Santo no contexto das políticas públicas educacionais
Como dissemos, este estudo foi disparado pelo Processo nº. 6.657/339 contendo documentos
relativos ao Ginásio, depois Colégio Estadual do Espírito Santo. Seguindo as pistas desses documentos,
considerados no contexto das políticas educacionais, procuramos desenhar caminhos percorridos pela
instituição em suas relações com essas políticas traçadas nas esferas nacional e local.
Um primeiro aspecto a ser considerado diz respeito ao ensino descentralizado ou à dualidade de
sistemas proposta pela Constituição de 1891, ao instituir o sistema federativo de governo. Na prática,
como observa Romanelli (2001), a União acabou responsável pelo ensino superior ministrado
nacionalmente, assim como
[...] pelo ensino secundário acadêmico e a instrução em todos os níveis do Distrito
Federal, e aos Estados cabia criar e controlar o ensino primário e o ensino profissional,
que, na época, compreendia principalmente escolas normais (de nível médio) para moças e
escolas técnicas para rapazes (p. 41, grifo nosso).
O estudo da institucionalização do Ginásio do Espírito Santo revela faces desse dualismo no
sistema educacional brasileiro10 que sinalizava, também, a dualidade da sociedade escravocrata, em cujas
bases se instalou o regime republicano e “[...] a continuação dos antagonismos em torno da centralização e
descentralização do poder” (ROMANELLI, 2001, p. 42). Dessa forma, no campo da educação, as
iniciativas do Governo Federal e dos Governos Estaduais eram tomadas de forma independente, levando a
9
O “encontro” com o Processo nº. 6657/33 ocorreu fortuitamente, quando explorávamos o chamado Anexo do
Arquivo Público Estadual, no qual documentos da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo foram
depositados. Em nossas análises, buscamos fugir às armadilhas do positivismo e do ceticismo, tomando as fontes não
como “janelas escancaradas”, ou como paredes que impedem a visão, como “espelhos deformantes” (GINZBURG,
2002). Assumimos ainda a perspectiva ginzburguiana, segundo a qual “[...] a análise da distorção específica de
qualquer fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção [...] não é incompatível com a prova; a
projeção do desejo, sem o qual não há pesquisa, não é incompatível com os desmentidos infligidos pelo princípio de
realidade” (p. 44-45).
10
Saviani (1978) problematiza a existência de sistema educacional no Brasil, tendo em vista a dificuldade de “[...]
conciliar a improvisação com a idéia de sistema” (p. 3), deixando em aberto a questão, como desafio aos educadores
brasileiros. Em sua análise, o autor destaca que, embora não se tenha uma resposta clara para a questão, “[...] o fato
é que se age sempre como se ele existisse; e mais: age-se como se esse suposto sistema estivesse adequadamente
organizado e funcionando satisfatoriamente” (p. 5).
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“[...] uma desorganização completa na construção do sistema educacional, ou melhor, dos sistemas
educacionais brasileiros” (p. 42).
Durante a Primeira República, depois de iniciativas inócuas ou desastrosas no campo das políticas
educacionais, a reforma Carlos Maximiliano “[...] representou uma contramarcha” (ROMANELLI, 2001,
p. 42). Em 1925, a Reforma Rocha Vaz foi
[...] a última tentativa do período no sentido de instituir normas regulamentares para o
ensino, tendo o mérito de estabelecer, pela primeira vez, um acordo entre a União e
os Estados, com o fim de promover a educação primária, eliminar os exames
preparatórios e parcelados, ainda vigentes e herança do Império. Foi, na verdade, uma
tentativa de impor a sistematização sobre a desordem (ROMANELLI, p. 43, grifo
nosso).
A mesma idéia de sistematização alimentou a reforma Francisco Campos, implementada quando o
Ministério da Educação e Saúde Pública, no primeiro governo Vargas, centralizou o controle e a inspeção
das instituições de ensino. Romanelli (2001) destaca como virtude dessa reforma a estrutura orgânica
imprimida ao ensino secundário, comercial e superior:
Era a primeira vez que uma reforma atingia profundamente a estrutura do ensino e, o
que é importante, era pela primeira vez imposta a todo o território nacional. Era,
pois, o início de uma ação mais objetiva do Estado em relação à educação (p. 131, grifo
nosso).
Ao tempo da inspeção federal de 1933, o GES permanecia equiparado ao Colégio Pedro II, por
força do art. 96, do decreto 21. 241, de abril de 1932, que, no conjunto da reforma Francisco Campos,
consolidava as disposições sobre o ensino secundário, visando à “[...] formação do homem para todos os
grandes setores da atividade nacional" (ROMANELLI, 2001, p. 135).
Campos pretendia organizar o ensino de forma a superar a visão, predominante até o final da
década de 1920, do ensino secundário como um “[...] sistema de ‘preparatórios’ e de exames parcelados
para o ingresso no ensino superior” (ROMANELLI, 2001, p. 135). Dentre outras medidas, equiparou “[...]
colégios secundários oficiais ao Colégio Pedro II, mediante a inspeção federal e deu a mesma
oportunidade às escolas particulares que se organizassem, segundo o decreto, e se submetessem à mesma
inspeção” (ROMANELLI, 2001, p. 135).
No contexto das políticas pontuadas, procuramos entender a gênese e a organização do Ginásio do
Espírito Santo que, em 1933, segundo o relato da inspeção federal se encontrava: [...] equiparado ao
Colégio Pedro II por força do art. 96 do Dec. 21.241, embora não preencha as condições para merecer
essa regalia (Proc. 6.657/33, f. 3, grifo nosso). A observação do inspetor federal não poderia ser mais
eloqüente quando aponta simultaneamente: o “modelo” a ser imitado; a lei que, pela sua “força”,
aparentemente, pode fazer ser o que, na verdade, não é; o privilégio atribuído ao reconhecimento federal; e
a responsabilidade institucional, na medida em que ela deverá ser merecedora da regalia. Seguindo essas
pistas, buscamos entender o modelo imposto e as relações de força11 que moviam o local e o global no
processo de criação e organização do Ginásio do Espírito Santo.
IV. Sobre o contexto capixaba: notícias da “fronteira”
11
Ginzburg (2002) adverte que, no processo de avaliação de provas, os historiadores deveriam ter em mente que
visões sobre a realidade não são apenas seletivas e parciais, mas dependem “[...] das relações de força que
condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si”
(p. 43). Inspirado pelo pensamento de Walter Benjamin, retoma a idéia de que, para “escovar a história a
contrapelo”, faz-se necessário “[...] aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os
produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a
elas” (p. 43).
5572
Durante a Primeira República, a economia capixaba experimentava um desenvolvimento
significativo impulsionado pela produção cafeeira. Desde a última década do século XIX, o café
aumentava a sua participação na economia, chegando a corresponder, nos primeiros anos do século XX, a
cerca de 95% da receita do Estado (OLIVEIRA, 1975). Os lucros provenientes do café favoreceram a
formação de uma elite local que se aproveitando da descentralização política resultante da República
assumiu o controle da política e dos negócios públicos.
O fluxo de capital que circulava no Estado nesse período não resultava apenas da exportação do
café. No cenário internacional, as últimas décadas do século XIX foram marcadas pelo intenso
desenvolvimento do capitalismo em países europeus que buscavam continuamente a ampliação de
mercados consumidores para os seus produtos industrializados e a exportação de capital excedente em
forma de empréstimos. A América Latina constituía um dos alvos do capital europeu destinado, sobretudo,
a empréstimos governamentais que financiavam a instalação de uma infra-estrutura de meios de
comunicação e transporte, assim como de bens de capital destinados ao incremento das indústrias
extrativistas e ao beneficiamento de matérias-primas (HOBSBAWM, 1989).
O primeiro empréstimo desse gênero foi tomado no governo de Moniz Freire (1892-1896). Os recursos
obtidos nos bancos franceses, de acordo com as cláusulas contratuais, contemplavam exclusivamente a
compra de produtos industrializados europeus empregados na idealizada modernização e a transformação
da capital, Vitória, no centro político e econômico do Estado. Como resultado de políticas
modernizadoras financiadas pelo capital internacional, nos governos Moniz Freire (1892-1896/1900-1904)
e, posteriormente, Jerônimo Monteiro (1908-1912), obras e investimentos privilegiaram a construção de
linhas férreas, o saneamento, a remodelagem de ruas, prédios, a eletrificação e a instalação de bondes na
Capital.
Nas representações da época, a educação figurava como base para o desenvolvimento, razão pela
qual Monteiro trouxe o paulista Gomes Cardim para promover a esperada reforma do ensino capixaba.
Aos olhos da elite intelectual capixaba, a reforma da educação aparecia como fator decisivo para o
desenvolvimento e a modernização do Estado, pela via da reprodução do modelo paulista.
Ao escrever sobre a reforma educacional promovida no governo Monteiro, Derenzi (apud
OLIVEIRA, 1975, p. 437) pinta um quadro desastroso da educação no Espírito Santo até 1908, quando o
ensino representaria
Um mito e, para as famílias abastadas, um privilégio. O Estado guardava posição
desairosa com suas 125 escolas para uma população presumível de 250.000 mil
habitantes. Não havia magistério, não havia escolas e, pior ainda, sem orientação
pedagógica capaz de acrescer o rendimento cultural dos professores (grifo nosso).
A dura crítica ao ensino capixaba contrastava com o enorme entusiasmo dedicado às políticas
educacionais implementadas pelo Governo Estadual a partir de 1908:
Com o espírito arejado, que lhe adornava o patriotismo, Jerônimo Monteiro, ufano de
sua terra, não foi nativista. Sua visão panorâmica era objetiva. Pretendendo elevar o
nível do Estado, não podia subordinar-se a caprichos de fronteira. Em São Paulo
contratou Gomes Cardim, educador entusiasta e jovem, forjado no dinamismo da
cultura paulistana, sempre na dianteira do progresso nacional, confiando-lhe o
problema da instrução pública (DERENZI, apud OLIVEIRA, 1975, p. 437, grifo nosso).
5573
Como indica Derenzi, na visão da época, tratava-se de superar os “limites” da fronteira12, “arejando-os”
com o progresso modernizador que, de forma instantânea, traria um estado de excelência à educação local
pela via da incorporação de elementos culturais externos considerados mais avançados.
Devemos lembrar que a elite política e intelectual capixaba compunha-se de “doutores” formados
em faculdades do Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, centros irradiadores do pensamento positivista. Bem
de acordo com o ideário positivista, buscava-se inserir o “pequeno e atrasado” Espírito Santo na marcha
rumo ao idealizado progresso econômico e cultural. Esse discurso modernizador, contudo, esbarrava na
origem dessa elite, na sua maioria produto do coronelismo e herdeira de latifúndios. Por isso, ao tratar da
política coronelista no Estado, Vasconcellos (1995, p. 151) destaca a parcialidade, ou os limites da
modernização conduzida pelos governos capixabas durante a Primeira República, capaz de alterar “[...]
alguns elementos da vida pública, como a gestão do Estado, sem modificar a estrutura mais larga dos
privilégios da sociedade, entre as quais a dos latifúndios”.
Nas marchas e contramarchas do GES, vemos sinalizadas a ambigüidade e a transitoriedade de
políticas engendradas localmente em seus desdobramentos no campo da educação. Como pontuamos,
trata-se de um projeto adiado até 1957 e para o qual havia sempre uma “planta”, uma projeção calcada no
ideário modernizante e soluções improvisadas. Tudo com o aparente beneplácito dos inspetores, que
procuravam justificar e sensibilizar as autoridades regionais que, por sua vez, reverberavam o script
discursivo da modernização.
Tanto Jerônimo Monteiro como Jones dos Santos Neves, governadores cujos mandatos
inscreveram-se na história capixaba como progressistas e dinamizadores do campo educacional,
investiram especialmente na formação de professores e no ensino primário. O traço comum entre as
políticas propostas por ambos consistia em tomar a educação pelo viés técnico, utilizando-a como
instrumento para o progresso e para a harmonia social. Nessa perspectiva, o que seria não se subordinar
aos “caprichos da fronteira”?
Durante a Primeira República, tais “caprichos” implicavam, dentre outras questões, a convivência
com o endividamento externo. As freqüentes oscilações do preço do café geravam crises que resultavam
na paralisação de obras de grande porte, demissão de funcionários, fechamento de escolas, enfim,
desenhavam um cenário de grande instabilidade e oscilação entre as promessas de progresso futuro e as
reais dificuldades econômicas e sociais do Estado.
Do Ginásio do Espírito Santo ao Colégio Estadual: tensões entre o local e o global
Em 1930, ao assumir a Presidência da República, Vargas investiu na centralização do poder,
varrendo vestígios do federalismo e da descentralização política que marcaram a República Velha.
Interventores foram nomeados como representantes do poder central em cada unidade da Federação, cuja
autonomia de decisão vinculava-se diretamente à lealdade política a Vargas.
12
Estudos produzidos localmente situam a cultura capixaba como “fronteiriça”. Enfatizando elementos geopolíticos,
socioeconômicos e culturais da vida capixaba, essas análises tendem a sinalizar “déficits” regionais expressos pela
presença reduzida do ES no cenário político, social e cultural brasileiros. Dessa forma, fatores que vão desde a
interdição de rotas locais, com o objetivo de proteger o acesso às minas (gerais) até a proximidade geográfica aos
grandes centros de irradiação política, econômica e cultural, teriam concorrido para uma situação “de fronteira”
definida pelos seus déficits (leia-se especialmente a carência de marcas culturais próprias). Em nossas análises,
buscamos trabalhar no cruzamento deste sentido “deficitário” atribuído à fronteira por sujeitos locais e do
pensamento de Santos (1997), que explora a riqueza de sentidos e de experiências produzidos na “fronteira” na
tensão entre o global e o local.
5574
Para Vasconcellos (1995, p. 191-192), o governo Vargas não promoveu uma ruptura radical com
os alicerces que sustentavam o poder na República Velha, uma vez que dirigiu os seus ataques aos
[...] coronéis, seres vivos feitos de carne e osso, sem atacar os elementos centrais da
instituição imaginária do coronelismo. Agindo assim, ele pôde servir-se desse
imaginário construído historicamente para atingir seus objetivos, tornando-se ele
mesmo, um grande coronel nacional.
Portanto, na década de 1930, o coronelismo local permanecia forte no Espírito Santo, bem como a
ambigüidade e o improviso que atravessavam as políticas locais para a educação.
A questão é: como captar a ambigüidade gerada na tensão entre o local e o global nos documentos
estudados? Estaria ela sinalizada quando, mesmo registrando meticulosamente os inúmeros problemas
detectados durante o processo de inspeção, e cobrando soluções para eles, o inspetor federal mostra-se
solidário com o governo local, tentando garantir o funcionamento da escola, apesar de tudo? “Não parece
fácil conseguir-se outro edifício e este, apesar de todos os inconvenientes que apresenta, pode servir até
que melhore a situação financeira e possa o Governo do estado edificar uma casa em melhores
condições” (f. 5).
Na situação anteriormente descrita, a manutenção do ginásio torna-se objeto de negociação entre o
inspetor e os sujeitos locais. O secretario do Interior do Espírito Santo, quando solicitado a resolver os
problemas detectados pelo inspetor federal, assegurava, estrategicamente, que “[...] o Governo pensava
em construir um edifício para o qual já tinha planta pronta. Assim o edifício ficará só para o Ginásio e o
Grupo escolar será deslocado para outro lugar” (f. 8).
Quanto ao inspetor federal, coube-lhe afiançar a promessa do secretário, em nome do Governo estadual,
mesmo reconhecendo que “tudo aqui depende de oportunidade” e que, no Estado, “[...] a mentalidade [no
campo da educação] não apresenta aquela elevação que seria para desejar mas... podia ser pior” (f. 5).
Depois, propondo uma saída conciliatória, o mesmo inspetor federal anima-se a reiterar as
sugestões apresentadas pessoalmente ao secretario do Interior durante a audiência que lhe havia sido
concedida, argumentando que, com uma “[...] despesa que não irá além dos vinte contos” (f. 19) o ginásio
estaria à altura da “linda cidade” de Vitória, projetando, portanto, o futuro do Estado e do governo que
seria rememorado “[...] pelo benefício que trouxe às modernas gerações” (f. 19).
Essa mesma estratégia de conciliação e persuasão mútua aparece em novo relatório de inspeção
produzido na década de 1940 no qual, entre a lealdade a Vargas e os déficits regionais, evidenciam-se
esforços para mostrar a adaptação ao “molde nacional”, sempre que possível mantendo tudo como estava.
É assim que, no relatório de inspeção, sob o item Educação Física, são minuciosamente descritas
as condições encontradas para a prática de exercícios físicos, no Estádio “Governador Bley”, assim
denominado em homenagem ao interventor federal João Punaro Bley (1930-1943).13 Nesse ponto, o
exemplo do Colégio Pedro II, “[...] estabelecimento padrão, cujas aulas de Educação Física são dadas na
Quinta da Boa Vista” (f. 35), é evocado para explicar a destinação do referido Estádio à prática escolar da
Educação Física, tão cara aos objetivos do projeto político e social da ditadura Vargas.
Dessa forma, por obra de artifício, aquilo que poderia representar déficit (imperdoável em tempos
de conformação de corpos e mentes), aparece como imitação modelar. Em outras palavras, em vez de
assinalar a ausência de espaço para a prática da Educação Física na instituição inspecionada, em
desacordo com as diretrizes traçadas para a educação nacional durante o Estado Novo e,
conseqüentemente, uma ameaça à intenção de instituir o segundo ciclo no GES, os sujeitos locais, com a
conivência do inspetor federal, buscavam lidar com as prescrições legais de forma a conseguir os seus
13
Ver Oliveira, 1975, p. 429. Ver também outros interventores (1943 a 1947) à p. 435. Como registra Oliveira, Jones
dos Santos Neves (1943-1945) comandou o Executivo capixaba na condição de interventor nomeado por Vargas.
Eurico Sales, secretário de Educação do seu governo, é elogiado por Oliveira em função da campanha empreendida
“[...] visando ao aprimoramento do nível intelectual do magistério capixaba” (p. 435). Segundo ainda o autor, de
volta ao Governo Estadual (1951-1954) Santos Neves novamente elegeu a educação como prioridade, trazendo de
São Paulo o professor Rafael Grisi, responsável pela reestruturação do ensino primário e pela instituição de cursos de
aperfeiçoamento docente.
5575
intentos. Essa intenção parece evidente na ênfase dada à habilitação e a formação acadêmica dos
professores, “[...] todos eles diplomados pela Escola de Educação Física do Espírito Santo” (f. 35) e à
assistência prestada por um médico “[...] especializado em educação física” (f. 35). O inspetor menciona
ainda a existência de “[...] uma pujante agremiação esportiva, a União Atlética Ginasial do Espírito Santo,
ultimamente oficializada pelo Governo do Estado” (f. 35). Como resultado, o GES recebe autorização para
funcionar como Colégio em fevereiro de 1943.
Em síntese, na busca de alternativas “conciliatórias”, desenvolviam-se negociações por meio das
quais os atores parecem esforçar-se para não deixar cair as suas máscaras. Se, por um lado, o governo
local aliado deveria ser prestigiado, havia também uma reordenação nacional do ensino em progresso à
qual as instituições regionais deveriam “ajustar-se”. Portanto, o que poderia estar em jogo nessas
negociações? Para os interesses locais, tratava-se, em última análise, de manter abertas as escolas de
preferência sem grande investimento. Para o inspetor federal, tratava-se de conciliar os interesses da
política local e as prescrições da burocracia oficial sem inviabilizar totalmente a oferta do ensino
secundário público no Espírito Santo. Para a sociedade local, abriam-se as possibilidades (nada
desprezíveis) e também as contradições da escolarização pela via do ensino público.
O Colégio Estadual do Espírito Santo como elemento potencializador do debate sobre a escola
pública: propondo tessituras
Nas memórias de sujeitos locais,14 a história e a tradição do Colégio Estadual imprimiram
nostalgia e esperança, alimentando representações do ensino público que alternam contradições,
possibilidades e sonhos.
Ao mesmo tempo em que reconhecem o caráter excludente e seletivo do Colégio: “Quem
alcançava uma das poucas vagas oferecidas [...] era exibido como troféu pelas famílias [...]” (ALMEIDA,
1996, p. 66), ex-alunos ressaltam as vantagens do ensino público “[...] sem muitos gastos complementares
[...]” (RODRIGUES, 1996, 74). Para ALMEIDA (1996, p. 66) ficou a marca da convivência social mais
democrática: “[...] pobres, remediados, ricos, pretos ou brancos, todos usavam o mesmo uniforme caqui
[...]”. Nas palavras de Pacheco (1996, p. 128): “A escola pública funcionava, e nós, os menos aquinhoados
pela fortuna, só crescemos graças a ela”.
A importância da instituição para os sujeitos locais traduz-se no sentido que lhe é atribuído por
alunos das décadas de 1940 e 1950: “O colégio tinha uma tradição mística. Os alunos amavam o Colégio
e curtiam a Uages [União Atlética Ginasial do Espírito Santo]” (PACHECO, 1996, p. 127). Ainda mais
enfático, foi o depoimento de Tallon (1995, p. 101): Vou parafrasear as ‘Escrituras’, para afirmar:
passará o céu e a terra, mas o ‘Estadual’ ficará”.
As falas anteriores revelam o tom dos depoimentos de ex-alunos do Colégio, em diferentes
décadas. No imaginário expresso por esses sujeitos, a instituição aparece como portadora de qualidades
invisíveis nos relatórios de inspeção analisados. Enquanto os olhares de ex-alunos privilegiam o ensinaraprender,pela via da valorização dos professores e da convivência cotidiana que faziam a diferença, os
inspetores fixam-se na padronização e no déficit.
No cruzamento dessas visões, ex-alunos evocam o pertencimento institucional, alimentando o
mito do Colégio Estadual pela afirmação das suas qualidades, identificadas com a representação positiva
do ensino público no passado.
Eu fiz o Estadual [...] de 49 a 51. Mas vou lhe dizer uma coisa: eu conto aqueles anos por
dias, pela importância que têm para mim mais de 1000 dias que valem ouro[...]
14
Ver GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Colégio Estadual: 90 anos educando. Vitória: Governo
do Estado do Espírito Santo, 1996.
5576
Era um colégio respeitado, corpo docente de primeira, professores catedráticos, espécie
rara que acabou (NEVES, 1996, p. 77, grifo nosso).
O Colégio Estadual era o Colégio padrão do Estado pelo alto nível de ensino (SILVA,
1996, p. 69, grifo nosso).
Ao final do século XX, identificamos a força deste imaginário impressa e recontada nas
manifestações de sujeitos que na década de 1990 faziam parte da vida do Colégio.
[...] esta unidade e disposição do Estadual de transformar, foi e é a principal arma de
nossa juventude contra os [...] que querem apagar os nossos sonhos e destruir grandes
símbolos do nosso povo como o Colégio Estadual do Espírito Santo (CARLOS EDUARDO
LYRA DE OLIVEIRA, presidente do Grêmio Estudantil de 1991 a 1992, 1996, p. 25-26).
Sou porteiro do Estadual desde 1964 [...]. A lembrança mais triste foi quando uma bala
perdida atingiu uma estudante na piscina, se não me engano, em 1995. Teve um tiroteio no
morro e uma bala foi atingi-la no trampolim. O problema é que o colégio é do Estado, e
vem gente de todo tipo. Mas o Estadual está se recuperando. Foi reformado e está muito
bonito. Antes era um museu (FRANCISCO CORREIA DE FREITAS, porteiro, 1996, p.
35).
[...] Os jovens de classe média e baixa são pessoas dotadas de inteligência tanto quanto os
mais favorecidos economicamente [...]. Por acreditarmos convictamente nessa realidade é
que estamos empenhando todas as nossas forças com a certeza de que o nosso gigante [o
Colégio Estadual], com suas energias recompostas continuará embalando e conduzindo ao
longo dos séculos os nossos jovens a um futuro promissor (ZILNEIDE DOS SANTOS
BARROS, diretora do Colégio, 1996, p. 16).
Como sugerem os seus depoimentos, mais que um anacrônico retrato na parede, o aparente
saudosismo debruçado sobre o mito pode, também, nutrir um imaginário capaz de potencializar o debate e
a problematização na e pela história da escola pública capixaba espaço/temporalmente resignificada.
Referência
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NEVES, Luiz Guilherme Santos. Telefonema para Guadalupe. In: GOVERNO DO ESTADO DO
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PACHECO, Renato. No Colégio Estadual do Espírito Santo. In: GOVERNO DO ESTADO DO
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TALLON, Miguel Depes. Memórias para o Colégio Estadual. In: GOVERNO DO ESTADO DO
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imaginário político brasileiro. Vitória: SPDC/UFES, 1995.
FONTES:
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Congresso Legislativo na 3ª sessão da 13ª legislatura, em 22 de setembro de 1930, pelo Dr. Aristeu Borges
de Aguiar, presidente do Estado do Espírito Santo. Vitória: [s.n], 1930.
ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria de Estado da Educação do Estado do Espírito Santo. Processo nº.
6.657/33. Vitória, Secretaria da Estado do Espírito Santo, 1933-1957.
ESPÍRITO SANTO (Estado). (1904-1908: Henrique da Silva Coutinho).Mensagem dirigida pelo Coronel
Henrique da Silva Coutinho, presidente do Estado, ao Congresso Legislativo do Espírito Santo na segunda
sessão da quinta legislatura. Victoria: Papelaria e Tipografia Nelson Costa, 1905.
ESPÍRITO SANTO (Estado). (1908-1912: Jerônymo Monteiro). Mensagem dirigida pelo Dr. Jerônymo de
Souza Monteiro presidente do Estado ao Congresso Legislativo do Espírito Santo na terceira sessão da
sexta legislatura. Victoria: Imprensa Oficial, 1909.
RELATÓRIO do diretor do Ginásio do Espírito Santo: período abril de 1918 – abril de 1919. Vitória:
[s.n.], 1919. Manuscrito.
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O Ginásio do Espírito Santo no contexto das políticas públicas