APRESENTAÇÃO aos professores de filosofia Além de servir como leitura e fonte de consulta, em sua intenção principal, este livro é dirigido para o uso em sala de aula do ensino médio, e de um modo geral, aos cursos de iniciação ao filosofar de outros níveis de ensino, inclusive o nível universitário. É sabido que a volta do ensino de filosofia nas escolas de ensino médio encontrou um quadro político-cultural muito diferente daquele vigente na década de 1970. Mudou a inserção do adolescente e sua família na vida social, está mudando o valor próprio e a importância cultural da ciência, da arte, da ideologia e da religião no seio da cultura ocidental. Surgiu uma demanda educacional de despertar e instrumentalizar e reflexão crítica nos processos de transmissão de conhecimento e de preparação para a vida que as demais disciplinas escolares não têm podido atender a contento, apesar de esforços de uma cultura escolar dita socioconstrutivista, atenta, portanto, aos processos mentais de como aprendemos e como pensamos. Este livro nasceu, ainda em 1992, da ideia de que essa demanda educacional poderia ser suprida configurando-se o ensino-aprendizagem de filosofia como um processo essencialmente formador de atitudes de pensamento reflexivo e crítico. O fato de que a formação de tais atitudes pressupõe o processo de desenvolvimento do pensamento abstrato que, em nossas escolas, é alimentado pelo ensino-aprendizagem das ciências, aponta o caminho seguido, qual seja, o de uma “viagem” ao mundo dos problemas de que se ocuparam os principais filósofos, para com eles experimentar a reflexão, a análise e a crítica. Não será uma viagem sem percalços: será um desafio ante os temas, ante a linguagem e ante os procedimentos próprios da construção conceitual, que no final das contas se revelará enriquecedor e prazeroso, quando instrumentalizado. Por essa razão é que se fugiu ao livro do tipo “manual”, que substitui a “formação” pela “informação” e que invoca os filósofos da tradição, não para pensar com eles e através deles, mas para constituí-los em autoridade inquestionável. O ponto de partida dessa instrumentalização consistirá em compreender a filosofia como problema e investigação, como labor de sustentação conceitual de certezas teóricas e de crenças práticas. No ponto de chegada dessa perspectiva, a filosofia, portanto, não poderá ser entendida como um saber fechado e completo, como pensamento já pensado e acabado, mas como um saber que se re-institui enquanto verdade, apenas quando re-pensado reflexiva e criticamente. Por isso, propõe-se que o saber filosósfico é aquele que emerge do filosofar, considerando este como a atividade atual e concreta de pensamento, pela qual temas do presente são postos em suspenso para análise e reflexão. Considerou-se, assim, que filosofar é, sobretudo, formular conceitualmente problemas que interessam ao pensar de hoje, e investigar as diferentes formas de resolvê-los por meio da elaboração de conceitos e de argumentos. Examinar questões por meio de conceitos e argumentos é justamente o que distingue a linguagem dos filósofos, instituída, ao longo dos séculos, como uma maneira peculiar e original de interrogar-se sobre a verdade das crenças e costumes, descritas por palavras, que muitas vezes têm o poder de enfeitiçar o entendimento das coisas e do ser do homem. Nesse sentido, a investigação filosófica propõe-se aqui como o livre exame das certezas estabelecidas e dos mecanismos de linguagem pelos quais estas adquirem vida social, ora construindo consensos e conversões, ora promovendo a guerra e a paz. Tal exame implica o domínio de níveis mais abstratos de utilização e funcionamento da linguagem conceitual, bem como a iniciação gradual nas técnicas e nos procedimentos da sustentação argumentativa das teses conceitualmente construídas. Se assim é, um curso de filosofia que se pretenda pedagogicamente específico deve se concretizar como uma iniciação à investigação. Por isso, os que começam no estudo proposto de filosofia são convidados a iniciar-se segundo o roteiro e os objetivos que se delineiam em três planos de iniciação à investigação filosófica, presentes em cada capítulo do livro. No primeiro plano dessa iniciação, são delimitados grandes conjuntos temáticos, dos quais sobressaem alguns problemas relevantes para a reflexão atual. Manejando os instrumentos do pensamento abstrato e analítico, e gradativamente cada vez mais recursos da linguagem conceitual, o iniciando buscará a solução desses problemas. Descobrirá que está diante de problemas filosóficos à medida que for conseguindo compreendê-los como problemas em torno do pensamento cuja validade só pode ser admitida pela boa amarração de conceitos e argumentos. Neste caso, diz-se que o pensamento não pode ser confrontado com uma medida experimental do mundo dos fenômenos, mas apenas pode ser confrontado consigo mesmo nos limites do uso da linguagem conceitual. Desse modo, se poderá reconhecer a especificidade do conhecimento filosófico, distinguindo-o das outras formas de apropriação da realidade pela inteligência humana. Sem dúvida, o filosofar é uma forma de apropriação da realidade, às vezes de modo intuitivo e impreciso de quem vislumbra horizontes ainda distantes; outras vezes, no modo de exame reflexivo e crítico dos discursos de outras formas de apropriação da realidade. Em ambos os casos, ganha-se agudeza e profundidade na percepção e análise do que está em debate. No segundo plano da iniciação filosófica proposta, o iniciando estabelecerá contato com textos dos principais pensadores clássicos da tradição. Aprenderá com isso que exercer atualmente o pensamento é estabelecer contato com uma cadeia de pensamentos, cuja forma e significado a memória histórica teve a incumbência de preservar. Também descobrirá que grande parte de tudo o que é pensado serve, sobretudo, para alimentar essa memória histórica, sem a qual o alcance da abstração intelectual fica reduzido aos dados da experiência concreta do momento presente. E, finalmente, no terceiro plano de sua iniciação à investigação filosófica, o iniciando produzirá seus próprios textos, entendendo estes não só como testemunhos ou relatórios de um filosofar transcorrido interiormente no pensamento, mas como expressão viva do filosofar objetivado nas práticas de conversação e leitura que expressam sua interação social via uso da linguagem argumentativa e conceitual. Descobrirá, assim, que as atitudes de reflexão crítica são formadas através de usos apropriados da linguagem conceitual e da forma argumentativa de funcionamento desta, a qual se desenvolve problematizando o que pode ser dito, bem como o grau de certeza e de sustentação “lógica” desse dito. Em todos os momentos dessa trajetória de iniciação, procurou-se afirmar a originalidade dessa atividade de reflexão e de crítica filosóficas, visando respeitar a especificidade dos métodos, técnicas e objetivos do filosofar consagrados pela tradição dos pensadores. Sem fazer uma história da filosofia, buscou-se, no entanto, demarcar os grandes momentos de afirmação dessa especificidade. Assim, o filosofar depara-se com a Natureza, com a Cultura e com a própria Razão, delineando retrospectivamente as etapas do processo de amadurecimento do Logos, que, como veremos, é o princípio de interpretação da origem e do porquê do que acontece, que desde os gregos antigos, e por toda a cultura europeia e cristã até nós, vem sendo consagrado como meio de acesso privilegiado à verdade das palavras, das coisas e do ser. Em suma, a ideia básica deste livro é que na cultura ocidental, herdeira do helenismo e consolidada por séculos de cristianismo, filosofar é uma atividade vital, origem e medida de tudo o que é feito e pensado com pretensão de legitimidade. Iniciar-se na investigação filosófica torna-se, assim, o processo de busca das bases e dos pilares que estruturam a nossa inteligência dessa realidade que há mais de vinte e seis séculos dizemos nossa, para nela imprimir o selo de nossa identidade civilizatória. A esperança que o autor alimenta é a de, dentro dos limites do espaço pedagógico do ensino-aprendizagem de filosofia no ensino médio, ter modestamente contribuído para o enraizamento de atitudes reflexivas e críticas, tão necessárias ontem como hoje ao fortalecimento da confiança do homem em si mesmo e no valor de suas realizações. Ou melhor, da confiança nos benefícios que a liberdade de pensar e de fazer promete aos que a cultivam. Embora a cultura filosófica ainda seja incipiente no Brasil, a experiência democrática que vem se consolidando demonstra que a liberdade de pensar e de participar como cidadão ativo é diretamente proporcional às habilidades de manejo da linguagem, especialmente naquela dimensão argumentativa que permite a construção de consensos razoáveis, apoiados em soluções e critérios os mais amplos e melhores, e por isso, filosoficamente verdadeiros. Campinas – SP, junho/1992.