O DEPOIMENTO PESSOAL A REQUERIMENTO DA PRÓPRIA PARTE COMO MEIO DE PROVA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL Tiago Bitencourt de David Tradicionalmente, entende-se que o depoimento pessoal consiste na oitiva da parte, a pedido da outra, visando à confissão. Eis a concepção conservadora e francamente dominante na prática jurisprudencial e na processualística brasileira. Apenas como exemplo de tal pensamento, traz-se à colação o comentário de Jorge Americano1 ao CPC/1939: "Desde que a confissão faz prova contra e não a favor do confitente, entende-se que tudo quanto o depoente alegar em seu favor nada vale senão quando haja nos autos outras provas que lhe sirvam de apoio". Tal concepção ainda ecoa forte nos pretórios e obras de Direito Processual Civil, ainda que sem a assunção clara dos pressupostos corajosamente assumidos por Jorge Americano. Jorge Americano assumiu o paradigma bem descrito por Perelman e Olbrechts-Tyteca2 como sendo aquele no qual não importa o efetivo convencimento do julgador, mas no qual é buscado o que deveria convencer, pois o sistema é estruturado de forma a desconsiderar a percepção e a sensibilidade do Magistrado impondo a ele que atribua um determinado peso a uma espécie de prova em detrimento da outra, estabelecendo uma metódica apriorística que visa objetivar o discurso de forma a dar um tom de cientificidade que se acredita já alcançado pelas ciências naturais. Como asseveram Arenhart3, Perelman e Olbrechts-Tyteca4, o empirismo tenta objetivar o discurso. 1 AMERICANO, Jorge. Comentários ao código de processo civil do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 350. 2 PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de argumentação. Lisboa: Piaget, 2007. p. 10. 3 ARENHART, Sérgio Cruz. A verdade e a prova no processo civil. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sérgio%20Cruz%20Arenhart(2)%20-%20formatado.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2011. 4 PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 10. 1 A concepção dominante resulta de uma noção duelística de processo, na qual uma parte, em regra, o autor, tenta submeter a outra em um jogo no qual o erro (confissão) é o lance mais esperado e no qual o que as pessoas têm a dizer vai solenemente ignorado quando não houver a confissão. Tanto é assim que, na vigência das Ordenações Alfonsinas, como noticia Moacyr Amaral Santos5, o depoimento pessoal era uma prova que só poderia ser produzida a requerimento do autor, mas nunca do réu. O caráter místico-religioso do depoimento pessoal mostra-se ao ser tratado como um giuramento no sistema jurídico italiano. Por isso, Luigi Paolo Comoglio, Ferri Corrado e Michele Taruffo6 explicam que tal meio de prova é visto, atualmente, como ultima ratio, vez que os italianos não conseguem mais acreditar nos depoentes em tempos de decadência da influência religiosa e a afirmação do Estado laico. Mais uma vez, revela-se que a fala no processo só possui valor em vista da confissão que, por sua vez, também possui uma utilidade místico-religiosa de incentivar o reconhecimento do erro para alívio do confitente7 (expiação), mas mais ainda, para o funcionamento de um sistema judiciário incapaz de lidar com a incerteza e com o erro8. Portanto, a concepção conservadora possui um ranço inquisitorial fortíssimo que antagoniza com a noção democrática, discursiva e cooperativa de processo. Essa é a posição mais tradicional a respeito do tema e que representa na prova a adoção das premissas dos positivismos jurídico e sociológico, sendo própria do Processualismo. De outra banda, Pontes de Miranda possui opinião no sentido de que o depoimento pessoal pode beneficiar o depoente, não servindo apenas à obtenção da confissão, inclusive criticando tal concepção adotada em aresto da Corte de 5 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1968. p. 143. 6 COMOGLIO, Luigi; CORRADO, Ferri, TARUFFO, Michele. Lezione sul processo civile. Bologna: il Mulino, 1998. p. 646 ss. 7 Aqui retomamos um diálogo via e-mail tido com Aury Lopes Jr. anos atrás. 8 A necessidade de incorporar-se ao Direito Processual Civil uma teoria sobre o erro é da autoria de Ricardo Aronne. 2 Apelação do Distrito Federal por ele censurado. Veja-se passagem do escólio abalizado de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda9: O enunciado de que o depoimento da parte não lhe aproveita, e pode apenas prejudicá-la, se há confissão, ou revelação de fato que sirva à argumentação da outra parte, é falso, porque nem sempre isso acontece. O depoimento tem, não raro, força convincente que, no processo com o princípio do livre convencimento do juiz, pode fazê-lo um dos fundamentos da convicção. [...] Assim, o dito "quando a parte confessa faz prova contra di mesma, e o quanto diz a seu favor de nada vale"(Corte de Apelação do Distrito Federal, 13 de novembro de 1922, B. do STF, 50, 60) deve ser repelido. Entretanto, insta apontar que, mesmo admitindo que o depoimento pessoal pode pesar a favor do depoente, Pontes de Miranda entende que ser-lhe-ia vedado requerer o próprio depoimento. Assim, Pontes de Miranda não admite que a própria parte requeira o seu depoimento pessoal, mas aceita que, uma vez prestado, pode ser utilizado favoravelmente em prol do prestador, servindo ao julgamento da causa. A mesma linha de entendimento é trilhada na atualidade por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, que, inclusive, buscaram nos ensinamentos de Pontes de Miranda sua fundamentação. Veja-se a passagem que externaliza o entendimento de Didier Jr., Sarno e Braga10: "A parte não pode requerer o seu próprio depoimento. As declarações de uma parte, contudo, podem servir como meio de prova em seu favor, na medida em que reforcem a convicção do Magistrado". No mesmo sentido, ainda há o entendimento de João Batista Lopes11. João Batista Lopes12 ainda traz ilustrativo julgado sobre o tema: 9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, t. IV, 1974. p. 267 e 268. 10 BRAGA, Paula Sarno; DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. 5. ed. Salvador: JusPodivm, v. 2, 2010. p. 108. 11 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 102 e 103. 12 Idem, ibidem. 3 Em acordão relatado pelo Juiz Ivan Rihhi, a 1ª Câmara Cível do extinto Tribunal de Alçada do Paraná deixou assentado, por maioria de votos: "Nem se diga que o depoimento da parte litigante não possa beneficiá-la em juízo, aumentando-lhe a perspectiva de obter ganho de causa. Essa possibilidade foi suficientemente demonstrada, na Itália, por Mauro Cappelletti (La testimonianza della parte nem sistema dellóralità) e, no Brasil, por Moniz de Aragão (Exegese do código de processo civil. Rio de Janeiro: Aide, v. IV, t. I, 1981. p. 146). Eis o entendimento do jurista por último citado: No texto comentado (que é o do art. 343), cuida o Código do interrogatório com função probatória, a que denomina, com redundância tradicional, 'depoimento pessoal', muito embora todo depoimento seja pessoal. Contrariamente ao interrogatório previsto no artigo anterior, o depoimento da parte é meio de prova e como tal deve ser tratado. Nele se encontra manifesta infração ao princípio nullus testis in re sua auditur (nenhuma testemunha seja ouvida em causa sua), pois o litigante pode produzir prova em seu próprio favor (pro se declaratio) não só quando presta 'depoimento pessoal', mas em outras situações igualmente reconhecidas nas leis processuais (p. ex. confissão, art. 354; assentamentos mercantis, art. 379). Em todos esses casos fica afastada a idéia de o testemunho da parte (ou de outro litigante no processo, como o litisconsorte, p. ex.) só ter valor naquilo em que contraria o seu próprio interesse (contra se declaratio), a partir do momento em que foi atribuída ao juiz ampla liberdade na apreciação da prova (art. 131), as restrições ao testemunho pro se enfraqueceram-se sobremodo". (RT 601/209) Existe, ainda, uma terceira corrente que sustenta que tanto depoimento pode pesar em favor do depoente quanto que ele próprio pode requerer sua própria oitiva. Admitindo expressamente que a própria parte pode requerer o seu depoimento pessoal, encontram-se, pelo menos, os posicionamentos de Michele Taruffo13, Cassio Scarpinella Bueno14 e Eduardo Cambi15. 13 TARUFFO, Michele. Simplesmente la verdad: el juez y la construcción de los hechos. Madrid: Marcial Pons, 2010. p. 169 e 170. 14 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, v. 2, t. I, 2007. p. 243. Na terceira edição da mesma obra (Curso sistematizado de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, t. I, 2010), a posição foi mantida, sendo apresentada nas páginas 285 e 286. 15 CAMBI, Eduardo. A prova civil. São Paulo: RT, 2006. p. 163 e 164. 4 Michele Taruffo 16 aponta, como dois extremos a respeito do tema, a Itália e a Alemanha, onde na primeira nem mesmo quem poderia ter sido parte pode testemunhar, ao passo que na segunda a própria parte pode falar em seu favor na qualidade de testemunha no instituto do Partenvernehmung. Taruffo17 ainda coloca ao lado da Alemanha os países da common law como admitindo o testemunho em causa própria. Nas palavras de Michele Taruffo18: En estos ordenamientos el legislador no se ha preocupado, obviamente, de excluir de forma preliminar el testimonio de sujetos que podrían ser partes en la causa, pero no lo son. Naturalmente, la admisibilidad del testimonio de las partes, y de los posibles intervinientes, no se basa en uma falta de preocupación epistémica por parte del legislador, sino el convencimiento - epistémicamente correcto - de que el juez está perfectamente en condiciones de valorar la credibilidad de testigos que tienen un interés en la causa, con la debida cautela respecto de la fiabilidad de sus declaraciones, pero también con la posibilidad de extraer de ellas cuanto pueda resultar razonablemente útil para la determinación de la verdad. Por consiguiente, lo que resulta epistémicamente oportuno es la admisibilidad de estos testimonios, y no su exclusión; su exclusión, que termina por privar al juez de fuentes de conocimiento potencialmente útiles para el juicio sobre los hechos, resulta, en cambio, fuertemente contraindicada. Na mesma linha, Eduardo Cambi19 admite a oitiva requerida pela propria parte na condição de lidima prova testemunhal. Veja-se a posição de Cambi20 vazada nos seguintes termos: O impedimento de a parte ser considerada testemunha está baseado na incompatibilidade entre as duas posições que não pode ser conciliadas, uma vez que a parte, por ter interesse na causa, não pode fornecer uma declaração isenta de interesse, o que pode comprometer a sua credibilidade. Em outras palavras, as partes têm interesse no resultado da causa; por isso, as suas alegações e as suas 16 TARUFFO, Michele. Op. cit., p. 169 e 170. Idem, ibidem. 18 Idem, ibidem. 19 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 163. 20 Idem, ibidem. 17 5 declarações não podem servir como prova em seu benefício (nullus idoneus testis in re sua intelliitur). No entanto, esse argumento não é suficiente para inviabilizar o exercício do direito constitucional à prova, sobretudo nas situações em que a vítima se encontra sozinha, sob pena de a tutela jurisdicional de seu direito substancial ser prejudicada pela impossibilidade do exercício do direito à prova (v.g. nas ações de reparação de danos por acidentes automobilísticos em que ambos os motoristas saem feridos e imputam ao outro a conduta lesiva; nas ações de reparação decorrentes de autoacidentes, como a ingestão de comida enlatada ou congelada estragada ou, ainda, do consumo de remédios cujos efeitos colaterais não estão especificados na bula, bem como de todo produto ou serviço nos quais as especificações não eram claras no momento em que o contrato se concretiza, etc.). Segundo Cassio Scarpinella Bueno21, o depoimento por iniciativa da própria parte deve ser admitido na qualidade de prova atípica: Não há razão para recusar que a própria parte possa pretender, independentemente de determinação judicial ou de pedido formulado pela parte contrária, prestar seu depoimento em juízo para esclarecer fatos relevantes e pertinentes da causa. Justamente porque a prova não e expressamente prevista pelas leis processuais civis brasileiras é que ela deve ser entendida como prova atípica e, nessa medida, admitida. Cassio Scarpinella Bueno entende que se trata de prova atípica, ao passo que Michele Taruffo e Eduardo Cambi admitem a prova na qualidade de testemunho. Contudo, parece não haver qualquer óbice que se admita a fala da parte - a seu próprio pedido - como autêntico depoimento pessoal. O que menos importa é a que título, sendo o mais relevante a questão da admissão que a pessoa vá até a presença do Magistrado e seja, de fato e de Direito, ouvida. 21 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, t. I, 2010. p. 285. 6 A possibilidade de requerimento e aproveitamento do depoimento requerido pela própria parte revela-se como a postura mais consentânea com o perfil atual do processo. A fala e a audição atenta são o modo de ser do modelo processual democrático e cooperativo, revelando-se como autênticas garantias do Direito Processual Civil brasileiro contemporâneo. Revela-se de todo equivocado presumir a mentira por parte da parte naquilo que lhe favorecer e, por isso, excluir as porventura valiosas informações que possam estar sendo trazidas ao processo. Impõe-se promover a dignidade dos envolvidos no processo, sem ficar à espera da mentira, como se fossem preparadas arapucas e como se a Jurisdição fosse uma instituição que buscasse a verdade - ao invés da certeza jurídica -, castigando quem à ela se opusesse, identificando pecadores, esterilizando as impurezas, as dúvidas, hipostasiando o aspecto declaratório dos provimentos jurisdicionais. O direito (garantia) de requer sua própria oitiva é manifestação intrínseca e necessária do direito de influenciar e participar no processo, sendo desarrazoada porque arbitrária - a sua exclusão do plexo de posições inerentes às partes no Direito Processual Civil. 7