Em defesa da Saúde Pública e do Doente. Contra a sacralização do consumo e a ausência de critérios científicos nas decisões e d i t o r i a l Bastonário revista ordem dos farmacêuticos O Programa do Governo merece, no que respeita à Saúde, uma concordância genérica por parte da Ordem dos Farmacêuticos, na medida em que aí se encontram diversas medidas estruturantes para a melhoria da prestação de cuidados de saúde. De facto, a Ordem dos Farmacêuticos apenas assinalou as suas reticências face a medidas sem fundamento explícito ou que tinham intenções pouco precisas. A respeito da desnecessária polémica sobre medicamentos não sujeitos a receita médica, a Ordem dos Farmacêuticos, para além da sua obrigação pública de alerta para os conhecidos riscos inerentes a essa medida, avançou com um estudo sério e formulou propostas sobre os moldes em que o desígnio político pode ser aplicado sem fragilizar pilares essenciais de Saúde Pública. De facto, e baseados na evidência científica já disponível em relação aos poucos países onde tais práticas existem, foram elaborados dois extensos pareceres suportados na competência farmacêutica para, fundamentadamente, emitir uma opinião técnica em relação a medicamentos não sujeitos a receita médica. Do mesmo modo, e cumprindo o dever de participar activamente na definição e execução das políticas de saúde pública, a Ordem dos Farmacêuticos promoveu dezenas de reuniões clarificadoras com o Ministério da Saúde, a Comissão de Saúde da Assembleia, Grupos Parlamentares e Partidos Políticos, apresentando também uma solução equilibrada e fundamentada na experiência existente nos poucos países europeus onde tal medida existe. Tal solução passa por uma lista restrita de medicamentos, com doses e embalagens adequadas, tal como acontece na Noruega, Dinamarca e Reino Unido. O sistema europeu do medicamento, assente em entidades reguladoras independentes e cientificamente creditadas, baseia-se numa avaliação sistemática, por peritos independentes e idóneos, que tem colocado os medicamentos fora do âmbito da especulação política ou de mero comentário pseudo-avalizado. As importantes razões de saúde pública a isso o têm obrigado e será de elementar retrocesso qualquer subversão e imposição de transitórios critérios político-administrativos. Globalmente, os critérios de racionamento económico ou critérios puramente políticos são aceitáveis e naturais ao nível da decisão política, mas serão intoleráveis numa sociedade moderna ao nível da avaliação e decisão científica. O surgimento do denominado “Relatório Constâncio” recolocou preocupações legítimas em torno do desequilíbrio das contas públicas e da necessidade de promover urgentes medidas de contenção nas despesas do Estado. Neste contexto, e porque encarado como sector crónico de despesa descontrolada, também a Saúde foi alvo de um pacote de medidas mais ou menos drástico. Em relação a algumas delas, a Ordem dos Farmacêuticos já manifestou que podem estar em causa a equidade e o acesso de cidadãos aos cuidados de saúde. No entanto, e mais decepcionante, é o facto de se assistir ao anúncio e preparação de medidas que apenas visam o imediato, sem impacto estruturante ou reformista, penalizando objectivamente os doentes, e que, sendo em larga medida reversíveis com o tempo, suscitarão a necessidade de novas e mais duras medidas, implicando a redução dos apoios aos doentes do nosso país. A este respeito, a Ordem dos Farmacêuticos reafirma que as verdadeiras soluções existem e são conhecidas, estando muitas delas explícitas no próprio Programa do Governo. A decisão em Saúde não se pode apenas limitar à gestão do imediato ou ao corte cego da despesa. Tanto mais que a experiência comprova que esta modalidade apenas faz ganhar alguns meses, aumentando ainda mais a factura, económica ou social, que acabaremos sempre por pagar, de uma forma ou de outra, impondo mais sacrifícios e iniquidades. A decisão ajustada em saúde, tendo em conta também a realidade económica do país e o próprio Programa do Governo, centra-se na verdadeira promoção de Saúde Pública, apostando na prevenção, minimizando as complicações e problemas de saúde, tendo como enfoque a racionalidade e sustentabilidade das despesas públicas para a qualidade de vida da população, assim como o desenvolvimento de políticas que promovam a prescrição e utilização racional dos medicamentos. Pela parte dos farmacêuticos portugueses, a comprovada e reconhecida competência e a procura de contributos positivos para a reforma do sistema de saúde continuarão a nortear uma profissão que, detentora de elevada perícia técnico-científica, disponibiliza diariamente mais de 400 000 aconselhamentos e intervenções orientadas para os doentes no nosso país, com custos controlados e transparentes, em mais de 3 500 farmácias de oficina e laboratórios de análises clínicas. Centrados nos interesses e necessidades dos doentes, os farmacêuticos continuarão a manter-se unidos e concentrados na melhoria da sua prestação junto dos que mais valorizam a sua intervenção e a sua verdadeira razão de ser: os doentes. Independentemente de ataques, mais ou menos cíclicos, em relação a uma profissão com provas dadas, a atitude farmacêutica e o sector farmacêutico continuarão a investir na disponibilização de cuidados de saúde de elevada qualidade, pautados pelo rigor profissional, pela ética supervisionada e pelo exemplo praticado. Contrariamente a muitos sectores do nosso país, a atitude dos farmacêuticos não se deixará inquinar pela dominância de invejas em relação a intervenções e atitudes reconhecidas como casos de sucesso e boas práticas avançadas. Felizmente, para o nosso país, as actividades farmacêuticas estão hoje a um nível de elevado reconhecimento internacional e harmonizadas com as melhores e mais eficazes tendências promulgadas pelas máximas entidades mundiais em saúde. Mas, infelizmente, continuamos a assistir a recorrentes ataques que tentam pôr em causa aquilo que funciona bem, desviando-nos muitas das vezes dos cruciais problemas que afectam o nosso sistema de saúde. A ausência de argumentos científicos que justifiquem opiniões ou a fragilidade de alguns argumentos populistas aparentam ombrear em oposição aos exigentes critérios que, a nível europeu, estão consagrados na área do medicamento, através da própria legislação europeia ou da prática corrente na maioria dos seus países. O próprio ultraliberalismo conservador, que ainda se invoca como modelo, está em retrocesso nos poucos países onde predominava, em particular no âmbito da saúde, tendo sido travado pelas relevantes consequências e prejuízos sociais. A defesa da Saúde Pública como pilar de intervenção contra a liberal sacralização do consumo de medicamentos, que desprotege os cidadãos, deverá continuar a ser assim uma preocupação dos farmacêuticos portugueses. É neste contexto que a Ordem dos Farmacêuticos pautará a sua intervenção, incidindo também na rigorosa regulação da profissão, no reforço da intransigência para aqueles que, através da sua prática individual, ponham em causa os objectivos profissionais de defesa dos interesses do doente e da Saúde Pública, nomeadamente em relação a eventuais más práticas na dispensa e aconselhamento de medicamentos, ou o afastamento de farmácias, pelo seu aspecto ou tipo de produtos dispensados, da sua vocação de espaço de saúde, em observância pela vasta regulamentação aplicável à ética e deontologia do exercício farmacêutico. Um momento de desafio é, claramente, um momento de oportunidade para demonstrar inequivocamente quais os valores por que nos regemos na profissão, e, desse modo, os farmacêuticos portugueses continuarão a manter uma forte coesão e sentido de missão, unindo esforços através das diversas estruturas de intervenção, associativas, cooperativas ou outras, bem como individualmente, em torno das expectativas dos milhares de doentes que apoiam diariamente. editorial A decisão política em saúde não pode assim dar-se ao luxo de ignorar ou contrariar a evidência científica e a perícia técnica. O exemplo alcançado com a redução da mortalidade infantil no nosso país nas últimas décadas prova que, perante um quadro de decisão política sustentada na evidência científica e técnica, se alcançam resultados de marcado sucesso, com economias e poupanças significativas de recursos e meios só comparáveis aos maiores benefícios sociais advindos. Importa assim aliar à melhor prática política a sustentabilidade dos referenciais técnicos e científicos, sob pena de continuarmos a cavar o fosso de distanciamento entre as realidades da economia e da saúde do nosso país e também face aos nossos congéneres mais próximos. Aranda da Silva Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos revista ordem dos farmacêuticos