A abordagem das doenças cardiovasculares em saúde pública
Conferência
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CARDIOLOGIA E SAÚDE PÚBLICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
ABORDAGEM DAS DOENÇAS CARDIOVASCULARES EM SAÚDE
PÚBLICA
ALOYZIO ACHUTTI*
Um dos assuntos discutidos na última Assembléia Geral
da Sociedade Brasileira de Cardiologia em Belo Horizonte,
em agosto de 1986, tratou da produção científica nacional
na área de cardiologia; e, como não poderia deixar de ser,
do papel e do prestígio dos Arquivos Brasileiros de
Cardiologia. Não pretendendo examinar todo o domínio da
Cardiologia mas considerando apenas um aspecto particular,
num simples exame superficial dos índices de nossa revista,
fica ostensiva a reduzida proporção das contribuições
voltadas para o processo saúde-doença como um fenômeno
social. Embora a formação profissional dos especialistas e
toda a experiência clínica acadêmica esteja baseada na
observação de pacientes isolados ou somente de seus órgãos
ou tecidos (observações geralmente realizadas em hospitais
e laboratórios, obviamente fora das condições naturais de
vida), o senso comum é suficiente para apreciar a
importância da dimensão social de nosso objeto de estudo,
onde provavelmente se escondem respostas para muitas
perguntas ainda abertas,apesar de todos os esforços
realizados pela comunidade científica.
A epidemiologia cardiovascular consiste, em sua
acepção mais ampla, na busca, através de estudos
populacionais, das causas de mudanças da condição
de saúde ou doença, nos seus fatores de risco e nos
esforços para a preservação da saúde. A preservação
de danos maiores e reabilitação têm sido cada vez mais
valorizadas 1-4.
A perspectiva social da cardiologia e sua importância
em Saúde Pública tem um interesse redobrado quando o
Ministério da Saúde, em boa hora, resolve incluir dentro
de suas prioridades o conjunto das doenças
cardiovasculares 5,6.
A mortalidade proporcional por doenças
cardiovasculares para todas as regiões do País (tab. I),
mostra a importância, também para o Brasil, do objeto do
trabalho dos seus cardiologistas.
Embora nossas estatísticas cubram não mais de 3/4 de
todos os óbitos ocorridos e haja motivo para suspeitar da
qualidade de parte das informações, pois a freqüência das
causas mal definidas diminui a sua confiabilidade, mesmo
assim o tamanho dos números e a consistência da posição
ocupada por este grupo de doenças não permite mais que
ele seja ignorado. Além disso, pode-se constatar, mesmo
nas regiões com desenvolvimento social mais precário, uma
mudança do perfil da mortalidade do País com menor
relevância de grupos de causas de morte que se constituíam
na preocupação quase que exclusiva das autoridades
sanitárias.
TABELA I - Mortalidade proporcional segundo grupos de causas
de morte. Grandes regiões do Brasil, 1982.
Grandes Regiões
Causas de morte B/R
Norte Nordeste Centroeste Sudeste Sul
Cardiovasculares
26 15
14
21
32
32
Neoplasias
9
6
4
7
10
12
Causas externas
10 11
7
15
10
12
Respirarias
8
6
4
7
10
8
Infec. parasit.
8 15
9
10
7
5
Perinatais
7 10
6
8
8
7
Mal definidas
21 26
46
19
19
14
Demais causas
11 11
10
13
14
10
Totais (%)
100 100
100
100
100 100
Fonte: MS/SNABS/DNE 7
No intuito de contribuir para a discussão da
epidemiologia das doenças cardiovasculares no Brasil, são
apresentados resultados de investigações das quais tenho
participado, antecedidas de uma “provocação” de âmbito
mais geral, com vários trechos de um documento por mim
apresentado em março de 1986 em Genebra, na reunião
do Comitê Diretor da Secção para Doenças
Cardiovasculares da Organização Mundial da Saúde (o
“WHO-Cardiovascular Diseases Steering Committee”) 8.
Quatro linhas de idéias merecem ser discutidas no
momento em que se tenta a abordagem da cardiologia como
objeto de saúde pública no Brasil.
Discrepâncias entre a realidade individual e a
populacional
Essa primeira idéia não deve ser nova para quantos
tenham tentado aplicar em escala populacional
conhecimentos adquiridos na prática clínica
individual e poderia ser expressa através das seguintes
expressões:
Chefe do Serviço de Prevenção de Doenças Crônico-Degenerativas da Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do
Sul.
Arq. Bras. Cardiol. 48/5 271-274 - Maio, 1987
272
Arquivos brasileiros de cardiologia
a) Medidas de controle de comprovada eficácia podem
se mostrar de difícil ou impossível implementação
quando é tentada sua aplicação em mais larga
escala.
b) Medidas mais complexas e dispendiosas, ao mesmo
tempo menos eficazes e menos aplicáveis, têm sido
efetivamente implantadas antes e muitas vezes em vez de
outras menos dispendiosas, mais simples, mais eficazes e
de mais ampla aplicabilidade.
Dito de outra forma, existe um importante hiato entre
o idealizado e o real, entre o projeto de demonstração
bem-sucedido e sua extensão entre a proposta e o
resultado.
Ao menos três autores recentemente se ocuparam com
as implicações metodológicas desse tema, publicando
artigos fundamentais que deveriam ser lidos por todos os
cardiologistas 9-11. As frustrações relacionadas com a
transposição da experiência individual para a coletiva não
é peculiaridade de países com problemas socioeconômicos
ocorrem em qualquer parte do mundo e são freqüentes nas
tentativas de aplicação extensiva de pesquisas laboratoriais
ou de pesquisas clínicas realizadas em indivíduos isolados
ou em pequenos grupos de pacientes selecionados.
Afora as razões metodológicas apontadas, um outro
conjunto de possíveis explicações deve existir, não
estritamente ligado a fatores biológicos ou fisiopatológicos,
nem à disponibilidade de recursos, mas a fatores de
natureza política, socioeconômica e ideológica, por demais
importantes para serem ignorados.
Na análise desse conjunto de razões, três linhas de
discussão podem ser seguidas, todas aplicáveis quando
relativas à saúde da população adulta, conforme vêm
sendo discutidas na Organização Panamericana da
Saúde 12 e apresentadas abaixo.
Abordagem integrada dos problemas de saúde
A primeira estratégia de abordagem dos problemas
cardiológicos como objeto da Saúde Pública tentou reunir
em programas específicos (Prevenção da Doença
Reumática, da Doença Hipertensiva) conhecimentos
adquiridos na prática de especialistas, apenas dando
ênfase àqueles aspectos mais aplicáveis em serviços
básicos de saúde (de menor complexidade organi zacional).
Num segundo momento, constatada a impossibilidade de
estender a cobertura (atender toda a população) na dependência
de especialistas, viu-se que atividades menos complexas, por
sua vez as mais extensamente necessárias, podiam ser
transferidas juntamente com outras procedentes de outras
especialidades, para os mesmos agentes de saúde responsáveis
pelos cuidados primários (assistência aos problemas
emergentes) abordando-os precocemente em sua história
natural.
Na mesma linha, procurando abordar problemas
de saúde cada vez mais precocemente, surge um terceiro momento de preocupação com os fatores de risco
272
comuns a muitas doenças crônicas e também intimamente
associados em nível populacional. Tenta-se aplicar experiências
bem- sucedidas em países desenvolvidos, com populações mais
homogêneas e com necessidades básicas mais bem atendidas
em países com condições diferentes.
Algumas considerações nesse particular parecem ser
relevantes: a) a origem desses fatores de risco geralmente
reside fora do setor saúde, fora do alcance direto dos
serviços médicos. Os profissionais, portanto, somente
estão capacitados para chamar a atenção para a presença
dos mesmos e de mobilizar forças sociais para enfrentálos; b) as pessoas econômica e culturalmente em
desvantagem e que constituem fração relativamente
grande da população de países economicamente menos
desenvolvidos, geralmente são menos livres para optar
por mudanças, têm menos alternativas para escolher e
levam mais tempo para incorporarem a seus hábitos diários
os frutos dos avanços nos conhecimentos da Saúde
Pública; c) propostas para estilos de vida mais saudável e
para proteger-se da exposição a fatores de risco para
doenças mais remotas, podem conflitar as necessidades
mais fundamentais e riscos mais imediatos e ostensivos;
d) populações oprimidas geralmente não têm motivo para
acreditar nas recomendações oriundas de estratos sociais
privilegiados ou emanadas das instituições que não lhes
resolvem problemas mais prementes.
Credibilidade dos serviços de saúde
Freqüentemente planos bem arquitetados em nível
central são mal-sucedidos em sua aplicação prática porque
não levam em conta aspectos organizacionais críticos,
dos quais depende qualquer operacionalização. Nesse
sentido nunca é demais insistir na necessidade de
investir na discussão de aspectos que não estão
relacionados diretamente com a especificidade
fisiopatogênica e terapêutica para os quais os
especialistas cuidadosamente se preparam, mas que são
críticos e sem os quais todas as boas intenções e o
conhecimento acadêmico ficam frustrados.
A economia de mercado, independentemente dos
esforços governamentais em sentido contrário,
inevitavelmente termina por influenciar a qualidade dos
serviços públicos e o comportamento dos profissionais
que os atendem. Os recursos destinados à saúde tendem
a ser muito menores do que as necessidades e
desproporcionalmente pequenos com relação àqueles
existentes, em outros setores. Nesse sentido, as
organizações governamentais de saúde têm pouca
competitividade e agressividade.
Simultaneamente, observa-se entre os balhadores
de saúde e planejadores, e mesmo entre os
beneficiários do setor, uma atitude inconveniente que
confunde serviços de saúde com caridade, raramente
produzindo uma dedicação comprometida com o
resultado final da tarefa.
A abordagem das doenças cardiovasculares em saúde pública
O conjunto desses fatores produz um sistema que
utiliza preferencialmente tecnologia avançada - ambas,
comercialmente mais lucrativas para a indústria e para os
serviços, tendendo a ser financeiramente mais atrativas
para os profissionais ou, ao menos, capaz de distingüilos dos colegas ou capaz de gerar algum outro tipo de
ganho secundário. Um sistema assim montado tende a
atuar somente em etapas mais avançadas das doenças,
contrapondo-se à estratégia da abordagem precoce da
qual já se falou.
Ao mesmo tempo, os serviços básicos de saúde,
enquanto sustentados pelo governo, com o aparente
propósito de contrabalançar as distorções do livre
mercado, composto como eles são, de profissionais mal
pagos, com falta de motivação ou estímulo para melhorar
a qualidade do serviço prestado, produzem uma reação
em cadeia de desinteresse na comunidade e desrespeito
pelos próprios serviços e o inevitável fracasso na tarefa
a que se propõem. Especialmente no contexto do controle
de doenças não transmissíveis, onde muito depende do
desenvolvimento ou da adoção de valores culturais que
promovam mudanças do comportamento individual ou
social, a existência de empatia entre aqueles que
transferem estes valores e aqueles que os devem receber,
é essencial.
Felizmente esse tema tem sido discutido com muita
freqüência a partir da 8.ª Conferência Nacional de Saúde,
com vistas à Constituinte, podendo-se esperar um
ambiente mais favorável às mudanças tão necessárias
que venham a se concretizar com a tão esperada Reforma
Sanitária 13 .
Planejamento Estratégico
O que faz com que certos planos dêem resultados
e outros, aparentemente contando com todos os
elementos técnicos necessários, estejam fadados à frustração?
Pode-se rapidamente deduzir que o que está faltando
para garantir o sucesso não se encontra facilmente no
domínio das ciências médicas ou biológicas, mas
esteja mais acessível no domínio das ciências po-líticas e
sociais.
Um dos aspectos importantes no planejamento deve
ser o da mobilização da comunidade, não somente por
causa das raízes relativamente inacessíveis dos fatores
de risco, conforme já foi discutido, mas também para obter
mais recursos para o setor saúde, sem o qual “saúde para
todos no ano 2000” não passará de um “slogan”.
Além disso, parece necessário reconsiderar as
inseparáveis ligações entre saúde e a dimensão social,
reativando discussão antiga, porém, relevante
concernente ao conceito de saúde que não se pode
restringir aos limites dos serviços de assistência médica.
Este tema é cada vez mais relevante na medida que fica
evidente em nossa sociedade atual a existência de
forças que levam populações inteiras a se exporem,
em intensidade e duração cada vez maiores, não so-
273
mente a riscos com conseqüências de longo termo
(sedentarismo, tabagismo, etc...), mas também a riscos de
conseqüências mais ostensivas e imediatas (violência urbana,
acidentes, etc. ... ), acrescidos de uma progressiva acomodação
com idéias de conseqüências muito mais extensamente
destrutivas como a opres-são e a guerra...
Os mesmos movimentos que levam a considerar não
somente um órgão doente mas todo o ser humano, devem
levar tambéma inserir osproblemas das doenças
cardiovasculares dentro do contexto global de saúde, num
mundo onde não são as fronteiras políticas que discriminam
as populações, mas as condições sociais nas quais esses
mesmos grupos de seres humanos estão situados, isto é,
entre os privilegiados ou entre os socialmente oprimidos,
independentemente de longitude, latitude, país, estado
ou bairro onde vivam.
A relevância da dimensão social precisa ser reconquistada na busca das pedras que faltam para completar o quebra-cabeças da Cardiologia Preventiva.
CONCLUSÕES
1. O grupo das doenças cardiovasculares alcança no
Brasil um lugar entre os problemas prioritários em Saúde
Pública.
2. As doenças cardiovasculares, como todo o fenômeno
saúde-doença precisam ser anlisadas em sua dimensão
populacional (epidemiológica).
3. A utilização de conhecimentos obtidos a partir da
observação individual para interpretar informações
epidemiológicas deve ser feita com extremo cuidado, ainda
mais quando se tratar da orientação de programas de
intervenção em Saúde Pública.
4. Devem-se procurar explicações no domínio das
ciências políticas e sociais para analisar as dificuldades na abordagem populacional dos problemas de
saúde.
5. Também ao grupo das doenças cardiovasculares é
aplicável o princípio da maior eficácia da inter-venção
quanto mais precocemente essa incida na história natural.
6. Em etapas precoces da história natural
encontram-se fatores de risco comuns para várias
doenças não-transmissíveis, freqüentemente
superpostos, sugerindo a possibilidade de as
intervenções poderem ser integradas, sem exigir maior
complexidade na organização dos serviços.
7. É necessário se examinar e solucionar os problemas
organizacionais dos serviços básicos de saúde ao se
incluir as doenças cardiovasculares e outras doen-ças
crônicas entre os seus objetivos.
8. A competência técnica em assuntos estritamente
biológicos na especialidade não é suficiente para
enfrentar a dimensão social dos problemas de saúde.
9. O controle de certas doenças e a saúde da população só
serão alcançados através de uma abordagem
274
Arquivos brasileiros de cardiologia
mais ampla do fenômeno saúde-doença, da qual os
especialistas não se podem omitir.
10. A participação ativa e responsável da própria
população é essencial para garantir a qualquer programa
uma real adequação às necessidades dessa mesma
população, alcançando também objetivos cujas raízes
localizam-se fora do setor saúde.
6.
Ministério da Saúde- DNDCD- Programa Nacional de Controle
e Educação de Hipertensão Arterial- Brasília, 1986.
7.
Ministério da Saúde- SNABS/DNE Estatísticas de mortalidade
Brasil/1982. Brasília, 1985.
8.
Achutti, A. - Some considerations about public health approach
to cardiovascular diseases (with particular emphasis to their
applications among the socially less privileged). Discussion
Paper (1) Cardiovascular Diseases Steering Committee World
REFERÊNCIAS
Health Organization Geneva, 1986
9.
1.
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Rose, G. - Sick individual and sick populations. Int. J. Epid 14:
32, 1985.
cardiovasculares-1 Crónica de la OMS, 28: 60, 1974
10. Doll, R. - Prospects for prevention. Br. Med. J. 286: 445, 1983.
2.
Idem-2. Ibidem Crónica de na OMS, 28: 126, 1974.
11. Blackburn, H : Jacobs, D, - Sources of the diet heart controversy:
3.
Idem-3. Ibidem- Crónica de Ia OMSE 28: 209, 1974.
4.
Organización Panamericana de la Salud. Informe Final del
12. Organización Panamericana de la Salud: Protección y Promoción
de la OMS, XXXVII Reunión. Washington, DC, 23-28 de
de la Salud del Adulto. Propuesta de Desarrollo Operacional
Ministério da Saúde. DNDCD. Controle das Doenças NãoTransmissíveis no Brasil. Brasília, 1986
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Circulation, 70:775- 1984
Consejo Directivo de la OPS, XXI Reunión. Comité Regional
septiembre de l985.Documento oficial 203, 1986, p. 23.
5.
confusion over population versus individual correlations.
Washington, 1985
13. VIII Conferência Nacional de Saúde. Relatório Final. Brasília,
1986.
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cardiologia e saúde pública: considerações sobre a abordagem das