1 2 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) – Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA ________________________________________________________________ Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários (4.: 2013: Belém, PA) [Anais do] IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários [recurso eletrônico] / Organização: Germana Sales, [et al.] . ---- Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2013. 423p. : il. Modo de acesso: <http://www.ufpa.br/ciella/> Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 24 a 27 de abril de 2013. ISBN: 978-85-67747-01-9 1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e conferências. I. Sales, Germana, org. II. Título. CDD -22. ed. 410 ___________________________________________________________________ 3 COMISSÃO ORGANIZADORA Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Presidente da comissão organizadora Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras Dra. Germana Maria Araújo Sales Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras Ma. Cinthia de Lima Neves Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos) Ma.Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras Msc. Edvaldo Santos Pereira (UFPA) Ma. Eliane Costa (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos) Ma. Izenete Nobre (UFPA/UNICAMP) Jaqueline de Andrade Reis (UFPA) Juliana Yeska (UFPA) Discente da Faculdade de Letras Márcia Pinheiro (UFPA) Discente da Faculdade de Letras Ma. Marília Freitas (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos) Sara Ferreira (UFPA) Discente da Faculdade de Letras Ma.Silvia Benchimol (UFPA/Campus de Bragança) Ma. Simone Negrão Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos) Thais Fiel (UFPA) Discente da Faculdade de Letras Thiago Gonçalves (UFPA/UERJ) 4 Veridiana Valente Pinheiro (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) Wanessa Regina Paiva da Silva (UFPA/UERJ) 5 COMISSÃO CIENTÍFICA Prof. Dr. Abdelhak Razky (UFPA) Prof. Dr. Alvaro Santos Simões Junior (UNESP) Profa. Dra. Ana Cristina Marinho (UFPB) Profa. Dra. Andréia Guerini (UFSC) Profa. Dra. Antônia Alves Pereira (UFPA/Altamira) Profa. Dra. Aurea Suely Zavam (UFC) Prof. Dr. Benjamin Abdala Júnior (USP) Profa. Dra. Carmem Lúcia Figueiredo (UERJ) Prof. Dr. Daniel Serravalle de Sá (UFPA/Marabá) Prof. Dr. Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti (UFBA) Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ) Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (UFC) Profa. Dra. Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT) Profa. Dra. Gláucia Vieira Cândido (UFG) Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães (USP) Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA) Prof. Dr. José Horta Nunes (UNICAMP) Prof. Dr. José Sueli Magalhães (UFU) Profa. Dra. Josebel Akel Fares (UEPA) Profa. Dra. Juliana Maia de Queiroz (UNESP) Prof. Dr. Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN) Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN) Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa Di Fanti ( PUC-RS) Profa. Dra. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA) Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos (UFPI) Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF) Profa. Dra. Marly Amarilha (UFRN) Profa. Dra. Milena Ribeiro Martins (UFPR) Profa. Dra. Odalice de Castro Silva ( UFC) Prof. Dr. Otávio Rios Portela (UEA) Prof. Dr. Rauer Rodrigues Ribeiro (UFMT) 6 Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza (UFRJ) Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Profa. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC) Profa. Dra. Silvia Lucia Bijongal Braggio (UFG) Profa. Dra. Simone Cristina Mendonça (UFPA/ Marabá) Profa. Dra. Socorro Pacífico Barbosa (UFPB) Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes (UFPA/ Marabá) Profa. Dra. Solange Mittmann (UFRGS) Profa. Dra. Stella Virginia telles de Araújo Pereira Lima (UFPE) Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (UFRN) Profa. Dra.Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Profa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz (UFPR) Profa. Dra. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva (UFPA) Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera (UEL) Profa. Dra. Regina Celi Mendes Pereira da Silva (UFPB/CNPq 7 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy Reitor Prof. Dr. Horacio Schneider Vice-Reitor Profa. Dra. Marlene Rodrigues Medeiros Freitas Pró-Reitoria de Ensino e Graduação Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitoria de Extensão Prof. MSc. Edson Ortiz de Matos Pró-Reitoria de Administração João Cauby de Almeida Júnior Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Prof. Dr. Erick Nelo Pedreira Pró-Reitoria de Planejamento INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO Dr. Otacílio Amaral Filho Diretor Geral Dra. Fátima Pessoa Diretora Adjunta PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Dra. Germana Maria Araújo Sales Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras Dra. Marília de N. de Oliveira Ferreira Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras 8 Universidade Federal do Pará Instituto de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Neto Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá. CEP 66075-900, Belém-PA Fone-Fax: (91) 3201-7499 E-mail: [email protected] Site: www.ufpa.br/mletras 9 APRESENTAÇÃO IV CIELLA É com imensa satisfação que publicamos os textos dos participantes do Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) em sua quarta edição. A primeira versão do evento ocorreu em 2006, no então Curso de Mestrado em Letras (CML). O evento consolidou-se, em edição bianual, e hoje, iniciado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, tem como objetivo principal reunir estudiosos das áreas de Linguística e Literatura e de áreas afins para discutir e partilhar os resultados de suas pesquisas e dos trabalhos desenvolvidos, no âmbito de seus programas de pós-graduação e faculdades de letras, envolvendo estudantes de graduação e de pós-graduação. O caráter transversal e interdisciplinar do CIELLA está circunscrito à apresentação de trabalhos e debates nas áreas de Linguagem, Línguas, Literaturas, Culturas e Educação sob vários aspectos. Em 2013, o IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (IV CIELLA), ocorreu no período de 23 a 26 de abril de 2013, sob o tema FRONTEIRAS LINGUÍSTICAS E LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA. Nessa edição, o evento coroa a criação recente do nosso Curso de Doutorado e superamos todas as expectativas, quando a comissão organizadora do evento recebeu um público aproximado de 1200 pessoas, entre estudantes de graduação, de pós-graduação, professores e pesquisadores de instituições locais, nacionais e internacionais, professores da Educação Básica (Ensino Médio e Ensino Fundamental) e profissionais de áreas afins. O Congresso contou com renomados convidados internacionais, considerados referência em suas especialidades, e convidados nacionais e locais que contribuíram para que o evento fosse bem sucedido. O sucesso do evento deveu-se, também, à programação científica que reuniu cerca de oitocentos trabalhos da área de Letras e Linguística, em várias modalidades – Conferências, Mesas Redondas, Minicursos, Simpósios, Sessões de Comunicação, Pôsteres, e Relatos de experiência. A presente publicação, que reúne os trabalhos oriundos do IV CIELLA, conta com 268 textos de docentes e de alunos de graduação e de pós-graduação brasileiros. São 109 textos de Estudos Linguísticos e 159 textos de Estudos Literários, resultantes de pesquisas em desenvolvimento na área de L&L. A aquiescência do Congresso pela comunidade acadêmica levou-nos a organizar um evento de grande envergadura para as áreas de Letras e de Linguística e, nesta quarta edição consolidamos a internacionalização do evento, que contou com nomes de grande vulto, como Inocência Matta, Inocência Mata (Portugal); Rosário Alvarez (Espanha); Rebecca Martinez (Estados Unidos); Enrique Hamel (México); Christine Sims (Estados Unidos); Pilar Valenzuela (Estados Unidos); Rubem Chababo (Argentina); Alicia Salomone (Chile) e Host Nitchack (Chile). Para a concretização do evento, agradecemos o fomento recebido da CAPES e CNPq, além do apoio irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, na figura do Pró-Reitor, Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho; do Instituto de Letras e Comunicação, na pessoa do Diretor Otacílio Amaral Filho, a quem devemos infindos agradecimentos. A concretização do evendo deveu-se, certamente, ao apoio financeiro, mas ressaltamos a efetiva participação da secretaria, formada por alunos de graduação e de pós-graduação, que 10 cuidaram com esmero para a ocorrência do IV CIELLA. Nosso agradecimento especial aos alunos que conduziram com eficiência a secretaria: Eliane Costa, Márcia Pinheiro, Alinnie Santos, Cinthia Neves, Thais Fiel, Sara Vasconcelos, Wanessa Paiva, Veridiana Valente, Edvaldo Pereira e Jaqueline Reis. Também aos professores do PPGL, alunos e monitores do evento nosso muito obrigada! O CIELLA foi um momento de congregar forças, mas também se configurou como espaço de apresentação não só da quantidade de trabalhos na área de Letras & Linguística, mas da qualidade desses trabalhos, que aqui estão reunidos. 11 SUMÁRIO OS ESPETÁCULOS CULTURAIS NA AMAZÔNIA: O CÍRIO DE NAZARÉ Otacílio Amaral Filho Regina de Fátima Mendonça Alves O DEMÔNIO EM EÇA DE QUEIRÓS Patrícia da Silva Cardoso PARÓDIA E CARNAVALIZAÇÃO NO CANCIONEIRO CHICO BUARQUE DE HOLLANDA Paula Cristhiane da Silva Oliveira Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões TERRA DO SEM-FIM: UMA LEITURA DOS SIGNOS DA LAMA EM COBRA NORATO DE RAUL BOPP Paula Fernanda Vicente Rosa Ana Cristina de Rezende Chiara HOMOCULTURA E LINGUAGENS CONTEXTOS, CRÍTICAS E PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTISMO NA LITERATURA Paulo César García POR TEU NOME TE DIREI QUEM ÉS Raphael Novaresi Leopoldo O LEITOR NA TEIA DE JORGE MIGUEL MARINHO Raquel Cristina de Souza e Souza IMBRICAÇÃO POESIA/REALIDADE NO POEMA “CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO” – CARLOS DUMMOND DE ANDRADE Raimundo Lopes Matos PROJEÇÕES DAS PERSONAGENS EUTANÁZIO E ALFREDO SOBRE ESCOLA E ENSINO Regina Barbosa da Costa Marlí Tereza Furtado MEMÓRIAS DEDICADAS: CONSTITUIÇÃO DE UM INVENTÁRIO CULTURAL POR MEIO DE DEDICATÓRIAS AUTÓGRAFAS REMETIDAS AO ESCRITOR JOÃO ANTÔNIO Renata Ribeiro de Moraes Ana Maria Domingues de Oliveira O GÊNERO CONTOS DE FADAS: UMA PROPOSTA DE LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDO Rita de Cássia Almeida Silva VIVÊNCIAS ETNOGRÁFICAS E PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS EM BRUNO DE MENEZES Rodrigo de Souza Wanzeler FRAGMENTOS QUEER EM PELA NOITE DE CAIO F. Romualdo dos Santos Correia CORPO FEMININO E VIOLÊNCIA NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA: SOBRE ROSARIO TIJERAS, DE JORGE FRANCO Rosane Cardoso 13 25 33 45 55 69 75 86 98 107 116 124 137 145 12 LITERATURA: MEMÓRIA E IDENTIDADE Rosani Ketzer Umbach PINTAR PARA NÃO ESQUECER Roseli Anater LEITURA LITERÁRIA E ALTERIDADES Rubenilson Pereira de Araujo Flávio Pereira Camargo SÓ HUMOR VOS LIBERTARÁ Salma Ferraz QUASE DE VERDADE: O UNIVERSO INFANTIL E A CRIAÇÃO LITERÁRIA NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTO Sarah Maria Borges Carneiro Fernanda Coutinho DAMAS DO JORNAL: A CIRCULAÇÃO DE ROMANCES FOLHETINS DE AUTORIA FEMININA FRANCESA N'A PROVÍNCIA DO PARÁ Shirley Laianne Medeiros da Silva Germana Maria Araújo Sales CINEMA, LITERATURA E POESIA DE MASSA: O DISCURSO INTERSEMIÓTICO E A CONDIÇÃO HUMANA NA URBE CONTEMPORÂNEA, A PARTIR DA LETRA DA CANÇÃO “A CIDADE”, DE CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI. Sílvio Sérgio Oliveira Rodrigues Selvino José Assmann DES) CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE(S): UMA ANÁLISE DA OBRA MAD MARIA Sônia Mara Nita HISTÓRIA E LITERATURA: APONTAMENTOS SOBRE A VERTENTE TESTEMUNHAL DA CONTÍSTICA PÓS-64 Suellen Batista Tânia Maria Sarmento-Pantoja EXPERIÊNCIA DOCENTE NA PÓS-GRADUAÇÃO: LIMITES E ALTERNATIVAS Suellen Monteiro Batista Veridiana Valente Pinheiro A RECEPÇÃO CRÍTICA DO SERTÃO A BACKLANDS EM GUIMARÃES ROSA Suellen Cordovil da Silva Sílvio de Oliveira Augusto de Holanda TERRUÁ PARÁ: A música e o espetáculo como política de estesia Talita Cristina Araújo Baena Otacílio Amaral Filho DALCÍDIO JURANDIR: (RE) PENSANDO O ROMANCE Tayana Andreza de Sousa Barbosa Marlí Tereza Furtado MAX MARTINS: SILÊNCIO E PENSAMENTO POÉTICO Thiago de Melo Barbosa Antônio Máximo Ferraz O DIABO NA LITERATURA: TRAÇOS DO DEMONÍACO EM DOIS CONTOS DE EDGAR ALLAN POE Thiago Silva da Costa Douglas Rodrigues da Conceição 153 162 171 180 190 198 205 214 225 236 244 254 265 276 285 13 O PAPEL DA LITERATURA E DO CINEMA NA INTEGRAÇÃO DOS POVOS DA REGIÃO DA AMÉRICA LATINA Ulysses Maciel de Oliveira Neto CORTEJO, LÁGRIMAS E CACHAÇA: UM ESTUDO ETNOCENOLÓGICO DO RITUAL FÚNEBRE DE SÃO JOÃO DO ABADE,EM CURUÇÁ, NO PARÁ Valéria Fernanda Sousa Sales Giselle Guilhon Antunes Camargo “HORA DO CONTO” NA SALA DE AULA E ORALIDADE: UM ENCONTRO POSSÍVEL Valéria Santos da Silva Renata Junqueira de Souza O MENINO QUE BRINCAVA DE SER: LITERATURA, DIVERSIDADE SEXUAL E FORMAÇÃO DE LEITORES Vanessa Rita de Jesus Cruz Flávio Pereira Camargo PREFÁCIOS CAMILIANOS: EM BUSCA DO LEITOR Vanessa Suzane Gonçalves dos Santos Germana Sales RESSONÂNCIAS DA MELANCOLIA NO ROMANCE CINZAS DO NORTE, DE MILTON HATOUM Veridiana Valente Pinheiro Tânia Sarmento-Pantoja O SUJEITO FEMININO NA SEARA LITERÁRIA Virgínia Silva de Carvalho Algemira de Macêdo Mendes IMPRENSA E LITERATURA: PONTOS E CONTRAPONTOS NA OPINIÃO DE MACHADO DE ASSIS Virna Lúcia Cunha de Farias Socorro Pacífico Barbosa PRODUÇÃO MUSICAL: UMA QUESTÃO LITERÁRIA AOS ESTUDOS CULTURAIS Vivianne da Cruz Vulcão IRACEMA RODRIGUES E AS RELAÇÕES ENTRE UM SABER PRÁTICO E UM SABER ESPIRITUAL Wanna Célli da Silva Sousa Ipojucan Dias Campos TEMA, FORMA E ESTILO EM POEMAS DE AGE DE CARVALHO E MAX MARTINS Wenceslau Otero Alonso Junior LEITURA E ESCRITA: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A PARTIR DO PIBID Yvonélio Nery Ferreira CIBERMISTÉRIOS NAS PÁGINAS DO LEITOR CONTEMPORÂNEO Zíla Letícia Goulart Pereira Rêgo 297 303 314 324 336 347 356 364 374 384 395 405 415 14 OS ESPETÁCULOS CULTURAIS NA AMAZÔNIA: O CÍRIO DE NAZARÉ Otacílio Amaral Filho Regina de Fátima Mendonça Alves Resumo: Apresenta-se os primeiros resultados da pesquisa os espetáculos culturais na Amazônia. A produção dos espetáculos culturais na contemporaneidade diferente do campo de produção da arte está ligada a ideia da cultura como política e por isso mesmo, esta direcionada para o grande público obedecendo a um agendamento globalizado no formato de festas populares. A evolução das manifestações tradicionais para os espetáculos contemporâneos atinge o formato destes eventos pelo enquadramento midiático, na ampla publicização da manifestação, mas antes de tudo por um modelo que denominamos de rituais de consumo. Os rituais de consumo organizam-se na ordem da economia de mercado, pela oferta de um complexo de produtos e serviços que se diversificam a partir de possibilidades existentes no processo generalizado da produção. Os espetáculos culturais entra na oferta por que atraem o grande público e representam a vida e a tradição local ao potencializarem a geração de trabalho e renda, reajustando, desse modo, relações econômicas e sociais internas destas comunidades. São circunstâncias que forma o modelo do espetáculo para que sejam patrocinados pelo governo e pelo mercado, ao mesmo tempo em que se criam condições de entrada de um público consumidor da festa e de outros produtos criados de acordo com a natureza da manifestação num intenso processo de publicidade. Entre outros aspectos como a publicização e o consumo, verifica-se a midiatização da maioria (ou de parte expressiva) desses espetáculos através da televisão e da internet movimento que se acentua especialmente no final do século XX. A midiatização de espetáculos populares é analisada com recurso a autores como Eliseo Véron, Daniel Dayan e Elihu Katz, Gilles Lipovetski e Danièle Hevieu-Léger. Como caso exemplar, apresenta-se uma análise da cobertura televisual de uma das maiores manifestações católicas do mundo, o Círio de Nazaré, usando como corpus os registros das transmissões da TV Liberal dos anos 1990 do século XX e 2000 do culminante – atravessam um novo período de tensões em sua história e passam por significativas alterações. Palavras-chave: Cultura; Mídia; Espetáculo; Consumo. Abstract:We present the first results of the research shows cultural Amazon. The production of different cultural events in the contemporary field of art production is on the idea of culture as a policy and therefore, this directed to the general public following a global schedule in the form of festivals. The evolution of traditional demonstrations for performances contemporary hits format of these events by the media framework, the wide publicity of the event, but above all by a model that we call rituals of consumption. The rituals of consumption are organized in order of market economy, the supply of complex products and services that are diversifying from existing possibilities in the generalized process of production. The cultural shows enters bid for attracting the general public and represent life and local tradition to potentiality the generation of jobs and income, readjusting thus economic and social relations inside these communities. Are circumstances that form the model for the show that are sponsored by the government and the market, while it creates conditions for entry of a consumer public party and other products created according to the nature of the event in an intense process advertising. Among other aspects such as publicity and consumption, there is the mediation of the majority (or significant portion) of these shows through television and the internet movement that accentuates 15 especially at the end of twentieth century. The mediatization of popular shows is analyzed using the authors as Eliseo Veron, Daniel Dayan and Elihu Katz, Gilles Lipovetski and Danièle Hevieu-Léger. As a case in point, we present an analysis of televisual coverage of one of the world's Catholic biggest demonstrations, the Círio de Nazare, using corpus as the records of the TV broadcasts of the 1990 Liberal twentieth century culminating in e 2000 - go through a new period tensions in its history and undergo changes significant. Keywords: Culture; Media; Spectacle; Consumption. 1 Introdução A cultura pode ser caracterizada pela diversidade no que se refere ao conjunto de manifestações que a representam. Paes Loureiro (2005, p.5), afirma que ―a cultura amazônica é uma diversidade diversa, no conjunto da diversidade do mundo por se constituir numa realidade única por sua complexidade e auto-eco-organização, para explicar esta riqueza cultural. Por outro lado, na contemporaneidade, a cultura mudou sua organização conduzida, até então, pela cadeia tradicional que a mantinha ao longo das gerações, para o que se pode chamar de fluxos de produção cultural, com base na ruptura do modelo que se orienta pela cópia de cenas e enredos e na repetição da manifestação, que foi afetado pela comunicação no seu modelo de (re)produção. Assim, ao mesmo tempo em que reproduz elementos da experiência tradicional de manifestação cultural se legitima por um modelo de hibridação cujo resultado é baseado na cópia da manifestação original, por uma natureza essencial, que é a festa, o espetáculo na lógica da comunicação. A maioria dos espetáculos culturais na Amazônia reproduz o modelo da disputa entre dois ―personagens‖ e suas respectivas torcidas, como é o caso do boi de Parintins, com o Caprichoso e o Garantido, o Sairé, com os botos cor-de-rosa e tucuxi, as Tribos de Juruti, com a Mundurukus e a Marapinima e a Ciranda de Manacapuru com a Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradicional. Todos com o seu palco, da cena circense, anfiteatros onde a festa acontece: bumbódromo, sairódromo, tribódomo e cirandródomo. Outros aparecem no modelo da cena carnavalesca, como é o caso do Arraial do Pavulagem, o Boi Tinga e Veludinho, os cordões de pássaros e o carnaval que se apresentam na rua. E um em especial que é o Círio de Nazaré, como um caso emblemático, por tratar-se de uma festa religiosa que pela sua dimensão e importância aparece como um dos principais espetáculos culturais da Amazônia. Na análise que aqui fazemos categorizamos os espetáculos culturais como produtos simbólicos e como tal, fenômenos de comunicação e como rituais de consumo na ordem da cultura global. Santos (2005, p.63) nos diz que [...] ―aquilo que chamamos de globalização é sempre a globalização bem-sucedida de determinado localismo. Por outras palavras não 16 existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserção cultural específica‖. Este percurso identifica também a dialética entre uma globalização hegemônica conduzida pelo capitalismo neoliberal e uma globalização não hegemônica que se rege pela emancipação social e se insere tanto na lógica econômica quanto cultural como uma característica do pós-colonialismo. É nesta ordem que entendemos estes espetáculos aqui estudados especialmente por um viés pós-colonial de substituição da narrativa colonial pela narrativa do ponto de vista do colonizado. 2 Os espetáculos culturais na Amazônia Queremos afirmar, antes de tudo, o modelo de análise sugerido por MartinBarbero(2004,p.144) quando afirma ―a aparição de um novo modelo de existência do popular, configurado a partir da 'desarticulação do mundo popular como espaço do Outro, das forças de negação do modo de produção capitalista' e da inserção das classes populares nas condições de existência de uma sociedade de massas‖. Nesta lógica estão os espetáculos culturais como aqui se analisa, e como tal, embora, aparentemente gozem de certa pluralidade como produtos simbólicos, tem sua autonomização no âmbito do capital visto pela necessidade que gera o produto, pelo modo de produção e o valor que lhe é atribuído. Bourdieu, diz que: ―o sistema de produção e circulação de bens simbólicos define-se como sistemas de relações objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisão do trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos(BOURDIEU, 2009, 105). A ideia é, portanto, caracterizá-los como produtos simbólicos com origem nas manifestações da cultura popular, frutos da experiência tradicional de transmissão oral, representada na ação social de uma comunidade ou grupos sociais e embora remonte a diferentes origens podem-se destacar as comemorações religiosas, o teatro e a música populares, as festas agrícolas e agropecuárias e o carnaval. Bakhtin (1999, p.7), diz que ―as festividades sempre tiveram um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo.‖ São também formas do rito e do espetáculo representando a vida e o povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente pela sua vida corporal e material como um corpo popular, coletivo e genérico. Podemos falar em um embate entre heteronomia e autonomia, tendo de um lado a ordem que se forma pela lógica do capital como experiência da pós-modernidade, que reconfigura as manifestações da cultura popular como festas ou festivais e como rituais de consumo. E por outro lado a autonomia na sua forma radical, não hegemônica que 17 configura suas próprias condições. Precisamos, neste caso observar a lógica produtiva da própria cultura popular, como fato social, que pela natureza das suas mediações produziu e deu sustentação a estas manifestações a revelia ou por estar pressionada pelo processo de dominação como resistência como diz Marilena Chauí(1994, p.39) Bhaba(1998, p.26) fala dos interstícios com relação aos domínios da diferença, este olhar da pós-colonialidade, como um salutar lembrete das relações ―neocoloniais‖ que sobrevivem ―no interior da ―nova‖ ordem mundial e da divisão do trabalho multinacional.‖ É preciso pensar na ruptura proposta por Martin-Barbero (2004, p.112) que se produz ―na tomada de consciência da atividade dos dominados enquanto cúmplices da dominação‖.Esta é uma estratégia da autonomia, resultante da ―união e a tensão da sociedade instituindo-se e da sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo‖ (CASTORIADIS, 1995,131), que se traduz pela relação entre dominação e dominados que se oferece numa perspectiva de o que é que no dominado trabalha em favor da dominação e a resistência e a réplica contida neste mesmo processo, de tal sorte que a cultura é analisada, na maioria das vezes, como objeto estático no tempo da corrente tradicional, passível de manutenção e ―resgate‖ quando é, na verdade, movimento permanente deste conjunto de tensões que regulam a vida em sociedade. Os espetáculos culturais, do modo como estamos categorizando, atravessam a experiência tradicional para se consolidarem ―além‖ – um pós-tradicional - ―como um espaço de intervenção no aqui e no agora‖ (MARTIN-BARBERO, 2004, p.113), como práticas resultantes mas que se estabelecem numa perspectiva que retoma a ideia da ―indústria cultural‖ pela lógica de uma nova relação entre o trabalho da cultura e o comércio. Neste sentido, a cultura estende-se aos rituais de consumo, forma de sustentação da alienação como fenômeno social e se aproxima por aqui da globalização hegemônica por enquadrar-se no perfil produtivo do capitalismo monopolista. Os rituais de consumo organizam-se na ordem da economia de mercado, pela oferta de um complexo de produtos e serviços que se diversificam a partir de possibilidade existentes no processo generalizado da produção. Os espetáculos culturais entram na oferta por que atraem o grande público e representam a vida e a tradição local e potencializarem a geração de trabalho e renda, reajustando deste modo, relações econômicas e sociais internas destas comunidades e do mercado. O mercado na modernidade amplia a ideia de lugar de negociação, de venda, valores de troca, dinheiro, preço, mercadorias, para uma abstração plena criada pela narrativa midiática como mercado mundial, isto é, como um lugar social do consumo, com 18 um padrão globalizado de natureza simbólica do mundo das mercadorias, enquanto sentido, cujo enunciador real é a cultura de consumo publicizada de forma intensa por uma linguagem própria que alia publicidade, jornalismo e diversão. Aqui se oferecem todos os tipos de produtos, ruas inteiras como grandes feiras e os shoppings centers, e eventos próprios para oferta de produtos, identificados no calendário comercial, o natal e as festas de fim de ano, o carnaval, o dia da mulher, o dia das mães, as festas juninas, as férias, o dia dos pais, o dia de finados, e outras tantas como as festas de rodeio, as feiras agropecuárias, os eventos científicos e os eventos culturais.São matérias mostrando a comunidade, suas belezas e diversidades, convidando os turistas para a ―festa‖. São anúncios publicitários oferecendo os lugares turísticos e as manifestações culturais. Do ponto de vista prático, nos espetáculos culturais, esse processo é incorporado pela narrativa midiática com base no agendamento e na publicização da cultura popular no formato usado pelo jornalismo e pela publicidade. São fotografias mostrando as pessoas, rico e colorido vestuário, paisagens, canções, toadas, tudo formatado em um painel de possibilidades pela ação midiática não apenas para produtos tangíveis com origem nas manifestações culturais, mas principalmente para a afirmação de ideários de empresas, organizações não governamentais e política de governo como forma de agendamento de cenários de consumo, tendo como base a natureza simbólica da cultura e este rico imaginário que por ela é oferecido. De forma direta a transmissão ao vivo destes eventos para televisão e internet já no formato da cena fantasma como mostra Requena na tipologia do espetáculo, a imagem capturada pela câmera e oferecida no lugar virtual. De modo semelhante, Appadurai (2004, p.50) identifica os fluxos globais por cinco paisagens distintas: etnopaisagens, mediapaisagens, tecnopaisagens, financiopaisagens e ideopaisagens. Interessa-nos em especial neste artigo, as paisagens midiáticas isto é, explicações que partem da imagem, com base narrativa, como se fossem cortes da realidade, são personagens, enredos e formas textuais, ―a partir dos quais podem formar vidas imaginadas, as deles próprios e daqueles que vivem em outros lugares‖ (...) desagregar-se em complexos conjuntos de metáforas em que as pessoas vivem, pois ajudam a construir narrativas do Outro e protonarrativas possíveis.‘ Esta experiência ritualística se caracteriza por uma ação não apenas da necessidade ou utilidade de usar um produto, mas que obedece ao desejo que impulsiona o prazer de comprar um objeto para satisfação, de adquirir um produto novo, ou de uma grife ou similar, não mais na lógica da utilização, e sim na lógica da imaginação, pelo trabalho da imaginação transformado em fato social. Em outras palavras, o consumo como coisa social visto numa perspectiva ampliada como 19 comunidades de consumo, que repadronizam o status quo na forma de classes como uma posição assalariada de consumo1, na mesma ordem de pertencimento puxadas pela identidade e pelo imaginário como ―comunidades de sentimento‖1 originadas na globalização cultural, daí porque passou a se chamar de cultura de consumo. A produção dos espetáculos culturais na contemporaneidade diferente do campo de produção da arte seja ela erudita ou popular, está ligada a ideia da cultura como pública, Geertz diz, ―a cultura é pública porque o significado o é‖. Esta direção que escolhemos procura o grande público agora obedecendo a um agendamento globalizado que envolve possibilidades de atração que atinge os mais diversos setores. A evolução das manifestações tradicionais para os espetáculos contemporâneos atinge a memória e a linguagem destes eventos pelo enquadramento midiático, portanto, pela publicização, mas antes de tudo por um formato que denominamos de rituais de consumo como já vimos. São circunstâncias que formam o modelo do espetáculo para que sejam patrocinados pelo governo e pelo mercado, ao mesmo tempo em que, criam condições para a entrada de um público consumidor local e externo através da propaganda. Este público é atraído para os lugares onde acontecem os espetáculos ou os acompanham pela mídia, e participa como elemento para compor a cena do espetáculo que será ofertado como bem de consumo. A memória da manifestação passa a ser composta principalmente pelo registro midiático e a linguagem se adéqua ao cenário de cada momento oferecido pelo agendamento do cenário global. Desta memória formada pela mídia saem produtos audiovisuais, filmes, fotos, e outros como grifes de roupas e acessórios, refrigerantes, cervejas e publicidade de bancos. E paralelamente a permanência no ciberespaço. O jornalismo é estratégico na divulgação, pautando cenários de acordo com a lógica jornalístico-publicitária e de entretenimento que compõem as atividades culturais no contemporâneo. Pela lógica do jornalismo, estes temas são pautados, buscando as regras da noticiabilidade como atualidade e novidade agregando-se agora a espetacularização como regra de cobertura tendo como temática predominante a questão ambiental. Parece obrigatório, desse modo, mostrar os espetáculos, não apenas como arte popular, mas na ordem de uma cultura ambiental que organiza o modo de produção pela sustentabilidade e que tem como fundamento a preservação da vida na terra, que por sua vez, gera uma ordem de controle e vigilância que termina por conduzir a um comportamento de consumo centrado no coletivo, por isso mesmo, criando um paradoxo entre o lucro e a responsabilidade social do ponto de vista da lógica capitalista. O discurso se especifica em questões objetivas relacionadas à floresta, a água e outros bens geradores destas relações de consumo e meio 20 ambiente.No momento em que a mídia agendou as manifestações da cultura popular, elas passaram por um processo de enquadramento, visando principalmente, a publicização para atrair para as festas um público externo que compõe em boa medida a plateias destes espetáculos. Esse formato se consolida, em grande parte, por uma aproximação de modelos trazidos da cultura popular que por um processo de reconversão se dirigem ao grande público e que se consolidou na contemporaneidade na Amazônia por ―espetáculos religiosos‖ como o Círio de Nazaré, os culturais como o Boi de Parintins, Sairé, Tribos de Juruti e os esportivos como os Jogos indígenas. Para Bourdieu(2009)os bens simbólicos podem ser apresentados por realidades que unem mercadorias e significações, guardando certa independência entre os valores mercantis e culturais mesmo quando ―a sanção econômica reafirma a consagração cultural‖. Assim, podemos dizer que a cultura amplia as suas características produtivas, para se adequar a uma lógica midiatizada, ancorada na publicização e visibilidade, em que se firmam novas possibilidades de representação oferecidas por gramática das mídias, como economia política de comunicação, orientadas por hibridações entre interatividade, visualidade e tecnicidade. O boi de Parintins, as tribos de Juruti, o Sairé, a Ciranda, o Carnaval ganham semelhanças nas fantasias dos personagens, nas alegorias, nos enredos, na forma de apresentação, na integração com o público, na utilização política pelos governos, no uso pelas empresas como publicidade, como se formassem um modelo novo, compacto. O Boi-de-Parintins, o Boi Tinga, o Sairé, a Flor do Maracujá, a Ciranda de Manacapuru e as Tribos de Juruti são exemplos de manifestações da cultura popular amazônicas, que invadem este modelo da economia política de comunicação, montando um mapa que mostra a des-territorialização, vivida pelas culturas, do mesmo modo como apresenta a emergência de uma experiência cultural nova, destacando a organização e produção dos espetáculos culturais, trazendo lugares, cenários, atores, seus formatos como resultados da interatividade, tecnicidade e da visualidade do contemporâneo, a sua tipologia, a economia gerada pela produção e principalmente o envolvimento das populações na produção e consumo destes eventos. O Boi de Parintins negocia estrategicamente com o carnaval no Rio de Janeiro, trocando experiência, alegorias, fantasias, novos formatos, por exemplo. O boi gerou também o Carnaboi, espetáculo de rua, que acontece em Manaus durante o carnaval. 3 O hiper Círio 21 O Círio de Nossa Senhora de Nazaré acontece todo segundo domingo de outubro, em Belém do Pará. A romaria, que conduz a imagem da Santa pelas ruas centrais da cidade, realiza-se desde 1793 e é o ritual mais importante da Festa de Nazaré, que se desenrola durante 15 dias, constituindo-se num complexo ritual, como o classificou Alves (1980), composto por vários eventos religiosos e profanos, como procissões, o almoço do Círio, apresentações artísticas e culturais e outros que foram se agregando ao calendário da festa, notadamente nos últimos anos do século XX. Pela polissemia e importância, que ultrapassa a dimensão religiosa, remete ao conceito de fato social total de Marcel Mauss (1974, p.41), uma vez que nele existem manifestações diversas: religiosas, econômicas, políticas, culturais, estéticas, midiáticas etc. O Círio também é lugar privilegiado para a observação das tensões entre o catolicismo popular e o catolicismo oficial, uma marca de origem que se atualiza hoje na disputa de produção de sentidos no campo midiático. Das descrições do primeiro círio emerge um espetáculo marcado pela exibição do poder e da elite, pela nota marcial, pelo ordenamento, pela distribuição hierarquizada de lugares no espaço da manifestação. Estima-se seu acompanhamento em dez mil pessoas, praticamente toda a população da cidade.Vianna (1905) e Dubois (1953) relatam que 1.932 soldados o acompanharam , o que mostra como era forte a presença militar em Belém. O Círio sempre foi notícia na imprensa e no rádio paraenses, mas é com a televisão que alcança a visibilidade que impulsionou seu crescimento, ampliando os limites de sua recepção, à medida que avançam os meios técnicos de captação e difusão de imagens, até a mundialização através da internet, em 1997, quando a TV Liberal, afiliada à Rede Globo de Televisão, foi a primeira emissora a colocar a íntegra da transmissão da romaria na rede.Os acontecimentos midiáticos, segundo Daniel Dayan e Elihu Katz, são momentos históricos televisionados ao vivo que atingem amplas audiências nacionais ou mesmo mundiais. São tão diversos como a chegada do homem à Lua, os Jogos Olímpicos, o funeral do presidente John Kennedy, as peregrinações do papa João Paulo II ou o casamento de Charles e Diana, para citar algumas coberturas estudadas pelos dois autores. Com toda a diversidade entre eles, esses acontecimentos dão forma a um novo gênero de narrativa: [...] que emprega o potencial único dos media electrónicos para exigir uma atenção universal e simultânea, com o objetivo de a fixar numa história que está a ser contada sobre a actualidade. Estes são os acontecimentos que envolvem o aparelho de televisão numa espécie de aura e que transformam o acto de assistir‖ (DAYAN E KATZ, 1999, p. 17) O Círio ingressa nessa dimensão quando a televisão começou a narrá-lo em 8 de outubro de 1961, na primeira transmissão direta da TV Marajoara Canal 2, dos Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, recém-inaugurada em 30 de setembro. Ao 22 transmiti-lo ao vivo, a TV transporta-o para a esfera midiática, na qual o reconstrói sob a égide de sua lógica e de sua gramática, para então ofertá-lo ao telespectador. Esse é um processo que se aperfeiçoa pela convergência de mídias no contemporâneo, permitindo a vivência à distância bem caracterizada na figura do peregrino on line, aquele que ―acompanha‖ o Círio pela internet, de outro país, muitas vezes reproduzindo rituais como o almoço com comidas típicas (ALVES, 2002 e 2012). Eco (1991, p.182) diz que a transmissão direta nunca se apresenta como representação especular do acontecimento que se desenvolve, mas sempre – ainda que às vezes em medida infinitesimal – como interpretação dele. O que o telespectador das diversas emissoras assiste é, assim, uma interpretação do Círio, construída, em cada uma delas, através de uma cadeia de interpretações e negociações que começa na verdade bem antes, ainda na concepção do projeto de cobertura. Essa cadeia, permitida pela evolução técnica, leva as emissoras à tentativa de superação a cada Círio. Nos últimos três anos o grande espetáculo tem ficado por conta da TV Liberal, que usou sua localização privilegiada no trajeto do cortejo e projetou o estúdio sobre a Avenida Nazaré, proporcionando aos romeiros a visão antes reservada aos telespectadores, transformando-os na calorosa platéia que aplaudiu shows improvisados, como um dueto do padre Antônio Maria com a cantora Gaby Amarantos. A emissora tem usado amplamente as imagens aéreas, proporcionando a visão da grandeza do cortejo. Ao mesmo tempo, usando um link móvel, permitiu que o telespectador tivesse uma aproximação inédita com detalhes da romaria – como o atrelamento da corda à berlinda - que também passou a caber na palma da mão, com a recepção pelos aparelhos iPAD e iPOD. Em síntese, mais um grande passo na direção do techno Círio, um conceito de transmissão definido pelo jornalista Emanuel Villaça1, em 2001, como a reunião de espetáculo, informação e tecnologia em altas doses (ALVES, 2002, p.196). Prioriza a mistura de entretenimento e emoção, e não a reflexão, como se verifica no novo formato da cobertura da TV Liberal, a partir dos primeiros anos daquela década. Assim como a câmera se aproxima dos detalhes, o estúdio também busca se aproximar e reproduzir o clima das ruas por meio de uma linguagem informal, familiar, que, entretanto, não descuida do ritmo jornalístico. No âmbito da organização interna, o gerenciamento da agenda de eventos da Festa de Nazaré evoca as formulações do filósofo Gilles Lipovetski, para quem vivemos, desde os anos 50 do século passado, um estado inédito de intensificação do mercado, do indivíduo e da escalada técnico-científica, tripé característico da modernidade.A partir dos anos 80, o avanço da globalização e das novas tecnologias de comunicação acelerou o fenômeno que ele batizou de hipermodernidade, caracterizada por uma série de novos comportamentos e modos de vida como a cultura do mais rápido e do 23 sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovação (LIPOVETSKI, 2004, p.56-57). Pode parecer o slogan de um novo modelo da indústria automobilística, mas não poderia ser um programa para o hiper Círio, adaptação, para a rua, do techno Círio da tela? Um Círio do qual se espera também novas atrações, a cada ano, no modelo de ressignificação das festas populares, negociando cada vez mais de perto com a lógica espetacular da mídia. ―Associar modernidade com peregrinação pode parecer surpreendente‖, diz Hervieu-Léger (2008, p.87), mostrando que o peregrino, surgindo bem antes do praticante regular da religião e presente na história de todas as grandes religiões e da sociabilidade religiosa, não é somente antigo, mas também perene. Seus estudos fornecem elementos para se pensar a atualização das tensões do Círio ao caracterizar o peregrino – o nosso romeiro, numa aproximação com a realidade do Círio – como uma figura típica do religioso em movimento, correspondendo a uma forma de sociabilidade religiosa que se encontra em plena expansão, sob os signos da mobilidade e da associação temporária. Representa uma oposição à figura do praticante regular que definia os traços típicos de uma sociedade religiosa paroquial (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.88). A prática religiosa do peregrino é voluntária, autônoma, variável, individual, móvel e excepcional ou extraordinária, na contramão do praticante, que se pauta pela obrigatoriedade, pela repetição e pelas normas da instituição entre outras características que o distanciam do peregrino (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.98). As transmissões de TV são documentos preciosos para se estudar a evolução do Círio. Elas refletem as antigas tensões entre o catolicismo cristocêntrico pregado pela Igreja e o catolicismo popular, de matriz ibérica, no qual promessa ao santo é dívida que se paga principalmente com sacrifício, inclusive físico. Mas também, e principalmente, mostram – mesmo no que não conseguem dizer, ao narrar os fatos em tempo real – os impasses de uma festa que virou fenômeno de massa. Sua narrativa espetacular captura imagens de impacto nas promessas que evocam sobrevivências dos flagelantes da Idade Média no Círio da Idade Mídia: closes dos pés feridos na corda da berlinda, penitentes de joelhos no asfalto, rostos em êxtase. A maioria dessas imagens está no index da mídia católica, que aponta Maria como caminho para Jesus e convoca os fiéis aos sacramentos. 4 Considerações finais Estes espetáculos estão sendo replicados em toda a região amazônica com base no mesmo princípio da festa e do lugar imaginado da diversão nos palcos midiáticos onde 24 estas manifestações são transmitidas pela televisão e postadas na internet como matérias jornalísticas, audiovisual e publicidade. O produto simbólico está na mesma esfera de valor de um produto tangível como mercadoria, ele tende a se ampliar numa lógica ligada ao conjunto tempo de realização e materiais utilizados pelo criador ou criadores, isto é sua produção, acrescentando um valor estritamente cultural, que, termina por lhe dar a configuração valorativa que vem para o mercado de bens simbólicos como um produto cultural e no caso das manifestações da cultura popular para o que classificamos como espetáculos culturais na ordem de uma cultura midiática regulada por uma heteronomia social cuja essência está nos mecanismos econômicos do mercado e na publicização em escala global. Desse modo, a cultura tem sua autonomia ordenada por uma produção centralizada tirando da manifestação o sentido do seu lugar de produção para enquadrá-lo e reespacializá-lo como próprio da mídia e obedecendo a lógica de uma economia política própria da comunicação. Nesse sentido a lógica termina por reforçar os modelos efetivos, não pela sua autonomia, mas pela alienação, ou seja, aqueles que dão certo do ponto de vista mercadológico pela publicização e visibilidade. REFERÊNCIAS ALVES, Isidoro. O carnaval devoto: um estudo sobre a Festa de Nazaré em Belém. Petrópolis: Vozes, 1980. ALVES, Regina. O manto, a mitra e o microfone: a midiatização do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Tese (Doutorado). Belém: Universidade Federal do Pará, 2002. APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: A modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo, Brasília: Hucitec, 1999. BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. Petrópolis: Perspectiva, 2009, p. 105. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DAYAN, Daniel E KATZ, Elihu. A história em directo: os acontecimentos mediáticos na televisão. Coimbra: Minerva, 1999. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DUBOIS, Florencio. A devoção à Virgem de Nazaré em Belém do Pará. Belém: Imprensa Oficial, 1953. 25 ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1998, p. 22. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008. LIPOVETSKI, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004. MARTÍN-BARBERO, Jésus. Ofício de cartógrafo: Travessia latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004. PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica: Belém:Edufpa, 2005. uma diversidade diversa. REQUENA, Jésus. El espetaculo televisivo. Madri: Cátedra, 1988. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. VIANNA, Arthur. Festas populares do Pará: I - A Festa de Nazareth. Belém: Typographia de Alfredo Augusto Silva, 1905. 26 O DEMÔNIO EM EÇA DE QUEIRÓS Patrícia da Silva Cardoso1 Resumo: No âmbito de produção da chamada narrativa gótica, de meados do século XVIII ao longo do século XIX, observa-se a presença de elementos vinculados ao sobrenatural, em meio aos quais o demônio tem uma importância expressiva. Nesse modelo narrativo, a ambientação é primordialmente deslocada para tempos recuados, preferencialmente a Idade Média, com o fim de manter os leitores a uma distância segura de temas que o afastavam de uma convenção de realidade que já não comportava a crença no sobrenatural como um todo e no demoníaco em particular. Dialogando com o modelo gótico, Eça de Queirós, em ―O Mandarim‖, traz o demoníaco para o contexto contemporâneo. As implicações e desdobramentos de tal atualização é o que nos interessará tratar nesta comunicação. Palavras-chave: Narrativa gótica; Sobrenatural; Demônio; Eça de Queirós; ―O mandarim‖ Abstract: In the field of the so called gothic narrative, from the XVIII century and along the XIX century, one can observe the presence of elements connected with the supernatural, among which the devil has an expressive importance. In this model of narative, the ambience is generally set in ancient times, preferably the Middle Ages, in the attempt of keeping the readers at a safe distance from a reality convention that no longer bore the beliefs in the supernatural as a whole and particularly in the devil. Setting a dialogue with such model, Eça de Queirós, in ―O mandarim‖, bring the demoniac to the contemporary world. The implications and unfoldings of that updating are the object of this paper. Keywords: Gothic Narrative; Supernatural; Devil; Eça de Queirós; ―O mandarim‖ A produção ficcional da segunda metade do século XVIII europeu, com destaque para o contexto inglês, é representativa de um jogo de forças central para compreendermos o imaginário literário da modernidade, bem como as relações que com ele estabelece uma sociedade organizada a partir dos referenciais da razão iluminista. Nesse ambiente a moral, as noções de Bem e Mal não mais se orientam exclusivamente pelas balizas religiosas, o que provoca um afastamento do sobrenatural como elemento coercivo das ações humanas, ou seja, o medo do inferno, da danação eterna, assim como a perspectiva das recompensas celestes depois da morte, deixam de ocupar o primeiro plano quando se fala em regras de conduta. Assim, os princípios racionais, a organização do conhecimento pela experimentação e observação contribuem para a consolidação de um cenário que já se vinha construindo desde o Renascimento. 27 Menos afeito a crer no sobrenatural, no que se passava no outro mundo, e mais interessado em conhecer o que ocorria neste mundo, o público leitor cada vez em maior número parecia começar a ver com restrições as obras que lançassem mão de expedientes sobrenaturais. Se nos lembrarmos da descrição feita por Ian Watt a propósito do realismo formal, que se articulava justamente naquele período, teremos um bom índice do apelo exercido pelas marcas da realidade objetiva na construção da narrativa de ficção: era para um indivíduo humano, com uma trajetória em que o leitor pudesse reconhecer-se, que se orientava o interesse do público. Entretanto, se essa foi a vertente que acabou por tornar-se hegemônica, pelo menos no que diz respeito à chamada literatura séria, concomitantemente e numa direção oposta outra vertente se organizava. A literatura gótica, aparecida no mesmo ambiente em que se consolidava o realismo formal, serviu-se exatamente do sobrenatural e, somando-o ao insólito, ao crime, às condutas imorais, a um andamento da narrativa dominado pelas peripécias, construiu uma carreira longeva, que chega aos nossos dias revigoradíssima pelas histórias de demônios, vampiros, lobisomens, mortos vivos e tantos outros seres que afrontam a convenção de realidade vigente. Do ponto de vista de certa historiografia, a separação entre essas duas vertentes pauta-se em dois aspectos: o primeiro é o compromisso de uma com o real e da outra com a imaginação (entendido o termo como a serviço de todo tipo de fuga à realidade) dos quais resulta o segundo aspecto, ligado à seriedade. De maneira bastante simplificadora, é comum observar-se a distinção entre literatura séria e literatura de entretenimento associada ao grau de imaginação presente nas obras. É o que se observa, por exemplo, em ―O século sério‖, artigo em que Franco Moretti, preocupado em definir a configuração do que ele chama de romance sério do século XIX assume, sem maiores aprofundamentos, que do outro lado da seriedade estava a literatura de entretenimento, abrigando toda a gama de narrativas que se servissem dos elementos caros ao gótico. Na base da distinção que propõe está o predomínio dos aspectos cotidianos nas narrativas sérias, em contraste com os fatos inauditos que marcariam presença nos modelos não-sérios, ―no roman-feuilleton, no romance policial, nos romances coloniais, em grande parte da ficção científica...‖ (MORETTI, 2009, p. 830) Não é preciso dizer que se trata de uma distinção problemática, entre outras coisas porque se assumida estritamente compromete a compreensão da complexidade de obras como Frankenstein e O médico e o monstro, para referirmos dois exemplos que contemplam, ao mesmo tempo, interesses que podem ou não ser distintos. Afinal, não há como negar o poder de entretenimento desses textos fulcrais para a representação do mal estar na 28 modernidade, um assunto consideravelmente sério. De todo modo, para termos a medida da importância de tal distinção, é preciso dizer que o parâmetro qualitativo posto nesses termos não se restringe à historiografia e à crítica literárias. Os próprios autores, preocupados com sua imagem e com a circulação de seu produto, muitas vezes aderem a ela. Esse foi o caso de Horace Walpole que, na altura em que lançou O castelo de Otranto, narrativa que passou para a história da literatura como o primeiro romance gótico, justificou-se minuciosamente por ter-se servido de elementos sobrenaturais. Mas, se essa é a tendência dominante, não se pode dizer que seja a única. No que diz respeito ao autor português de que tratarei aqui, observa-se que sua abordagem do sobrenatural, especificamente a partir da figura do Diabo, está a serviço da reversão desse tipo de conduta. Eça de Queirós serve-se dessa que se poderia chamar de convicção a respeito do papel do sobrenatural – o que se evidencia na carta-prefácio de O mandarim – e a associa a um tom jocoso, que sugere leveza e descompromisso no tratamento de seu tema, criando a partir daí um vigoroso contraste com o conteúdo da obra, voltada para pôr em questão os limites entre o interesse individual e o direito de se fazer qualquer coisa para defendê-lo, ultrapassando assim os limites entre a seriedade e o entretenimento. Mas antes de avançarmos na leitura dessa obra é preciso dizer mais alguma coisa a propósito do lugar ocupado pelo sobrenatural na ficção moderna. Diante daquele entrelaçamento da vertente séria com a do entretenimento pode-se dizer que o que houve não foi propriamente um desinteresse que levou à total desqualificação da temática sobrenatural e sim um ajustamento que alargou seu alcance, já que, através da inserção de elementos sobrenaturais, a princípio completamente descolados da realidade empírica, foi possível à narrativa ficcional colocar em discussão, entre outras coisas, o alcance do racionalismo e, por extensão, das formas realistas que lhe serviam de veículo, para abarcar a complexidade da experiência humana, principalmente num ponto em que, além das relações do indivíduo com a sociedade em que vivia – objeto primordial da atenção do realismo –, interessava investigar o que esse indivíduo faria consigo próprio, com sua existência interior, já que agora, consideravelmente mais livre para escolher os parâmetros de Bem e Mal, ele se via não poucas vezes angustiado por ter que definir sozinho, por sua própria conta e risco, o que antes lhe era imposto. Assim, o Diabo, que entre o fim da Idade Média e o período das Reformas teve um papel de protagonista na representação do Mal, inequivocamente definido, de acordo com os princípios religiosos institucionalizados, passa, a partir do século XVIII, a servir como instrumento de uma incessante investigação – que se estende a este século – acerca da 29 natureza desse Mal, cujos contornos inequívocos tenderam a esfumar-se com o recuo da religião como referência para as condutas sociais e íntimas. E, uma vez que o conceito de Mal é interdependente do conceito de Bem, a própria imagem do Deus cristão sofrerá um abalo considerável, quando, em meio àquela investigação, os dois conceitos trocarem de lugar. No final do XIX, quando Eça de Queirós escreve O mandarim (1880), ia adiantado o esforço – sempre insatisfatório, a julgar pela quantidade de obras que continuam a dedicarse ao tema – para distinguir Bem e Mal a partir da experiência de cada indivíduo, de tal maneira que várias possibilidades de se rearticular essa relação já haviam sido contempladas pela literatura, constituindo nessa altura um imaginário vigoroso, alternativo ao imaginário religioso e tão perturbador quanto ele, se considerarmos que se antes, graças às normativas cristãs, o Diabo aterrorizava os fieis por seu poder de arrastá-los para a perdição, agora entre essa força exterior, capaz de invadir o coração humano e capturá-lo, e o leitor construiu-se um mundo em que a consciência oscila, em que o certo e o errado misturamse, sempre submetidos à perspectiva individual, que prevê que o prazer e o desejo são interesses não de todo execráveis – uma mudança que torna a própria noção de tentação menos sólida, uma vez que a satisfação dos desejos está prevista pelas normas do individualismo. O Teodoro que recebe a visita do Diabo em O mandarim representa bem esse estado de coisas em que parece haver um relaxamento nos perigos decorrentes de se cair em tentação. Nele, à sua volta, tudo parece frouxo. Seu problema: tocar a campainha e matar um mandarim nos confins da China, satisfazendo um desejo que é, na origem, quase simplório – ou seja, nem a magnitude do grande pecado o move –, e depois ter que lidar com um fantasma que o assombra sem nunca dizer o que quer, com uma consciência tão diáfana quanto a imagem de Ti-Chin-Fú, o mandarim, que aparece e desaparece sem maiores explicações. O protagonista diz-se alguém satisfeito com o que tem – uma vida de amanuense, levada entre o trabalho e a pensão modesta onde mora – mas ambicioso, de uma ambição tão modesta quanto seu cotidiano, o que contrasta com a situação de outro personagem a quem o Diabo visitou com uma proposta, o grande angustiado Fausto de Goethe, alguém nada satisfeito com o que possuía. Esta mudança nas circunstâncias em que se encontram os personagens remete a um estado de embotamento da sensibilidade, em que o desejo de autotransformação e de transformação do ambiente circundante que era o do personagem goethiano já não perdura. O que há é o conformismo característico da falta de imaginação – assim o declara Teodoro, no intuito talvez de dar fidedignidade a 30 seu relato. Mas tal declaração interessa para além desta estratégia do narrador, à medida que é representativa daquele embotamento: para ele era absolutamente impossível projetar-se em outra vida. Que grande nó cria Eça quando retira de Teodoro esse poder, se considerarmos que na tradição religiosa cristã é justamente através da imaginação que o Diabo age, principalmente quando o indivíduo está ocioso. Em O mandarim a vida de funcionário público, feita mais de ócio do que de ação, é insuficiente para fazer germinar em Teodoro o exercício imaginativo. Quanto ao Diabo, o primeiro índice de mudança em relação ao padrão anterior é externo. Sua figura é absolutamente comum, em nada lembrando, pelo traje, aquela criatura inumana, com chifres e outros atributos animais, cuja função era a de intensificar seu tenebroso poder. Trata-se de um tipo aburguesado, vestido de negro, como era regra para o homem sério daquele século, o homem de negócios, que afinal ele é. E nessa condição ele também carrega uma diferença em relação a outras encarnações: o negócio que propõe a Teodoro, diferentemente do que se passou em outros tempos, não pode ser classificado como um pacto, não há qualquer contrapartida exigida. É como uma aposta, um lance de especulação financeira, em que se pode ganhar ou não. Tudo o que faz é sugerir a Teodoro que toque a campainha, vender as vantagens, sim, instalando nele, pela via da imaginação, o desejo de possuir mais, de possuir o que ele até ali sequer dera-se conta de que existia, sem nada pedir em troca. Estranha conduta? Nem tanto. Se pensarmos que naquela altura já não era tão fácil provocar a culpa nos candidatos a pecadores, o elemento que excita o Tentador é justamente a perspectiva de não saber em qual deles a consciência se manifestará, superando o estado de embotamento e, aí sim, arrastando o pecador consumado para o inferno – não aquele das chamas eternas, obviamente, mas o da consciência torturante, infernal porque, num tempo em que Deus não exerce mais um papel ativo, torna-se impraticável a perspectiva de redenção. E é exatamente o que se passa com Teodoro: encalacrado pela consciência, ele não tem a quem pedir perdão, entre outras coisas porque não crê em Deus. Resta-lhe roer o osso da culpa até o fim de seus dias, sem, entretanto, que o leitor se convença de estar diante de um sujeito torturado. Isso porque sua consciência manifesta-se em circunstâncias muito peculiares, nomeadamente quando o fantasma do mandarim aparece com mais insistência do que suportaria sua paciência. A esse propósito, a frase ―preciso matar esse morto‖, registrada e repetida pelo narrador, é elucidativa. Não se trata propriamente de um lance trágico de consciência, mas de um incômodo que é preciso cessar. Daí não serem sérias as saídas que ele aventa para livrar-se da chatice que é ter-se um fantasma mudo sempre ao pé. Desde a construção de uma 31 catedral de mármore ao casamento com uma mulher da família do falecido, nenhuma solução dá mostras de ser eficaz, já à partida. E o próprio Teodoro o afirma quando de sua tentativa de safar-se pela caridade. Num arroubo de lucidez comparável àquele registrado por Álvaro de Campos no poema que começa por ―Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa‖, ele diz estar ciente de que esse é um caminho fadado ao fracasso, pois, conhecendo por dentro a burguesia, sabe que o gesto caridoso é sempre falso, interesseiro, não sendo, portanto, legítimo para fins de aplacar consciências. A lucidez revelada nesse ponto da narrativa faz-nos desconfiar de que todos os momentos em que o sofrimento pela culpa de ter matado o mandarim se manifesta sejam de fato estratégias do narrador para estabelecer uma cumplicidade com o leitor. Ao fazer com que este vivencie vicariamente o seu (falso) sofrimento, ele legitima sua contrição, eximindo-se da necessidade de prestar contas a sério pelo crime cometido. Afinal, como tão bem descreve, ele tenta tudo! Mas, curiosamente, sem que sua lucidez o explicite, não tem coragem, ou disposição, para libertar-se da herança indevida... O máximo a que chega é pedir ao Diabo, a quem encontra casualmente na rua, que o livre de tal fardo, que restitua à vida o mandarim, faça tudo voltar atrás. Diante da negativa, como era o costume em seu tempo de amanuense, ele resigna-se, não toca mais nos milhões sem, contudo, abdicar deles. Por quê? Porque quando tentou voltar à antiga vida, sentiu-se humilhado por todos os que o endeusavam, uma vez tornado milionário. Tragédia pouca para pequena culpa, é o que poderá concluir o leitor se conseguir escapar de se compadecer de Teodoro depois de ler suas lamúrias. Por fim, nesse jogo de especulação com a consciência em que se transforma o problema do Bem e do Mal, Teodoro assumirá, em relação ao leitor, o papel do Diabo: quando a narrativa está a encerrar-se, logo depois de uma sessão de arrependimento contrito, declarando ter-se retirado do mundo, vivendo num abandono prostrado e sem os benefícios da riqueza, linhas depois de aconselhar o leitor a nunca matar o mandarim, o que ele faz é consolar-se com a convicção de que ninguém escolheria um caminho diferente, caso lhe fosse dada a hipótese de tocar a campainha. E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do Norte ao Sul e do Oeste a Leste, desde a Grande Muralha da Tartaria até às ondas do Mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesse suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! (QUEIRÓS, 1916, p. 175). 32 O final do texto, que evoca os versos de Baudelaire em ―Ao leitor‖, dá-nos a dimensão do abismo que o indivíduo pode cavar, não necessariamente para nele precipitarse, mas para divertir-se arrojando os outros. No poema baudelairiano tratava-se de chacoalhar o leitor, afrontando-o, um gesto de lucidez com o sentido de transformá-lo, de retirá-lo do embotamento, obrigando-o a abandonar sua convicção, que não passava de hipocrisia. Mas Eça, interessado, tanto quanto Baudelaire estivera, na discussão do embate entre Bem e Mal, não partilha sua postura em relação ao demoníaco – ou, pelo menos, a postura que se criou à luz da obra do poeta francês. É o que se observa em um texto do início de sua carreira, publicado nas Prosas bárbaras: ―Uma certa escola, saída de Charles Baudelaire, afeta amores pelo Mal: como os histriões medrosos põem vermelhão na face, para encobrir a palidez, eles tingem a alma de perversidade negra para encobrir o desfalecimento.‖(QUEIRÓS, s.d., p. 622). Usar o Diabo para encobrir a falta de força de uma geração literária é, portanto, algo que não o interessa. Fiel a esse princípio, em O mandarim estabelecerá um vínculo com o que pensava na década de 60, o que contraria a tendência da crítica a estabelecer uma separação nítida entre as fases de sua produção. Nele, a lucidez que supostamente tudo desvela, produto do esforço racional em que se empenha o século XIX, serve ainda, e de forma mais perversa, para mascarar a hipocrisia. Mantida no plano do discurso, ela exime os culpados porque, afinal, são capazes de confessar, como o fez Teodoro candidamente, que são ambiciosos. Neste ambiente o Diabo é definitivamente relegado a um papel secundário, se não de figurante, uma vez que o próprio homem não é a criatura feita à semelhança de seu criador, por sua vez também comprometido por não se ter esmerado em sua função, pois improvisa ao criar, dando origem à ―obra má de má argila‖. A aproximação contrastiva do universo baudelairiano que o final do conto promove faz-se no sentido de marcar a insuficiência de uma visão crítica da relação entre Bem e Mal baseada na mera inversão de valores. O livro – cheio de graça, de ambiguidade e de ironia, de tal forma a não definir um sentido unívoco para a fantasia misturada à ―Moralidade discreta‖, como diz um dos personagens do diálogo que faz as vezes de prefácio – parece apontar para o fato de que nada se sustenta neste processo de redefinição dos limites entre Bem e Mal, não porque o Mal, sem as regras religiosas, se espalhe pelo mundo, mas fundamentalmente porque o Bem não existe, o que existe são estratégias argumentativas para quando alguém olhar-nos de soslaio e precisarmos assumir alguma (falsa) dor de consciência. Trata-se, portanto, de um desfecho bastante sombrio, nada fantasista ou moralizante, como seria de se esperar de 33 uma obra que se abre com a assunção, por parte do autor, da existência daquela clara distinção entre a leveza da literatura de entretenimento e a densidade da literatura séria, de cunho realista. Referências QUEIRÓS, Eça de. O mandarim. Porto: Livraria Chardron, 1916, p. 175. QUEIRÓS, Eça de. Uma carta (A Carlos Mayer). In: Obras. Porto: Lello, s.d., p. 622, Vol. 1. (Texto integrante das Prosas bárbaras) MORETTI, Franco. O século sério. In: MORETTI, Franco (org.). A cultura do romance. São Paulo: CosacNaify, 2009. 34 PARÓDIA E CARNAVALIZAÇÃO NO CANCIONEIRO CHICO BUARQUE DE HOLLANDA Paula Cristhiane da Silva Oliveira1 (orientadora)1 Prof.ª Dr.ª Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões RESUMO: O presente artigo é um recorte de minha dissertação Paródia e carnavalização no cancioneiro Chico Buarque de Hollanda, defendida no segundo semestre de 2012, no curso de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará, orientado pela Dr.ª M.ª do Perpétuo Socorro Galvão Simões. A pesquisa investigou os aspectos paródicos e carnavalescos presentes no repertório de Chico Buarque, enfatizando a carnavalização, inicialmente, como uma prática cultural medieval, baseada nas teorias de Mikhail Bakhtin, acerca do carnaval Medieval e Renascentista analisado na obra do francês François Rabelais. Desta análise, o presente estudo destacou os principais elementos constituintes dos ritos carnavalescos: o dialogismo; a ambivalência; o riso e por fim a paródia que incorpora todos os elementos citados anteriormente para sua realização. E para comprovar a importância do carnaval na cultura universal, dando ênfase à cultura brasileira, as canções Tem mais samba (1964), Sonho de um carnaval (1965), Amanhã, ninguém sabe (1966), Noite dos mascarados (1966), Roda-viva (1967), Ela desatinou (1968), Apesar de você (1970), Quando o carnaval chegar (1972) e Vai passar (1984) foram analisadas num estabelecimento comparativo entre o carnaval contemporâneo e o carnaval medieval, observando as confluências e dissonâncias, que ainda fazem parte desta festa popular. Desta apreciação, o presente estudo assinalou a importância da obra de Chico Buarque pelo valor poético e cultural presentes em todas as suas atividades artísticas. PALAVRAS-CHAVE: Paródia, Carnaval, Chico Buarque e Poesia. ABSTRACT: This article is an excerpt from my dissertation Parody and carnivalization in Songbook Chico Buarque de Hollanda, defended in the second semester of 2012, in the course of Graduate Studies in Letters from the Federal University of Pará, oriented by Dr. M. ª of Perpetual Help Galvão Simões. The research investigated the carnival and parodic aspects present in the repertoire of Chico Buarque, emphasizing carnivalization initially as a medieval cultural practice, based on the theories of Mikhail Bakhtin on carnival Medieval and Renaissance analyzed in the work of François Rabelais. Of this analysisThe present study highlighted the main elements of the carnivalesque rites: dialogism; ambivalence; laughter and finally the parody that incorporates all the elements previously cited for its realization. and to prove the importance of the carnival in universal culture, emphasizing the Brazilian culture, the songs Tem mais samba (1964), Sonho de um carnaval (1965), Amanhã, ninguém sabe (1966), Noite dos mascarados (1966), Roda-viva (1967), Ela desatinou (1968), Apesar de você (1970), Quando o carnaval chegar (1972) and Vai passar (1984) were analyzed in a comparative establishment BETWEEN carnival contemporary and medieval carnival, noting the consensus and dissent which are still part of this popular festival. Of this assessment the present study pointed out the importance of the work of Chico Buarque by poetic and cultural value present in all his artistic activities. KEYWORDS: parody, carnival, Chico Buarque e poetry. INTRODUÇÃO 35 O carnaval na poética buarqueana não se resume a um ritmo. Trata-se do substantivo proveniente do verbo carnavalizar, portanto passível de ser conjugado em vários tempos e modos. Verbo que excede a simples significação de tornar tudo carnaval. Carnavalizar é subverter a ordem hierárquica e social, é um meio de reflexão crítica e consciente do homem diante do mundo, e de como o mundo o trata, enquanto ser e/ou objeto. Neste contexto, o carnaval constitui um jogo lúdico, a partir do qual se percebem as incongruências que desconcertam a vida socialmente vigente e que por detrás de uma aparente ingenuidade, estão ocultos sentimentos, omissões, vozes dissonantes, processos históricos, etc., revestidos pelas potencialidades da composição rítmica e métrica do poeta Chico Buarque de Hollanda. A Paródia e carnavalização no cancioneiro Chico Buarque de Hollanda visou, primordialmente, analisar a imagem do carnaval dentro da poesia e da musicalidade do repertório de Chico Buarque de Hollanda. Objetivou-se estabelecer as relações íntimas e sistemáticas que caracterizam a imagem do carnaval como elemento diferenciador dentro da poética de Chico Buarque. E é neste ambiente que o carnaval configura-se como paródia, pela presença de personagens às avessas. E neste afã foram analisadas as canções Tem mais samba (1964), Sonho de um carnaval (1965), Amanhã, ninguém sabe (1966), Noite dos mascarados (1966), Roda-viva (1967), Ela desatinou (1968), Apesar de você (1970), Quando o carnaval chegar (1972) e Vai passar (1984), obedecendo a ordem cronológica de composição. Embora o carnaval não seja um tema central nessas canções, ele constitui um dos cenários mais correntes no repertório do sambista, propiciando maior aproximação entre o artista e o público. 1. CARNAVALIZAÇÃO: PRÁTICAS E TEORIAS ―Hoje eu quero/ Fazer o meu carnaval‖, os versos iniciais da canção Amanhã ninguém sabe, de 1966, cuja autoria é de Chico Buarque de Hollanda, mostram a relação subjetiva do compositor com o carnaval. Por isso, buscou-se estabelecer as relações que caracterizam o carnaval como elemento diferenciador dentro da poética de Chico Buarque. Na obra buarqueana, a temática do carnaval constitui uma forma peculiar de representação social, uma vez que, é nesse universo que o compositor evoca os malandros, as prostitutas, os pivetes, os operários, enfim, os que são marginalizados, figuras essas que permeiam, com frequência, seu repertório musical, viabilizando o enquadramento do poeta na categorização de artista engajado política e socialmente. 36 Para que nosso objetivo central pudesse desenvolver-se, nos aprofundamos na discussão sobre alguns aspectos do discurso carnavalesco e paródico. Assim, nosso estudo recaiu, principalmente, sobre as teorias de Mikhail Bakhtin acerca da carnavalização e da paródia, expostas no livro Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (2008). Nesta obra, o autor analisa os ritos, os espetáculos, as festas, as obras cômicas orais e escritas, as manifestações populares; além de relatar a visão do mundo marcada pela subversão do riso e dos valores oficiais, também, o autor destaca o caráter renovador e contestador vigente na época. Outro aspecto pertinente, neste trabalho, refere-se à investigação dos elementos dialógicos presentes na poética de Chico Buarque. Para essa análise, também utilizamos os pressupostos de Bakhtin desenvolvidos nas obras Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance (2010) e em Estética da Criação Verbal (2000). Segundo o teórico russo, a linguagem é dialógica, sendo, dessa forma, nosso discurso influenciado na mesma proporção em que influencia outras vozes. E nessa perspectiva, compreendemos os elementos dialógicos como mecanismos formais nos quais o discurso poético-musical entra em interação com vários gêneros, tanto literários quanto extraliterários, fazendo do discurso musical um espaço de representação de diferentes aspectos sociais, na ótica da carnavalização. As festas carnavalescas são um traço corrente em várias culturas e também no imaginário do povo brasileiro. Essa imagem igualmente se tornou corrente na literatura, configurando um estilo estético intelectual, utilizado por inúmeros autores para representar o imaginário carnavalesco do mundo e da vida. Além da literatura, o carnaval é um componente de criação no campo musical; neste espaço, o carnaval constitui tema ou cenário em que inusitados enredos desenrolam-se, pois é um rito de passagem ou de calendário, conforme classifica o antropólogo Roberto Da Matta em Carnavais, Malandros e Heróis (1997). O carnaval é, portanto, um espaço singular com regras, propostas e objetivos próprios, embora pareçam inexistentes, em alguns casos, por se realizam de forma única no espaço cultural ao qual pertencem. 1. 1. CARNAVAL: DA IDADE MÉDIA À CONTEMPORANEIDADE Todas as sociedades, das classificadas como ―primitivas‖ as ―desenvolvidas‖, têm seus ritos e suas festas de socialização: reuniões familiares, casamentos, celebrações religiosas (procissões, círios, etc.), comemorações anuais como natal e réveillon (marca de tempo), por exemplo. São festas, normalmente, regidas por certas regras (de acordo com a 37 natureza da comemoração – religiosa, pagã, familiar), por um ambiente regado, excessivamente, por bebidas, comidas e danças. Dentre estas festas, destaca-se o carnaval por apresentar caráter religioso e pagão, visto que, originalmente, o carnaval acontecia num período anterior à quaresma1 tinha, portanto, um significado ligado à liberdade, aos prazeres da carne – comer e beber – e ao fim do carnaval, seguia-se um período de abstinência, voltado à vida espiritual. Esta é a festa mais popular, tendo diversas representações pelo mundo, embora possua aspectos distintos, peculiares ao tempo e à cultura de cada povo. O carnaval é composto por ritos, dentre eles destacam-se o desnudamento e o mascaramento, referentes, respectivamente, ao prazer e ao fingimento. Características estas pertinentes a uma festa de caráter efêmero, em que o uso da máscara, tem dúbia função: dissimular outra personalidade e libertar o folião das convenções sociais. Na Idade Moderna, há dois aspectos que marcam a ruptura com o carnaval medieval: o primeiro é a perda de caráter regenerador das imagens grotescas de outrora, que se tornaram puramente depreciativas. A segunda refere-se ao aparecimento dos desfiles (carros alegóricos, pessoas fantasiadas desenvolvendo uma performance a um determinado público). Os desfiles ocorriam nos últimos dias de carnaval que antecediam a Quaresma. Tal característica permaneceu na contemporaneidade, pois no Brasil, por exemplo, o carnaval oficial é realizado em três dias anteriores a quarta-feira de cinzas, que marca o início da Quaresma, sendo para muitos o melhor dia o último, terça-feira, que na Itália recebia o nome de ―Terça-Feira Gorda‖. Vejamos algumas características históricas do carnaval. 1. 2. DIALOGISMO: ENTRE O DISCURSO DO POVO E O DISCURSO POÉTICO O dialogismo, como estudado anteriormente, manifesta-se tanto nas obras impressas como na própria leitura, pois o discurso se realiza num contexto de comunicabilidade, que está em constante ação recíproca com textos semelhantes. Para Bakhtin (2010b, p. 88), todos os personagens pertencentes à linguagem trazem em si uma formação social e histórica, conferindo significados reais e ficcionais, expressando seus pontos de vista sobre a realidade concreta. Assim, todo discurso é constituído por um ―eu‖ que sempre estará projetado em um ―tu‖. Segundo Bakhtin, ―um autor pode usar o discurso de um outro para os seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que já tem sua própria orientação e a conserva. Nesse caso, esse discurso, conforme a tarefa, deve ser sentido como o de um outro‖ (2010, p. 216). 38 1. 3. A AMBIVALÊNCIA NA LINGUAGEM CARNAVALESCA A principal característica da linguagem carnavalesca era a potência regeneradora, constituída pelo aspecto ambíguo e duplo que a palavra desempenhava no espetáculo carnavalesco (BAKHTIN, 2008, p. 128). A ambivalência da linguagem era destituída de cinismo e primava por estabelecer ligação entre os polos positivos e negativos referentes ao ciclo nascimento-morte ao qual todo homem está indissoluvelmente atrelado. Essa linguagem, por vezes vulgar, carregada de obscenidades, injúrias, louvores, grosserias, falas ousadas rompiam, provisoriamente, com as hierarquias sociais. Tal linguagem tinha caráter ambíguo e visava regenerar o homem, tirando-o da vida velha (morte) e trazendo-o para o novo mundo (Renascimento). O universo carnavalesco, da poética de Chico Buarque, apresenta linguagem similar ao da Idade Média, por se valer de uma poética que utiliza termos grosseiros, obscenos, eróticos, etc. Entretanto, a linguagem buarqueana é mais sutil, sua ousadia é mais implícita, choca mais pelo conteúdo do que pela forma. O sistema vocabular relatado por Bakhtin nas obras rabelaisianas não tinha por objetivo único romper com os sistemas hierárquicos. Essa linguagem, além de sustentar as ambivalências e constituir uma nova visão do mundo medieval, estava intrinsecamente vinculada ao mundo não-oficial como língua própria do ambiente público carnavalesco. 1. 5. PARÓDIA A paródia não pode ser classificada somente como uma reescritura negativa. Uma vez que a Literatura é o campo, por excelência, do dialogismo, é a ciência mais intertextual. Um exemplo disso são os heróis às avessas consagrados na literatura, sendo o mais antigo o famoso Dom Quixote. Os recursos estilísticos, geralmente, usados, na paródia são o paradoxo (lembra e repudia o texto primitivo), a hipérbole (recurso que acentua as deformações), e a ironia (usado para gozar e despertar a crítica). Hoje, entretanto, certas paródias, configuram uma nova composição em que as leituras dialogam e interagem, o que exige o esclarecimento de que a paródia incorpora o passado ao presente, sem que haja destruição do original, ao contrário, pode em alguns casos resgatar os valores do passado, é o caso da canção Sabiá. Bakhtin ressalta, que na era medieval, a paródia tinha outra significação, por estar relacionada com a degradação. Essa, por sua vez, objetivava entrar em contato com a vida inferior para dar lugar a um renascimento. Dessa forma, a paródia tem uma concepção 39 ambivalente, estando simultaneamente negativa e positiva. Chico Buarque tem composições que trazem as reminiscências carnavalescas de Rabelais, mas incorporadas por elementos contemporâneos (culturais, sociais, políticos, etc.), canções estas que refletem a condição humana. E tal como Rabelais encerra uma multiplicidade de imagens e significados, a vertente poética, amorosa, saudosistas, igualmente, são os temas presentes nos sambas que embalam os carnavais. 2. CHICO BUARQUE: O MENESTREL Chico Buarque é um poeta por excelência, posto que o domínio de rimas e ritmos, a preocupação com efeito sonoro, a criteriosa escolha lexical, o uso de figuras de linguagem, e as metáforas são características que fazem das canções de Chico poemas natos, perpassando sua poética pelos conflitos amorosos, sociais, psicológicos e metalinguísticos. Daí a alcunha de poeta: sua produção é rica em harmonia, letra e melodia. A intimidade com a palavra o torna um artesão da linguagem. As palavras, as imagens, as cores, as formas e os sons são instrumentos utilizados pelos artistas para espelhar a realidade. Realidade pautada na subjetividade, por isso, passível de questionamentos, uma vez que o artista é construtor de sentidos, e esses são inspirados segundo a experiência pessoal. Este trabalho se debruçou sobre a investigação da relação que o poeta tem com a palavra, uma vez que o objeto deste estudo é a poética de Chico, mais especificamente, na representação da cultura carnavalesca. A relação com a palavra buscou inspiração no cotidiano do povo, nas relações simples da vida. A partir daí, Hollanda executa jogos verbais construídos pela escolha criteriosa das palavras que serão usadas para expressar os sentimentos das personagens de sua criação poética. 3. HERANÇA DA CARNAVALIZAÇÃO MEDIEVAL NO CANCIONEIRO DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA 3.1. TEM MAIS SAMBA Chico Buarque considera a canção Tem mais samba (1966) um marco zero de sua carreira profissional (HOMEM, 2009, p. 18). A composição foi encomendada para o show Balanço de Orfeu que estreou em dezembro de 1964, em São Paulo. A música, no espetáculo, marcaria o fim do confronto entre a Bossa Nova e a Jovem Guarda, assinalando a vitória da primeira. O título, Tem mais samba, é uma sentença de temporalidade presente que marca a prolongamento do samba, como se esse fosse inesgotável, reforçando o valor dele em detrimento do outro ritmo, objetivo da composição. 40 Em Tem mais samba, o samba constitui a poesia e a matéria da poesia, logo, poderíamos classificá-la como metalinguística. Remonta o carnaval medieval, período mítico de liberdades individuais, mas que favorecem o encontro e propiciam os contatos físicos. A canção evoca o samba, enaltece o carnaval como espaço/tempo mágico que aproximam pelo ritmo. É importante assinalar também que as expressões que aproximam tratam da pluralidade, ao contrário dos termos que versam sobre o afastamento, marcado por ações singulares. O poeta aponta dois caminhos: a identificação versus a diferenciação (SILVA, 1974, p. 23), mas evidencia sua opção pelo samba e exalta sua poética humana que se realiza na pluralidade das cores, formas, raças e credos. 3.2. SONHO DE CARNAVAL Sonho de carnaval data de 1965 e faz parte do primeiro LP de Chico Buarque. Composição produzida para participar do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior do mesmo ano, foi interpretada por Geraldo Vandré, mas não ficou nem entre as cinco primeiras (HOMEM, 2009, p. 21). A canção marca o espaço de transição de Chico Buarque como compositor e cantor, demarcando seu lugar como artista, pois até esse momento ainda tinha mais a marca do entretenimento. Na canção a carnavalização medieval se faz presente por constituir um espaço exceção, em que as convenções sociais e as hierarquias são suspensas, pois o carnaval permite comportamentos inusitados e as relações amorosas são livres de todo e qualquer compromisso. O erotismo também se manifesta, e as esperanças em dias prósperos são renovadas, mesmo que constitua um ciclo passageiro. Além disso, a composição sintetiza uma poética moderna sob uma aparente construção romântica. A composição sintetiza uma poética moderna sob uma aparente construção romântica. 3.3. AMANHÃ, NINGUÉM SABE Amanhã, ninguém sabe foi composta em 1966. O título é uma incógnita sobre o amanhã, onde é enfatizado a entrega ao acaso e dá-se primordial importância ao agora. O eu-lírico negligencia as obrigações do mundo oficial em detrimento do carnaval. É cantada em quarenta e dois versos, divididos em seis estrofes com métrica irregular, e embora haja rima, essas não se destacam na melodia, nem na leitura. Há estâncias com oito e seis versos, alternando-se, talvez pelo fato de que a canção seja uma tentativa de mudar o ciclo normal da vida (MENESES, 2002, p. 62). 41 O eu-lírico pode realizar sua festa ―Hoje, pena/ Seria esperar em vão/ Eu já tenho uma morena/ Eu já tenho um violão‖. Dessa forma a ―roda‖ continua e ―a banda vai passar‖, relembrando A banda que passava trazendo encanto aqueles que estavam tristes. No verso ―Eu quero cantar o amor‖, o verbo querer no presente ratifica o seu valor, sendo cantado em toda a composição. Enfatiza também que ―No peito de um cantador‖ sempre haverá espaço para mais um samba, dando continuidade à festa; até porque ―Amanhã, ninguém sabe‖. Nessa canção, o carnaval também constitui um estado de exceção (SANT‘ ANNA, 2004, p. 170). 3.4. NOITE DOS MASCARADOS Noite dos mascarados, de 1966, foi composta para o musical Meu refrão. Nessa canção, Chico Buarque traz à cena o casal carnavalesco mais tradicional. A canção poderia ser classificada como uma peça teatral, onde cada estrofe corresponderia a um ato, pois nessa encenação o tempo cronológico se rende à magia do carnaval (CAVALCANTI, 2007, p. 143). Nessa canção temos a presença das máscaras, elemento essencial no carnaval medieval possuidoras de múltiplos significados (BAKHTIN, 2008, p. 35). Utilizadas para compor o clima de sedução e mistério, as máscaras protegiam as identidades na mesma proporção que davam liberdade aos foliões para concretizar suas fantasias, como evidenciam os versos: ―Hoje os dois namorados/ Procuram seus namorados/ Perguntando assim: Quem é você, diga logo/ Que eu quero saber o seu jogo‖. As máscaras compõem o rito do jogo amoroso da conquista carnal enfatizado no verso ―Que eu quero me arder no seu fogo‖. A última estrofe inicia com o verso ―Mas é carnaval‖, como se isso bastasse para justificar todo comportamento inusitado. Nessa estrofe, não interessa mais aos mascarados desvendar a identidade do outro, o importante é viver o momento, sem preocupações com o amanhã, pois o que se vive no carnaval, fica no carnaval, daí o desejo de vivê-lo na sua plenitude, de aproveitar os dias carnavalescos. 3.5. RODA VIVA A canção Roda viva, de 1967, assinala uma nova postura lírica, marca o fim do ―samba‖ e reconhece a pequenez do homem ante a ―roda mundo‖. A paródia e carnavalização em Roda viva estão na construção das metáforas que exemplificam a impotência do homem diante do tempo, imagem que já inicia no próprio título, visto que roda-viva é um substantivo composto que designa a urgência e a pressa (FERREIRA, 2010, p. 562), imagem esta que sintetiza o momento histórico. Contudo, a problemática do 42 tempo é muito atual e o advento da tecnologia acirrou ainda mais essa disputa. Se o título Roda viva for lido da direita para a esquerda, teremos a expressão A viva dor, que poderia se referir a repressão que se instalara no Brasil em meados do século sessenta. A canção foi composta por encomenda, processo que trava um combate direto e doloroso contra o relógio, assim como todos que vivemos dividindo o tempo, estabelecendo prioridades, nossas escolhas, simultaneamente, definem nossas perdas. 3.6. ELA DESATINOU Ela desatinou, data de 1968, a música narra em terceira pessoa o desatino de uma personagem feminina, cujo devaneio se desencadeia com a chegada da quarta-feira de cinzas: ―Ela desatinou/ Viu chegar quarta-feira‖, que marca o fim do carnaval. Temos, pois a descrição do fim dos ritos carnavalescos e diante disso o inconformismo de alguém que deseja continuar na festa ―Bandeiras se desmanchando/ E ela inda está sambando‖. A canção é ―uma explosão entre o erótico e o político‖ (MENESES, 2001, p. 43). Nessa canção se destaca a mulher dionisíaca, que representa o princípio do prazer, pois deseja sambar continuamente num carnaval sem fim (MENESES, 2001, p. 42). Na canção é clara a distinção entre os dias de carnaval e os dias comuns. A mulher é representa pelo pronome pessoal e indefinido ela, podendo assim referir a todas as mulheres apaixonadas pelo carnaval e que se sentem livres das amarras sociais, daí a dificuldade de ver esses dias findarem. Ela desatinou é síntese do carnaval pela torta entrega, pela euforia extrema, a mulher que enlouquece com a chegada da quarta-feira de cinzas (CAVALCANTI, 2007, p 145). 3.7. QUANDO O CARNAVAL CHEGAR Quando o carnaval chegar, de 1972, constitui um espaço mítico, utópico (SANT‘ANNA, 2004, p. 164). Parece ter uma ligação poética muito próxima com Ela desatinou, pois nesta o eu-lírico não consegue dizer adeus ao carnaval, naquela o eu-lírico se guarda durante todo o ano para libertar-se durante o carnaval e nesse período o eu-lírico se permite ―sambar‖, ―falar‖, agarrar, beijar, revidar, cantar e gritar. ―Nessa canção o cotidiano massacrante é substituído por um momento extraordinário‖ (CAVALCANTI, 2007, p. 124). Quando o carnaval chegar é, nas palavras de Meneses, a canção por excelência do desejo reprimido (2002, p. 79). Inicialmente, o eu-lírico se mostra alheio ao carnaval ―parado‖ e 43 ―distante‖, afastado da vida, mas esse isolamento só ocorre por estar longe do carnaval. Guarda também todo o sofrimento e tristeza a espera do carnaval que surge como a libertação das amarras sociais, pois a festa é um estado de exceção (SANT‘ANNA, 2004, p. 170 3.8. APESAR DE VOCÊ Em 1970, Chico Buarque compõe a canção Apesar de você que viraria o hino nacional contra a ditadura. A canção é composta por sessenta e cinco versos curtos e livres, divididos em seis estrofes. As cinco primeiras estâncias são compostas por doze versos que apresentam rimas internas. Segundo Candido, as rimas são recursos usados para obter efeitos especiais de sonoridade (2006, p. 61). As rimas em Apesar de você causam uma sonoridade singular que facilita a memorização da letra e da melodia. Assim como na Idade Média, em que se fazia dos dias de festa um meio para criticar o sistema, principalmente, à igreja católica (BAKHTIN, 2008, p.239), Chico Buarque vale-se de um samba com rimas simples e melodia fácil, semelhante à poesia marginal que desejava se expressar livremente e estar mais próxima do povo, o veículo de Chico é canção de rápida popularização e fácil assimilação com a qual manifesta uma das principais característica do carnaval medieval pelos ideais de liberdade de consciência e o devir da mudança (BAKHTIN, 2008, p. 239), pois Apesar de você narra um período de transição, da repressão a liberdade, além de ser um meio descontraído de construir uma crítica lúcida, es a essência da carnavalização do mundo. 3.9. VAI PASSAR Chico Buarque chega aos anos de 1980 com o mesmo espírito crítico e político que atravessou as décadas anteriores. Vai passar, datada de 1984, é a canção que marca o fim do ciclo do regime. O título da música ilustra perfeitamente este processo de transformação que vivia a sociedade brasileira. Na estrutura da composição se desenrola uma visão metafórica da nação que não pode ser reduzida a uma só dimensão alegórica, posto que Hollanda insere na letra da música pontos de vista questionadores sobre a redemocratização (PERRONE, GINWAY, TARTARI, 2004, p. 218). Vai passar é exemplo de uma poética que mescla o trágico e o cômico, que encontra nas manifestações populares um espaço de discussão que não se limita às questões culturais, e pelo caráter popular suscita inúmeros conflitos existenciais que atingem os homens de todas as classes, credos, etnias. E dessa forma, o carnaval compõe temáticas 44 históricas, amorosas, sociais, políticas, etc. Trata-se de uma forma de perceber o mundo e os homens, através de características permanentes a carnavalização conceituada por Bakhtin, pois trata, especificamente, de ―alegria carnavalesca, a harmonização da desigualdade e da comunhão universal‖ (CARNEIRO, 2001, p. 21). Vai passar não é apenas um samba, é um poema moderno, rico no uso de figuras de linguagem, cuja lírica politizada particulariza, ao mesmo tempo em que universaliza as contradições humanas vinculadas ao contexto histórico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inicialmente, a pesquisa Paródia e carnavalização no cancioneiro Chico Buarque de Hollanda visou investigar a imagem do carnaval dentro da poética de Chico Buarque, verificando a importância dessa festa na civilização popular, ao longo dos séculos, se tornando uma das mais importantes manifestações culturais e históricas. E no afã de comprovar nosso objetivo inicial, delineou-se, no primeiro capítulo, Carnavalização: práticas e teorias, as ações carnavalescas descritas nos textos de François Rabelais. Por meio desses escritos, Bakhtin construiu os pressupostos teóricos que apresentam os elementos indispensáveis à festa (imagens grotescas e/ou escatológicas, máscaras, linguagem própria, fantasias, local determinado, período definido, etc.). O carnaval de hoje não é o mesmo de Rabelais, mas há, nos festejos de hoje, resquícios do carnaval de outrora. O carnaval, assim como a maioria das festas culturais, se adaptou ao contexto sociocultural moderno, fato que ocorre na poética buarqueana. O carnaval cantado por Chico também traz a marca de um período diferenciado, em que a liberdade e a permissão para comportamentos diferenciados são concedidos. Concluímos, afirmando que a poética carnavalesca de Chico Buarque de Hollanda é diferenciada, pois o compositor consagra em seus poemas-canção elementos carnavalescos medievais e fazem dessa festa popular um instrumento de denúncia, de euforia, de ilusão e, principalmente, de poesia. Por todas as proposições citadas, a obra de Hollanda torna-se atual e universal. Da mistura entre os elementos tradicionais e modernos, da união do velho como novo, do conflito entre amantes, temos a principal característica carnavalesca: a subversão. O estado de exceção se caracteriza pela subversão ao tradicional, ao comum. Carnavalizar é mais do que um verbo, antes é a releitura de mundo, é a constante renovação poética, é não deixar nada envelhecer, pois nessa vida e desde os antigos carnavais, tudo se transforma. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 45 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais. São Paulo: Hucitec. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. São Paulo: Forense Universitari, 2010. ______. Questão de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 6ª ed. São Paulo: Humanitas, 2006. CAVALCANTI, Luciano marcos Dias. Música popular brasileira e poesia: valorização do “pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira. Belém: Paka-Tatu, 2007. FERREIRA, 2010, p. 562 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de janeiro: Rocco, 1997. HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009. Figuras do Feminino na canção de Chico Buarque. 2ª edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3ª Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002 MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3ª Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002 MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do Feminino na canção de Chico Buarque. 2ª edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. PERRONE, Charles A.; GINWAY, M. Elizabeth e TARTARI, Ataíde. ―Chico sob a ótica internacional‖ In: Fernandes. Rinaldo de (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond / Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 211-227. PERRONE, GINWAY, TARTARI, 2004, p. 218 SANT‘ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Landmark, 2004. SILVA, 1974, p. 23 WEINSCHELBAUM, Violeta (org.). ―Chico Buarque‖. In: Estação Brasil: conversas com músicos brasileiros. São Paulo: editora 34, 2006, p. 219-238. DISSERTAÇÃO CARNEIRO, Camila Leite Oliver. Chico Buarque: o tempo, os temas e as figuras. Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2011. 46 TERRA DO SEM-FIM: UMA LEITURA DOS SIGNOS DA LAMA EM COBRA NORATO DE RAUL BOPP Paula Fernanda Vicente Rosa1 Profª. Dra. Ana Cristina de Rezende Chiara (Orientadora)1 Resumo: No poema modernista Cobra Norato (1931), do autor gaúcho Raul Bopp, o personagem central é um homem que se apossa da pele de uma cobra e sai em busca de sua amada, a filha da rainha Luzia, que Cobra Grande, o vilão, raptou e mantém em seu poder. No percurso que faz em busca da heroína, Cobra Norato penetra numa terra que mais parece um exemplar da aurora do mundo, a ―terra do Sem-fim‖. De geografia informe e caótica, a terra do Sem-fim é florestal, aquática e, principalmente, lamacenta. Cobra Norato realiza um retorno à lama. ―Para melhor penetrar a substância de uma natureza pastosa, o ser deve amolecer e se fazer líquido‖, diz Jean-Pierre Richard, em Literatura e Sensação (1954). Cobra Norato efetua este processo, passa de um objeto a outro. Ao penetrar na lama, ele também se torna a lama. Esta fusão diminui sua integridade pessoal. A cobra circula através dos objetos como num meio homogêneo. E o mundo, mais uma vez, aparece como pleno. Gaston Bachelard assinala, no texto As matérias da moleza. A valorização da lama (1991), que banhos de lama recuperaram uma saúde primitiva. No momento em que a viscosidade desta se une à pele de seda elástica da cobra, algo semelhante a isso acontece. É por esta substância cósmica que Norato volta à mãe, ao ventre do mato, submetendo-se às potências materiais da terra. Para a psicanálise, a experiência que o sujeito tem da lama remete a experiências íntimas, a devaneios recalcados e põe em jogo sentidos que estão tanto para o desenvolvimento do indivíduo, quanto para o desenvolvimento da espécie, ou da coletividade. Assim, tendo Cobra Norato um cenário lamacento, procuraremos, dentre outras coisas, entender o poema pela lama, pelos jogos semânticos que esta matéria encarna na obra. Palavras-chave: lama; viscoso; fusão; antropofagia. Resumen: En el poema modernista Cobra Norato (1931), del autor brasileño Raul Bopp, el personaje central es un hombre que se añade a la piel de una culebra y sale en búsqueda de su amada, la hija de la reina Luzia, que Cobra Grande, el villano, raptó y mantiene en su poder. En el trayecto que hace en búsqueda de la heroína, Cobra Norato penetra en una tierra que más parece un ejemplo de la aurora del mundo, la ―terra do Sem-fim‖. De geografía informe y caótica, la terra do Sem-fim es forestal, acuática y, sobre todo, lodosa. Cobra Norato realiza un regreso al cieno. ―Para melhor penetrar a substância de uma natureza pastosa, o ser deve amolecer e se fazer líquido‖, dice Jean-Pierre Richard, en Literatura e Sensação (1954). Cobra Norato efectua ese proceso, pasa de un objeto a otro. Al penetrar el lodo, ella también se pone lodo. Esta fusión disminuye su integridad personal. La culebra camina por los objetos como en un medio homogéneo. Y el mundo, una vez más, se presenta como pleno. Gaston Bachelard señala, en el texto As matérias da moleza. A valorização da lama (1991), que baños de lodo recuperan una salud primitiva. En el momento que la viscosidad de ésta se une a la piel de seda elástica de la culebra, algo semejante a eso se pasa. Es por esta substancia cósmica que Cobra Norato vuelve a la madre, al vientre del herbaje, sujetándose a las potencias materiales de la tierra. Para el psicoanálisis, la 47 experiencia que el sujeto tiene de la lama remite a experiencias íntimas, a devaneos recalcados e involucra sentidos tanto del desarrollo del individuo, como del desarrollo de la especie, o de la colectividad. De esta manera, por tener Cobra Norato un escenario lodoso, buscaremos, entre otras cosas, comprender el poema por lo cieno, por los juegos semánticos que esta materia encarna en la obra. Palabras-clave: lodo; viscoso; fusión; antropofagia. 1. Introdução Um dia eu hei de morar nas terras do Sem-Fim. Vou andando caminhando caminhando Me misturo no ventre do mato mordendo raízes Depois faço puçanga de flor de tajá de lagoa e mando chamar a Cobra Norato - Quero contar-te uma história Vamos passear naquelas ilhas decotadas? Faz de conta que há luar. A noite chega mansinho Estrelas conversam em voz baixa Brinco então de amarrar uma fita no pescoço e estrangulo a Cobra Agora sim me enfio nessa pele de seda elástica e saio a correr mundo (C.N., p. 3)1 Em cobra Norato, poema subdividido em 33 breves cantos, o personagem central, herói-narrador, é um homem que se apossa da pele de cobra e inicia uma viagem em busca da filha da rainha Luzia, a heroína, que Cobra Grande, lendário vilão, uma espécie de minotauro do Amazonas, raptou e mantém em seu poder. Durante o percurso, Cobra Norato deverá superar algumas provas, mas terá a ajuda de outros personagens mágicos, como o compadre Tatu-de-bunda-seca, o Jabuti, o Pajé-pato etc. Assim, o desfecho feliz e a reintegração da harmonia ficam assegurados ao final. Em nota à primeira edição do poema, bem como em textos posteriores, Raul Bopp esclareceria: ―a ideia inicial era de aproveitar oportunamente esse material de paisagens amazônicas em um livro para crianças‖ (BOPP, 1966, p.12). Seja pelo enredo, pelo esquema a que obedece, ou pelas imagens que constituem o tecido poético não é difícil observar no texto elementos essenciais do recanto infantil. 48 No entanto, o poema que a princípio seria escrito para crianças reveste-se de sentidos que extravasam os moldes da intenção primeira. Por baixo da camada superficial que aponta para o mundo da ―fábula‖, surge sorrateiramente, porém de maneira bastante forte, a impregnação que conduz a uma leitura mais apurada do texto: a leitura do mito, carregada de sugestões mais fundas, aberta a significados antropofágicos e revolucionários. Quando deixamos ouvir a palavra mítica plasmada no poema, percebemos que este, muito antes de falar para a infância, fala da infância, porém não de uma infância particular, mas sim de uma infância da humanidade e, mais ainda, de uma infância da terra. (AVERBUCK, 1985, p. 110). 2. Desenvolvimento Este refletir da infância recai sobre o território da mítica terra do Sem-fim, por onde caminha o herói Norato à procura de sua amada. Lugar de tormentas? Paraíso? Espaço criado no sétimo dia? É difícil definir este lugar de águas, ilhas decotadas, rios-mar, terras que se fazem e se desfazem. A terra amazônica do Sem-fim é como um exemplar a ―aurora do mundo‖ diz Othon Moacyr Garcia (1962, p, 21). Dentro do poema, se assemelha a um universo intacto em formação que ainda permite a expansão de todas as possibilidades do existir. De geografia informe e ilimitada, a terra do Sem-fim é aquática, florestal e lamacenta, principalmente lamacenta. O homem revertido com a pele de seda elástica - a Cobra Norato - entrega-se a fascinação tátil da matéria viscosa. Viaja pela terra do Sem-fim e vive a lama em sua experiência total. Observamos, entretanto, algumas sugestões da área da psicanálise, já que Cobra Norato parece perfazer uma regressão ao estágio da primeira infância, da fixação anal, relembrando o inegável interesse da criança pequena pelas matérias moles, sujas, pegajosas. (BACHELARD, 1991, 87). Com a ação do meio social bem como por uma espécie de maturação psíquica, a criança segue um devir de limpeza, além de conhecer também a imaginação da matéria dura. Mas isso não ocorre sem que antes viva a primitividade dos instintos plásticos. A passagem do mole para o duro é delicada, entretanto, como postula a psicanálise, ―somente quem manipula a massa na hora certa [no tempo certo] tem chances de se tornar uma boa massa‖ (BACHELARD, 1991, p. 88). A experiência que o sujeito tem da lama remete a circunstâncias íntimas, a devaneios recalcados, lembra ainda Bachelard (1991), o que no caso de Cobra Norato põe em jogo sentidos que estão tanto para o desenvolvimento do indivíduo, quanto para o desenvolvimento da espécie, da coletividade. Cobra Norato em seu retorno ao ventre, 49 ―ventre do mato‖, recupera a oportunidade de uma educação bem compreendida, onde o plasma visguento poderá ser vivido como tendência a ser plenamente experimentada e superada, e não recalcada. A lama, água e terra, elemento fértil, vai atravessar toda a paisagem do Sem-fim e conduzirá a serpente ao seu destino. Cobra Norato se realiza assim como um poema da lama. Neste universo, em que todos os elementos da natureza ocupam espaço geográfico e emocional, a lama serve de tema condutor ao longo da travessia do herói pelos meandros da floresta (AVERBUCK, 1985, p. 123). Vou visitar a rainha Luzia Quero me casar com sua filha - Então você tem que apagar os olhos primeiro O sono escorregou nas pálpebras pesadas Um chão de lama rouba a força dos meus passos (C.N., p. 3) O pendor natural da sensibilidade da cobra não a conduz à conquista ou domesticação da lama. Raul Bopp postula uma espécie de viscoso em si, uma vontade de potência que, neste momento, supera a tentativa de dominação do visgo. A serpente se deixa levar pela lama, desliza por ela, segue o ―pendor‖ da matéria plástica na qual vai finalmente se perder. A partir desse momento a lama se impõe para contagiar a dissolução do ser. De certa maneira, a cobra deixa de ser um objeto particular para se tornar parte/fragmento daquela matéria. ―Diante de uma matéria um tanto insidiosa ou fugidia, o tateante e o tateado se individualizam mal, um é lento demais, o outro e mole demais‖ (BACHELARD, 1991, p. 92). Não haverá mais nem Cobra Norato nem ambiente, mas uma só pasta na qual estão intimamente ligados, abraçados e perdidos. Estamos diante de uma impregnação carnal na qual os objetos param de existir como tais, submetendo-se a uma vida em comum. Há de se considerar que não estamos tratando de um animal qualquer, mas sim de uma cobra, animal que se arrasta, que tem todo o seu corpo pregado ao chão. Cobra Norato entrega-se a presença inteira do mundo, estando aberta à penetração da lama por todos os poros de sua pele. Com os olhos apagados e com a força de seus passos roubada pela lama, no ensaio do sonho e da sensação das molezas do visgo, a serpente se dissolve de modo febril tornase um ser imbricado na impessoalidade dos ―longos tanques de lodo-pacoema‖, confundindo-se com toda a matéria orgânica ali presente. A viscosidade da lama torna-se um símbolo, uma força, é ao mesmo tempo um princípio de união e uma potência onírica. 50 Cobra Norato está de mussangulá. Se a serpente, ao se liquefazer, ainda guarda um resto de consciência e o necessário de lucidez é para provar a intensidade de sua inconsciência, naquela experiência visceral. (RICHARD, 1954)1 Cobra Narato abandona-se à natureza, rende-se à argila, penetra sua substância, circula livremente através dos objetos como num meio homogêneo (RICHARD, 1954). A heterogeneidade, própria de uma visão à distância, fica comprometida e o mundo, naquela infância da terra, aparece novamente como pleno. A serpente penetra na terra do Sem-fim como num lugar sagrado, ali está sua força, o âmago da natureza. Ao contrário da ―indiferença‖ das matérias duras, a lama é como uma carne que responde aos movimentos da cobra, uma matéria que interage, se modula com seu rasto. A serpente vê na lama os seus passos, vê na natureza sua própria vida. No tempo em que a lama primordial estende sua corrente sobre o mundo, Cobra Norato desce nela todo o seu corpo. Para um ser que não quer fazer nada, que quer permanecer asseado, limpo, puro, encontrando o universo em ordem, o viscoso apresenta-se como uma arapuca, uma ofensa, matéria de enervamento. Mas, Cobra Norato, ao contrário, parece repetir as palavras de Bachelard (1991, p. 94): ―se me fosse absolutamente necessário viver o viscoso, eu é que seria o visgo.‖ A serpente se dissolve na experiência existencialista do contato com o visgo, circunscrevendo aquilo que poderíamos entender como um verdadeiro banho de lama. E banhos de lama, ainda segundo Bachelard, recuperam uma saúde primitiva, arrancam o homem de si mesmo e o une à natureza. A lama é como uma reserva de espíritos vitais, daí o magnetismo dessa matéria. Assim, acrescenta o mesmo autor, ―andar de pés descalços numa lama primitiva, numa lama natural, devolve-nos a contatos primitivos.‖ (BACHELARD, 1991, p. 105). Lama é matéria cósmica, orgânica. Pela lama Cobra Norato volta à mãe, à infância, ao ventre do mato, submetendo-se às potências materiais da terra. No poema, todos os seres estão unidos por uma energia cósmica vital. O tempo de Cobra Norato é o tempo da lama, o tempo dos mitos, da presença total. Da mesma forma que ―as matérias untuosas atraem para si e conservam as riquezas alimentares‖ (BACHELARD, 1991, p. 99), a lama, em Cobra Norato, é o elo que une todos os seres: Chiam longos tanques de lodo-pacoema Os velhos andaimes podres se derretem Lameiros se emendam Mato amontoado derrama-se no chão (C.N., p. 11) 51 Os lameiros se emendam e emendam o mundo. A lama, massa para sempre mole, é como o grude que une todos os reinos (mineral, vegetal e animal). E, em Cobra Norato, é a cola do mundo. Num espaço como este, o ser nunca se sente só ou enclausurado no seu modo de existir, o ser participa de uma totalidade. Projetam-se nesse conjunto simbólico as relações de princípio de todas as coisas: água e terra germinativas, origem e centro da vida. Ao atravessar a floresta cifrada mordendo raízes, Norato sente-se ―bater em cadência com as pulsões da terra‖ (AVERBUCK, 1985 p. 124). É este o sentido do biológico, como parte da aprendizagem de um sentir integrado com o mundo que se manifesta no poema. Em uma sociedade como a nossa, que já esquece o contato com as raízes primordiais, parte perdida da infância, evoca-se, segundo Lígia Averbuck (1985, 115), uma percepção inocente de mundo realizável pelo sentido global do existir. A lama e as formas do mito em Cobra Norato remetem a um sentido de globalidade em que o herói e a natureza se identificam e se unem na realização fecunda da energia impulsionadora que matem a coesão de tudo o que vive. É este mundo primitivo da lama e do mito, em que os seres respiram a mesma totalidade da existência, que ajuda a formar a atmosfera da terra do Sem-fim. - O que vocês fazem lá em cima? - Tenho que anunciar a lua quando ela se levanta atrás do mato - E você? - Tenho que acordar as estrelas em noites de São João - E você? - Tenho que marcar as horas no fundo da selva. (C.N., p, 10) Cada elemento tem sua função, reflexo da unidade perfeita. Tem-se assim, como, assinalou Averbuck (1985, p. 114), a percepção de que as formas e o caráter da natureza se assentam no fato de que todas as partes estão relacionadas entre si. ―Na terra do Sem-fim as coisas só têm sentido em sua realidade imediata, na sua vida conjunta, e nada existe que não esteja relacionado com o todo.‖ Na recuperação de um passado onde os seres da natureza formam um todo único sem divisões, a lama também ajuda na solicitação de uma leitura única da paisagem, afinal e nela - em sua nebulosa indiferenciação - que os objetos acham-se imersos. Retorna-se no poema a um estado caótico embrionário que a imagem do Sem-fim sugere muito bem: 52 Passo nas beiras de um encharcadiço Um plasma visguento se descostura E alaga as margens debrunhadas de lama Vou furando paredões moles Caio num fundo de floresta Inchada alarmada mal-assombrada Ouvem-se apitos um bate-que-bate Estão soldando serrando serrando Parece que fabricam terra... Ué! Estão mesmo fabricando terra (C.N., p, 11) Neste cenário magmático, o espaço, como pontua Lúcia de Oliveira (2002, p. 290), está saturado de perigos iminentes, cada coisa está pronta para se transformar em outra, ali as forças primordiais geradores do mundo estão em plena atividade. Cobra Norato relata assim, os eventos primordiais mediante os quais os objetos cósmicos, os objetos da natureza, passaram a existir. É pela terra, ou melhor, pela lama, que se conta a história de como era o mundo no princípio, história em que todos os seres se tornam reais e significativos. ―Cobra Norato nos dá acesso a um tempo de gênese, ainda não historicizado e, portanto, não marcado pelo depoimento de forças que condicionam o destino de indivíduos e povos inteiros‖, diz Lúcia de Oliveira (2002, p. 300). O sentido de retorno às origens é possibilitado também, e sobretudo, pelo proveito que o poema faz da palavra mítica. Retornar às origens e aos tempos primordiais é, segundo Mircia Eliade (1972, p. 83), o traço fundamental de toda mitologia. Cobra Norato é um poema mitológico. À influência da literatura dos nheengatus, o mito lhe serve como tema originário e o texto está repleto de elementos da mitologia amazônica. Tal esclarecimento amplia a compreensão de retorno ao pré-tempo. O poema, com suas sugestões mitológicas, mantém-se fora da cronologia, desfaz o caráter da irreversibilidade temporal. Cobra Norato liberta o leitor do tempo morto e lhe dá a possibilidade de abolir o já transcorrido, a possibilidade de retornar à infância da humanidade, ao começo da vida. Pois, como já dito, em Cobra Norato o mundo ainda está em formação. A aderência àquela realidade mágica, amazônica, pré-cabralina e pré-lógica é tanta que adotar uma visão característica daquele mundo torna-se a abordagem mais plausível. Eis aí a grande sacada de Raul Bopp: o poeta recupera não somente a linguagem 53 mitológica, mas a ótica do próprio mito. Vemos a terra do Sem-fim pela perspectiva da serpente. ―O mito agora é mais que uma lenda, é uma realidade viva.‖ (KERÉNYI, In: OLIVEIRA, 2002, p. 266). Neste universo de cobra impregnada por lama, de homem impregnado pelo princípio natural da existência, a vida é regida pelos caminhos da primitividade, da essencialidade, do instinto. Cobra Norato, como lembra Averbuck (1985, p. 116), ―assume os valores para os quais apenas a vida é razão de ser‖: o imperativo da fertilidade para as mulheres; a valentia, a coragem, a força viril para o homem em pele de cobra: ―Onde irei eu/ que já estou com o sangue doendo/ das mirongas da filha da rainha Luzia?‖ (C.N. p, 8). Cobra Norato se dispõe aos perigos da floresta, enfrenta a boiuna e realiza a grande viagem pelas terras do Sem-fim pela garantia da preservação da vida. A vitalidade visceral torna-se o principal ingrediente do poema. Cobra Norato, mais uma vez, sente a natureza no próprio corpo. Nesta unidade vital do primitivo, o corpo não é objeto, mas sim sujeito natural do ser total. Experimentando a floresta em seus múltiplos submundos, Cobra Norato desce ao chão com a fascinação dos sentidos, entregando-se a toda experiência sensorial, no tempo em que as plantas e os animais falavam, no tempo da fundação, no tempo da lama: 31). Um fio de água atrasada lambe a lama (C.N., p. 20). Caules gordos brincam de afundar na lama (C.N., p. 22). Um charco de umbigo mole me engole (C.N., p. 22). Raízes desdentadas mastigam lodo (C.N., p. 23). Quero que você me ensine a sair dessa goela podre (C.N., p. Charco desdentado mastiga lama (C.N., p. 41). Jacarés em férias num balneário de lama (C.N., p. 56). Há fossas de boca inchada (C.N., p. 65). No entanto, é preciso que se diga que ―a existência viscosa da massa, não pode ser mais do que um ponto de partida, uma excitação para uma experiência dominada.‖ (BACHELARD, 1991, p. 97). Cobra Norato está apenas manipulando a massa na idade certa, na infância da humanidade, na infância da terra. O tempo vai impor à matéria pegajosa um devir de firmeza, como num esquema de ações que impõem um progresso. O grude tende sempre a se tornar vontade de se ―desgrudar‖, lembra Bachelard (1991, p. 96). Não se pode absorver uma existência no eterno visgo. O viscoso e o interesse pela viscosidade caracterizam apenas uma etapa da existência. Assim, como trabalha mais confiante a mão que encontra na farinha, ou no fermento, um companheiro contra a 54 viscosidade, assim também se entrega a serpente à experiência do visgo. Cobra Norato não luta contra o visgo, mas sabe que uma hora ele passará, será vencido. 3. Conclusão A matéria mole está sempre exposta à inversão de valores, à ambivalência. A lama que incita atração, também provoca repulsa. Seu valor anda lado a lado do seu antivalor. Afinal, o que é a lama? Da mesma forma que pode ser pensada como saudável - matéria orgânica geradora de vida - também pode ser considerada mistura de tudo o que é abandonado, fraqueza e imundice, tudo que teve forma e se perdeu. Lama é substância [des]valorizada. Lama é geração e, ao mesmo tempo, putrefação. (BACHELARD, 1991, p. 101). Isso torna ainda mais preciosas as imagens que nos fazem descobrir um passado desaparecido. Afinal, há casos em que se desvaloriza para valorizar. Unindo no mesmo espaço as metáforas do início e do fim o poema derruba fronteiras e integra o Brasil originário ao Brasil maduro, o Brasil do passado ao do presente. A lama - o ventre do mato, a terra do Sem-fim - está pronta para parir o acontecimento Brasil. Brasil não no sentido de esquecer o já sabido, mas sim Brasil que se coloca na ―tarefa de redefinir as totalidades de um acontecimento‖ (SISCAR, 2005, p. 8). Se a brasílica terra do Sem-fim deve ser convertida em ouro, é preciso que primeiramente retorne à lama, como ocorre no poema. Uma autoantropofagia da terra. Assim, apenas a lama Brasil pode se converter em ouro. Neste caso, é preciso perder para ganhar, para ter a possibilidade de fazer surgir do valor diminuído o ímpeto que dará o valor material supremo. O lírio mais lindo brota da lama. Aproveita-se aqui as ideias de Jerôme Cadan, ―Les livres de Hierome Cardanus‖ (In: BACHELARD, 1991, p. 104). Cobra Norato é um retorno à lama para que se possa sair da lama reinventado. O solo, em Cobra Norato, ativa uma vida rejuvenescida que sai de uma lama saciada de imundície. Assim, a poética de Raul Bopp também se serve da metáfora da flor que sublima a sujeira. Uma dialética que, como a de Strindberg (In: BACHELARD, 1991, p. 102), atua no nível cósmico. A terra do Sem-fim e uma matéria de atolamento. Dessa forma, a poesia se desenvolve num simbolismo do baixo em direção ao alto. Possibilita-nos viver, em nossa infância coletiva, uma sublimação normal e salutar. O Brasil é uma magna flor que sai do abismo lamacento. REFERÊNCIAS: 55 ANDRADE, Oswald de. Poesia Pau-Brasil. In: Obras Completas VII. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. ________. Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago. In A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990. AVERBUCK, Lígia Morrone. Cobra Norato e a Revolução Caraíba. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1985. BACHELARD, Gaston. As matérias da moleza. A valorização da lama. In: ______ A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1991. BOPP, Raul. Cobra Norato. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2009. ________. Vida e morte da antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. ________. Movimento modernista no Brasil (1922-1928). Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. ELIADE, Mircea. Mito e realidade; tradução Paola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1994. GARCIA, Othon Moacir. Cobra Norato: o Poema e o Mito. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962. ENTREVISTA (Heloísa Buarque de Hollanda). Matraga, Rio de Janeiro, ano 17, n. 27, p. 134-148. jul./dez. 2010. Disponível em: http.www.pgletras.uerj.br/matraga OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2002. PROENÇA, M. C. Cobra Norato. In ________. Estudos Literários. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1971. RICHARD, Jean-Pierre. Littérature et Sensation. Éditions du Seui, 1954. SÁ, Lúcia. Literatura da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. SISCAR, Marcos. O coração transtornado. In: NASCIMENTO, Evando (Org.). Jacques Derrida: Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação da Liberdade, 2005. 56 HOMOCULTURA E LINGUAGENS CONTEXTOS, CRÍTICAS E PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTISMO NA LITERATURA Paulo César García1 Resumo: Esta comunicação propõe reunir um perfil analítico sobre os estudos do homoerotismo na literatura, trazendo à tona perspectivas de leituras e críticas. O Grupo de Trabalho ―Homocultura e Linguagens‖, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), tem contribuído com as atividades de pesquisas, tornando-as aí visíveis as ramificações de discursos a despeito de assuntos e temáticas peculiares a determinados significados construídos. Trata-se de uma aposta para mediar não somente os constructos de poder que pairam sobre a representação do gay no espaço ficcional e poético, como também visa debater um dado ―equilíbrio cultural‖ no que tange à adoção de posturas e posições a respeito da diversidade sexual e as masculinidades hegemônicas. Frente às questões mencionadas, como pensar as produções e as difusões de conhecimento, quando estas favorecem o grau de cientificidade que o tema dispõe; como visar às articulações atuais e históricas de forma a ascender o papel do crítico que se dispõe a análises? Certamente, esta apresentação pretende recepcionar os contextos, as inserções culturais, os percursos textuais artísticos e críticos, de modo a manifestar contatos mais férteis com as iminentes abordagens e outras noções referentes ao empreendimento da crítica literária que investe na interpretação do homoerotismo na literatura. Palavras-chave: Crítica; Homocultura; Literatura Abstract: This proposes to gather a profile on analytical studies of homoeroticism in literature, bringing up prospects readings and critiques. The Working Group "homoculture and Languages", the National Association of Graduate Studies and Research in Languages and Linguistics (ANPOLL), has contributed to the research activities, making them visible around the ramifications of speeches in spite of subjects and themes peculiar to certain meanings constructed. It is a gamble to mediate not only the constructs of power hanging over the representation of gay fiction and poetry in space, but also aims to discuss a particular "cultural balance" regarding the postures and positions about diversity sexual and hegemonic masculinities. Facing the issues mentioned, as thinking productions and broadcasts of knowledge when they favor the degree of scientificity which has the theme: how to address current and historical articulations in order to ascend to the role of the critic is willing to analyzes? Certainly, this presentation aims to welcome the contexts, the inserts cultural, artistic and textual pathways critical in order to express more fertile contacts with the imminent approaches and other concepts related to the development of literary criticism that invests in the interpretation of homoeroticism in literature. Keywords: Critic; Homoculture; Literature 57 1. Introdução Na história da literatura do século XX ao atual século XXI, a introdução de leituras adotadas sobre o homoerotismo tem ganhado força de persuasão. O texto mais enaltecido, através do capítulo citado: Literatura e homoerotismo masculino: perspectivas teórico-metodológicas e práticas críticas, de autoria de José Carlos Barcellos (2006) expressa bem o parâmetro com o qual visa às proposições, a partir de critérios que relatam a história cultural brasileira e ocidental, de suporte visível para as perspectivas de análises e uma sólida fundamentação teórica, pondo em relevo aspectos da crítica literária. José Carlos Barcellos já inseria aí, neste livro, o contexto de produção dos estudos da homocultura, dando importância muito grande para a questão da especificidade da própria condição gay vivenciada e construída no Brasil e que poderia ser acolhida pela ótica dos estudos literários. Portanto, o fundamento envolvendo um corpus crítico e analítico poderia ser resumida provisoriamente em três tópicos, de acordo com a sua análise. Primeiro, ―a necessidade absoluta de um combate sem tréguas à homofobia, onde quer que esta se manifeste‖. Em seguida, ―a importância de se manter um olhar crítico para a relação entre a liberalização dos costumes e a lógica do capital‖. E, por último, ―o imperativo da vigilância acerca das implicações práticas das posturas teóricas assumidas (BARCELOS, 2006, p. 10-11). Sem dúvida que a leitura de Barcellos considera eixos estreitos que se valem das mediações de ordem cultural e, por hora, vêm se destacando nos Departamentos de Letras no Brasil, em cursos de Graduação e de Pós-Graduação. Naqueles três tópicos elencados, o aparato descritivo e desconstrutor da face do pós-estruturalismo de Foucault, Deleuze e Derrida, somente para citar estes teóricos, coloca como pauta maior a vigilância lúcida e consciente do lugar de onde e como o outro fala, sendo que, nesses lugares, configuram as tensões que envolvem o viés das margens versus o pensamento autoritário, os imperativos do controle dos corpos, a regularização da legalidade e legitimidade dos direitos e as posições dos sujeitos que confirmam, por esses tópicos enunciativos, as inexpressivas identidades de gênero e de sexualidades construídas no solo social. Afirma Barcellos que o conceito de homoerotismo é muito útil por vários motivos. Em termos de história e crítica da cultura, o conceito tem a vantagem de não impor nenhum modelo pré-determinado, permitindo, assim, que se respeitem as configurações que as relações entre homens assumem em cada contexto cultural, social ou pessoal 58 específico (BARCELOS, 2006). Com os estudos da literatura desenvolvidos com as abordagens dos Estudos Culturais, que são não apenas muito instigantes, mas ainda extremamente produtivas para a compreensão tanto da literatura e da cultura gay, quanto das dinâmicas históricas, sociais e culturais mais amplas, o campo de análise, nas textualidades do literário, vem se inserindo de modo significativo. Isso equivale a dizer que não podemos perder de vista os lugares de leituras marcados, os contextos históricos e são deles que ancoram os debates que são visados e direcionados para o aspecto do controle social e cultural, como os lugares em que são acionados a partir do pensamento logocêntrico e patriarcal. Todavia, descrever o campo da homocultura, que vem sendo analisado por grande número de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, significa operacionalizar a compreensão de um discurso que atravessa continuamente a Literatura e a Cultura, como bem descreve Mário César Lugarinho (2004). Em se tratando de diálogos com outras áreas do conhecimento, compreende-se que as questões que envolvem a voltagem da crítica literária e a homocultura é mediada por estudiosos comprometidos com o dado ―equilíbrio cultural‖ no que tange às posturas em favor da diversidade de leituras, que são fatores importantes e impactantes no processo de interpretação. Se estivermos amadurecendo com os suportes metodológicos e com os gestos de ruptura com um passado negro, sendo este destinado para as irrisórias compreensões a respeito das identidades, não cansaremos de recepção aos estudos da homocultura, no âmbito da área de Letras e Literatura, e nem se furtar ao ―bode expiatório‖ que se faz presente diante das reações avessas ao tema do homoerotismo. A finalidade de ―explicar‖, lidar e pensar de modo cerrado o sentido do texto é uma preocupação dos tradicionalistas e historicistas, tendo, em mente, o espaço literário comprometido com os sobressaltos atuais nos atuais tempos de pós-crítica. Assim, constitui-se grande desafio rever os instigantes entraves do Cânon e o poder que a literatura exerce em outros estágios e diálogos com a cultura. Talvez, dentro do que afirma Ítalo Calvino, com as suas ―Seis Propostas para o Próximo Milênio‖, este poder a ser desafiado ―consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos pode nos dar (CALVINO, 1994, p. 11). Na visão de Calvino, a supremacia da literatura não está em questão e sim, vista nos tempos atuais, as linguagens, as imagens que as atravessam tateiam outros códigos, de modo que, para o interesse que buscamos refletir, os valores do texto literário não somente 59 dizem respeito a sua criação e transmissão do saber, mas da sua ação, no ato de editar conhecimento num movimento autônomo e de livre acesso à legitimidade das histórias e culturas por ela enunciada, respeitando, também, a qualidade da forma que lhe dá sentido. Creio que, por essa terceira via de diálogos entre literatura e diversidade cultural, uma geração de pesquisadores se cercara de interpretações que, na visão de Mário César Lugarinho e José Carlos Barcellos (2006), instigaram este ideal de investigação contínua e sistemática do literário, direcionando para a construção de um viés estético que abrisse espaço para as marcas políticas que a literatura solicita. Sem dúvida, Lugarinho e Barcellos deram o norte para que demais seguidores dos estudos sobre a homocultura na área de Literatura viessem a progredir, de modo a dar fruto a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), idealizada no final dos anos 90. Os encontros de Niterói1, como foram nomeados pela tônica da temática dada por eles, congregaram cerca de sessenta e cinco doutores, brasileiros e estrangeiros, cujo objetivo era promover e difundir pensamentos críticos sobre a diversidade sexual e de gênero. A partir daquele primeiro encontro entre os pesquisadores da área de Letras, na Universidade Federal Fluminense (UFF), os incentivos aos estudos e às pesquisas da temática tiveram ascensão em diferentes áreas de conhecimento, dando visibilidade às outras expressões e discursos sobre as sexualidades e gêneros de modo avesso aos conceitos heterodoxos e homogêneos que se instalaram no Brasil. Dado o movimento científico e epistemológico de responsabilidade desses Professores-Pesquisadores, que dão o pontapé inicial para uma rede que se forma e dão sequência às intersecções de novas linguagens, fica claro, portanto, que a crítica literária se mantém altiva ao lado e à luz das contingências do cânone. Contudo, resistindo às investidas contra-canônicas, afirma Lugarinho: O que denominamos como emergência de uma ―consciência histórica dotada de uma identificação imediata a sua diferença sexual‖ pode ser, hoje, alargada na medida em que a investigação teórica a respeito das relações entre a cultura e a identidade homossexual precisou desenhar um conceito eficaz que lhe desse mais contornos definidos: o conceito de ―homocultura‖ (LUGARINHO, 2004, p. 27). O certo é que houve e há uma produção de textos que falam da homocultura com a perspectiva de arcar os questionamentos diretamente relacionados à orientação sexual gay, mesmo existindo uma dificuldade de propagação e recepção do tema. Dizendo de outro modo, parece que a crítica literária ligada às questões da literatura, sob os argumentos da homocultura, ainda está sob fogo cruzado, uma vez que os assuntos, tais como direitos 60 humanos, cidadania, identidades femininas e afrodescendentes, reposicionamentos da vida social são tributos de discussão na cultura e da sociedade, mas ainda sem viva-voz nas ondas do discurso produzidas pela crítica literária. Parece que os direcionamentos do eixo literatura e homoerotismo são ainda assustadores ou, como as vias do labirinto, há quem se encontre perdido na linha das demandas e dos diálogos mais férteis da criação artística em seu circulo de construção e recepção de sentidos. Por outro lado, seguindo o percurso histórico colocado pela visibilidade das posturas críticas e teóricas enaltecidas por Barcellos e Lugarinho, atualmente, o problema fundamental a ser encarado é como tornar sempre viável a produção literária que atribui fórum de debate os aspectos e configurações homoeróticas, como articular o discurso sob o grau da tolerância, trazendo, em destaque, a representação das identidades de gênero e de homossexualidades sob a consciência e fomentos políticos, sem reduzir o valor literário, o seu impacto e fruição estética? ―A literatura permite respirar‖, como afirma Barthes (2003, p.172), isso porque necessita de mais fôlegos para ouvir a língua fora do poder, com testemunhos que reabilitem a sua exceção, enquanto provedora de escritas nada convencionais. Por isso, de acordo com Compagnon (2009), quando diz que ―a literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta como um ensaio de Montaigne, depois de nos ter feito ver, respirar ou tocar as incertezas e as indecisões, as complicações e os paradoxos que se escondem atrás das ações – meandros nos quais os discursos eruditos se perdem [...]‖ (COMPAGNON, 2009, p. 4751). Portanto, a literatura não deve ser refutada aos olhos da discriminação, mas ser lida e estudada porque oferece um meio [...] de preservar e transmitir a experiências dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. A literatura não é a única, mas é mais atenta que a imagem e mais eficaz que o documento, e isso é suficiente para garantir o seu valor perene (COMPAGNON, 2009, p. 52-55). Sendo assim, partilhar da noção de Compagnon, também, significa exaltar o princípio de como as leituras são construídas e tornam uma possibilidade de exercitá-las com a experimentação de possíveis códigos. Por esse sentido, uma legião de pesquisadores se empenhou com o projeto de criação do grupo de trabalho ―Homocultura e Linguagens‖ para a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), cujo objetivo preliminar seria traçar um mapeamento da produção literária de 61 língua portuguesa, brasileira e ocidental, tomando a História das Literaturas, suas implicações epistemológicas os constructos das relações de gênero e diversidade sexual. 2. Contextos, Críticas e Perspectivas dos Estudos da Homocultura Partindo do próprio sentido do termo Homocultura, seguimos de perto o caminho elevado para agregar o tom de reconhecimento acadêmico e científico frente à composição de temas, assuntos, às questões de ordem textual de obras literárias e aos diálogos com áreas afins. As pesquisas reunidas para o GT têm como fundamento entreter ações mais nítidas e reveladoras e que atendam não somente aos discursos engajados, mas fazer deles um movimento político em diferentes embates no espaço social e cultural. Certamente que tivemos a grata satisfação de perceber que vinham sendo desenvolvidas algumas dessas ações de forma críticas a respeito dos estudos de gênero, gays e lésbicos, sendo baseadas nas pesquisas que colhemos, apresentando boa fundamentação teórica e, sem dúvida, um processo de análises que nos levam a uma intensa e constante elaboração dos recortes textuais analíticos e com os quais emergem novos problemas, velhos objetos e novas abordagens. Os projetos do GT direcionam para o veio estético de textos literários e da cultura, se ocupando, por um lado, da catalogação, resgate, análises críticas de obras, fundando suas bases na perspectiva de interpretar as identidades de gênero e homossexualidades, com diretrizes teóricas e discursivas, com contextos nucleares fundamentados para como e o porquê determinada obra ser inserida no cânone e das legitimações de obras à margem do cânone. Por uma ótica de inserção das linhas de pesquisa, também, os estudos queer adentram no grupo de trabalho com o poder político que detém, tendo se mostrado forte na conjuntura de questões que são abraçados pelo GT. Assim, explica-se a legitimidade da Teoria Queer, pois o que ela faz: ―[...] é apontar os limites das políticas identitárias. Ora, há uma imensa diferença entre apontar limites, criticar determinados aspectos de certas ideias e estratégias, e ser inimig@ dessas pessoas, dos movimentos e das suas estratégias. Essa diferença precisa ser compreendida para não entrarmos em uma disputa que só nos enfraquecerá, como explicita Leandro Colling (2011, p. 9). Por sua vez, considerar os estudos queer na cultura brasileira1 é perceber como os outros e novos ex-cêntricos são peça fundamental na história e na memória coletiva de nossa sociedade, avaliando a relevância da presença dos que são inomináveis, a exemplo dos transexuais, travestis, transgêneros, e todos(as) possibilitados ao reconhecimento e ao poder de voz, mas, principalmente, sendo visados em suas diferenças. 62 No entanto, na visão de Lugarinho (2001), o lugar do queer na cultura brasileira se reporta em torno da diferença sexual direcionada para os estudos queer anglo-saxônicos e, para entender a diferença em língua portuguesa, são necessárias inúmeras considerações de ordem histórica e cultural. Melhor, dentro das dificuldades para a tradução para nossa língua, é bom se certificar da noção de Derrida: desconstruir, reinterpretar, reelaborar. Mais propício, portanto, quando a diferença é pensada como o lugar marginal da língua de origem e de sua cultura no (dês)concerto internacional. A leitura de Lugarinho compromete-se a apreender a cultura brasileira pela nossa marca, os relacionamentos exóticos e impar com o outro. ―Somos mediados pela antropofagia: isto é, devoramos a cultura do outro, diluindo a nossa identidade cultural num intenso multiculturalismo‖ (LUGARINHO, 2001, p. 37). Vendo por essa atmosfera, explica Fábio Camargo que [...] a teoria queer traz um novo fôlego para os estudos da literatura ligada à homocultura. Ainda assim, cabe salientar que é preciso apropriar da teoria e adaptá-la à produção literária homoerótica que deveria passar a se chamar literatura queer. Como isso será feito não nos cabe resolver agora, mas pensar sobre o fato é importante. Há que se lembrar também que isso não é uma resolução simples e que a questão da heteronormatividade versus homoafetividade ainda não está solucionada. A convivência das diferenças é muito mais difícil do que se parece à primeira vista (CAMARGO, 2012, s/p.). Soma-se a afirmativa de Camargo o fato de que vivenciamos um momento póstraumático coletivo, como a convivência da HIV, as fragilizações dos relacionamentos gays dos anos 80 e 90 do século XX, o medo e o pavor do contágio da AIDS, a discriminação da sociedade, taxando os homossexuais afetados e vitimados pelo pré-conceito e pelas nomeações vinculadas a doença como a ―peste gay‖. Nesse sentido, o processo de reelaboração de formas de expressão foi necessário para banir de vez os rótulos e concepções de linguagem que davam o tom da representação do homossexual no espaço social. Ideologicamente marcada, no passado não tão distante, a ação política e voluntária dos estados-unidenses, por intermédio do manifesto de liberação dos gays ocorrido no bar Stonewall Inn, deram o norte para uma política de resistência que, até o momento, tem mobilizado ativistas e intelectuais movidos ao âmago do problema, tendo sempre, em vista, o reconhecimento dos direitos e libertação da amarras das instituições religiosas, políticas, culturais, que ainda são pautadas pelo rigor disciplinante e dominador do sistema logocêntrico e pelas regras normalizadoras de sociabilidade. 63 No Brasil, as contribuições de ativistas como Luis Mott, do Grupo Gay da Bahia, de João Silvério Trevisan, do Grupo Somos, Aguinaldo Silva, do Jornal Lampião da Esquina, de São Paulo, Peter Fry e Edward MacRAE tiveram ações significativas em defesa dos direitos à identidade de gênero e à identidade homossexual. Todavia, no presente atual, somos vistos e abordados por discursos intolerantes de fórum religioso e societário, ainda pautados pela patologização da homossexualidade ancorada pela ciência e pelos dispositivos jurídicos que, mesmo sendo aprovada a união homoafetiva pela instância do Supremo Tribunal, o legislativo se apropria de escolhas indesejáveis e mal-vistas, a exemplo da representada Comissão dos Direitos Humanos do Congresso Nacional, que vem mostrando as posturas racistas e homofóbicas do Pastor Marco Feliciano, que preside esta comissão. Com as diversas manifestações contra e a favor da união homoafetiva, repercute a presente declaração da cantora Daniela Mercury, ao soprar aos quatro cantos do país: ―Se estou apaixonada por uma mulher, por que não viver isso?‖ (MERCURY IN: Jornal Correio da Bahia, 2013). Tal atitude da cantora rendeu entrevista à emissora da TV Globo, em jornais locais e nacionais, em redes sociais e em outros programas televisivos e midiáticos. Como se tivéssemos apagados da memória no que tange a saída de armário, vale lembrar que outras personalidades mostraram a cara1. Quem sabe caiba, aqui, o sentido do habitus, frente aos distintos estilos de vida, que são diferenciados, mas capazes de engendrar a posição de si, as formas de conduta, princípios de visão, de classificação e de hierarquização, como propõe o pensamento de Bourdieu (2010). A declaração da cantora Daniela Mercury pode ser vista não somente como um discurso politizado, mas visa a uma estilização de vida, como retratava Foucault1 também, como meio de exercitar o amor que ousou enunciar, com ―a intenção de recriar um determinado modo de viver, um tipo de existência ou estilo de vida que poderíamos chamar de ‗gay‘‖ (FOUCAULT, 2005, p. 22). Quer dizer, o interesse em ex-por um estilo de amar corresponde com a afirmativa de Barthes de que o relato está ali, como a vida (BARTHES, 1977) e, assim, a exposição da intimidade se move pelos trânsitos, pelos espaços desterritorializados, em que as identidades são desfocadas de um lugar de submissão, afastando-as das normatizações, das exortações de legitimidade heterossexistas, criticando ou não os modos de percepção de uma realidade, não podendo perder de vista aí a mútua implicação entre linguagem e vida, narração, estilização de existência e experiência1. Assim, o falar de si traz embutido o caráter temporal da experiência humana e as normatizações incorporadas pelos gestos de fala passam a ser desfeitas, à medida que as 64 significações são revistas e fluem no território em que gira a sentido do múltiplo, do diverso. A protagonização da saída do armário, exemplificado no relato da cantora, ilustra e ratifica uma história de emaranhado sentidos cuja ordem do pai, a ordem do falo, a ordem do discurso tornam-se estreitas em circunstância dos desejos aflorados, da sensibilidade, dos afetos humanos e das impressões de imagens que são todos desconstruídos. Escritores, Artistas e Personalidades da mídia se desmascaram, produz-se na exceção, prevalecendo aí a destotalização do conceito e a desreferencialização da masculinidade, que são visualizadas em novos pontos em que o sujeito se torna diferente das expressões de arranjo da heteronormatividade, evocando a livre expressão de si mesmo, com críticas avessas à estigmatização de vidas e corpos homoeróticos definidos como dejetos, abjetos, como excrementos, como vermes. Parafraseando Severo Sarduy: ―escrever é apoderar-se do possível e de suas exclusões‖ (SARDUY, 1979, p. 108). Situar novas relações que desvirtuem daquelas que se institucionalizam é criar possibilidades de agenciar os desejos e fazer ressurgir o eu que não se mostra. Acredita-se que a voz da cantora que ecoa com os seus tons musicais, agora, não mais aprisiona os sentimentos e afetos lésbicos, podendo reiterar ainda mais as aversões que falam da brutalidade do amor entre os iguais e encorajem aqueles que sentem medo de assumir os desejos homoafetivos. Paradoxalmente, nos tempos de crescimento da homofobia, de bullyings, da acirrada violência à mulher, a ficção literária participa do real pelas suplementações, enviesando traços reversores para interpretar os despojamentos de subjetividades que podem estar filiados a determinadas falsas identificações, ou melhor, o espaço literário sincroniza textualmente com os tempos modernos para mediar e desconstruir as verdades únicas. Diante dos contextos traçados, o amor que não ousava dizer o nome se exibe e se expõe seja por porta-vozes de artistas brasileiros e estrangeiros, seja por personas distantes dos holofotes midiáticos e pela voz da literatura. Porém, o reflexo da saída do armário no espaço social é prenhe de preconceitos. O armário1 é o local de aprisionamento, espaço para trancafiar os segredos dos ditos heterossexuais, que rondam e espreitam o estilo gay, gerando um assombro e ameaça diante da masculinidade hegemônica. Para os que tiveram a coragem de manifestar o desejo homossexual, a reprodução dessas histórias ratifica o testemunho da contestação, remete à negação do senso comum, recompondo novos artefatos verbais. 3. Considerações Finais 65 Nos retratos da literatura, a memória individual e histórica repõe na escrita e, se detivermos nos acentos dos poderes da carne com o sabor de fruta madura, percebemos, em Caio Fernando Abreu e em João Gilberto Noll, imagens que reposicionam os rastros de inquisição e com as intervenções realizadas por narradores e personagens ficcionais, elas são criadas para rever o outro, pensar no outro. ―[...] tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, os dois ouviram expressões como ‗relação anormal e ostensiva‘, ‗desavergonhada aberração‘, ‗comportamento doentio‘, ‗psicologia deformada‘‖1 (ABREU, 2005, p. 140). A tarefa de reinventar linguagens com as estruturas do real é uma forma de negar as submissões e as catástrofes do passado. Com isso, Roland Barthes (1977) afirma nos Fragmentos de um discurso amoroso que ―a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos, na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo‖ (BARTHES, 1977, p. 96-97). Já na linguagem de Noll, ela é anunciada por existências flagradas pelas sensações corpóreas, guardando na memória uma vida enquanto uma obra de arte. [...] o jovem permanece de pé, o homem se ajoelha, abre pouco a pouco a calça hirta do rapaz que também sabe de cor aquele ritual de poucas palavras, se é que existe alguma ainda a ser dita: para que palavras se esse silêncio entrecortado de respirações fora do ritmo é o suficiente para abrir com lentidão medida à calça do rapaz que agora começa de fato a responder, reage ajudando o mestre que espera com os lábios entreabertos esse exato instante em que a fera vai em frente e se estremece na garganta desse velho sátiro demente... (NOLL, 2002, p. 59-60). Com a perspectiva de difundir a literatura e os aspectos reflexivos referentes aos estudos da homocultura, as expressões desses autores se fiam ao componente político. Para Emerson da Cruz Inácio, propor a uma atitude crítica, de produção e circulação da postura intelectual do autor literário em razão do patrimônio cultural defendido pelo teor ideológico menos centralista e sistemático de ares hegemônicos, abandonando critérios rígidos de uma elite letrada em função de atos repressores que foram atravessados pela cultura brasileira, é um modo de interpretação. Para Inácio, estampa-se aí o exercício de como exercitar pela articulação estética saberes, outras novas ordens de enunciação, convocar uma nova epistemologia capaz de criar condições de entendimento de obras literárias cuja autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação priorize o universo da homossexualidade (INÁCIO, 2010: p. 123). 66 Assim entendido, como explicar a produção crítica que quer discutir a questão das identidades homoeróticas, queers, gays, lésbicas, sabendo que a noção de gênero nada mais é do que uma ilusão de naturalidade, que é ―uma identidade tênue constituída em e através da estilizada repetição de ações‖, na visão de Butler (2003, p. 85)? Em detrimento da afirmativa de Butler, e mediando o diálogo com a literatura, compreende Camargo que ―essa literatura defende uma saída para as questões afetivas dos sujeitos excêntricos, trabalha com o artifício, com o onírico, com o impuro, não perdendo de vista seu ponto central: a literatura e outros temas maiores, como as questões humanas que envolveriam a todos‖ (CAMARGO, 2012). Contudo, examinamos uma outra parte, a do texto que se abre a declarações e mesmo omissões, que são avaliadas como artimanhas ou façanhas, posturas mais revolucionárias, ―demarcações territoriais e desterritorialização, desmantelando códigos sociais, deslocando-se entre a significação, criando uma zona metamórfica, um ―entrelugar‖ dinâmico, onde os códigos sociais devêm-outro‖, como afirma Karl Posso (2009: p. 234). Como absorver o veio interpretativo do texto O homossexual astucioso1, publicado em O cosmopolitismo do pobre, de Silviano Santiago, quando somos despertados por indivíduos que abrem as portas do armário? A defesa pela astúcia e artimanha em desvelar a homossexualidade abre para uma reflexão paradoxal. O crítico da literatura apresenta a favor de um modo de driblar a armadilha que se impõe aos movimentos de defesa da representatividade das minorias. Para Santiago, não há necessidade mais de se insistir na visibilidade a todo custo, mas em uma negociação com muita astúcia por parte dos sujeitos ligados pelos desejos eróticos que fogem à heteronormatividade. Cabe lembrar que a visibilidade gay é uma ponta de lança para a militância que ainda não viu consolidada uma série de direitos pelos quais se lutam. Dessa forma, para se ter visibilidade, a literatura produzida corre o risco de ficar apenas no panfletarismo da busca pelos direitos gays e não se exercitar em criar peças estéticas de maior fôlego. Desse modo, Santiago se recusa à vitimização levada a cabo pelos movimentos militantes estados-unidenses, defendendo a busca de formas mais sutis de militância. Seria esta a saída? Então, qual o lugar da literatura e quais perspectivas de análises devem ser construídas, de posições e oposições de leituras, em se tratando das inserções da homocultura no texto literário e crítico? Para analisar um cânone literário, existem aspectos que importam no seio interpretativo e que não se deve admitir a ideia de que apenas uma visão misógina ou homofóbica retrairia a exposição de uma obra literária gay ou de 67 temática gay. Questões como qualidade estética da obra, recepção de texto pelos leitores comuns ou mais especializados na crítica literária, absorção da obra pelo mercado e da própria temática interferem na produção de escritas e de criação de linguagens que afinem o mercado editorial, como avalia Antônio de Pádua Dias da Silva (SILVA, 2008: p. 29). Ou, seria o caso de direcionar a crítica construída aos sujeitos do desejo se projetar para além das identidades homoeróticas, o que implica repensar as masculinidades para além da homossociabilidade homofóbica, como questiona Denílson Lopes? (LOPES, 2001: p. 46). Acolhida a noção de política na escrita literária, apostamos em histórias gays serem aludidas na confluência das cartografias do desejo, ou melhor, com a análise de Rato e Cinema Orly, de Luis Capucho, Mário César Lugarinho compreende que a ―Literatura Gay deve ser mais um seguimento, mais uma possibilidade, mais um elemento de problematização àqueles que desejam uma cânone inevitável e cristalizado em suas opções de classe, etnia, origem local, sexo e/ou gênero‖ (LUGARINHO, 2008: p. 23). Seguindo com o raciocínio de Barcellos, que se torna muito atual a esse respeito, felizmente, ele afirma que, a partir dos estudos sobre literatura e homoerotismo vêm se desenvolvendo diversas abordagens críticas da cultura, que são não apenas muito instigantes, mas ainda extremamente produtivas para a compreensão tanto da literatura e da cultura gay, quanto das dinâmicas históricas, sociais e culturais mais amplas, em que elas se inserem (BARCELLOS, 2006). Portanto, as distinções ―[...] entre homoerotismo, homossexualidade, homossociabilidade, gay, queer e camp parecem-nos ser fundamentais para a construção de perspectivas críticas sérias e conseqüentes no domínio da literatura‖ (BARCELLOS, 2006, p. 38). Contudo, percebemos que as rotulações devem ser desconstruídas em razão de uma memória social e individual, como dito anteriormente, e que os conceitos podem ser reelaborados, reformulados na crista do desarranjo disciplinarizante de corpos. Trata-se de instrumentos de análises e não de denominações que correspondem aos referentes fixos e estáveis, pois qualquer forma ingênua de compreensão da relação entre literatura e homoerotismo, na perspectiva temática, não deve ser vista, apenas, para verificar como a literatura representa uma realidade pré-existente fixa e bem delimitada (BARCELOS, 2006). E, para concluir, transcrevo a voz do narrador de Rútilos, de Hilda Hilst que, ao parodiar Terêncio, dramaturgo de Cartago, no período da Antiguidade, enuncia: ―tudo o que é humano me foi estranho‖. REFERÊNCIAS 68 ABREU, Caio Fernando. Aqueles Dois. IN: Morangos Morfados. Rio de Janeiro: Ed. Agir, 2005. BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Homoerotismo em Questão. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Lisboa: Edições 70, 1977. BARTHES, Roland. Literatura e Significação. In: Crítica e Verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2003. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CAMARGO, Fábio Figueiredo. Histórico dos Estudos sobre Literatura, Homoerotismo e Teoria Queer. Ciclo de Palestra Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade. Campina Grande/PB: Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), 2012. CALVINO, Ítalo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. COLLING, Leandro. Políticas Para um Brasil além de Stonewall. In: Colling, Leandro (Org) Stonewall 40 + O que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: 2009. CORREIO DA BAHIA. Daniela Mercury se declara para a mulher e diz: “minha esposa, minha família”. In: Jornal Correio da Bahia, Salvador/BA, Abril-2013. Disponível em http://www.correiodabahia/notícias/detalhes-1/artigo/daniela-mercury-se-declara-para-amulher-e-diz-minha-esposa-minha-familia/ Acesso em 3 de abril de 2013. FOUCAULT, Michel. Sexo. Poder e Indivíduo. Entrevistas Selecionadas. Tradução de Davi de Souza e Jason de Lima e Silva. Desterro/Ilha de Santa Catarina: Edições Nefelibata, 2004. FOUCAULT, Michel. Um Diálogo Sobre os Prazeres do Sexo. Nietzsche, Freud e Marx Theatrum Philosoficum. Tradução: Jorge Lima Barreto. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Ed Landy, 2005. HILST, Hilda. Rútilos. Organização e plano de edição: Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2003. INÁCIO, Emerson da Cruz. Para uma Estética Pederasta. In: COSTA, Horácio et al. (Org.). Retratos do Brasil Homossexual: Fronteiras, Subjetividades e Desejos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. LOPES, Denílson. O Entre-Lugar das Homoafetividades. In: Ipotesi, Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, UFJF, v. 5, n. 1. p. 37-48, 2001. LOPES, Denílson. Silviano Santiago, Estudos Culturais e Estudos LGBTS No Brasil. In: Revista Iberoamericana, Vol LXXIV, n. 225, octubre-Diciembre, p. 943-957, 2008. LUGARINHO, Mário César. Como traduzir a Teoria Queer para a língua portuguesa. In: GÊNERO: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG, v. 1, n. 2; sem. 2. ano: 2000, Niterói/RJ: EDUFF, 2001. LUGARINHO, Mário César. A Escrita Literária e As Formas da Construção da Identidade Homossexual em Portugal. Niterói/RJ: Universidade Federal Fluminense (UFF) / Conselho Nacional de Desenvolvimento (CNPQ), 2004. LUGARINHO, Mário César. Nasce a Literatura Gay no Brasil: Reflexões para Luis Capucho. In: SILVA, Antônio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da Literatura Gay. João Pessoa: Ed da UFPB, 2008. NOLL, João Gilberto. Berkeley em Bellagio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. POSSO, Karl. Artimanhas da Sedução: Homossexualidade e Exílio. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009. 69 SANTIAGO, Silviano. O Homossexual Astucioso. In: O Cosmopolitismo do Pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009. SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979. SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. In: Revista Pagu – Revista Semestral do Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu. n 28, jan-jul, 2007, Campinas/SP: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), p.19-54. SILVA, Antônio de Pádua Dias da. Especulações sobre uma história da literatura brasileira de temática gay. SILVA, Antônio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da literatura gay. João Pessoa: Ed da UFPB, 2008. SCOTT, Joan. Experiência. IN: Falas de Gênero: Teorias, Análises, Leituras. Silva, Alcione Leite, LAGO, Mara Coelho de Souza, RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Florianópolis/SC: Editora Mulheres, 1999. TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. A Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2004. 70 POR TEU NOME TE DIREI QUEM ÉS Raphael Novaresi Leopoldo1 Resumo: Na Bíblia, livro fonte da Literatura Ocidental, o nome de personagens destaques mostra evidenciar características intrínsecas de quem o porta. Situado dentro dos Estudos Comparados entre Teologia e Literatura, este estudo busca investigar se tal correlação acontece (e como se dá) em A Divina Paródia, de Álvaro Cardoso Gomes, romance sob intertextualidade bíblica com ênfase no demoníaco, além de outras inúmeras. Palavras-chave: Teologia e Literatura; Onomástica; Diabologia. 1. Palavras Introdutórias Dentre outras tantas implicâncias, a linguagem tornou possível ao ser humano designar e, de certa forma, conhecer melhor – sobretudo no sentido de conhecimento cumulativo, seja ele oral ou escrito – não apenas o mundo em volta do homem, mas também a este próprio. Geralmente, ao conhecermos alguém, a informação mais básica que buscamos saber, até mesmo para o estabelecimento de diálogo, é o nome do interlocutor. Nesse sentido, o nome parece ser premissa básica. De modo geral, ao nascer, cada pessoa recebe um antropônimo, ou seja, um nome pelo qual tende a ser designado do início ao fim da vida. O nome próprio de pessoa pode ser portador de algum tipo de significado (sentimental, religioso, histórico, etimológico, etc.), no entanto, isso não significa que, ao ser nomeado, o ser receba um fado, um destino, um vaticínio que esteja vinculado ao nome. Exempli gratia, o nome Raphael (do hebraico, ‗Deus cura‘ ou ‗medicina de Deus‘), não obriga o autor destas linhas a ser um profissional da saúde, como médico ou psicólogo. Em sentido específico, agora adentrando na Literatura, pode-se encontrar exemplos de diferentes empregos de nomes pessoais, antes de tudo, numa coleção de livros chamada Bíblia – aqui tomada não como obra religiosa, mas como matriz literária ocidental, como postula Northrop Fry (2004). Ilustre-se com dois exemplos certamente bastante conhecidos e representativos: Jesus (do hebraico, ‗Deus salva‘), é, ao menos literariamente, a personagem que redime, a salvação de Deus estendida aos homens. Em outras palavras, a missão de Jesus parece resumida em seu próprio antropônimo. Poder-se-ia também citar Abrão e o desdobramento em Abraão, como narrado no Livro do Gênesis (cap. 17), e outros tantos casos. 71 Porém, apesar dos exemplos bíblicos, esta leitura compartilhada pretende se focar em objeto distante da Bíblia, ao menos temporalmente falando. O alvo literário aqui em voga, por assim dizer, é o romance brasileiro A Divina Paródia, livro esquecido pela crítica, (re)descoberto pela academia e merecedor de aprofundamento tamanho conteúdo ou emaranhado simbólico que se percebe oculto em suas linhas. Ressalve-se, todavia, que a onomástica das personagens centrais d‘A Divina Paródia – tema que ora temos condições de apenas iniciar, tamanhas implicações que têm surgido em seu limiar. 2. A Divina Paródia De modo sucinto, contextualize-se: A Divina Paródia é uma obra contemporânea, de Álvaro Cardoso Gomes (docente da USP, ensaísta e romancista natural de Batatais - SP), lançada originalmente pela Editora Globo em 2002. No encalço d‘A Divina Comédia, de Dante Alighieri, A Divina Paródia trata-se de um romance às avessas, ou melhor, de um antirromance sobre as aventuras do anti-herói Diogo Cão, guiado por seu ―diabo da guarda‖ de nome Astarot (respectivamente simulacros de Dante e Virgílio), a vaguear por lugares de um mundo caótico que parece espelhar invertidamente a tríade teológica inferno-purgatório-céu e cujo tom principal é de desesperança. Enfoque-se, em primeiro lugar, o protagonista da história. A primeira pista para a leitura do nome Diogo Cão está no próprio enredo do romance. Como dito, Diogo Cão perambula no correr da narrativa, migrando entre diferentes espaços. Em outras palavras, seria possível falar de Diogo Cão como um viajante por veredas desgraçadas. Tais movimentos parecem ligá-lo, de alguma forma, ao nauta português Diogo Cão, do século XV, que atuou na expansão marítima e sobre o qual não há muitas notícias (GONÇALVES, 2002-2005). Pode ser ainda mais significativo se lembrado que, no ano 2000, enquanto o Brasil fazia memória dos 500 anos desde seu descobrimento por Pedro Álvares Cabral, Gomes redigia A Divina Paródia. Mas há também um, ou melhor, outros pontos passíveis de leitura. Em sentido etimológico, Diogo Cão é um nome composto duplamente maligno: basta abrir-se o Houaiss (2009) para encontrar tanto o verbete ‗diogo‘ quanto o vocábulo ‗cão‘ como sinônimo ou eufemismo de ‗diabo‘. É interessante o modo com que Gomes envolve o leitor ao trabalhar esse aspecto lexical dentro da própria história que cria, fazendo como que os bastidores figurem no palco. Cite-se um diálogo entre Diogo Cão e sua mãe, de nome não mencionado: 72 Por que Diogo Cão? Uma vez, o jovem perguntou o motivo daquele nome, incomodado pelo fato de que, com justa razão, o achava bastante esdrúxulo. Cão, porque você parecia um cachorrinho quando nasceu, disse ela de maus modos. Só por isto? Indagou, desconfiado. Não haveria outro motivo? Como que desconcertada, ela balbuciou: por que quer saber...? Ele disse com raiva na voz que o pároco, padre Valetudinário, afirmara que, na tradição popular, Cão era o mesmo que diabo. (GOMES, 2002, p. 34, grifo nosso) Ressalve-se que o nome do padre citado (Valetudinário) fará sentido capítulos adiante do trecho acima, pois ‗valetudinário‘ é adjetivo de pessoa débil, fraca, enfermiça, abatida física ou mesmo moralmente. Esse padre colaborará com a fuga de demônios das jaulas do colégio Sagrado Pulmão de Jesus – a seguir, dar-se-á algumas especificações sobre essa escola – e, por isso, pagará com a vida numa devassa que o Santo Ofício realizará no pátio do colégio. Por vontade de sua mãe, Diogo Cão torna-se vítima de uma lobotomia, ou seja, intervenção cirúrgica cerebral utilizada, no passado, em casos graves de esquizofrenia. Isso porque a mãe de Diogo, mulher ―cujos dedos terminavam em unhas vermelhas como garras de abutre‖ (GOMES, 2002, p. 180), desejava um filho menos filosófico e mais apático, se não vegetativo. Mas o destacável é que o médico responsável pelo paciente Diogo Cão chama-se sugestivamente de doutor Frung – ou seja, mistura de Freud com Jung. Os assistentes cirúrgicos de Frung na lobotomia de Diogo Cão, por sua vez, chamam-se lobocirurgiões que, levados ao pé da letra, são, de fato, lobos. Eis um recorte do relato da cirurgia: [...] uma portinha se abriu, dando passagem a dois lobos alsacianos que (lhe) farejaram os lóbulos dilatados da cabeça [de Diogo Cão]. Repentinamente, como se obedecessem a um sinal, começaram de modo sincrônico a lamber-lhe o crânio com as línguas ásperas como lixas. A sensação desagradável, de início, foi substituída por uma sensação de prazer: o jovem teve a primeira ereção da vida e, após o gozo, perdeu de vez os sentidos. (GOMES, 2002, p. 37) Passados os primeiros episódios, o jovem é desterrado ao colégio Sagrado Pulmão de Jesus. Para falar desse lugar, vai-se aqui dos antropônimos a um topônimo com nome não menos significativo. Perceba-se que o nome do colégio-antro macula comicamente o título católico Sagrado Coração de Jesus. Gomes parece questionar maliciosamente o valor místico atribuído a esse músculo visceral que é o coração, possibilitando então a questão seguinte: se o coração de Cristo é digno de veneração, por que não o seriam os demais órgãos internos do Nazareno? A pergunta parece fazer sentido. 73 Constituído como edifício sede do mal, o colégio de Gomes é símile de outro prédio de larga fama literária: nas palavras do narrador, o Sagrado Pulmão de Jesus foi ―concebido segundo os moldes do templo de Jerusalém‖ (GOMES, 2002, p. 177). Porém, pelo caráter de paródia, o Sagrado Pulmão de Jesus subverte também a simbologia daquele templo tão caro aos judeus: o templo implícito no Sagrado Pulmão de Jesus não atrai, mas dispersa; é afirmação da presença do maligno no mundo no qual se situa; é o mal que se deixa encontrar; lugar sagrado onde o diabo manifesta suas maquinações, e cada um pode delas participar. Uma passagem, do dormitório dos alunos, dá ideia da escola transformada em inferno ou do inferno transformado em escola: Era um salão escavado na rocha bruta, tão úmido que uma espécie de bruma pairava no ambiente, dificultando ainda mais a visão. Para piorar as coisas, não existia uma única janela ou mesmo um respiradouro, de modo que o bafio dos corpos, de coisas mofadas e apodrecidas pairava em todo o espaço. A iluminação provinha somente das velas ao lado de cada enxerga e das tochas enfiadas em suportes nas paredes [...]. (GOMES, 2002, p. 66) O Sagrado Pulmão de Jesus também possui seu antípoda ao Santo dos Santos, local sagrado por excelência para os judeus. Situada no interior do templo de Jerusalém, essa câmara seria envolvida por uma ―misteriosa obscuridade‖ (ROLLA, 1963, p. 912) e ―muda presença‖ (GANCHO, 1963, p. 691), abrigo para a Arca da Aliança, a qual conteria as Tábuas da Lei. A mera contemplação desta sala seria mortal, tamanho seu caráter sacro. Por sua vez, o Santíssimo do (des)educandário está contido no escritório do reitor, padre Hissope. O reitor, mais que reverenciado, é adorado como um deus, diante do qual os alunos e visitantes são intimados a se ajoelharem e abaixarem a cabeça reverencialmente. Como não poderia deixar de ser, o nome do reitor guarda um sentido instigante: hissope é variante de hissopo, planta aromática adotada como utensílio no ritual sacerdotal que ―No judaísmo era usado para aspergir com o sangue dos animais sacrificais [...] e no ritual cristão com água benta‖ (BECKER, 1999, p. 146). No Sagrado Pulmão de Jesus, padre Hissope é moralista de fachada, aspergindo lascívia. Isso pode ser ilustrado pela cena na qual padre Hissope tem, diante de si, Diogo Cão, como novo aluno, e a mãe de Diogo – disfarçada de tio, já que o Sagrado Pulmão de Jesus não admitia a visita de mulheres: Estavam eles imersos nas sombras e no silêncio quando a voz do reitor veio num cicio [ao acompanhante de Diogo]: quer dizer então que este é seu filho? A mãe de Diogo Cão, engrossando a voz ao máximo, respondeu: não, não é meu filho, Excelência, é meu sobrinho. [...] o senhor é o tio do garoto, então... Sim, Excelência... Diogo Cão 74 estremeceu, como se temesse que o padre Hissope descobrisse o embuste, mas o que o reitor fez foi passar a língua pelos beiços e dizer com gulodice: hummm, e belo tio por sinal. (GOMES, 2002, p. 57) Em suma, tratando-se d‘A Divina Paródia, nada parece ser mera coincidência; tudo aparenta ter sentido meticulosamente concebido. O estilo dialógico, polifônico e plural com o qual Álvaro Cardoso Gomes constrói as personagens d‘A Divina Comedia pode render um vasto álbum descritivo de figuras que lembram seres saídos de bestiários medievais ou mesmo da imaginação de Borges. Conclua-se compartilhando também um recorte do romance que identifica os colegas com os quais se depara Diogo Cão ao ingressar no Sagrado Pulmão de Jesus. O quadro fornece um rol de possibilidades de mapeamento: Eugênio Mal, o Heresiarca, que andava de um lado para o outro compulsando a Bíblia e fazendo-lhe anotações à margem; Colosso de Rodes, o Halterofilista, que se entretinha em passar horas diante de um espelho, contemplando os bíceps que eram muito volumosos; Amélia, a Boa, que vivia, uma agulha à mão e dedal no dedo, pregando botões ou cerzindo meias; Porquinho, o Cofre, que dormia espojado numa enxerga feita de lama e imundície; Iguana, o Aflito, que acreditava ser um lagarto e, por isso mesmo, vivia rastejando pelo aposento; Anacleto, o Tenro, que tinha nádegas moles como gelatinas e era o encanto de Enraba Palha; Anacleto, o Teso, irmão de Anacleto, o Tenro, punheteiro de fama etc. (GOMES, 2002, p. 68-69) Nas palavras de Umberto Eco: ―Os monstros não desaparecem junto com os mirábilia medievais, mas voltam ao mundo moderno, embora o façam com outras formas e funções.‖ (p. 241). Arregaçamos as mangas, há ainda muito trabalho pela frente! REFERÊNCIAS: BECKER, Udo. Dicionário de Símbolos. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 1999. BÍBLIA de Jerusalém. Tradução de Euclides M. Balancin et al. Ed. rev. e ampl. 5. impres. São Paulo: Paulus, 2008. ECO, Umberto (org.). História da Feiúra. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. FRYE, Herman Northrop. O código dos Códigos: a Bíblia e a Literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004. GANCHO, C. Arca de la Alianza. In: ENCICLOPEDIA de la Biblia. Barcelona: Garriga, 1963, v. 1. p. 691-692. 75 GOMES, Álvaro Cardoso. A Divina Paródia (ou a vida e as grandes aventuras do herói bastardo Diogo Cão pelos quatro cantos do mundo e do que lhe sucedeu nessas andanças). São Paulo: Globo, 2002. GONÇALVES, António. Diogo Cão. In: DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Navegações Portuguesas. Instituto Camões: 2002-2005. (Base de Dados). Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/d15.html>. Acesso em: 20 maio 2013. HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. (CD-ROM). ROLLA, Armando. Templo de Jerusalén. In: ENCICLOPEDIA de la Biblia. Barcelona: Garriga, 1963, v. 6. p. 908-915. 76 O LEITOR NA TEIA DE JORGE MIGUEL MARINHO Raquel Cristina de Souza e Souza1 Resumo: Na teia do morcego (2012), de Jorge Miguel Marinho, conjuga questões relevantes para pensarmos a produção ficcional contemporânea para jovens. Primeiramente, merece atenção a inovação na estrutura narrativa, já que a instância mediadora do relato está praticamente ausente. Em seu lugar, comparece uma colagem de gêneros textuais (cartas, emails, notícias etc) que constituem um verdadeiro inventário de pistas que devem ser seguidas pelo leitor na busca ativa de sentido. Por isso, as concepções de Leitor Implícito em Iser (1996) e a de Leitor-modelo em Eco (1986) iluminarão nossa leitura, pois tais abordagens teóricas tratam o leitor como uma construção textual prevista pelo autor, aspecto que nos parece radicalizado na obra em questão. Além disso, o recurso da colagem de gêneros permite um interessante aproveitamento de recursos gráficos tão ao gosto das novas gerações, para quem a imagem tornou-se imprescindível na apreensão da realidade. A assumida intenção do autor foi a de aproximar a narrativa literária de uma história em quadrinhos, transformando a palavra em imagem e fazendo desta técnica narrativa. Considerando ainda que Na teia do morcego é uma versão atualizada de outra obra do autor (O cavaleiro da tristíssima figura, 1996), cabe indagar sobre as razões do relançamento do livro sob outro título, com projeto gráfico diferente e algumas modificações de conteúdo. Podemos supor que a descoberta da literatura juvenil como lucrativo filão mercadológico tem contribuído para seu movimento de renovação, visto que a necessidade de substituição contínua da oferta de produtos força os escritores a buscar o novo para conseguir espaço no mercado. Em alguns casos, como o da narrativa estudada, a busca pela novidade resulta em obras de interessante rendimento estético, rompendo com a premissa da simplicidade das obras juvenis e contribuindo para evidenciar a ausência de diferença qualitativa entre a série juvenil e a ―adulta‖. Palavras-chave: Leitor; Imagem; Mercado Editorial. Abstract:. Na teia do morcego (2012), by Jorge Miguel Marinho, connects relevant issues to make us reflect upon the contemporary fictional production to the youth. Firstly, the innovation on the narrative structure deserves attention, since the narrator of the story is practically absent. In its place, there is a collage of textual genres (letters, e-mails, news etc) which constitutes a real collection of hints that should be followed by the reader in his active quest for meaning. Thus, the conceptions of Implied Reader (ISER, 1996) and Model Reader (ECO, 1986) will highlight our interpretation. Such theoretical approaches deal with the reader as a textual construction predicted by the author, aspect that seems to be taken to its extremes in the narrative we study. Besides, the use of collage allows an interesting employment of graphic features which are praised by new generations, to whom the image has become indispensable in reality apprehension. The assumed intention of the author was to bring together literary narrative and comics, by turning words into images that could be used as a narrative technique. One more issue to be considered is that Na teia do morcego is a new version of another Marinhos‘s work, O cavaleiro da tristíssima figura (1996), so that it makes us think about the reasons for releasing a book again under new title, different graphic project and some content changes. We can suppose that the way Youth Literature is seen – as a profitable field in editorial market – has contributed to a renovation movement, because of the necessity of continuous replacement of product offers. In Marinhos‘s case, the search for innovation resulted in a work of interesting aesthetical productivity. This contradicts the assumption that youth literature is literarily 77 poor and contributes to demonstrate the absence of qualitative difference between the youth and ―adult‖ literature. Keywords: Reader; Image; Editorial Market. Jorge Miguel Marinho é um nome hoje reconhecido como autor de narrativas juvenis. Além dos vários prêmios literários que coleciona, como o Jabuti e o da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, tem recebido cada vez mais atenção da crítica especializada, dado o rendimento estético que suas obras alcançam. Seu recém-lançado livro, Na teia do morcego (2012), conjuga uma série de questões relevantes para pensarmos mais detidamente a produção ficcional contemporânea para jovens. A primeira delas diz respeito ao fato de a obra em questão ser ilustrativa da perspectiva assumida por Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1991) de que a literatura infantil e juvenil participa do horizonte mais amplo da produção literária nacional, de modo que o diálogo que se estabelece entre a série literária infantojuvenil e a ―adulta‖ permite que uma ilumine a outra, segundo um movimento dialético. Baseadas nessa visão, as autoras atestam que, depois de Lobato, o marco inicial da ficção brasileira voltada para crianças nas décadas de 30 e 40, o gênero no país viveu majoritariamente de processos narrativos e temáticos superados pelo modernismo, recusando reiteradamente a experimentação e recuando nas conquistas quanto ao aproveitamento estético da oralidade. Somente na década de 70 se iniciou outra fase inovadora de nossa produção no gênero no que tange ao adensamento das técnicas literárias e à diversificação de temas e formas. O atraso na continuidade do processo de construção de uma literatura infantojuvenil brasileira de qualidade pode ser explicado pela própria dinâmica que rege o gênero. A resistência à experimentação identificada por Lajolo e Zilberman mais acima são consideradas por Colomer (2003) um traço característico da literatura infantil e juvenil. Segundo a autora, as inovações formais dessa literatura sempre dependeram de seu esgotamento como novidade na literatura não infantojuvenil. Isso significa que a experimentação se consolidaria como norma na tradição literária ―adulta‖ antes de ser incorporada no texto destinado à criança e ao jovem. A violação dos pressupostos da simplicidade e do protecionismo na literatura para crianças e jovens, consolidada na década de setenta, seriam explicadas, segundo Colomer (2003), por duas principais razões1. Em primeiro lugar, o período assistiu ao fortalecimento da visão da criança e do jovem como sujeitos na construção do conhecimento, e não mais como objetos da transmissão do saber dos adultos. A participação ativa do jovem leitor na 78 elaboração do sentido do texto tomada como pressuposta liberou o escritor para criar mais livremente, permitindo-lhe maior experimentação formal. Em segundo lugar, o avanço tecnológico dos meios de comunicação de massa teria tornado obsoleta certa forma de apreensão do mundo preconizada pela literatura infantojuvenil até então. Vivendo em uma realidade que se constitui cada vez mais pela proliferação incessante de imagens substituindo os objetos empíricos, a criança e o jovem contemporâneo são estimulados a desenvolver um tipo de sensibilidade diferenciada ao lidar com as demandas da realidade chamada pós-moderna. Corresponderia a essa nova sensibilidade a competência de leitura de imagens e a familiaridade com a fragmentação e a não linearidade das informações. Desta forma, merece atenção a inovação na estrutura narrativa de Na teia do morcego. Nesta obra, a instância mediadora do relato está praticamente ausente. Várias são as estratégias para elidir o narrador, como a abundante utilização de diálogos, mas o recurso que mais chama a atenção é colagem de gêneros (cartas, e-mails, atas de condomínio, notícia de jornal etc) que se sucedem uns aos outros, constituído assim um verdadeiro inventário de pistas que devem ser seguidas pelo leitor na busca ativa de sentido. A obra literária ganha, dessa forma, características de um verdadeiro quebra-cabeça que deve ser montado pelo leitor. Não é por acaso, portanto, que Na teia do morcego apresente características do romance policial, já que ―Ler é armar-se de lupa, cachimbo e chapéu, como um Sherlock, e sair atrás das pistas que, evidentes ou sutis, verdadeiras ou falsas, o texto vai deixando pelo caminho.‖ (CARNEIRO, 1997, P. 69) Qualquer texto, mesmo o não literário, é feito de lacunas que precisam ser preenchidas pelo leitor no ato da leitura. No caso do texto ficcional, tal incompletude é radicalizada, pois que é a plurissignificação seu alvo, e não a inequivocidade dos sentidos. Ainda assim, a atividade interpretativa do leitor é guiada pelas escolhas formais e expressivas do autor, de forma que podemos dizer que mesmo o texto literário instrui o leitor a construir sentidos – ainda que esses sentidos sejam múltiplos. Por isso o empenho do leitor na decifração das pistas no texto ficcional é de outra natureza, pois os vazios, neste caso, necessitam ser preenchidos pela atividade do imaginário, justamente o responsável pelas múltiplas leituras possíveis do texto literário. (ISER, 1996) O uso da narrativa policial como modelo prévio para Na teia do morcego demonstra uma espécie de radicalização dos princípios que regem a leitura, em especial a literária: o leitor é o detetive que seguirá as pistas (marcas da superfície textual) para desvendar o crime (o sentido do que lê). Para isso, levanta hipóteses a partir dessas pistas, que vão 79 sendo confirmadas ou refutadas, e então reformuladas, de modo a construir um todo coerente. O processo é semelhante à observação e dedução dos detetives dos romances policiais: Para Peirce, esse processo tem um nome: abdução. Simplificando um pouco, abdução consiste em ler os signos buscando levantar todas as hipóteses possíveis de interpretação e, depois, optar pela(s) mais pertinente(s). O trabalho do semioticista - e, completando, a atitude de todo leitor - se aproxima do trabalho do detetive na medida em que ambos lidam diretamente com signos, buscam respostas e têm consciência de que o mundo-texto que leem não é uno, mas plural. (CARNEIRO, 1997, p. 72) O enredo se baseia na busca de solução para um crime: quem matou Abigail Aparecida Chaud, a vizinha inconveniente que bisbilhotava a vida alheia com uma luneta? Um dos principais suspeitos é o personagem identificado como Batman, que anda aterrorizando a região central da cidade de São Paulo, ao procurar fazer justiça com as próprias mãos. Este é um mistério adicional que colabora ainda mais para enredar o leitor na teia narrativa: o personagem em questão é realmente o Batman das histórias em quadrinhos, que saiu de Gothan City e foi parar em outra metrópole violenta e sombria, ou é apenas um impostor? Como qualquer narrativa policial, o leitor se depara com informações desencontradas, falsas pistas, personagens dúbios e pouco confiáveis. A diferença, no entanto, em relação ao modelo tradicional, é que o leitor é quem deve colher essas informações contidas nos vários gêneros textuais que, organizados de maneira intencional, vão fornecendo os elementos necessários para a recomposição, na mente do leitor, do fio narrativo. Sem a ativação de sentidos por parte do leitor, inexiste o texto. A composição por meio de colagem de gêneros da narrativa em questão nos faz crer que haja o propósito deliberado de instigar o leitor, convocando-o a tomar parte da narrativa e a converter-se, assim, em seu componente estrutural. Há, portanto, como postulou Wolfgang Iser, uma imagem de um destinatário pressuposto pela obra, ou seja, um leitor implícito: O leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. Se daí inferimos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa que as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permitem constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção do leitor implícito 80 designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor. (ISER, 1996, p. 73) Segundo esta perspectiva, o leitor é sempre uma construção textual prevista pelo autor. É o que também afirma Umberto Eco, mas usando outra nomenclatura: ―O LeitorModelo constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial.‖ (ECO, 2008, p. 45 – grifos do autor) Isso significa dizer, mais uma vez, que o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de leitor-modelo que é chamado a colaborar no desenvolvimento da narrativa, antecipando-lhe os estados sucessivos. A leitura é, pois, uma atividade cooperativa que leva o destinatário a tirar do texto aquilo que o texto não diz (mas que pressupões, promete, implica), a preencher espaços vazios, a conectar o que existe naquele texto com a trama da intertextualidade da qual aquele texto se origina e para a qual acabará confluindo. Podemos afirmar então, levando em consideração a inovação da estrutura narrativa em Na teia do morcego, que o leitor que Jorge Miguel Marinho quer estimular e solicitar é capaz de mobilizar operações complexas de inferência textual e estabelecimento de relações intertextuais com uma gama enorme de textos prévios, principalmente literários. Há inúmeras referências a autores consagrados, e não só brasileiros, a serem recuperadas ao longo da narrativa, o que pode gerar uma discussão sobre o real alcance da narrativa em meio ao público juvenil. No entanto, Umberto Eco ressalta que, embora o autor preveja um leitor capaz de cooperar para a atualização textual como ele (o autor) pensava e de movimentar-se interpretativamente conforme ele se movimentou, prever o próprio leitormodelo não significa somente ―esperar‖ que este exista, mas também mover o texto de modo a construí-lo. Nesse sentido, Na teia do morcego pode ser para muitos jovens o responsável por despertar o interesse por nomes como Drummond ou Cervantes, por exemplo. Procedendo à releitura da obra, nova dimensão ganham as referências intertextuais. E, como afirma Jouve, ―a releitura é a prática mais apropriada à complexidade dos textos literários‖. (JOUVE, 2002, p. 29). Vale ressaltar ainda que o recurso da colagem de gêneros permite um interessante aproveitamento de recursos gráficos tão ao gosto das novas gerações de leitores, para quem a imagem tornou-se imprescindível na apreensão da realidade. A imagem é, na ficção contemporânea – e não só na chamada juvenil –, cada vez mais tomada como técnica narrativa, e Jorge Miguel Marinho soube aproveitar a familiaridade do jovem com o não verbal, e também com a fragmentação e a não linearidade das informações próprias dos 81 meios de comunicação de que se utilizam, para dinamizar a narrativa e trazer o leitor para dentro da obra. A marca da contemporaneidade é a convivência do homem com a ilusão produzida pela tecnologia. O contato entre os indivíduos já não pode ser exercido senão por meio da imagem, a qual se torna a principal relação desses indivíduos com o mundo. A principal consequência deste fenômeno é o que Therezinha Barbieri (2003) chamou de ―ficção impura‖, por permitir a entrada de elementos pertencentes a outros contextos semióticos que saturam a sociedade contemporânea, como o cinema, a televisão, o jornal e a propaganda. Há então um crescente hibridismo de linguagens a partir da mescla entre os gêneros de ficção e as formas de não ficção, especialmente – e sintomaticamente – as dos meios de comunicação de massa, já que a produção cultural contemporânea se organiza segundo a lógica do mercado. É possível encontrar todos estes traços em Na teia do morcego. O mosaico de textos em que se estrutura a obra dissolve a fronteira entre imagem e narrativa de forma a criar uma experiência visual de leitura. Nas palavras do autor, seu desafio foi ―tornar a palavra imagem‖, fazendo desta técnica narrativa. O autor pretendeu, segundo seu próprio depoimento, aproximar sua narrativa literária de uma história em quadrinhos, no sentido de que ―o traço sequencial, conciso e dinâmico‖ (MARINHO, s/d) próprio da combinação da linguagem verbal e não verbal pudesse ser utilizado literariamente para colocar o leitor no centro dos acontecimentos, sem a mediação do narrador, para que a ―trama‖ acontecesse diante de seus olhos, ―como se a Literatura estivesse dentro da vida: nos becos da cidade, nos quartos dos personagens, nos diários, na próxima esquina, e em todo e qualquer lugar‖ (MARINHO, s/d). É isso que confere à narrativa o sentimento de urgência, de presentificação, que poderia ser vista como mais uma marca da produção ficcional contemporânea. (RESENDE, 2007) A apropriação de um ícone da sociedade de consumo como personagem e de um gênero típico da cultura de massa nos mostra que, na literatura juvenil, assim como tem acontecido na literatura ―adulta‖ contemporânea, a absorção de recursos midiáticos na construção do texto faz romperem-se as fronteiras entre a chamada alta literatura e a literatura de mercado, mostrando que é praticamente impossível o alheamento total do indivíduo frente à dinâmica da indústria cultural, já que verificamos uma integração cada vez maior entre produção cultural e a produção das mercadorias em geral. As narrativas destinadas às massas deixam de ser consideradas inferiores a priori, até porque estar 82 inserido no mercado destinado ao grande público torna-se imprescindível para a sobrevivência financeira do escritor. A questão da influência do mercado na produção literária contemporânea nos interessa ainda porque pode nos ajudar a refletir sobre as razões que levaram o autor a relançar, em outra editora, sob outro título, com novíssimo projeto gráfico e algumas modificações de conteúdo, uma obra publicada e premiada dezessete anos atrás. Na teia do morcego é uma versão atualizada de outra obra do autor, O cavaleiro da tristíssima figura (1996), ganhador, 1997, do 9º troféu HQ Mix na categoria ―Adaptação para outro veículo‖. Podemos supor, concordando com Colomer (2003), que a descoberta recente da literatura juvenil como um lucrativo filão mercadológico tem contribuído para seu movimento de renovação. Isso porque a necessidade de substituição contínua da oferta de produtos força os escritores a buscar continuamente a novidade como forma de garantir a penetração de seu livro no mercado. Desse modo, o relançamento da obra pode ter tido como motivação a tentativa de alavancar as vendas, tendo em vista todas as potencialidades que a obra guardava em relação ao aproveitamento de estratégias que podem atrair o jovem leitor. Também podemos levar em conta o fato de o nome do autor ter se tornado conhecido no circuito literário de literatura juvenil, de modo que é possível que problemas relacionados à divulgação e distribuição da obra, tão comuns para quem começa sua inserção no mercado, não sejam mais empecilhos tão decisivos para a venda de seus livros. O fato de sua obra completa estar sendo relançada pela editora Biruta, com projeto gráfico arrojado e assinado pela Casa Rex, uma agência de design bastante reconhecida e premiada internacionalmente, comprova isso. O fato é que a opção de relançar o livro deu ao autor a possibilidade de refinar a escrita e mudar a concepção do projeto gráfico, sendo que este último é essencial em uma obra que tem por princípio a utilização dos quadrinhos como modelo narrativo. No processo de reescrita e reelaboração gráfica, é possível percebermos modificações importantes, que eventualmente podem ser vistas em termos de perdas e ganhos, e que afetam a maneira como os sentidos do texto serão construídos. Não é possível, pela extensão deste trabalho, analisar todas as modificações com o detalhamento que a obra merece, mas alguns pontos nos parecem essenciais. Em relação ao projeto gráfico, por exemplo, a mudança revela duas maneiras distintas de interpretar a intenção do autor de tornar a palavra imagem, como se a narrativa fosse uma história em quadrinhos. Em O cavaleiro da tristíssima figura, o trabalho foi totalmente voltado para o aproveitamento dos traços gráficos das histórias em quadrinhos 83 de super-heróis. A capa do livro remete claramente ao gênero e poderia ser tomado facilmente por uma graphic novel. No interior do livro, há a manutenção dos traços formais próprios de cada gênero para dar realmente a ideia de colagem. Assim, visualmente é fácil perceber a sucessão de cartas, atas, filipetas de divulgação etc, mas tudo está em preto e branco. Além disso, há ilustrações de personagens e objetos, também em preto e branco, ―decorando‖ os fragmentos de texto. Já em Na teia do morcego, o projeto gráfico se ateve à ideia da palavra formando literalmente imagens, de modo que é possível distinguir, por exemplo, logo na capa, uma cidade composta de letras sob um céu estrelado de asteriscos. O procedimento se repete no interior do livro para dar forma a pessoas, nuvens, árvores. Há uso funcional da cor, distinguindo diferentes partes do texto (o diário íntimo de Batman, por exemplo, aparece como que datilografado em folhas laranja; o obituário de uma das personagens aparece em folhas pretas e assim por diante). Os gêneros textuais também mantêm suas características formais, sendo que agora comparecem e-mails e conversas em bate-papo on-line. E, diferentemente da primeira versão, não há qualquer ilustração mais referencial de pessoas ou objetos, nem o aproveitamento dos traços próprios dos quadrinhos. Parece então que a tentativa, bem sucedida, tenha sido a de tornar a segunda versão menos diretiva e mais sugestiva. É o princípio de composição dos quadrinhos que é utilizado no projeto gráfico, e não as características formais do gênero. Talvez o objetivo tenha sido, como afirmou uma leitora na internet, fazer um ―HQ de palavras‖. Em relação ao conteúdo, há modificações consideráveis de vocabulário para atender às expectativas do jovem leitor de 2013, atualizando as gírias e expressões, além de outros ajustes relativos ao refinamento do projeto de dizer do autor. Merece destaque, no entanto, a mudança do título, que consideramos uma das perdas decorrentes do processo de reescrita. Neste caso, a alteração teve um resultado oposto ao conseguido pelo projeto gráfico repaginado. Na teia do morcego é um título mais diretivo, explícito, que O cavaleiro da tristíssima figura, e pode até ser que seja mais atraente para o leitor. No entanto, o novo título oblitera uma relação intertextual que consideramos chave para a fruição da obra: aquela estabelecida com a obra Dom Quixote. A expressão ―o cavaleiro da tristíssima figura‖ remete diretamente ao cavaleiro andante do clássico de Cervantes, que, como sabemos, é um personagem cuja característica essencial é não saber distinguir entre a realidade circundante e os produtos do seu imaginário. Há clara aproximação entre os dois personagens na construção deste Batman perdido em São Paulo. A famosa passagem em que Dom Quixote luta com moinhos de vento tomando-lhes por gigantes ecoa em Na teia do morcego: 84 Mas eu só ficava grilado mesmo quando o Morcegão perdia o controle e entrava em alfa. Você imagina ele na praça Princesa Isabel chamando a estátua do Duque de Caxias de Rã‘s Al Ghul e atirando dardo na pata do cavalo pra ele descer. ―Não congela não, covarde, come here‖, ele gritava pro alto e não se tocava. O pessoal fazia uma rodinha e rolava de rir. (MARINHO, 2012, p. 115) Esta é a fala de Herman Hesse (mais uma referência intertextual culta), o jovem que faz as vezes de Robin/ Sancho Pança: ―Que vergonha do cacete, bicho, não dava pra encarar. (...) E eu..., eu ficava de bobeira ali com ele, não tinha coragem de me mandar, meu.‖ (MARINHO, 2012, p. 115) Há uma passagem em que a relação intertextual é explícita: Não estou sonhando dentro do sonho, meu sonho se tornou tão real. Talvez eu tenha um pouco do Dom Quixote de Cervantes com aquela sua Triste Figura, mas sou mais triste que ele, meu sonho ou pesadelo é bem maior. Eu sou o Cavaleiro da Figura mais Triste desse mundo, o próprio Cidadão Tristeza como as pessoas me chamam (...). (MARINHO, 2012, p. 160) Esta é a fala do próprio Batman em seu diário. Além de podermos observar o trabalho meticuloso com a linguagem – a dicção deste personagem se afasta sobremaneira da dicção do personagem citado anteriormente –, o trecho nos dá ensejo de comentar algo que nos parece ser essencial no projeto ficcional da obra. Na teia do morcego deixa de ser um mosaico visualmente interessante de gêneros e apenas literatura de entretenimento quando aposta no aprofundamento do perfil psicológico de Batman. Só os recursos propriamente literários poderiam dar conta da complexidade do personagem e permitir que a narrativa não se tornasse uma mera reprodução ou imitação de recursos visuais. A captação do interior do personagem, de suas angústias, medos e frustrações, não seria possível, em profundidade, por meio apenas dos balões de pensamento dos HQs, por exemplo. Ainda é privilégio da escrita literária a possibilidade de acesso à vida interior dos indivíduos, algo que pode ser apenas sugerido por recursos imagéticos. Por isso, não nos parece aleatória a escolha por um diário íntimo – que ocupa uma parte considerável da obra – como meio de apresentar o personagem, muito menos é acidental que a maioria dos acréscimos de conteúdo de uma edição a outra tenha sido feita justamente neste diário. Essas modificações, por um lado, afinam ainda mais a construção do perfil psicológico de Batman, cujas inquietações, fundadas em um questionamento agudo sobre sua identidade, podem encontrar eco no jovem que lê: ―Quem sou eu senão 85 um desenho animado que todos admiram dentro de uma tela, mas nem sequer sonham em tocar? Pior que fui eu mesmo que escolhi a minha própria máscara. Ela está tão grudada no rosto que, sem a máscara, não sou ninguém‖. (MARINHO, 2012, p. 138) Por outro lado, é possível perceber que os acréscimos ao diário em grande medida enfatizam uma questão que nos leva de volta a Dom Quixote: os limites entre o real e o ficcional. O Batman de Na teia do morcego também quer criar algo, por meio da pintura ou da escrita. Por isso, continuamente vêm à tona reflexões sobre o processo criativo que cria mundos possíveis a partir de dados do real, o que insere a obra em uma ―tradição de ruptura‖, se assim se pode dizer, instaurada justamente por Dom Quixote. A obra de Cervantes pode ser considerada a precursora do romance moderno, porque imprime o exercício crítico no ato da criação, inaugurando assim, antes do nascimento do termo, a metaficção. Este é um procedimento não só recorrente como fundamental na narrativa de Jorge Miguel Marinho. Batman se sabe personagem – ―O que havia na imaginação do homem que me inventou e aqui no Brasil me tornou um personagem fora das histórias em quadrinhos, nessa manhã de domingo tão real?‖ (MARINHO, 2012, p. 140) – e é justamente a consciência de ser ―escrito por alguém‖, determinando sua vida, que o coloca em crise diante da existência: ―Tudo o que sou é o que as pessoas imaginam. Sou apenas uma sequência de estampas onde alguém reflete e faz com que eu me veja no seu olhar. Sou como um lago e um olho que se projetam simultaneamente, um herói espelhado nos olhos dos outros.‖ (MARINHO, 2012, p. 155). Pode ser produtivo pensar mais detidamente na ―manhã de domingo tão real‖ a que o personagem faz menção, pois, na verdade, seu referencial de real já é uma ficção. Embora os demais personagens a princípio o encarem como um impostor, dado o absurdo de considerá-lo ―real‖ sendo um personagem dos quadrinhos, todos, em algum momento, entram em contato com as lágrimas pretas de nanquim que o Cavaleiro da Tristíssima Figura deixa como rastro por onde passa. A condição de fingimento do texto, assim, não aparece só no discurso do personagem, mas se manifesta como elemento da narrativa. A leitura proposta para Na teia do morcego pretendeu mostrar que o descompasso estético em que se fundamentava inicialmente as obras destinadas ao público infantojuvenil (só recentemente é possível falar em literatura especificamente juvenil) tem sido superado. Há maior permeabilidade entre as conquistas formais da literatura ―adulta‖ e não adulta e um fator importante nesse processo é a possibilidade de experimentação inspirada em outros meios semióticos, como a propaganda, a televisão e, no caso em questão, os quadrinhos. O aproveitamento desses recursos de apelo visual torna-se um componente 86 atraente para o jovem o leitor, que, ao aceitar engajar-se na leitura, encontrará mais que mero entretenimento: uma escrita cuidadosa, um projeto ficcional interessante e uma maneira de sobreviver1. REFERÊNCIAS: BARBIERI, Therezinha. Ficção impura: prosa brasileira dos anos 70, 80 e 90. Rio de Janeiro: EdUERJ: 2003. CARNEIRO, Flávio. No jardim de Borges. Matraga, Rio de Janeiro, UERJ, outubro 1997. COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos.São Paulo: Perspectiva: 2008. ISER, Wolfgang. O ato da leitura. São Paulo: Editora 34: 1996. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: editora UNESP, 2002. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática: 1991. MARINHO, Jorge Miguel. O cavaleiro da tristíssima figura. São Paulo: Ática: 1996. _____________. Na teia do morcego. São Paulo: Gaivota: 2012. _____________. Por que HQs com literatura. Disponível em http://www.cronopios.com.br/site/noticias.asp?id=5467. Acesso em 06 mar. 2013. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008. 87 IMBRICAÇÃO POESIA/REALIDADE NO POEMA “CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO” – CARLOS DUMMOND DE ANDRADE Raimundo Lopes Matos1 Resumo: Este estudo tem como objeto o medo real e o medo estético expressos nos versos do poema. A opção pelo tema foi motivada por ser o medo uma realidade inerente ao ser humano e por estar retratado num texto oriundo da lavra poética, de um expoente da extirpe de Drummond. Os objetivos da pesquisa são: demonstrar que realidade e poesia estão imbricadas; que o poeta parte da concretude do mundo denotativo para, esteticamente, criar mundos conotativos; ressaltar o medo manifesto na face do texto e em sua interface; salientar que o poeta se utiliza dos fatos históricos de seu contexto para dizer a verdade estética, explícita e implicitamente. Para embasamento teórico, recorrer-se-á a leituras sobre o medo, na área da saúde mental, história, ciências sociais e da literatura. Em termos metodológicos, o percurso se dá do medo, enquanto sentimento apavorante, para o medo poético, conforme expressa o poema, onde realidade e poesia se interpenetram numa permanente semiose. Palavras-chave: Medo; Poética; Saúde Mental; Autor; Texto Resumen: Este estudio tiene como objeto el miedo real y el miedo estético expresados en los versos del poema. La opción por el tema fue motivada por ser el miedo una realidad inherente al ser humano y por estar retratado en un texto oriundo de la labra poética, de un exponente de la extirpe de Drummond. Los objetivos de la investigación son: demonstrar que realidad y poesía están imbricadas; que el poeta parte de la concretud del mundo denotativo para, estéticamente, crear mundos connotativos; resaltar el miedo manifestado en la faz do texto y en su interfaz; destacar que el poeta utiliza los hechos históricos de su contexto para decir la verdad estética, explícita e implícitamente. Para embasamiento teórico, se recorrerá a lecturas sobre el miedo, en el área de la salud mental, historia, ciencias sociales y de la literatura. En términos metodológicos, el recorrido se da del miedo, en cuanto sentimiento aterrador, para el miedo poético, conforme expresa el poema, donde realidad y poesía se interpenetran en una permanente semiosis. Palabras clave: Miedo; Poética; Salud Mental; Autor; Texto 88 Introdução Este estudo é um transitar no espaço ecológico energizador do grande meio ambiente no qual vive o homem ocidental, neste tempo moderno/pós-moderno. Este trânsito se dá por intermédio do poema ―Congresso Internacional do Medo‖, de Carlos Drummond de Andrade. A escolha do tema foi motivada pela relevância de uma abordagem ampliada, em termos conceituais, de como o “modus vivendi” atual do ser humano tem contribuído para a existência de um meio ambiente social danoso à saúde mental das pessoas. No tocante aos objetivos, procura-se ressaltar a maneira pela qual a poética, por meio de sua verdade estética, expressa a verdade objetiva; e tentar mostrar que o meio ambiente (econômico e social) frenético, competidor, consumista e desigual por que passa o ser humano ocidental, neste Terceiro Milênio d.C, é um fator contributivo para a incidência de diversas doenças psicossomáticas. Quanto ao fundamento norteador e sustentador deste texto, adota-se, deliberadamente, um pot-pourri teórico; um referencial teórico eclético. Para a realização do trabalho, recorre-se às Histórias Geral e do Brasil, com o recorte do período de criação do poema; à História da Literatura Brasileira, com o registro da estética dominante na época; à Crítica Genética, com a ressurreição do autor; e, por último, à hermenêutica do texto, com a interpretação motivada pelos contextos mediatos e imediatos. Sobre à metodologia, orienta-se no circuito da dedução para indução e vice-versa: ora o raciocínio vai do geral para o particular, ora vai do particular para o geral. Inicia-se com o estudo dos contextos histórico, literário, político, social, sob o manto dos quais foi concebido o texto em discussão. E este é e deverá lido sempre à sombra desse escopo contextual. Na busca incessante do novo por meio da pesquisa estética e do estudo da poética, a leitura do poema é uma busca incessante do inusitado, ainda que, às vezes, extraído do óbvio. Óbvio este, na maioria dos casos, prescindido pelos que, à primeira vista, desprezam e anulam o senso comum. Esta investigação pretende ser um contributo oportuno ao mundo do saber em parceria com outras áreas, como, por exemplo, a educação. Poema, Contextos e Texto 89 Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas (ANDRADE, 2009, p. 159). Tratam-se, aqui, dos contextos mediatos e imediatos que se imbricam na criação e construção de uma obra de arte, de um texto outro, ou de um poema, como é caso desta leitura. Tais contextos são relevantes à hermenêutica que é “a arte de interpretar textos” (LUND, E. & NELSON, 1968, p. 7), sejam eles ―artísticos, literários, jurídicos, teológicos etc.” (SOARES, 2010, p. 4). Isso em busca da alétheia, a verdade grega, a essência. Nelson Cerqueira, no capítulo ―Literatura e Práxis‖ de seu livro ―Hermenêutica & Literatura‖, escreve sobre a criação de um artista e afirma: “... não cria o seu trabalho do vazio, mas, antes, interpreta o seu ambiente social através do filtro da sua experiência, observação e visão de mundo...” (2003, p. 21). Salvatore D‟Onofrio, apesar de sua ênfase na ficcionalidade e não fazer relação ―entre elementos do texto e do extratexto‖ (2007, p. 22), pois, segundo ele, caso isso pudesse ser feito ―teríamos não arte, mas história, biografia, jornalismo, crônica social ou esportiva‖ (2007, p.22), afirma: ―Ninguém pode criar algo do nada: as estruturas linguísticas, sociais e ideológicas fornecem ao artista o material sobre o qual ele constrói o seu mundo de imaginação‖ (2007, p. 22). A esse raciocínio são corroborativas as afirmações de Dominique Maingueneau: “Na realidade, a obra não está fora do seu „contexto‟ biográfico, não é o belo reflexo de eventos independentes dela. Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor” (2001, p. 46); ao falar sobre a obra e experiência de vida, Maingueneau escreve: “O escritor só consegue passar para a sua obra, uma experiência da vida minada pelo trabalho criativo, já obsedado pela obra”(2001, P. 46); e, ao tratar dos ―ritos de escrita‖, ainda diz: “O ato de escrever, de trabalhar 90 num manuscrito, constitui a zona de contado mais evidente entre „a vida‟ e „a obra‟” (2001,P. 47). Nessa mesma linha de pensamento, declara Pierre Lévy: “Nós somos o texto” (http://caosmose.net/pierrelevy/nossomos.html). Um estudo de um texto literário, como este que ora se processa, só dispensa particularidades relevantes da vida de seu autor, se esse estudo se restringir a questões fonéticas, morfológicas e/ou sintáticas; se, todavía, a pretensão é de potencializar e diversificar a leitura do texto dentro de uma visão de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e transversalidade; enfim, partir para leituras acadêmicas, artísticas e culturais sob um escopo mais amplo, é imprescindível o conhecimento dos percursos de mão dupla: autor/obra e obra autor, bem como, texto/extratexto e extratexto/texto. Contextos Mediatos Em se tratando de contextos mediatos, em relação a Drummond, há que se fazer menção a nomes do poder e no poder que tinham influência e repercussão internacionais, em termos fascistas e nazifascistas: Benito Mussolini, na Itália; Antonio Salazar, Portugal; Francisco Franco, Espanha; e Adolf Hitler, Alemanha. (http://www.cafebabel.co.uk/article/26006/fascist-dictator-mussolini-hitler-franco). Devem ser incluídas, tambem, nesses contextos mediatos do poeta e do poema, a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial. A Primeira se finara em 1918 (ARRUDA & PILETTI, 2003, P. 265), o que, pelo óbvio, seus resquícios ainda estavam na memória recente das pessoas e do autor. A Segunda Guerra começa em 1939 (ARRUDA & PILETTI, 2003, P. 304), momento da criação do poema. Este, um dos 28 do livro de Drummond, ―Sentimento do mundo‖, publicado em 1940; vale salientar-se, todavia, que esses poemas foram escritos durante os cinco anos imediatamente anteriores. Isso confirma que o texto drummondiano fora elaborado no mais efervescente clima de guerras externas e de conflitos políticos, ideológicos e sociais internos. Além dos nomes citados, outros, aqui, não devem ser omitidos: Albert Einstein, Karl Marx, Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche (CADEMARTORI, 1985, p. 62). Eles, com suas teorias e escritos, serviram como referenciais teóricos no campo das ciências físicas, sociais e da filosofia (CADEMARTORI, 1985, p. 62). Esses expoentes foram colunas sustentadoras revolucionário. do Modernismo brasileiro enquanto movimento esteticamente 91 Os artistas modernistas brasileiros receberam, também, fortes influências e contribuições das vanguardas europeias: Cubismo, oriundo da Espanha, com Pablo Picasso. Esta vanguarda (1907) com sua decomposição e recomposição do objeto ―segundo uma lógica própria, que não obedece às leis naturais‖ (CADEMARTORI, 1985, p. 63); Futurismo (1909), originário da Itália, com Filippo Tomaso Marinetti, caracteriza-se pelo seu discurso de destruição do tradicional ―em favor de uma arte voltada ao futuro‖ (CADEMARTORI, 1985, p.62), à máquina, ao movimento, à velocidade; o Expressionismo ―surgiu em 1910, na Alemanha‖ (NICOLA, 1998, p. 237). Como afirma Nicola, sua preocupação é “com as manifestações do mundo interior e com uma forma de expressá-las” (1998, p. 237); dá importância à expressão “numa tela ou numa folha de papel, de imagens nascidas em nosso mundo interior, pouco importando os conceitos então vigentes de belo e feio” (NICOLA, 1998, p. 237); Dadaísmo data de 1916, (NICOLA, 1998, p. 243), Começa em Zurique e propõe “a abolição da lógica e do patrimônio cultural acumulado” (CADEMARTORI, 1985, p. 64); eleva o pessimismo ao extremo e é niilista; e o Surrealismo inicia-se em Paris, 1924, caracterizando-se “pela sondagem do mundo interior, em busca do homem primitivo, da libertação do inconsciente, da valorização do sonho” (NICOLA, 1998, p. 245). Sendo feita uma leitura do poema de Drummond à luz dessas vanguardas, perceber-se-ão, dentro do poema, muitas das suas influências. O Cubismo está presente com a tomada de todos os espaços geográficos e conceituais, pelo medo. Esse movimento primava pela geografização poemática na página em branco. Toda a página era ocupada pelo poema como toda tela era utilizada na pintura. O Futurismo pode ser percebido na referência aos soldados e aos ditadores, pois, este movimento apregoava a higiene do mundo por meio da força, por intermédio da guerra. Já o Expressionismo pode ser identificado pela fanopeia (POUND, s/d., p. 63), isto é, uma imagem mental sugerida e deformada em razão do medo assolador e desolador. O poeta, contando com o título do poema, repete o substantivo ―medo‖, nada menos do que doze vezes. Quanto ao Dadaísmo, percebe-se que o poema está contaminado e saturado pelo pessimismo: não há paz, não há tranquilidade, não há segurança nesta vida antes do túmulo, muito menos na outra, depois dele. O medo patológico é amplo, geral, irrestrito e apocalíptico. O Surrealismo aflora no poema no que tange ao mistério, ao sobrenatural, à morte e ao depois da morte. Além disso, o Surrealismo está relacionado diretamente com a psicanálise freudiana. Esta aborda, com dedicação, manifestações emocionais como angústia, temor, pavor e medo (BURSZTEJN, 2000, p. 1159). Ora, medo é o tema do poema. A propósito, pela definição do Dicionário de Psicologia, medo é uma “emoção desencadeada por uma 92 estimulação que tem o valor de perigo para o organismo” (DORON, 1998, p. 489). Ainda na mesma linha se manifesta a Psicologia: “Medo, sentimento de inquietude provocado pela presença ou ao pensar em um perigo” (Dicionário de Psicologia/Artmed, 1996, 152). Assim, percebem-se temas caros a Psicanálise no conteúdo do poema, o que reforça a influência da vanguarda surrealista. Desse modo, ainda que o poeta não se declare sob tais influências, o seu texto o faz. Contextos Imediatos Quanto aos contextos imediatos, mais diretamente relacionados com o poeta, há de se mencionar o aquecido clima político e ideológico de então. Drummond já se transferira para o Rio de Janeiro e é chefe de gabinete de seu conterrâneo, Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde Pública, do Presidente Getúlio Vargas. O poeta se encontra no epicentro geográfico e funcional dos conflitos e das questões políticas, ideológicas e sociais. Nesse período de Governo Constitucionalista (1934 - 1937) e Estado Novo (1937 - 1945), houve repressão à Ação Integralista Beasileira (AIB), e à Aliança Nacional Libertadora (ANL). Esta compunha o Partido Comunista do Brasil (PCB), fechado e posto na ilegalidade por Getúlio Vargas (FERREIRA, 1995, p. 351). O que não se deve omitir, também, é a Revolta Mineira de (1935 - 1936), motivada pela insatisfação ao governo constitucionalista de Vargas que, em nada favorecia Minas Gerais. Revolta que não logrou sucesso contra Vargas. Ainda que o poeta, com um pouco mais de trinta anos, não fosse participante de nenhuma facção contida pelo governo federal, mas, pelo simples fato de ser mineiro, é razoável raciocinar no sentido de haver sido ele influenciado. Afinal, no capítulo ―LA VÍA ECOLÓGICA‖, do livro La Vía – Para el futuro de la humanidad, Edgar Morin escreve: “El mundo está en nosotros ao mismo tiempo que nosotros estamos en el mundo” (2011, p. 78). E a geneticista Cecília Almeida Salles, ao tratar da ressurreiçao do autor à luz da Crítica Genética, registra: “O artista explora o mundo em toda a sua riqueza, daí ser considerado um canibal da realidade” (SALLES,1992, p.84). Pensa-se, agora, no contexto imediato da história literária brasileira. A época na qual é concebido o poema em apreço é o segundo período do Modernismo brasileiro, chamado de fase ideológica e/ou fase de construção. O primeiro período fora chamado de fase heróica e/ou de destruição (PASSONI,1998, p. 47). A propósito, são oportunas e apropriadas as palavras de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães: ―...os poetas 93 de 30 seguem caminhos diversificados, que vão da reflexão filosófico-existencialista ao espiritualismo, da preocupação social e política ao regionalismo, da metalinguagem ao sensualismo (1995, p. 372). Nessa segunda fase, como se pode depreender desta citação, não mais há o apelo do poema cabotinista (poema-piada), da panfletagem e dos manifestos literários; há, porém, novos direcionamentos, posturas e atitudes diferentes em relação ao primeiro momento modernista, diante das realidades circundantes. Por isso, esta fase recebe, didaticamente, além dos nomes de ―construção‖, de ―ideológica‖, também de ―estabilidade de ideias‖ (PASSONI, 1998, p. 47). Os contextos mencionados no tocante às diversas influências e contribuições estão direta e indiretamente, explícita e implicitamente, no poema em estudo. No capítulo ―Leitura, Análise e Interpretação‖, do livro Pesquisa em Literatura, o professor José Edilson de Amorim, no tópico ―texto, contextos‖, afirma: “... uma boa compreensão de um texto pode surgir da leitura que fazemos das relações que o texto e o contexto estabelecem, uma vez que o texto já contém, em si, uma leitura dos contextos com que está relacionado” (PINHEIRO, et al.2003, p. 67). As Falas Explícitas e Implícitas do Poema Referindo-se ao representante literário das terras alterosas e chamado-o de nosso “poeta maior” D‘Onofrio escreve: ―… fez poesia profunda, de lúcida indagação sobre a essência e a existência humana, apresentando quadros do cotidiano, utilizando uma linguagem coloquial e acessível ao grande público‖ (2007, p. 273). A exemplo disso, pode ser observado aqui aspectos do seu modelo poemático no seu poema em apreço. O poeta recorre às formas livres, sem preocupações estróficas, métricas, rímicas e rítmica, fazendo uso da linguagem cotidiana, por isso de domínio do povo, para abordar um assunto comum ao ser humano, o medo. Como a voz de um poeta é singular e plural, esta é individual e coletiva. Desse modo, essa voz é social. Daí, os signos do poema se apresentarem como índices de um medo generalizado: em todos os lugares, tempos e pessoas. Seguem as leituras de excertos do poema: 94 Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços (...) existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro As fobias e os medos motivados pelas guerras externas, conflitos internos, atritos localizados; violência ética, moral e física por todos os lados; em todos os domínios e em todo o organograma hierárquico e funcional da sociedade... Os abraços não são mais índices de afetividade, mas são indiferentes, mornos, frios, de afastamento e de desconfiança!... No trabalho, à rua, em casa, à mesa, na cama o companheiro inseparável é o medo; é o nosso pai; é nosso companheiro; é o ―pai e nosso‖ de cada dia... o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, Sertões secos, sertões de homens secos, sertões de vidas secas; mares revoltos com seus navios de guerras, seus submarinos nucleares, mares da vida de ventos incontroláveis; desertos e rincões, revoluções e passeatas, colunas que se prestam a mudanças e transformações utópicas. Tudo é assustador. Tudo motiva e aumenta o medo. o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, Os soldados, patenteados, armados, desertados, deserdados, asilados, fuzilados... Os subalternos têm medo dos superiores; os superiores têm medo dos subalternos; todos têm medo do povo e o povo tem medo de tudo... Mães biológicas, mães pátrias, mães medrosas e mães que metem medo... As mães e a instituição chamada família não se excluem da barbárie vivida, sofrida e praticada. E as igrejas? Fundamentalistas, populistas, racistas; religiosos vestidos de religião, e despidos de Deus; celebração ―ópio do povo‖; culto narcotizante; alienação total. Afinal, praticam atrocidades muitos dos que pertencem ao mundo da espiritualidade. 95 cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, Amarelos, verdes, vermelhos, azuis, pardos; discursos de libertação, Integralismo, Frente Libertadora; práticas semelhantes, patrulhamentos arrogantes; no poder e só no poder há igualdade... O medo é igual... O perigo das ditaduras de todos os matizes não envelhece… Em termos funcionais e procedimentais, às vezes, ditadores e democratas se confundem. cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas. Há medo da morte. Há medo da vida antes do túmulo, e há medo dos vivos; há medo dos mortos e da sepultura; o medo é transmatizado e transdimensional... Pela voz do poema, o medo domina todos os domínios. Os versos, por sua linguagem estética, denunciam uma humanidade doente. Se a saúde das pessoas for pensada à luz da Organização Mundial de Saúde (OMS) que a define ―como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social” (www.cds.ufsc.br/~osni/saude.htm), o texto do itabirano mostra e demonstra que as pessoas não vão bem nesse quesito, porque, em decorrência do medo assolador, sua saúde mental está combalida e cambaleante. Se as pessoas vivem diuturnamente com medo, se as convulsões sociais são realidades reiteradas, independentemente dos mortos e mutilados de guerra e por motivos outros, é certo que a saúde está ausente, e uma parcela cada vez maior dos habitantes desta antroposfera drummondiana está enferma e amedrontada. Considerações Outras O poema foi escrito no final dos anos 30, do século XX, no circuito Itabira/Belo Horizonte – Minas Gerais e Rio de Janeiro, territórios das vivências de Drummond. 96 Todavia, o poema, por sua temática, apresenta-se desterritorializado, em relação a esses loci determinados e específicos, e se pulveriza por todos os espaços horizontais, verticais e conceituais, disseminado nas pessoas e pelas pessoas; é um texto sem fronteiras. Assim, o poema drummondiano se universaliza, unindo passado e futuro numa presentidade e num processo de permanente imbricação de poesia e sua realidade subjetiva com a concretude do cotidiano com a sua realidade objetiva. Finalmente, entram nessa composição, os contextos mediatos e imediatos da obra. Esses apontam no texto os signos relacionais do mundo abstrato e do mundo concreto; entre o patrimônio cultural intangível e o patrimônio cultural tangível; transita-se no universo do processo da criação artística, passando e perpassando pelo território denotativo, com todo aparato criativo, para o território conotativo. Assim, a denotação e a conotação se imbricam e se interdependem, num contínuo diálogo, formando, para o artista criador, a sua oficina repertorial, onde formatará a sua obra de arte. Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética: Congresso Internacional do Medo. 64. ed., Rio de Janeiro: Record, 2009. ARRUDA, José Robson de A. & PILETTI, Nelson. 12. ed. Toda a História: História Geral e História do Brasil. São Paulo: Ática, 2003. BERGEZ, Daniel et al. Métodos críticos para a análise literária. [Trad. Olinda Maria Rodrigues Prata]. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Leitura e Crítica) BURSZTEJN, Claude. Dicionário Internacional da Psicanálise. s/l; s/ed, 2000. CADEMARTORI, Lígia. Períodos literários. São Paulo: Ática, 1985 (Série Princípios). CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira. São Paulo: Atual, 1995. CERQUEIRA, Nelson. Hermenêutica e Literatura. [Trad. Yvenio Azevedo]. Salvador-BA: Ed. Cara, 2003. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Artmed, 1996. 97 D‘ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007. DORON, Roland. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Ática, 1998. FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. 17. ed., São Paulo: Ática, 1995. LÉVY, Pierre. Tecnologias intelectuais e modo de conhecer: nós somos o texto. http://caosmose.net/pierrelevy/nossomos.html. - Acessado em 18/03/2013. LUND, E. & NELSON, P. C. Hermenêutica. [Trad. de Etuvino Adiers]. São Paulo: Ed. Vida, 1968. MORIN, Edgar. La Via: Para el futuro de la humanidad. [Traducción de Núria Petit Fontseré]. Barcelona-Spain: Espasa Libros S.L.U., 2011. NICOLA, José de. Literatura Brasileira: Das origens aos nossos dias. 15 ed. São Paulo: Scipione, 1998. PASSONI, Célia A. Modernismo no Brasil: 1922 a 1930. São Paulo: Núcleo, 1998. (Col. Temas de Literatura). PINHEIRO, Hélder et al. Pesquisa em Literatura. Campina Grande: Ed. Bagagem, 2003. POLAND, Doron et al. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Ática, 1998. POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, s/d. SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010. http://www.cafebabel.co.uk/article/26006/fascist-dictator-mussolini-hitler-franco. 98 http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/gustavo_capanema). 99 PROJEÇÕES DAS PERSONAGENS EUTANÁZIO E ALFREDO SOBRE ESCOLA E ENSINO Regina Barbosa da Costa1 Prof..ª Drª Marlí Tereza Furtado (Orientadora)1 RESUMO: O primeiro livro do Ciclo do Extremo Norte, Chove nos Campos de Cachoeira (1941), do escritor amazônida Dalcídio Jurandir, apresenta um elenco variado de personagens, dentre os quais despontam Eutanázio e Alfredo, com expectativas individualizadas a respeito de escola e ensino. Com o propósito de apresentar a arte deste ficcionista, que empregou personagens figurando no texto literário para promover reflexão sobre a aquisição da cultura letrada, especialmente da literatura canônica, é que apresentamos este estudo dividido em três partes: na primeira, faremos uma apresentação teórica sobre ensino e leitura; na segunda, daremos destaque ao personagem-leitor Eutanázio, que apresenta uma experiência frustrada com relação ao ensino, todavia pratica leitura extensiva, abrangendo literaturas de diferentes gêneros e nacionalidades e, na terceira, focalizaremos Alfredo, personagem que participa da vida escolar em Cachoeira e desencanta-se com a escola da região, porém ambiciona ascender nos estudos saindo de cachoeira e indo para a metrópole. Desta forma, a obtenção da cultura, mediada pela escola e pelo professor, é considerada como negativa neste texto dalcidiano, embora ela seja aspiração dos personagens aqui relacionados na projeção de um futuro melhor sem iniquidades sociais. PALAVRAS-CHAVE: Personagem; Leitura; Escola. ABSTRACT: The first book of the Ciclo do Extremo Norte, Chove nos Campos de Cachoeira (1941), from the Amazonian‘s writer Dalcídio Jurandir presents a varied cast of characters, among which stand out Alfredo and Eutanázio, with individualized expectations about school and education. In order to present the art of this novelist who used characters appearing in literary text to promote the reflection about acquisition of literacy, especially of canonical literature, is that we present this study in three parts: in the first, we will do a theoretical presentation on the teaching and reading, at the second, we'll highlight the Eutanázio‘s character-reader, that features a frustrated experience with respect to teaching, however practices extensive reading, covering literature from different genres and nationalities, and in the third, we will focus Alfredo, a character who participates in school life of Cachoeira and is disenchanted with the school in the area, but aspires to ascend in studies, leaving Cachoeira and going to the metropolis. Thus, obtaining the culture, mediated by the school and teacher, is seen as negative in dalcidian‘s text, although it is aspiration of the characters listed here in projecting a better future without social inequities. KEYWORDS: Character; Reading; School. 1. Introdução Este estudo objetiva analisar as ―Projeções das personagens Eutanázio e Alfredo sobre escola e ensino‖, inferidas no livro Chove nos Campos de Cachoeira (1941), do ficcionista amazônico Dalcídio Jurandir que originou-se a partir de uma das inquietações processadas 100 no decorrer da pesquisa para dissertação de mestrado, ainda em construção e apresenta reflexões em torno da aquisição da cultura letrada em ambiente miserável, encontrada na representação literária. As projeções de Alfredo, protagonista de quase todas as obras do ciclo dalcidiano, servirão como uma das bases de análise desta pesquisa, no sentido de mostrar a rejeição em relação ao lugar humilde onde se localiza a escola de ensino duvidoso e precário, assinalado pela deficiência metodológica do professor. O desejo de mudar para uma cidade que ofereça recursos mais promissores na área educativa e sair de Cachoeira, lugar inóspito e miserável, permeia quase toda a narrativa deste primeiro volume dalcidiano. Eutanázio, outro protagonista desta narrativa, também mostra aversão ao modelo educacional oferecido pelo lugar. Sente maior prazer na leitura quando está em contato com a natureza ou no seio familiar. Ele se destacará na narrativa como personagem-leitor, justificará seu perfil de leitor e escritor, colaborando socialmente com a população local, fazendo versos para as festas culturais e cartas para os personagens analfabetos de Cachoeira. Os personagens Alfredo e Eutanázio apresentam perspectivas individualizadas, quanto ao processo de aquisição de cultura e, por conseguinte, projetam interesses diferentes. Alfredo pretende mostrar que só o estudo em um lugar que ofereça condições dignas apontará progressos para um menino pobre e afrodescendente. Com Eutanázio a aquisição do ato de ler e escrever representa o desejo de mudança em face das coisas que considerava erradas, pois, para ele, a cidade grande é considerada somente como lugar onde é possível adquirir novos livros, haja vista que sua preferência é por lugares pitorescos. Deste modo, será possível observar a figuração de um problema social, representado pela dificuldade de obtenção de cultura, por pessoas afastadas dos grandes centros, e também possibilitará o conhecimento sobre questões inerentes à compreensão e efetivação de fatos de cultura como o ato de ler e seus possíveis usos pessoais por meio da representação literária. 2. SOBRE ENSINO E LEITURA Considerada como prática de extrema importância à vida escolar, a leitura sempre exerceu função social, pois compreende um grande número de estudiosos que se debruçam em apreender os seus diferentes universos. Em definição moderna e ampla a leitura é concebida como ―a capacidade de extrair sentido de símbolos escritos ou impressos‖ (FISCHER, 2006, p. 11). É também indicadora 101 de avanço da própria humanidade, uma vez que pode servir como elemento do processo que une os partícipes da discussão gerada em torno da aquisição e usos pessoais da cultura letrada. Dentre os mais importantes estudiosos da leitura, destaca-se Roger Chartier quando infere que a leitura ―não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros‖ (CHARTIER, 1994, p. 16) pontuando, assim que, o acesso à leitura e às maneiras de ler são importantes e devem ser abordadas num estudo sobre leitura. Desta forma, é que ao estudar os personagens construtores da representação do ato de ler na obra literária, procuramos também focalizar o universo cultural em que eles se inscrevem, para assim, apontar a relação entre o anseio pelo conhecimento literário, esboçado por Eutanázio, personagem-leitor e Alfredo, personagem principiante no universo cultural. As leituras são dotadas de sentidos, porque durante sua interpretação, ―dar um sentido, é sempre falar sobre o que, talvez, não se chegue a dizer de outro modo mais claramente, mas seria permitir uma emergência daquilo que está escondido‖ (GOULEMOT, 1996, p. 116), ou seja, vão além de simples decodificações de traços inscritos num papel, representam a compreensão do que foi dito e podem ser concebidas como uma forma de reinventar, para alcançar o não dito, para assim serem percebidas na figuração dos personagens e na possibilidade de intenção do escritor. É assim que as pesquisadoras Regina Zilberman e Marisa Lajolo estudam a questão da leitura e do leitor inferindo que ―o tratamento dispensado ao leitor, que resulta na ficcionalização deste [...] é lugar privilegiado para o início do desenho de uma história social da leitura‖ (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 17) concluindo que o assunto pode ser tematizado na literatura como lugar privilegiado para abordá-lo e questioná-lo. Compreender a importância da leitura, especificamente o da leitura literária, é um ―direito inalienável‖ que todo individuo possui, haja vista que ―uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, [da mesma forma que] a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis‖ (CANDIDO, 2004, p. 191). Esse ―direito à literatura‖ é, na maioria das vezes, negado, uma vez que o texto ficcional se estabelece como um importante instrumento de instrução e educação, por evidenciar ―os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais‖. (CANDIDO, 2004, p.175) 102 Assim, o ensino mediado pelo professor, promotor da educação de indivíduos como agentes de uma sociedade mais justa e igualitária é ferido, segundo a ficção dalcidiana, em sua função principal que é a de transmitir conhecimentos, simplesmente por estarem deformados e assim só transmitir deformidades. Também o ato de escrever, proposto como parte desse conjunto cultural, é dotado de função social, uma vez que sua prática acontece ante o conhecimento de um repertório de leituras em suas mais diversas apropriações. Portanto, percebemos que o ensino, a leitura e o ato de escrever, exercem funções sociais, mesmo que seja ficção, pois se estendem além da simples prática, alcançam sociedades inteiras por serem capazes de transformar e produzir progresso, devido sua presença constante nos discursos gerados na sociedade ou reproduzidos em forma de texto ficcional. 3. O PERSONAGEM-LEITOR EUTANÁZIO Eutanázio apresenta um diferencial em relação às personagens que figuram na ficção dalcidiana, por ser um leitor, daí a referência como personagem-leitor que desperta sua reflexão a partir das situações sociais que percebe na cidade de Cachoeira. Mas, apesar de obter este status de leitor ele é uma representação de miséria e de falência do ser humano. Eutanázio era irmão paterno de Alfredo, ambos possuem inclinação para a vida cultural de maneiras diferentes: Alfredo deseja estudar para mostrar que um menino pobre e afrodescendente também era capaz de vencer, e Eutanázio quer aprender a ler e escrever para mudar a face das coisas que considerava erradas. Sua inclinação para o mundo das letras acontece desde a adolescência, quando selecionou os ofícios de general, enfermeiro e encadernador. Opta em ser encadernador, por ―[preferir] lidar com os livros, os bacalhaus, os pobres livros maltratados e doentes. [Desejava ser] enfermeiro dos livros, estes pelo menos seriam mais pacientes, mais resignados, mais agradecidos, mais humanos‖ (JURANDIR, 1941, p. 38). As reflexões sobre livros, leitura e produção escrita começam a inundar a cabeça de Eutanázio que, ao recordar o episódio do ―sujeito bêbado‖, que se apresentou como uma criatura estranha, formada por um misto de realidade e de ilusão, estimulou a personagem a iniciar uma inclinação que estava latente dentro dele, como se fosse outra vida que existisse. Um sujeito muito bêbado, com umas roupas espantosas, atravessara a rua para lhe dizer: Por que os livros ficam à margem? Eutanázio recuara. [...]. Sua mão tentava erguer-se[...] Diga... Por 103 que os... livros ficam... Ficam... A margem? Porque também... o homem... Fica também... Na margem da... da... vida? Da nossa própria da... nossa própria... Consciência? Consciência? Hem? Diga-me! [C]omo que os livros ficam a margem? (JURANDIR, 1941, p. 38) Foi a partir deste epsódio, entendido como uma visão crítica do personagem Eutanázio que seu desejo pelos livros e pela leitura se manifestou. O manuseio de revistas e a experimentação de leituras a partir de gravuras de livros aparecem como testagem inicial do ato representativo da leitura. Quando iniciou sua vida estudantil, sempre estava com mau humor e apatia, sentia a displicência do pai e da mãe; desta forma, a leitura e a escrita não representaram importância no momento de sua formação, pois [A]prendia com aborrecimento ou com indiferença, frieza ou desapontamento. Ninguém se interessava por ele. [...] Eutanázio acabou não adivinhando a utilidade de saber ler e escrever. (JURANDIR, 1941, p. 36). Contudo, no seu íntimo tinha o desejo de aprender para mudar ―[queria] saber ler e escrever para mudar a face das coisas‖ (JURANDIR, 1941, p. 37). Por esse motivo, nunca respondia mal ao professor e estudava para não ser castigado com a famigerada palmatória, somente desta forma não colocaria em evidência o seu gênio terrível, capaz de praticar atos ilícitos com professor, caso fosse castigado, pois ―Se apanhasse, seria capaz de matar o mestre com uma pedrada‖ (JURANDIR, 1941, p. 37). A influência do hábito de leitura veio de seu pai, o Major Alberto, que reproduzia de forma oral suas leituras e de um tio conhecido por Jango, que lia belas passagens da bíblia para Eutanázio, mas este preferia ouvir do tio o Apocalípse, que combinava mais com seu estilo de vida. Percebemos que há um maior interesse pela literatura no seio familiar, com pai ou tio, que na escola, onde observamos um apagamento por parte do personagem. A prática de leitura do personagem Eutanázio pode ser considerada como extensiva1, desenvolvida de forma muito natural e em contato com a natureza, [leu] uma tradução de Paulo e Virgínia [...] debaixo do cupuaçuzeiro. (JURANDIR, 1941, p.p. 139-140) Gostava de ficar num toco de pau no meio do mato, sem pensamentos, numa inércia. Serões muito calmos na varanda da tia Eponina. Conversava sossegadamente com os conhecidos de sua tia. Lia [um romance], lá [.Lá], foi assim, que leu o Paulo e Virgínia, A vingança do Judeu, O Conde de Monte Cristo. (JURANDIR, 1941, p. 40) As leituras representavam para Eutanázio, mais que prazer; elas extravazavam alguns anseios, como os desejos de viajar e conhecer mundos novos, como se deu pela ocasião da leitura de O Conde de Monte Cristo, obra que suscitou o desejo indefinido por viagens. 104 No seu roteiro de leitor, manifestou desejo de ler um livro, que tinha uma preferência muito especial, mas que se refere a ele como se não tivesse lido. Este livro, que lhe causou tanto apreço, chamava-se Dores do Mundo1, que viu certa vez numa livraria em Belém. Lembra-se bem. Dores do Mundo, o título. O autor era um nome difícil. Não queria saber do autor, queria saber do livro. [...] Quis entrar na livraria e folhear o livro. Mas sabia que um caixeiro idiota ia logo perguntando qual o livro que escolhia, se queria comprar o que estava folheando, que tinha livro mais barato, ou se colava nele, rondando, vigiando, até que se resolvesse a comprar o livro ou dar o fora. O nome do autor era complicado. (JURANDIR, 1941, p. 21-22) Esta menção ao livro de Shopenhauer suscita-nos uma reflexão pois, conhecendo a trajetória do filósofo e do personagem, nota-se certa identidade, apesar da afirmação da personagem de que não leu observa-se nele esta figuração. Por outro lado, é possível uma aproximação com a personagem Werther, d‘Os Sofrimentos do jovem Werther, do Goethe, ―essa aproximação [...] não se faz apenas pelo sabor da comparação, ela serve de veículo de reflexão de que algumas raízes da modernidade estão no Romantismo‖ (FURTADO, 2010, p.33). No entanto, a caracterização da personagem pode ter sido fruto da bagagem cultural do escritor e leitor Dalcídio Jurandir. Há predileção especial pelo gênero poesia. ―Eutanázio decorava o Se se morre de amor, O Amor e o Medo e o Ouvir Estrelas. [e tinha] paixão pelo As Pombas” (JURANDIR, 1941, p.p. 21-22). É por meio da poesia que a personagem, posteriormente, irá externar seus sentimentos. O leitor Eutanázio não se conforma apenas com as leituras que faz; ele ―teima‖ em alargar o seu campo cultural e inicia fazendo versos, posto que o desejo em ser poeta crescia todos os dias. Assim, passa a ser admirado por fazer versos populares para festas tradicionais de bois da região: Os versos eram feitos por Eutanázio que tinha assim talvez a sua única diversão. Fazer a pedido de Rodolfo e Didico os versos para o boi. Major Alberto criticava duramente esses versos, mas o povo gostava, o boi saía bem ensaiado e original, com as músicas do Miranda e os versos de Eutanázio. Eutanázio achava assim que a sua pobre poesia tinha sempre alguma utilidade. Agradava o pessoal dos bumbás, era cantada pelo povo, falada pelos campos do Arari. E a sua tristeza, o seu desespero, todo o seu aborrecimento da vida enchiam os versos do Pai Francisco, as toadas tristes dos vaqueiros, o canto dos índios que vinham com arcos e flechas de Marabá. (JURANDIR, 1941, p. 109) 105 A contribuição cultural de Eutanázio para a comunidade de Cachoeira não se dá apenas pela composição de versos, mas também pela composição de cartas para a população analfabeta do lugar. A existência de Eutanázio é breve e a notícia de sua morte será conhecida a partir da leitura de outro romance do Ciclo, conhecido como Ponte do Galo (1971). 3. ALFREDO E A VIDA ESCOLAR EM CACHOEIRA Alfredo, protagonista de Chove nos Campos de Cachoeira, é o mais importante personagem de Dalcídio Jurandir no Ciclo do Extremo Norte1, com participação em quase todos os volumes do Ciclo, como observa a professora Marlí Furtado ―[D]os dez volumes que compõem a saga romanesca de Extremo Norte apenas Marajó não traz Alfredo como um de seus protagonistas‖ (FURTADO, 2010, p. 19). O desencanto de Alfredo com a escola e com o professor da cidade de Cachoeira é muito grande, por este motivo deseja sair daquele lugar que só apresenta infelicidades e miséria. Seu grande sonho é estudar numa escola em que ele seja respeitado. Sua primeira aspiração é estudar no Rio de Janeiro, no Anglo Brasileiro, pois conheceu a escola a partir dos catálogos que seu pai que folheava. Em seguida, percebe que este sonho é impossível e, numa segunda hipótese, deseja ir para a metrópole Belém, a qualquer custo. Este desejo de Alfredo em querer sair de Cachoeira era compartilhado pelos pais, que também vislumbravam uma melhor educação para ele. A escola de Cachoeira, rejeitada por Alfredo, era pequena e o professor, conhecido como Proença, possuía um perfil comparado ao de um louco: era cínico, gritava e dava gargalhadas, além de possuir uns olhos vidrados, ásperos e ferozes. Os métodos diferenciados de ensino se pautavam em humilhações e castigos, como ficar de joelhos, apanhar de palmatória e ficar nu, como aconteceu ―uma tarde, [...] nos primeiros tempos de escola, ele foi posto nu pelo Proença. Flor sorria candidamente e Proença com os seus olhos de louco e o riso canalha gritava: - Mas Flor, Flor, olha o pipi dele. O pipi, Flor!‖ (JURANDIR, 1941, p. 38).1 O desânimo de Alfredo pela escola do Proença era tão grande que chegava a ficar doente, ou a simular doença para não sofrer humilhações e ficava cogitando a possibilidade de ir para Belém, ou para qualquer grupo escolar, caso não conseguisse ir para o Anglo Brasileiro. Seu mais ardente desejo era o de se evadir da escola de Proença, pois considerava que lá era uma escola que só humilhava e oprimia. 106 No romance dalcidiano, Alfredo representa o menino pobre, solitário, afrodescendente que deseja ascender socialmente para mostrar aos meninos que o humilhavam, principalmente os de cor ―branca‖, que ele era também capaz de vencer. Sua trajetória no romance mostra uma perspectiva de futuro, diferente de Eutanázio. Assim, o objetivo de Alfredo de se evadir de Cachoeira só se concretiza em outro livro do Ciclo, conhecido como Belém do Grão-Pará (1960). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O ato de ensinar e o de ler ganham nova dimensão a partir da leitura de Chove nos campos de Cachoeira, visto que a ficção dalcidiana proporciona a representação desses objetos de pesquisas que são tão complexos e tão estudados. É a partir dessa figuração que compreendemos a necessidade de uma mediação de qualidade por parte do educador no processo de ensino e aprendizagem, para a geração de leitores de qualidade. É pela representação dos fatos sociais conhecidos como leitura e escrita que se pode obter uma visão bidimensional, favorecendo o conhecimento integral dos aspectos interiores e exteriores dos mesmos, justamente por serem representações da realidade é que Dalcídio em carta a Bruno de Menezes, explicando o sobre o processo de criação, destaca que ―[É] preciso acusar e desmontar, [...] a farsa e a miséria que negam a arte e a cultura‖ (NUNES, PEREIRA & PEREIRA, 2006, p. 158) e representá-la é a maneira de mostrar de forma ostensiva essa realidade. Essas reflexões a respeito da aquisição de cultura adquirem uma proporção universal, se considerarmos que o evento não se restringe apenas a uma situação fictícia de uma localidade isolada na região amazônica, mas ganha volume à medida que o mesmo caso poderia acontecer em qualquer local do mundo em que a instrução escolar não fosse a principal meta a ser alcançada. Por meio das personagens trabalhadas, o resultado que fica evidenciado é que, secularmente, a aquisição da cultura é restrita; e que os usos da leitura e da escrita são infinitos. Assim, os personagens representam um papel importante na narrativa dalcidiana, haja vista que conseguem fazer refletir sobre questões de cunho social, que atingem não só uma determinada sociedade, mas que podem também ser expandidas e adquirirem dimensões universais. REFERÊNCIAS JURANDIR, Dalcídio. Chove nos Campos de Cachoeira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Vecchi: 1941. 107 _____. Belém do Grão-Pará. São Paulo: Martins: 1960. _____. Chove nos Campos de Cachoeira. Rio de Janeiro: 7 LETRAS: 2011. _____. Ponte do Galo. São Paulo: Martins: 1971. CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 4ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul: 2004. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores e bibliotecas na França entre os séculos XIX e XVIII. Brasília: Editora UNB: 1994. _____. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: DIFEL: 1988. FISCHER, Steven Roger. História da Leitura; tradução Claudia Freire. São Paulo: Editora UNESP: 2006. FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado das Letras: 2010. _____. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. IEL/Unicamp: Campinas: 2002. GOULEMOT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentido. In: CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade: 1996. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1998. NUNES, Benedito; PEREIRA, Ruy; PEREIRA, Soraya (orgs.). Dalcídio Jurandir: Romancista da Amazônia – literatura e memória. Belém: SECULT/FCRB/IDJ: 2006. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Narratologia. 7ª ed. Coimbra: Almedina: 2002. 108 MEMÓRIAS DEDICADAS: CONSTITUIÇÃO DE UM INVENTÁRIO CULTURAL POR MEIO DE DEDICATÓRIAS AUTÓGRAFAS REMETIDAS AO ESCRITOR JOÃO ANTÔNIO. Renata Ribeiro de Moraes1 Profª Drª Ana Maria Domingues de Oliveira (Orientadora)1 Resumo João Antônio (1937-1996) firmou-se como contista no ambiente literário por meio do conjunto de sua obra, visto que, a partir do primeiro livro, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) vislumbrou o início da consagração entre seus pares e crítica. Com 21 obras publicadas, atuando paralelamente na mídia impressa, João Antônio comprometia-se com o fato literário desde os escritos iniciais, pois sua filiação intelectual o impulsionara a percorrer e discutir momentos da realidade que o circundava. Objetivou divulgar uma literatura que discutisse questões de sua pátria e ao aliar este propósito ao trabalho estético anunciou, sob outras instâncias de escrita, a necessidade de se atentar para a formação da memória de um povo. Neste sentido, o conjunto da obra de um escritor caminha em paralelo à produção extra-literária, haja vista os intuitos de divulgação e circulação que um livro articula. O conteúdo exposto por uma dedicatória autógrafa permite que se mapeie os caminhos percorridos pelas publicações de outros livros e de vários autores de sua contemporaneidade. Entender o discurso estabelecido por meio dos paratextos autógrafos remetidos a João Antônio aponta as estratégias utilizadas no trânsito cultural que as obras suscitaram, culminando no conhecimento de projetos literários e pensamentos discutidos entre as décadas de 1960 a 1990. Assim, os paratextos, definição do teórico Gérard Genette (2009), elucidam situações vivenciadas por determinada comunidade de escritores-leitores, permitindo-se perceber as incursões editoriais, literárias, políticas, sociais e pessoais de autores consagrados e de novos nomes que apareciam no cenário cultural, além das de João Antônio, formando, em certa medida, um patrimônio memorialístico elaborado a partir da troca de 1100 obras com dedicatórias autógrafas enviadas ao escritor em questão. Palavras-chave: João Antônio; Memória; Dedicatória. Abstract DEDICATED MEMORIES: ESTABLISHING A CULTURAL INVENTORY BY MEANS OF THE AUTOGRAPHED DEDICATIONS SENT TO THE WRITER JOÃO ANTÔNIO. João Antônio (1937-1996) established himself as a short story writer in the literary scenery through the collection of his literary works and, since his first book Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), he felt the beginning of his consecration among his peers and critics. With 21 literary works published, he simultaneously worked in the written media, committing himself with the literary fact since the first pieces written, once his intellectual affiliation would lead him to experience and discuss moments of the surrounding reality. He aimed at disseminating a literature that brought about discussions on his country´s issues and aligning this purpose with the aesthetic work he announced, under other instances of writing, the need of building the memory of his people. In this respect the writer´s collection of literary works is aligned with an extra-literary production, considering the purposes of dissemination and circulation of a book. Connected to the literary work, we 109 can lean over the content exposed by an autographed dedication, and have the chance of understanding the path followed by the publication of other books and by various other authors of his time. The speech expressed in the autographed paratexts sent to João Antônio reveal the discursive strategies used, thus allowing us to get acquainted with the literary projects of authors and respective thoughts in the decades 1960 – 1990. This way, the autographed dedications show the experience lived by a certain community of writersreaders, making us understand the personal, social, political, literary and editorial incursions of renowned names and beginners in the cultural scenery, besides those of João Antônio, forming, at a certain extent, a memory asset constituted by the exchange of 1,100 literary works with autographed dedications sent to the writer. Keywords: João Antônio; Memories; Dedications. João Antônio é considerado um dos maiores contistas de sua geração e atuou também como jornalista, função que lhe possibilitou ampla articulação entre outros intelectuais de sua época. João Antônio: nascido em 1937, em São Paulo, pai de Daniel Pedro. Complemento: Ferreira Filho. Filho da vida proletária, do pai de origem portuguesa, cultivador de orquídeas, um chorão apto com o manejo de instrumentos de corda. Filho da mulata, inquietante e protetora. Neto de dona Nair. Teve a família como ponto de partida para sua formação enquanto homem e escritor. Outras filiações na esfera literária lhe ocorreram: Fiodor Dostoievsky, Anton Tchecov, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Lima Barreto1. Por toda sua vivência familiar e experiências pessoais, pelo encontro rítmico de outras narrativas advindas de suas filiações literárias, pelo gosto de se trabalhar com aquilo que se conhecia, e, portanto, com o que gostava, surgiu Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). Nas três partes deste livro de contos há histórias compostas a partir de fatos corriqueiros, do dia a dia, mas que não versam sobre personagens comuns. Incomum também é seu leitor, cúmplice das histórias urbanas, ambientadas no espaço e esfera social da cidade de São Paulo da década de 1960. No contato com o mundo das personagens, o interlocutor apropria-se não só de narradores em primeira ou em terceira pessoa; também se detém sobre acontecimentos interiores que desestabilizam os pensamentos das personagens de papel. João Antônio, com Malagueta, Perus e Bacanaço, sua primeira obra, ou seu primeiro amor, como assim se referia, ganhou notoriedade no espaço literário, visto que este livro de estreia recebeu significativos prêmios – Fábio Prado e dois Jabutis, como melhor livro de contos e de autor revelação, na década de 1960. A partir da publicação de outros livros e da participação assídua em veículos impressos do jornalismo brasileiro, aos poucos apresentou 110 seu projeto literário com o intuito de não só receber reconhecimento da crítica, mas principalmente do público leitor, além disso, construir sua memória e a de seu país. Ao constituir seu projeto literário, fomentou sua preocupação estética ao percorrer escolas e faculdades, indo ao encontro de seu maior incentivador cultural: o leitor. Traçou perfis como os de Noel Rosa, Aracy de Almeida, Darcy Ribeiro, Garrincha etc., tecendo sua verve crítica em relação não só ao submundo, rótulo que o acompanhou por se fazer porta voz da marginalidade, mas também ao articular sobre nomes da cultura brasileira, que contribuíram para a elaboração de momentos sociais referentes ao período no qual viveram. Entre 1960 e 1996, ano de sua morte, João Antônio publicou 21 obras dentre as quais se incluem Leão-de-Chácara (1975), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977), Abraçado ao meu rancor (1986) e o último, Dama do Encantado (1996). Com o trânsito no meio intelectual, o autor se movimentou entre seus pares, ou seja, em meio à comunidade de escritores-leitores, com vistas a ser lido, discutido, comentado e divulgado, permitindo-lhe o (re)conhecimento de seu trabalho com a palavra. Quando há a referência ao seu projeto literário, destacam-se algumas de suas articulações no ambiente intelectual, como a composição e divulgação de textos jornalísticos - fonte de renda com a qual sobreviveu -, as palestras proferidas em universidades nacionais e estrangeiras - discutindo sobre seu trabalho estético, os prêmios literários conquistados, as correspondências com outros escritores e a coleção de obras com dedicatórias autógrafas que recebeu ao longo de sua carreira. Estas cinco instâncias que estavam ligadas ao fazer literário de João Antônio são vistas como ações extra-literárias que lhe permitiram estar entre sua comunidade tornando-se visível por meio de seus modos de atuação. No que tange às dedicatórias autógrafas tem-se a possibilidade de se conhecer o jogo editorial que se estabeleceu entre João Antônio, demais autores e casas editoriais, cujas estratégias mercadológicas e intelectuais são demonstradas em alguns textos das dedicatórias. Por isso, estas apresentam sua circulação privada e que se desdobram como meios de se compreender a formação da rede de sociabilidade engendrada pelos literatos de sua época. Portanto, do nível particular as dedicatórias passam a circular na esfera pública, pois ao serem divulgadas ao público têm a possibilidade de desvendarem diversos assuntos compartilhados e compactuados por João Antônio e apenas seus dedicadores. Os diálogos entre dedicador e dedicatário se acercam de fatos pessoais, históricos, sociais, políticos e literários, contemplando parte da constituição do projeto literário de 111 João Antônio. Um autor, ao fazer uso de uma dedicatória autógrafa lança-se no jogo editorial testemunhando estratégias mercadológicas, ensejando, assim, diálogos entre autor, obra e receptor da obra, além de possibilitar uma interlocução com os fatos histórico, social e cultural do momento em questão. Neste sentido, a marca autoral registrada por meio da dedicatória possibilita ao pesquisador não só compreender o posicionamento de determinados intelectuais e do próprio escritor, mas também emoldurar parte da história literária. Constituindo a coleção de dedicatórias, elas estão dispostas em 1100 livros, remetidos por um número significativo de escritores de mesma época de João Antônio. Nomes como os de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Adélia Prado, Jorge Amado, Cassiano Nunes, Caio Porfírio Carneiro, Manoel de Barros são os que figuram entre outros escritores, sejam eles renomados ou os que ainda se legitimavam no meio literário, nas décadas de 1960 a 1990. O envio de livros com paratextos autógrafos vincula-se a três propósitos primordiais – homenagear o dedicatário, requerer leitura e consequente parecer crítico, além da demonstração de afeto. Por meio desta prática de remeter livros dedicados os escritores mantinham diálogos instaurados pelo momento de envio da obra e traziam para discussão os aspectos que se destacavam em seus instantes de atuação. Um bom exemplo desta prática de envio de dedicatórias entre escritores pode ser visto nos textos dedicados dispostos logo abaixo, permitindo-se conhecer pelo menos três temas caros a João Antônio e que figuraram neste contexto paratextual: a profissionalização do escritor; sua maior filiação literária - Lima Barreto -, e a temática utilizada por ele em boa parte de seus textos ficcionais, isto é, a camada marginalizada da sociedade brasileira. Quanto ao tema profissionalização do escritor, João Antônio foi visto entre seus pares como um homem preocupado e engajado com questões voltadas ao trabalho do intelectual. Suas atitudes o impulsionaram a trazer para discussão o tema ―profissionalização do ofício de escrever‖, portanto, a de haver remuneração justa e com ela requerer benefícios que uma profissão legalizada pressupõe. Esse caráter social que acompanhou João Antônio durante boa parte de sua trajetória é verificado em algumas dedicatórias autógrafas que lhe foram remetidas, tais como as que se apresentam a seguir: "A João Antônio, que é um puro mas que topa brigas, com amizade, Clarice / Rio 31 maio 1977" (LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 2 ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves; Edição Popular, 1963.) 112 "A João Antônio, companheiro de guerrilha literária, o abraço e a amizade do Roberto Drummond. (DRUMMOND, Roberto. Hitller manda lembranças: romance. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.) "Ao querido João Antônio, visionário e esperneador, que tanto tem colaborado na luta de todos nós, com o abraço e a amizade do Elias José / Guaxupé, 5/8/77" (JOSÉ, Elias. Um pássaro em pânico. São Paulo: Ática, 1977.) "Para João Antônio, que também vem pregando seu evangelho - um pouco da luta de Osman e o meu abraço. / Julieta (esposa de Lins) / outubro '79” (LINS, Osman. Evangelho na Taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1979.) O que se percebe é que Clarice Lispector, Roberto Drummond, José Elias e Julieta Ladeira de Godoy, só para citar alguns, pareciam manter o mesmo ideal de João Antônio e as dedicatórias registram estas circunstâncias, além de demonstrarem a afinidade mútua entre escritores. São pareceres e visões de intelectuais, apresentados e discutidos nas décadas de 1970 e 1980, data de remessa dos livros dedicados. Assim, o intenso diálogo que estabeleceram por meio das dedicatórias não pairava apenas sobre o fato literário, mas principalmente pelo caráter extra-literário engendrado por João Antônio e por demais autores. No contexto sócio-cultural, diante da ditadura que o país enfrentava, assuntos polêmicos como este, questionando o sistema vivido pelos escritores, eram veiculados em esfera privada e por isso denotavam maior liberdade de expressão. Para Foucault ―sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.‖ (FOUCAULT, 2012, p. 9) Todavia, a liberdade de escrita e de opinião presenciadas nos textos das dedicatórias fazem com que não exista uma ordem autoritária que se instaure neste momento dialógico entre os escritores. Ali, eram homens e mulheres, escritores da sociedade brasileira, com pensamentos e opiniões livres. Com relação ao segundo tema frequentemente declinado por João Antônio, seu outro par - Lima Barreto -, as dedicatórias desvendam o gosto do escritor João Antônio por esta filiação literária. Com a alusão a Lima, João Antônio pregava sua admiração pelo escritor e este fato se verifica em alguns textos das dedicatórias. Simpatia conhecida e relembrada por seus outros pares: 113 "Para mestre João Antônio, que leva adiante a grandeza de Lima Barreto, seu leitor e amigo Jorge Amado / Brasília 1983 nov." (AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela (crônica de uma cidade do interior): romance. São Paulo: Martins, 1963.) "Ao João Antônio, entusiasta do Lima e do Lobato, esta conferência cheia de amor a ambos. / Cassiano / 23/8/79" (NUNES, Cassiano. O sonho brasileiro de Lobato. Brasília: S/ed., 1979.) "João Antônio, Espero que te agrade esse estudo - inevitavelmente apaixonado - pelo nosso Lima Barreto. / Abraços / Beatriz" (RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: UFRJ; Unicamp, 1993.) No caso de Jorge Amado e de Beatriz Resende os laços afetivos são verificados nas cartas trocadas entre eles e João Antônio, além do tom dos textos paratextuais aqui apresentados. Entretanto, com Cassiano Nunes a aproximação foi mais intensa, haja vista o número significativo de correspondências e de muitos livros com dedicatórias autógrafas1. Referindo-se à terceira temática, que abarca o conjunto de sua obra, João Antônio problematizou o assunto ―marginalizados sociais‖ ou os seus ―pingentes urbanos‖, suscitando em seus dedicadores-leitores a recorrência a ela, ou seja, a de iniciar um diálogo ou de continuá-lo reportando-se ao assunto ―desvalidos‖, o que se observa nos textos dedicados transcritos abaixo: "Para o João Antônio, que trouxe o povo para a literatura atual, estes latidos do Moacyr Scliar." (SCLIAR, Moacyr. Mês de cães danados. Porto Alegre: L&PM, 1977.) "Para João Antônio, admirável retratista do sub-mundo, dos marginalizados - com a viva admiração do autor / Brasigóis Felicio / Go 13/3/76" (FELÍCIO, Brasigóis. Monólogos da angústia: contos. Goiânia: Oriente, 1975.) "Para João Antônio, que já me encantou com tantos malandros e outros tipos, retribuo agora humildemente e com a velha amizade. / Zé Armando / 6-5-91" (SILVA, José Armando Pereira da. O teatro em Santo André - 1944-1978. Santo André: Public, 1991.) 114 Como último exemplo, destaca-se a prática clássica e mais usual da dedicatória que é a de homenagear o dedicatário enviando-lhe a obra do dedicador, demonstrando, igualmente, sua admiração pelo trabalho com a literatura. Seus outros pares como Manoel de Barros, Caio Porfírio Carneiro, Hilda Hilst e Assis Brasil são alguns exemplos que figuram em sua coleção de obras dedicadas e que se reportam à homenagem sincera e amiga: "Para João Antônio / homenagem ao escritor e um abraço / Manoel de Barros / em 27-4-84" (BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.) "Ao João Antônio, a velha amizade, a homenagem e o abraço grande do Caio Porfírio S.P., 2/1/1970" (CARNEIRO, Caio Porfírio. Os meninos e o agreste: contos. São Paulo: Quatro Artes, 1969.) "Ao João Antônio, estas estórias do cotidiano, ofereço com a homenagem e amizade do seu admirador maior / Henrique / 11 - fev. - 1976." (ALVES, Henrique L. Círculo negro: contos. São Paulo: H, 1975.) "Para João Antônio, do velho admirador / Assis Brasil" (BRASIL, Assis. Teoria e prática da Crítica Literária. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.) "A João Antônio o abraço, a admiração de H. Hilst / 1977". (HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.) "Para João Antônio, amigo - em - Joel Silveira, com a admiração do João Cabral de Melo Neto / 1985" (MELO NETO, João Cabral de. Auto do frade: poema para vozes. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.) "Primavera, 1984 Para o querido João Antônio, o carinho e a admiração sempre, da Lygia". (TELLES, Lygia Fagundes. Os melhores contos. (Seleção de Eduardo Portella). 2 ed. São Paulo: Global, 1984.) Percorrendo este universo discursivo disposto pelas dedicatórias autógrafas registram-se diversas maneiras de dialogismo, seja em textos sucintos, remetendo-se à fórmula clássica, ―De fulano para beltrano‖ ou que se arrolam de maneira mais ampla, discutindo instâncias culturais ou sociais, visto que a realidade vivida projetava-lhes a necessidade de se discutir sobre os acontecimentos da hora. 115 Logo, escolher o repertório de estudos ressoou como propósito de se mapear a rede de sociabilidade à qual o escritor João Antônio fez parte, permitindo-se visualizar sua trajetória intelectual e dos demais pares. Além disso, conhece-se as aspirações dos autores e seus objetivos literários e extra-literários, os quais resultam no conhecimento de projetos estéticos que tinham como principal objetivo a divulgação entre a comunidade de escritores-leitores e respectiva crítica, eventualmente a ser realizada pelo dedicatário. Quando uma dedicatória autógrafa articula-se ao texto ficcional, tem-se a possibilidade de se entender os recursos utilizados pelo dedicador (remetente da dedicatória) que não se dissociam do texto ficcional, haja vista o teor veiculado e as instâncias de circulação entre uma comunidade privada e que ao se fazerem lidas ganham dimensões públicas. Este jogo social que passa a ser público e não mais privado mapeia circunstâncias de produção extra-literária e se estreitam à criação ficcional e com sua consequente publicação. Desta forma, por meio dos textos das dedicatórias há a possibilidade de se conhecer as relações vivenciadas por escritores contemporâneos a João Antônio, desvendando o quanto esta teia de relações culturais atua como modos de se compor a memória da comunidade de autores-leitores. Um inventário se constitui com o intuito de arrolar as situações comuns a escritores brasileiros e estrangeiros, permeados pelos fatos sociais, culturais, políticos e econômicos que igualmente serviram como pano de fundo para suas elaborações ficcionais ou jornalísticas. Por fim, as dedicatórias viabilizam não somente a configuração da memória de determinado grupo de escritores, como também constituem a memória da cultura literária de uma nação. Referências ALVES, Henrique L. Círculo negro: contos. São Paulo: H, 1975. AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela (crônica de uma cidade do interior): romance. São Paulo: Martins, 1963. ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. ______________. Leão-de-Chácara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. ______________. Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. ______________. Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. ______________. Dama do Encantado. São Paulo: Nova Alexandria, 1996. BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. BRASIL, Assis. Teoria e prática da Crítica Literária. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. CARNEIRO, Caio Porfírio. Os meninos e o agreste: contos. São Paulo: Quatro Artes, 1969. DRUMMOND, Roberto. Hitller manda lembranças: romance. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 116 FELÍCIO, Brasigóis. Monólogos da angústia: contos. Goiânia: Oriente, 1975. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 22 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977. JOSÉ, Elias. Um pássaro em pânico. São Paulo: Ática, 1977. LINS, Osman. Evangelho na Taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1979. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 2 ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves; Edição Popular, 1963. MELO NETO, João Cabral de. Auto do frade: poema para vozes. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. NUNES, Cassiano. O sonho brasileiro de Lobato. Brasília: S/ed., 1979. RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: UFRJ; Unicamp, 1993. SCLIAR, Moacyr. Mês de cães danados. Porto Alegre: L&PM, 1977. SILVA, José Armando Pereira da. O teatro em Santo André - 1944-1978. Santo André: Public, 1991. TELLES, Lyg ia Fagundes. Os melhores contos. (Seleção de Eduardo Portella). 2 ed. São Paulo: Global, 1984. 117 O GÊNERO CONTOS DE FADAS: UMA PROPOSTA DE LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDO Profª M.sc. Rita de Cássia Almeida Silva1 Resumo: Este artigo apresenta o resultado de um trabalho realizado com o gênero textual contos de fadas e algumas de suas revisitações, com dois grupos de professores em formação. Foi elaborada uma oficina onde cada grupo pudesse repensar as formas de se trabalhar com este gênero em sala de aula, desde a educação infantil até o ensino médio, numa perspectiva de produção de sentido que levasse em consideração a revisitação dos temas presentes nos contos. Para que pudessem sentir o resultado desta proposta, colocouse em prática com eles o que se esperava que fosse realizado nas escolas: ler, (re)pensar, (re)escrever. A cada leitura, os participantes eram convidados a expor seus sentimentos e as lembranças evocadas pelas histórias, observando os pontos convergentes com a realidade, numa construção de sentidos através do confronto entre o lido e seus conhecimentos subjetivos. Veremos como a leitura dos textos originais e suas versões foram compreendidas por estes leitores e a forma como, a partir da produção de um novo texto, o conhecimento de mundo de cada um se refletiu no ato de recontar/recriar novas histórias. Palavras-chave: Contos de Fadas; Leitura; Recriação. Abstract: This paper presents the results of a study conducted with the genre of fairytales and some of his revisitations, with two groups of teachers in training. We created a workshop where each group could rethink ways of working with this genre in the classroom, from kindergarten through high school, with a view to production of meaning that takes into account the revisiting of the themes present in the stories. So they could feel the result of this proposal, put into practice with them what you expect it to be done in schools: reading, (re) thinking, (re) writing. With each reading, participants were invited to expose their feelings and memories evoked by the stories, watching the points converging with reality, a construction of meaning through the confrontation between the read and their knowledge subjective. We'll see how the reading of original texts and their versions were understood by those readers and how, from the production of a new text, world knowledge of each is reflected in the act of retelling / re-create new stories. Keywords: Fairytales, Reading; Recreation. 1. Introdução O gênero conto de fadas dificilmente é explorado em nossas escolas enquanto texto escrito. Geralmente os professores utilizam-se de filmes para entreter os alunos do primeiro segmento, perdendo a oportunidade de trabalhar com o esse gênero de forma mais ampla e que possa, realmente, trazer para o universo do leitor este ato tão individual e subjetivo e, ao mesmo tempo universal, porque é parte do que é ser humano: o contar e recontar histórias, na tentativa de explicar o mundo que nos cerca e o nosso mundo interior, e a oportunidade de observar que muito do que imaginamos já foi pensado ou 118 escrito por outros, dentro do imaginário comum que pertence a todos os povos e que inspirou grandes obras que hoje fazem parte do legado cultural da humanidade. A partir dessas premissas, elaborou-se uma oficina onde os participantes pudessem repensar as formas de se trabalhar com este gênero em sala de aula, desde a educação infantil até o ensino médio, numa perspectiva de produção de sentido que levasse em consideração a revisitação dos temas presentes nos contos. Como se tratava de uma formação para professores, da qual participaram pessoas que ainda estavam na universidade, a maioria dos cursos de Letras e Pedagogia, e profissionais que já trabalhavam tanto nos primeiros anos da educação básica quanto no ensino médio, optou-se por desenvolver um trabalho que enfocasse: 1) o gênero textual contos de fadas e algumas de suas revisitações, estudando como se dá a construção destes, graças à criatividade humana e sua necessidade de explicar o mundo a sua volta; 2) as contribuições da psicanálise em relação aos estudos sobre os contos de fadas; e 3) a leitura e a produção de textos, numa perspectiva de produção de sentido, partindo dos temas existentes nos contos de fadas. 2. A escolha dos textos O trabalho teve início com a audição do prólogo de A Bela e a Fera (Disney, 2011), para que os participantes pudessem mergulhar nesse mundo das narrativas orais antes de qualquer outro trabalho. Em seguida, foi apresentado um trecho do filme Crepúsculo (Summil Entertainemet, 2008), e, a partir destes dois textos, em formatos diferentes, um áudio e um vídeo, iniciamos a análise dos pontos em comum entre as duas histórias. Mesmo sem ser o texto principal trabalhado na oficina, o tema de A Bela e a Fera não poderia deixar de ser mencionado, pelo sucesso que a versão vampiresca atinge entre adolescentes e até mesmo crianças. Apesar do apelo comercial do filme crepúsculo, este tem a base de um conto de fadas no sentido tradicional, ou seja, sombrio e com lições nem sempre fáceis de compreender, devido a certo grau de simbolismo presente na obra. Há momentos em que claramente percebemos conotações sexuais, e o surrealismo implantado na obra não é um surrealismo carente de significados, e sim um complemento à narrativa, que atraí e fascina o espectador, principalmente os jovens, e podem se tornar tema para um bom trabalho relativo à produção de sentidos. 119 Para entender as diferentes formas de apresentação dos contos, desde o início de suas compilações, foi apresentado de forma sucinta o ambiente histórico e social e as influências estéticas dos séculos XVII, XVII e primeira metade do século XIX, momento em que Perrault (1628-1703) e os Grimm (1785 – 1863) realizaram seus estudos e compilações. Com o propósito de adentrar de forma ampla no universo dos temas abordados pelos contos de fadas, a história de A Bela Adormecida no Bosque, na versão dos irmãos Grimm (1989), e na versão de Charles Perraut (2012), também foi trazida para discussão, observando-se as diferenças presentes em cada versão. Como as duas versões se mostrassem bem diferentes, foi o momento propício para se contrastar os dois textos com a versão apresentada por Bruno Bettelheim (2002), que traz um contexto mais adulto, cercado de sensualidade e situações onde a moral e o respeito ao outro não são observados (na versão camponesa, não foi um príncipe, e sim um rei, que encontrou a Bela Adormecida e manteve relações com ela, mesmo sem que ela acordasse, o que só veio a acontecer depois que, passados nove meses de seu encontro com o rei, ela dá à luz dois filhos, que a acordam quando conseguem alcançar seus seios e começam a se amamentar). Dentro dessa temática, foi apresentado aos participantes o filme E Se Fosse Verdade (Dreamwors, 2005), para que analisassem os pontos em comum entre as histórias. A versão de Walt Disney também foi comentada, mas o que mais chamou a atenção foi a versão apresentada por Bettelheim (2002), o que abriu margens para a discussão em relação ao significado dos contos de fadas na construção de sentido dos aspectos subconscientes da vida de uma criança, através de uma mensagem contida que lhe ofereça um significado, além de entretê-la e despertar sua curiosidade. As histórias, principalmente os contos de fadas, falam sobre medos ancestrais, dúvidas inconscientes, de forma lúdica, simbólica, o que permite ao leitor/ouvinte a possibilidade de colocar ordem os sentimentos e seu mundo interior. Para complementar este quadro, a história de Chapeuzinho vermelho também foi citada, explorando as questões principais ali representadas: a sensualidade e os possíveis perigos que dela podem decorrer, a (des) obediência, a curiosidade desmedida e as punições. O que se observou na comparação das diferentes versões é que, à medida que as histórias são contadas e recontadas, elas também são recriadas, adequando-se ao público e as questões sociais de um determinado momento histórico, e mesmo assim, ao preservarem os traços principais do tema original, ainda possuem a força dos significados primordiais, atingindo dessa forma tanto os adultos quanto as crianças, transmitindo mensagens que se 120 encontram com nosso ego, seja ele o do adulto ou o da criança em formação, encorajando o desenvolvimento, quebrando tensões e pressões, conscientes ou não, e e dessa forma que contribuem para a produção de sentido, criando um vínculo entre o texto e o leitor, a partir do momento em que este passa a interferir, com suas experiências e visões de mundo, para chegar a compreensão do texto lido. Os contos de fadas tratam de forma lúdica, no nível psicológico e emocional, de situações que podem estar presentes no cotidiano de nossas vidas, oferecendo soluções temporárias e permanentes para as dificuldades sentidas. Ao apresentar barreiras que parecem intransponíveis, mas que são vencidas ou contornadas como, por exemplo: a morte, velhice, separação, sofrimento, problemas angustiantes que fazem parte do mundo real, no âmbito do imaginário, onde soluções mágicas são possíveis, gerando um equilíbrio entre o bem e o mal, produz efeitos benéficos que podem apaziguar os dilemas humanos e reforçar a necessidade de buscar soluções para nossos conflitos individuais. O último conto analisado foi o de Cinderela. Os participantes receberam dois textos, um com a versão de Perrault: Cinderela ou Sapatinho de Cristal (2012) e outro com a versão dos Grimm: A Gata Borralheira (1989). Comparando os dois textos, à luz do que se havia discutido até o momento, observou-se que os Irmãos Grimm reaproveitaram as fontes populares na versão da Gata Borralheira, demonstrando uma forma diferente da de Perrault, mas sem deixar de ser igualmente bela e poética. Traçando um paralelo entre as duas versões, citamos primeiro a versão de Perrault, onde se observa que: 1) o maravilhoso se mostra fiel às raízes do povo; 2) utiliza recursos da fada em relação ao casamento com o príncipe; 3) a submissão feminina, que serve de pretexto para a união da burguesia com a nobreza, demonstra um comportamento mais natural, não idealizado, chegando até a desconfiar das virtudes femininas, destacando os bons e maus procedimentos com intuito pedagógico e moralizante. Já na narrativa dos Irmãos Grimm, temos: 1) o maravilhoso está mais próximo do sentimento religioso; 2) por pertencer a um período posterior, a presença do romantismo se mostra mais amadurecido; 3) quanto ao casamento com o príncipe, serve-se de um pássaro encantado, logo após, ao longo da narrativa, apresenta duas pombas brancas, fazendo uma evidente referencia á religião. Com o intuito da oficina era realizar a leitura dos textos demonstrando as possibilidades de recriação voltadas para a produção de sentido, apresentou-se também as versões de Walt Disney, Cinderela edição especial clássicos, Cinderela 3 uma volta no 121 tempo, Para Sempre Cinderela (Twentieth Century Fox, 2011) e Encontro de Amor ( Revolution Studios, 2007). A cada leitura, os participantes eram convidados a expor seus sentimentos e as lembranças evocadas pelas histórias, observando os pontos convergentes com a realidade, numa construção de sentidos através do confronto entre o lido e seus conhecimentos subjetivos. Para Possenti (2009), atualmente as teorias que procuravam explicar a leitura levando em conta apenas a figura do autor e/ou o próprio texto estão sendo revistas, devido a um consenso em relação à participação do leitor na construção de sentidos de um texto Não pensamos mais na existência de um leitor passivo, o que transforma o ato de ler em uma atividade complexa, o que, ato reflexo, pode colaborar também do ato de escrever. 3. Recriação dos contos de fadas O segundo momento da oficina foi dedicado a produção de textos pelos participantes. Por uma questão de adequação do tempo, eles formaram grupos para criar as histórias, e a orientação dada foi para que eles usassem os temas presentes na história de Cinderela, da forma como eles julgassem adequado para (re)significá-los, dentro de um contexto atual. Depois de produzirem suas histórias, cada grupo fez a leitura para os demais participantes. O texto do primeiro grupo recebeu o título de Cenderela: Em um país muito distante, na América do sul, vivia uma pequena família que era muito feliz, até que em um horrível dia a mãe da pequena Cenderela ficou doente e morreu. Passado algum tempo o pai tenta refazer a vida encontrando uma nova esposa, que traz consigo duas filhas que, assim como a mãe, são muito más. A partir dái a vida de Cenderela virá um inferno[...].(MORAES, SILVA, CORRÊA, 2012) Até aqui o texto corre à sombra do texto original. A família nuclear, a perda da mãe por uma situação inesperada, o casamento do pai com outra mulher (a madrasta má) que já possuí duas filhas, igualmente más, e a desestabilização da harmonia inicial. Traz, ainda, um dos traços do conto de fadas, que é a questão de um tempo e um local indeterminados em que ocorrem os fatos, mas na segunda parte, a narrativa passa a apresentar elementos que vão contextualizá-la, dando início ao processo de produção de sentido: Sua madrasta, na ausência do pai que trabalhava incansavelmente na organização da copa de 2014 que será em seu país, começou a escravizar sua enteada, tirando seu cartão de crédito, deixando-a sem internet e fazendo-a frequentar a escola pública. Suas irmãs também a exploravam, 122 obrigando-a a fazer seus trabalhos escolares, pois apesar de Cenderela ser muito bonita, ela possuía um Q.I. altíssimo.(IDEM) Observa-se aqui a questão da valorização que o jovem dá às questões de consumo e do acesso as redes sociais. Também a presença de ideias pré-concebidas em relação a escola pública e o binômio beleza X inteligência. A inserção do trabalho exercido pelo pai de Cenderela também é uma marca importante, ao representar um fato real que está chamando a atenção de todos os brasileiros que gostam de futebol. A recriação continua, obedecendo os núcleos semânticos do conto original, que podem ser identificados facilmente: Cenderela teve que se acostumar com sua vida de pobretona e aceitar tudo que sua madrasta e sua irmãs lhe impunham. Um belo dia, Cenderela passeava pelo Ver-o-Peso e ouviu anunciarem que a balda Rebeldes faria um show na cidade Folia, e ficou doida para ir, porém ela estava sem dinheiro para comprar seu ingresso e tão pouco sua roupa. Foi embora para seu apê, triste. (IBDEM). Neste trecho observa-se a bondade e o conformismo de Cinderela/Cenderela, o ―baile‖ e a falta de condições de Cenderela em conseguir roupas adequadas para participar da festa. Chega o grande dia do show e as irmãs de Cenderela se aprontam e, antes de saírem, debocham de Cenderela. De tão desesperada, Cenderela sai correndo de seu apê e acaba parando em frente a um comitê, onde um candidato estava dando dinheiro para quem votasse nele. Cenderela não pensou duas vezes, vendeu seu voto e ao receber o dinheiro do candidato partiu imediatamente para o Shopping, para se produzir e comprar seu ingresso.(IDEM, IBDEM). Aqui o elemento mágico é a corrupção. Infelizmente, uma realidade em nossa sociedade atual, e que aqui se transforma em solução imediata para o problema de Cenderela. Cenderela chegou no meio do show da banda, e justamente quando ela entrou o menino mais bonito a viu e se interessou por ela e a convidou para dançar. Os dois dançaram agarradinhos, mas Cenderela precisava partir, pois tinha que chegar em casa antes das irmãs. Fugiu antes de terminar a dança e, enquanto corria, deixou cair sua melissa. No dia seguinte o menino lindo saiu a procura da dona da melissa, procurou por toda parte, chegou até a colocar anúncio no jornal e na tv. As duas irmãs de Cenderela viram os anúncios e ligaram para o menino, dizendo que a melissa pertencia a elas. O menino lindo partiu para o apê delas, mas a melissa não serviu no pé de nenhuma das duas. Ele então viu Cenderela lavando louça e a chamou para experimentar a melissa, que coube 123 perfeitamente em seu pé. E os dois saíram juntos em seu Citroen Tecnologi branco, e viveram felizes. .(IDEM, IBDEM). A fuga do ―baile‖, a perda do ―sapatinho‖, o príncipe que busca a sua ―princesa‖ até encontra-la, e a partida em seu ―cavalo branco‖ para viverem felizes, retornando a história ao equilíbrio inicial, apesar de modificado. Este texto, escolhido entre os que foram produzidos durante a oficina, demonstra o alcance do trabalho realizado, não só pela leitura dos contos, mas também pela contextualização e pela análise dos elementos presentes na narrativa original. Fatos como a importância dada as roupas, principalmente na versão dos Grimm (de 1812), a valorização dos bens materiais e as aparências e são reeleborados, ganhando cores atuais e concedendo verossimilhança a trama, sem deixar de lado a sequência estrutural característica do gênero contos de fadas. 4. Considerações finais Durante a oficina foram produzidos sete textos diferentes, e em cada um as características e o tema principal da história: uma jovem sofrendo perseguição e privações por parte de pessoas da família se sobressaem, mas em cada recriação se observa a presença de um problema social diverso: No primeiro texto aqui apresentado, a corrupção estava presente. A morte da mãe de Cinderela por escalpelamento em um acidente de barco aparece em um outro texto, a jovem que vem do interior pensando em estudar e melhorar de vida e acaba sendo explorada na casa em que passa a morar, são alguns exemplos de situações que apareceram nas recriações, e que demonstram como cada um se apropriou do texto, e colocou em sua histórias elementos que , mesmo considerando os núcleos semânticos da história original, apontam para a produção de sentido, recontextualizando e ressignificando o tema de acordo com o momento histórico social em que está sendo produzido. E aqui, mais do que nunca, vale a antiga máxima: ―Quem conta um conto, aumenta um ponto.‖. REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil – Gostosuras e Bobices.3ª ed. SCIPIONE, 1993. BELINKY. Tatiana. (TRAD.) Os Contos de Grimm. São Paulo. Paulus, 1989. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise Dos Contos De Fadas. 16ª Ed. PAZ E TERRA. 2002. 335 p. 124 CADEMARTORI. Lígia. O que é Literatura Infantil.5ª Brasiliense, 1991. POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. Texto produzido em sala: MORAES, Janilson Pinheiro; SILVA, Nayara Machado; CORRÊA, Jackeline Rodrigues. Cenderela. 2012. 125 VIVÊNCIAS ETNOGRÁFICAS E PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS EM BRUNO DE MENEZES Rodrigo de Souza Wanzeler1 Resumo: Bento Bruno de Menezes Costa ou, literariamente, Bruno de Menezes, notável homem de letras da Amazônia, possui enorme relevância social e acadêmica no que tange ao conjunto de sua obra. Os estudos sobre o literato são vários e trazem discussões diversas acerca de sua poética, seu engajamento político e sua vivência como folclorista. A obra de Bruno de Menezes possui uma densidade e riqueza quase inesgotáveis que para serem captadas, traduzidas e expressadas precisam ter um caráter interdisciplinar, pois a sua literatura se imbrica com diversas áreas do conhecimento, tais como: antropologia, história, sociologia, estudos culturais e pós-coloniais. A proposta deste trabalho está relacionada à possível existência de um Bruno de Menezes antropólogo, pois a perspectiva de estudo desta pesquisa se concentra na trajetória do homem Bruno de Menezes enquanto um múltiplo ser social, que através de suas experiências-vivências, como cidadão e pesquisador empírico, soube traduzir em seus escritos olhares diversos acerca cultura de uma certa Amazônia situada no espaço e no tempo. Este situar-se no espaço e no tempo não é feito de modo aleatório, mas sim segue uma certa lógica que, embora não tenha sido observada no conjunto de estudos empreendidos até então, indicam a trajetória etnográfica de Bruno de Menezes. O conjunto de vivências, que perpassam um olhar cuidadoso, um ouvir atento e um escrever sobre e dentro da realidade, evidenciam e permitem desvelar outro Bruno de Menezes, que não é apenas literato ou folclorista, mas, possivelmente, também antropólogo. 126 Palavras-Chave: Literatura Comparada; Bruno de Menezes; Antropologia. Abstract: Bento Bruno de Menezes Costa or, literarily, Bruno de Menezes, great man of letters of the Amazon, has enormous social and academic relevance in relation to the whole of his work. Studies of the writer are several different discussions and bring about his poetics, his political engagement and his experience as a folklorist. The work of Bruno de Menezes has an almost inexhaustible richness and density that to be captured, translated and expressed need to have an interdisciplinary character, as its literature is enmeshed with various knowledge areas, such as anthropology, history, sociology, cultural studies and post-colonial studies. The purpose of this work is related to the possible existence of an anthropologist Bruno de Menezes because the perspective of this research focuses on the history of man Bruno de Menezes as a multiple social being, that through their experiences, as a citizen and researcher empirical knew translate his writings looks different about a certain culture of Amazon located in space and time. This to be in a space and time is not made at random, but rather follows a certain logic to that, although it was not observed in all studies undertaken so far indicate the trajectory of ethnographic Bruno de Menezes. The set of experiences that underlie a careful look, a listening ear, and a discussion about and within the reality show and allow another unveiling of Bruno Menezes, who is not just literary or folklore, but possibly also an anthropologist. Key-words: Comparative Literature; Bruno de Menezes; Anthropology. 1- Primeiras palavras 127 Bento Bruno de Menezes Costa, ou literariamente, Bruno de Menezes, notável homem de letras da Amazônia, possui enorme relevância social e acadêmica no que tange ao conjunto de sua obra. Os estudos sobre o literato são vários e trazem discussões diversas acerca de sua poética, seu engajamento político e sua vivência como folclorista. A obra de Bruno de Menezes possui uma densidade e riqueza quase inesgotáveis que para serem captadas, traduzidas e expressadas precisam ter um caráter interdisciplinar, pois a sua literatura imbrica-se com diversas áreas do conhecimento, tais como: antropologia, história, sociologia, estudos culturais e pós-coloniais. Esta constatação foi gradativa e teve início no Trabalho de Conclusão de Curso 1 com a análise do livro de poemas Batuque, obra ímpar na literatura brasileira, destacando o fato de como o negro é visto, ou melhor, revisto nesta obra, em que a cultura negra ganha evidência. No mestrado empreendeu-se uma análise literária, cultural e identitária acerca do romance Candunga, em que emergiu a relação tempestuosa existente entre nordestinos migrantes e caboclos diante dos desmandos dos senhores de terra durante a colonização da Estrada de Ferro de Bragança. Nestas duas obras analisadas foi possível constatar que a literatura de Bruno de Menezes traduz uma realidade social na medida em que vivenciou, ouviu e escreveu sobre tal realidade. É exatamente esse conjunto de vivências, que perpassam o olhar cuidadoso, o ouvir atento e o escrever sobre e dentro desta realidade, que evidenciam e permitem desvelar outro Bruno de Menezes, que não é apenas literato ou folclorista, mas também um antropólogo. Francisco Paulo Mendes ao considerar ―o Bruno estudioso e dedicado pesquisador das coisas nossas‖, indiretamente através do termo ―pesquisador‖, ressalta a condição de Bruno como alguém que pesquisa e que para pesquisar deve vivenciar, ouvir com atenção e escrever sobre o objeto pesquisado. No prefácio de um dos volumes das obras completas de Bruno de Menezes, intitulado Bruno de Menezes, era o folclore, Vicente Salles faz uma observação que é deveras interessante para o propósito deste ensaio. Minha memória é toda Bruno de Menezes portador de folclore. Quando adolescente, morei na rua Santarém, na Cidade Velha. Era tempo difícil, 13 anos, menino chegado do interior. Duas pessoas então marcaram minha entrada na vida de adulto, precocemente iniciada na necessidade de trabalhar: o sapateiro Dagoberto Lima, ―seu‖ Lima, que me levou à utopia socialista, emprestando-me livros e jornais comunistas que lia avidamente, de um lado; o poeta Bruno de Menezes, nosso quase vizinho, que me levou aos subúrbios a ver batuques, pássaros e bumbás, doutro lado. Os dois tinham muito em comum, a sapateiro e o poeta, mas agiam de modo diferente: o sapateiro me intelectualizava; o poeta 128 me ensinava o ofício de observador da vida popular (Grifo meu). (1993, p.15). A presente proposta está relacionada à possível existência de um Bruno de Menezes antropólogo se diferencia do conjunto de estudos realizados sobre este autor, principalmente nos campos da literatura e da história, pois enquanto os estudos literários debruçam-se sobre a estrutura narrativa, e os trabalhos de caráter histórico prezam por um enfoque da militância política de Bruno, a perspectiva de estudo deste ensaio se concentrará, de forma breve, na trajetória do homem Bruno de Menezes enquanto um múltiplo ser social, que através de suas experiências-vivências, como cidadão e pesquisador empírico, soube traduzir em seus escritos olhares diversos acerca cultura de uma certa Amazônia situada no espaço e no tempo. Este situar-se no espaço e no tempo não é feito de modo aleatório, mas sim segue uma certa lógica que, embora não tenha sido observada no conjunto de estudos empreendidos até então, indicam a trajetória etnográfica de Bruno de Menezes. 2- O homem Bruno O aspecto empírico é o norte para o presente trabalho, pois, pensa-se que as vivências-experiências cotidianas são o esteio para uma possível caracterização de Bruno de Menezes enquanto antropólogo. No que tange a tal vivência, ressalta-se, primeiramente, o ano 1893, nascimento de Bruno, período em que Belém passava por uma grande efervescência de sua literatura, que culminou com a criação da Mina Literária, em 1894, ancorada por Natividade Lima. A Mina Literária foi a mola propulsora da literatura em fins do século XIX em Belém, após um período letárgico de nossas letras. A proposta da Mina fora retomada e ampliada apenas em 1923, com a criação da revista Belém Nova, da qual se tornará a falar mais adiante. Bruno de Menezes era de origem pobre, nascido e criado no bairro do JurunasBelém-Pará, em meio a embarcações e batuques, imagem das contradições de uma cidade rica para poucos e miserável para muitos. O primeiro trabalho foi como aprendiz de gráfico ainda muito jovem, período marcado por horas de trabalho a fio, pelo descaso, castigos e humilhações, fatos que tornaram Bruno um crítico ferrenho do sistema capitalista, o que mais tarde o ligaria ao anarquismo. 129 Bruno era filho de ―Seu‖ Dionísio, pedreiro, e Maria Balbina, dona de casa. Sua obra está situada em um intervalo de 40 anos, de 1920 a 1960, e neste período o Brasil e, mais especificamente, uma certa Amazônia, vivenciaram mudanças diversas, as quais não passaram impunes aos olhos do escritor. No início da década de 1920, Belém possuía rescaldos de sua bela época, a qual proporcionou um desenvolvimento socioeconômico e intelectual ímpar para a região. A cidade tinha se tornado um dos grandes centros escoadores da produção de látex para o resto do mundo, mas também se tornou importadora de modelos culturais europeus, principalmente o francês. As riquezas geradas pela produção da borracha proporcionaram um dos períodos mais intensos, cultural, econômica, social e urbanisticamente da história de uma das principais capitais amazônicas: a Belle Époque. Bruno de Menezes vivenciou a transformação socioeconômica de Belém e isso marcou profundamente suas letras. Sua obra poética, primeiramente, fora fortemente influenciada pela estética simbolista, ―a música antes de todas as coisas‖ 1, no início da década de 1920, e que daria o tom em grande parte de sua obra literária, não é à toa que Bruno é chamado de ―Poeta da Lua‖1. No entanto, aos poucos, devido às influências da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, no ano de 1922, a veia modernista pulsou mais forte. Para o professor Francisco Paulo Mendes1, Bruno de Menezes foi o grande arauto do estilo modernista na região amazônica, destacando um de seus primeiros versos, no poema Arte Nova, ainda no ano de 1920, antes da Semana de 22, no qual o poeta diz: ―Eu quero uma arte original‖. De acordo com dados fornecidos pela família do escritor, há um depoimento do historiador do Modernismo nas regiões Norte e Nordeste, Joaquim Inojosa, que confirma Belém do Pará como a terceira capital do país a aderir ao movimento modernista no Brasil, por isto a relevante alcunha de introdutor do Modernismo na Amazônia1 a Bruno de Menezes. Em 1923 o escritor fundou a revista Belém Nova, mola propulsora e propagadora das novidades estéticas advindas do sudeste brasileiro no estado do Pará. O espírito renovador de Bruno de Menezes o levou a criar grupos onde se discutia a fundo o tema das artes, principalmente a literatura. Primeiramente surgiram os Vândalos do Apocalipse e mais tarde a Academia do Peixe Frito, uma verdadeira crítica às Academias oficiais, institucionalizadas. Da Academia proposta por Bruno fizeram parte literatos como Jacques Flores e Dalcídio Jurandir. Bruno foi um lutador incansável, homem ligado diretamente às cooperativas relacionadas à terra, preocupado com as desigualdades sociais existentes, uma mente com 130 fervor revolucionário que visibilizou negros, prostitutas e flagelados, denunciando as iniquidades por meio de seus escritos, quebrando o paradigma de se falar pela classe menos favorecida, pois em Bruno a margem tem voz, história e importância. Observe-se o aspecto social em Bruno para o professor Paulo Mendes: Consideramos, hoje, em relação à poesia de sua época, do Modernismo paraense, que a contribuição de Bruno de Menezes foi verdadeiramente revolucionária e criadora. Acrescente-se, também, haver inaugurado ele, com Maria Dagmar e Candunga, a novela e o romance realistas, engajados em uma preocupação social e na constatação das injustiças sofridas duramente pelas classes não privilegiadas, obra de ficção que encontraria, mais tarde, entre nós, em Dalcídio Jurandir, um brilhante e talentoso continuador. 1 Seu espírito de puxirum1 e seu fervor pelo cooperativismo fizeram Bruno se tornar Diretor do Departamento do Estado do Pará de Cooperativismo, cargo pelo qual se aposentou em 1955. De acordo com dados da família, sua paixão pelas cooperativas despontara quando Bruno fora servidor público estadual na Secretaria da Agricultura. Tal fato aumentou sua ânsia por igualdade na luta pela reforma agrária. Observe-se o trecho a seguir, retirado de publicações esparsas de Bruno de Menezes: É só assim, desde os colégios do Estado aos de direção privada, às classes de proletários e braçais, do funcionalismo público aos empregados em todas as atividades; das populações dos campos às litorâneas e urbanas, o amplo horizonte da cooperação se distenderá na Amazônia, traçado e dilatado pelo homem da planície, tão necessitado, no presente e neste dramático após-guerra, do regime humanitário e fraternal, corporificado no cooperativismo, que tem uma revolução a evitar e um mundo novo a construir. (1993, p. 433) 1. Ainda na esteira do cooperativismo, observe-se a afirmação de um dos filhos de Bruno, José Haroldo Menezes (apud REIS), sobre o tema em questão: O papai, devido ao fato de ter tido uma infância pobre, tinha o seu ―quê‖ de revolucionário, por isso que ele enveredou pelo cooperativismo, porque até hoje o cooperativismo é a única maneira de uma equipe de homens que não são capitalistas enfrentarem com sucesso o capitalismo selvagem, inspirado nos 28 tecelões de Rochdale, que foram os criadores do cooperativismo (informação verbal). (REIS, 2012, p. 32). 131 Bruno foi um exímio folclorista. Estudioso que pertenceu, inclusive, à Comissão Paraense de Folclore, trabalhando com as manifestações artísticas de cunho popular e lecionando a disciplina Folclore por meio do SENAC/ Departamento Regional do Pará. Note-se que o escritor e pesquisador Bruno de Menezes1 não era, de modo algum, canônico. Bruno valorizava o que provinha das margens, fazendo referência com mestria desta realidade marginal na literatura. Alonso Rocha, principal biógrafo de Bruno, tece um interessante comentário acerca das vivências religiosas e folclóricas do autor: Na estância coletiva ―a Jaqueira‖, no bairro do Jurunas, livre e solto, convivendo e admirando os seus valentes desordeiros, os capoeiras, os manejadores de navalha, os embarcadiços, as mulatas e trescalantes; acompanhando nos ombros largos de seu pai o Círio de Nazaré, gola azul, gorro de marinheiro de fitas pretas e letras douradas, pisoteando, adolescente nas saídas festivas de BoiBumbá de seu padrinho Miguel Arcanjo, sob os olhares carinhosos de sua mãe Balbina e a proteção de João Golemada, maranhense, valente na defesa de seu bando, quando a policia ainda não havia proibido os ―bois‖ saírem de seus currais para os tradicionais encontros. (apud REIS, p. 37). Bruno de Menezes faleceu em plena atividade na cidade de Manaus, no dia 02 de julho de 1963, de um fulminante infarto. Ele participava, como jurado, de um festival folclórico que estava sendo realizado naquela cidade. 3- Literatura e Antropologia em Bruno de Menezes: um breve olhar A partir da segunda metade do século XX, percebe-se, no âmbito das pesquisas acadêmicas, uma forte imbricação entre a Literatura, Antropologia e História. Teóricos da Desconstrução, dos Estudos Culturais, da Nova História, da Literatura Comparada, do Pós-colonialismo, foram extremamente importantes para o surgimento de novas concepções lítero-antropológico-históricas que passaram a prezar pelo aspecto não puro dos elementos textuais, ou seja, um olhar não apenas estético pelo literato, bem como um olhar não apenas documental pelo antropólogo ou historiador, e sim a observação de ambos os aspectos. Miguel Vale de Almeida, ao destacar a relação entre antropologia e literatura, fala em se colocar ―o dedo na ferida da produção‖ (2008, p. 02). Para o autor, tal ferida é revelada quando se põe o olhar literário de um lado e o antropológico de outro no que diz 132 respeito ao aspecto sociocultural, isto é, quem daria conta de uma observação mais detalhada da realidade: um romance ou uma monografia etnográfica? A partir dos anos 1980, no contexto do chamado pós-colonialismo, os antropólogos passaram a questionar a capacidade de a antropologia por si só dar conta das inúmeras vozes, dos diversos atores sociais e dos conflitos existentes no campo sociocultural. Neste período, a partir da contribuição de James Clifford, a qual ressaltava o caráter autoral concedido ao antropólogo por si mesmo, passa-se a refletir sob a perspectiva de uma etnografia que enveredaria pelas trilhas do texto experimental, destacando diálogos, imposições, invenções e, acrescentam-se, representações sociais. Verificam-se, atualmente, indícios de uma maior aceitabilidade, pelo antropólogo, do texto literário como ferramenta auxiliar nas investigações socioculturais. Como arremata Rita Chaves (apud Almeida) afirmando que (...) a Antropologia integra-se à Literatura, formando uma espécie de cadeia multidisciplinar mais apta a melhor flagrar alguns dos movimentos da dinâmica cultural encenada nesse cenário particular que segue semeando perplexidades e impondo a necessidade de novas formas de abordagem. (2008, p. 05). Penso, no contexto deste ensaio, sob a perspectiva da existência um outro Bruno de Menezes, o qual vai além do literato, do folclorista e do cooperativista, representação do homem contemporâneo, um ser fragmentado, ou como afirma Stuart Hall, um dos fundadores dos Estudos Culturais enquanto disciplina acadêmica: (...) não podemos mais conceber o indivíduo em termos de um ego completo e monolítico ou de um si autônomo. A experiência do si é mais fragmentada, marcada pela incompletude, compostas de múltiplos si, de múltiplas identidades ligadas aos diferentes mundos sociais em que nos situamos. (2006, p. 75). Tornando-me mais específico, gostaria de destacar neste ensaio duas facetas de Bruno de Menezes, o romancista e o poeta, para ilustrar minha hipótese inicial. O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2006) versa sobre uma observação participante, que se trata de analisar a cultura do outro por dentro, assegurando vivência, in loco, ao pesquisador de campo. Neste trabalho, não se tem a presença física do ser humano Bruno de Menezes, e sim apenas contato com seus escritos, que, apesar disso, dizem e esclarecem muita coisa sobre a existência deste autor, que esteve inserido em uma cultura e em vários movimentos sociais. Ou seja, o documento não é pessoa, mas tem muito a dizer sobre ela, e cabe ao pesquisador a investigação, imergindo nos documentos e captando fragmentos que 133 dão sentido e significado ao autor e sua obra, desvelando outras verdades. A vivência de Bruno de Menezes, suas andanças pelas ruas de Belém, deram-lhe o know-how de se tornar, certamente, uma das principais fontes de informação sobre a cultura paraense em sua época. Como afirma Vicente Salles: Bruno de Menezes era o folclore. Na esteira de Oliveira (2006), que afirma ser o escrever uma parte indissociável do pensamento, baseado em um olhar e em um ouvir atentos que constituem a percepção da realidade centrada na pesquisa empírica, penso que o quê Bruno viu, ouviu e escreveu denotam um certo fazer antropológico em seus textos. Bruno de Menezes, homem de periferia, teve contato com diversas manifestações culturais ao longo de sua vida. Ele frequentou terreiro, dançou boi-bumbá, estudou São Benedito e transformou estas experiências em arte, no entanto, arte como ferramenta de transformação social, arte enquanto denúncia. No romance Candunga, escrito em 1939, no entanto publicado em 1954, tem-se uma narrativa carregada de emoção e denúncia que conta a história de uma família de retirantes cearenses fugida das intempéries climáticas do Nordeste brasileiro e que se refugia estado do Pará, mais precisamente na Zona Bragantina. Tal fato é parte do projeto de colonização do entorno da Estrada de Ferro de Bragança, local que estaria em pleno desenvolvimento devido à construção da via férrea que ligava as cidades de Belém e Bragança, servindo para o transporte de pessoas oriundas destas duas cidades, bem como das que surgiram ao longo da ferrovia, núcleos predominantemente agrícolas. Bruno de Menezes, com Candunga, escreveu um romance baseado em suas observações feitas na época em que trabalhava para o governo, na Zona Bragantina, em serviços ligados aos setores migratórios. No prefácio da edição alusiva ao centenário de nascimento de Bruno, tem-se a seguinte passagem: O autor deste depoimento (Bruno de Menezes), em forma de romance, apesar de ser um dos nossos grandes poetas, não o apresenta como ficcionismo integral, nas cenas que se encontram narradas, eis porque, o mesmo participou de importantes comissões designado pelo governo interventorial, para serviços nos setores migratórios, ao tempo do encaminhamento dessas levas para o interior da Zona Bragantina (MENEZES, 1993, p. 90). 134 A vivência de Bruno de Menezes enquanto servidor público no serviço de migração possibilitou a ele uma escrita vivaz no que tange à situação dos nordestinos na Zona Bragantina. Penso que Bruno foi um observador participante, que penetrou na cultura do outro, como se fora um pesquisador no seu campo, certamente ouviu este outro e escreveu sobre ele. Ou seja, o romance Candunga não necessitou de labor literário apenas, mas também de um certo fazer antropológico para alcançar o nível estético desejado por Bruno, como na passagem a seguir: Francisco Gonzaga, cearense do Canindé, bordejando pelos sessenta anos, apresenta a mesma fisionomia sofrida de todos os retirantes. Em meio ao emaranhado sujo da barba, quando fala retorce a boca vincada, com a dentadura amarela, salivando ―masca‖ [...] Antônio Candunga, seu afilhado, pelo físico dessorado, lembra um novilho desgarrado, de ossatura à mostra, a quem abriram a porteira do curral. Tereza Rosa [...] ainda estampa nas feições maceradas traços de beleza sertaneja [...] Ana e Josefa [...] já manifestando faceirice nos gestos e nos olhares. Dois tipos característicos de nordestinas novas e bonitas, apesar dos horrores da seca. (Ibidem, pp. 99-100). A confluência de diversas vozes ao longo da existência de Bruno de Menezes proporcionou ao literato uma variedade de informações que influenciaram diretamente o seu fazer poético. A composição de Batuque, obra referência de Bruno, é a materialização de toda a diversidade cultural com qual o literato teve contato. A seguinte passagem, fala de um dos filhos de Bruno, ilustra o sincretismo religioso presente na vida do literato. (...) É a quadra natalina, começa dias antes da gente, já vem vivenciando o Natal, né? Que culmina no dia 25, sobretudo noite de 24 para 25, a noite do nascimento do menino Jesus, né? E termina oficialmente dias de Reis, dia 6 de janeiro, mas a vovó Balbina levava a quadra natalina dela até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, que era o dia do aniversário da caçula da família, a titia dos Anjos, nesse dia era feito uma ladainha lá,... Que começava com o mungunzá, que a vovó, exímia cozinheira, como 135 já disse que era, preparava magistralmente. O papai teve sua meninice, toda ela, impregnada daquela vivencia natalina de bois bumbas, dos mastros do Divino, mastro de São Benedito, do Divino Espírito Santo, tempo de pentecoste. (...). Embora de exclusiva iniciativa popular a Ladainha de São Sebastião é solenidade eminentemente religiosa, de fundo católico, em sua manifestação exterior. Mas Sebastião também e vencedor de demandas e assim há convergências de elementos dos cultos afro-brasileiros. Do ponto de vista folclórico, o cerimonial está ligado as folias. (...) As festas do santo organizadas pelas irmandades, bem como as festas de promessa, de iniciativa individual, ainda são o maior acontecimento anual em todas as comunidades do interior amazônico (informação verbal). (REIS, 2012, p. 51). A religiosidade sempre vivaz na casa de Bruno era proveniente da mãe, Dona Maria Balbina, fato que influenciou não só o literato, mas também parte dos filhos de Bruno, os quais ingressaram na vida paroquial. O livro de poemas Batuque, publicado em 1930, traz em seu bojo dois poemas marcantes que ilustram a fala do filho de Bruno de Menezes, Marujada e Mastro do Divino. Observe-se um trecho do primeiro: Marujada Fragatas, marujos pintados de entrudo, gageiro subindo no mastro de proa, piloto crioulo cantando a manobra na cadência da onda, ao rumor da mareta. É um brigue lendário... A "Nau Catarineta"... Um cruzador do Império... — "Seu imediato! 136 — Pronto seu comandante! — Mande suspendê ferro que são hora da partida!..." E as fragatas em coro tatuadas gingando... suspendem o ferro mesmo sustêm a força da amarra. (...) (MENEZES, 2005, pp. 35-37) Tanto Candunga quanto Batuque trazem à tona aspectos sociais, históricos e culturais presentes na vida de Bruno de Menezes, marcas de suas relações afetivas, suas crenças, sua luta por igualdade, marcas de uma vida dinâmica, repleta de trocas simbólicas, trânsitos diversos, traços que põem Bruno à frente de seu tempo, abrindo um leque de possibilidades para a observação de seus escritos. Este breve ensaio buscou elucidar a possibilidade de ampliação, ressignificação do fazer literário de Bruno de Menezes, na tentativa de iniciar um estudo referente a um Bruno que não foi apenas literato, mas um etnógrafo, quiçá um antropólogo das minorias subalternas, homem das margens que traduziu suas vivências em forma de arte. 4- Referências bibliográficas utilizadas e consultadas ALMEIDA, Miguel Vale de. Antropologia e Literatura: a propósito e por causa de Ruy Duarte de Carvalho. Texto para o jornal do Ciclo Ruy Duarte de Carvalho, Centro Cultural de Belém (Portugal), Fevereiro de 2008. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. 6ª reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2009. LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução aos Estudos Culturais. 2ª ed. São Paulo: Parábola, 2006. MENEZES, Bruno de. Obras Completas, v.2, Folclore. Belém: SECULT, 1993. MENEZES, Bruno de. Obras Completas, v.3, Ficção. Belém: SECULT, 1993. MENEZES, Bruno de. Batuque. 7ª ed. Belém: 2005. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. 3ª ed. São Paulo: Unesp, 2006. REIS, Marcos Valério Lima. Entre poéticas e batuques: trajetórias de Bruno de Menezes. Dissertação de Mestrado. Unama, 2012. WANZELER, Rodrigo de Souza. Candunga: fissuras do presente ressignificando uma certa Amazônia e um certo Nordeste no romance de Bruno de Menezes. Dissertação (Mestrado) - 137 Universidade Federal do Pará - Instituto de Letras e Comunicação - Programa de PósGraduação em Letras - Área de Concentração: Estudos Literários. Belém, 2009. 138 FRAGMENTOS QUEER EM PELA NOITE DE CAIO F. Romualdo dos Santos Correia1 Resumo: Abordar questões homoeróticas e estilo de vida numa perspectiva literária requer um olhar cuidadoso no que tange às reflexões que nos sugerem uma observação do material literário. Neste ensaio, pretende-se configurar o desejo homoerótico e o estilo de vida das personagens da novela de Caio F. num contexto que estabelece a diferença como poiésis da reflexão queer a que nos propomos. Dessa forma, a pretensão de uma leitura queer confere ao tema abordado no conto uma possibilidade de compreender os aspectos de uma narrativa pós-moderna cujas personagens são, ao mesmo tempo, o centro e a margem. Pensar o desejo, a noite e o estilo gay em Pela Noite (2010), produz um panorama da década de 1980 no Brasil e uma construção que possibilitou, a partir da literatura, um novo olhar sobre o outro diferente. O espaço, os diálogos e toda a rede de relacionamento que atravessa a obra em estudo conferem a esta proposta o status de importância no campo da literatura e dos Estudos Culturais, uma vez que as representações daqueles \"atores\" refletem, para além da ficção, uma inscrição na cultura. É importante ressaltar, que esta proposta se norteia pelos estudos sobre o homoerotismo, Estudos Queer e de Gênero, abordando nessas linhas de estudo as reflexões de Eve Kosofsky Sedgwick (2008) e outros teóricos cujas reflexões serão de suma importância para a consecução deste trabalho. Palavras-chave: desejo; estilo de vida; queer. Abstract: Address issues and homoerotic lifestyle literary perspective requires a careful look when it comes to the reflections we suggest a note of literary material. In this essay, we intend to set up the homoerotic desire and lifestyle of the characters of the tale Caio F. a context that makes the difference as poiesis queer reflection that we propose. Thus, the pretense of reading queer gives the subject addressed in the story a chance to understand the aspects of a postmodern narrative whose characters are at the same time, the center and the margin. Think desire, and style gay night on Pela noite (2010), produces a panorama of the 1980s in Brazil and a construction that made it possible, from the literature, a new look at each other differently. The space, the dialogues and the entire network of relationship that crosses the work under study give this proposal the status of importance in the field of 139 literature and cultural studies, since those representations \ "actors \" reflect, beyond fiction, an inscription in culture. Importantly, this proposal is guided by studies of homoeroticism, Queer and Gender Studies addressing these lines to study the reflections of Eve Kosofsky Sedgwick (2008) and other theorists whose reflections will be of paramount importance for the achievement of this work. Keywords: desire; lifestyle; queer. 140 A cidade e o anonimato como configurações do desejo gay A configuração da estética literária se constitui de elementos ora poéticos ora sociais e culturais. Neste ensaio, tratamos de esclarecer o interesse em aspectos diversos enquanto leitura e interpretação da novela Pela noite (2010) de Caio F. Conforme nos propomos, este trabalho discorre sobre os relacionamentos e os estilos de vida configurados nos anos 1980, no Brasil, na novela abreana e nas condições que favoreceram um ethos gay, naquele momento. Tendo como espaços de convivência a cidade – neste caso São Paulo –, podemos construir algumas linhas de pensamento que possam esclarecer o desenvolvimento da narrativa e o comportamento das personagens dentro do contexto no qual figuram. Escrita nos anos 1980, Pela noite traz, em sua gênese, os anseios e paranoias da cidade como local das convivências anônimas e produtora dos encontros e desencontros de suas personagens numa problematização das identidades e do desejo gay como estéticas pós-modernas do declínio e estilhaçamento de ideais fixos centrados mais nas tradições heteronormativas que na perspectiva de uma desconstrução. Em Pela noite, encontramos duas personagens num apartamento, em uma noite de sábado, travando um diálogo, no qual um dos dois é quase monológico, discorrendo sobre temas surreais e, por vezes, esdrúxulos levando-nos a perceber o caos interno dessa personagem ligado à solidão e ao confinamento na ―selva de pedra‖ e no aprisionamento urbano do anonimato. Nesse sentido, há uma condução do diálogo-monólogo para uma representação dramática levando as personagens a sucumbir diante de suas realidades e constituírem o que poderíamos chamar de efeito pós-alucinógeno-moderno numa mistura teatral de performances musicadas como alternativas de fuga para o encontro com o outro. Com efeito, o espaço sugere uma tensão exorbitante que permeia a narrativa de pequenas sutilidades de desejo, medo, angústias e frustrações. A construção da cena – apesar de não ser um texto dramático – confere o desmantelamento do plausível, do possível. Comum aos textos de Caio, há, na narrativa, pontos de clímax e anticlímax, particularmente nesse texto, musicados ao som do saxofone como estratégias de manifestação das condições psicológicas de suas personagens e de como interagem com suas desordens habituais, sobretudo nas epifanias constitutivas do seu caráter emulado pelas tensões esquizofrênicas comuns à convivência na cidade. 141 Caracteristicamente eloquente, a personagem – ainda sem nome – extrapola os limites do bom senso (normalidade?), para construir sua visão das espacialidades de solidão nas quais encontra com o outro e conforma os posicionamentos acondicionados pela vivência de sua identidade facetada e despedaçada nos tempos pós-modernos: Foi então que num dos acordes bruscos o homem de longo corpo estendido musculoso voltou-se subitamente para ele, cinco dedos abertos em sua direção. Quase sorriu, julgando entender. Sem premeditar, num impulso esboçou um movimento de levantar-se do sofá. Antes de fazer o gesto já se via também erguendo-se, um filme em câmara lenta. Talvez três vezes, repetindo os mesmos fotogramas – gesto incompleto, gesto incompleto, gesto incompleto – até contemplá-lo: a própria mão aberta estendida em direção à mão aberta estendida do outro. Mas a mão do outro voltou a encolher-se. Tão fortemente fechada que ele viu as juntas das falanges esbranquiçadas pelo esforço, e enveredou rápida cortando o ar, navalha em direção ao próprio estômago, fazendo o corpo contrair-se de dor e o rosto devagar abaixado deixando desaparecer aos poucos uma imagem que se sobrepõe à outra, por um segundo ainda misturada à anterior, aquela expressão de gozo próximo, para permitir que aflorasse outra, traço a traço, sobrancelhas unidas em vértice, comissuras amargas da boca, voltadas para baixo, uma outra face mais escura que além da dor seca, injusta, espantada, tinha agora um novo elemento. Qualquer coisa como uma quebra? Qualquer coisa como a decepção da alegria entrevista nítida, pouco antes, bem ali, guardada no ar, a milímetros da extremidade dos dedos, ele vira. E isso doía ainda mais que a outra dor, assim humano (...) (ABREU, 2010, 107-108). Levando em consideração os aspectos queer da narrativa, tomamos como elementos principais o medo e as reminiscências do passado enquanto determinantes dos traumas da personagem principal. Se um dos aspectos da narrativa é o anonimato na cidade grande, também o medo constrói a narrativa numa performance agitada e tensa para as personagens. Típico dos encontros nas grandes cidades, a identificação torna-se um simulacro daquilo que se permite dizer de si. Seguindo essa linha de pensamento, a personagem principal da novela nomeia a si Pérsio e ao outro Santiago com promessas de ―virar a noite‖ (ABREU, 2010, p. 115). Um dos aspectos importantes tratados pelas personagens é que há, nas suas vivências, sobretudo em Pérsio, o medo do encontro com o outro. Apesar de serem o reflexo de um mundo sem ideais fixos, esses atores refletem o início de uma assombrosa época para os sujeitos gays, caracterizando através do próprio anonimato de suas relações, o medo que aquele momento desencadeou em toda uma geração: Os olhos dos dois tornaram a se cruzar. Tão raro. Nas ruas, nos ônibus, nos elevadores. Você me reconhece? E por me reconhecer, tem medo? A peste de que nos acusam. E assustado. Baixou-os, baixavam quase sempre, os olhos, para os pés, as listras, azul, amarelo, sobre o bordô do tapete. (ABREU, 2010, p. 116-117, grifo meu). 142 A referência à ―peste‖ confere a esse diálogo o momento de tensão e medo vividos pelas personagens naqueles anos de extremo medo que desencadeou no mundo gay a convivência amedrontada com a chegada do vírus HIV da aids. Sendo uma das primeiras referências feitas por Caio em seus textos, Pérsio encarna o desmoronamento das ilusões de uma sexualidade livre e saudável para conviver com o risco do contágio pela doença, provocando, assim, o medo como último resquício do desejo pelo encontro com o outro. As tensões que envolvem o espaço no apartamento de Pérsio são, de longe, uma cartografia de um mundo que assiste perplexo ao declínio do desejo e os complexos da sexualidade com seus contornos diferenciados, tornando aquele estilo de vida uma das formas mais contagiantes e desanimador para aqueles atores. Mesmo desanimado pelas expectativas sombrias e viciadas em solidão, Pérsio sai com Santiago pela noite paulista para buscar nos espaços da subcultura gay uma fuga da sua vida melancólica. A noite parece caracterizar o estilo dessas personagens, uma vez que toda a sorte de eventos e locais de diversão revestem-se de certo dionisismo que resvala, também, para uma procura do outro a partir do desejo de ―estar com‖ sem uma integração real como bem trata Bauman: Os encontros tendem a ser tão fragmentados e episódicos quanto a própria integração. De uma posição ao lado, os outros são selecionados para se mover até a modalidade de estar-com. Eles agora são objeto de atenção. Agora as dependências mútuas que precedem a interação surgem durante a interação e/ou são negociadas e modificadas no decurso do encontro, ingressam no campo de visão, ganham relevância tópica, convertem-se em objetos de pensamento e decisão. (BAUMAN, 2011, p. 75-76). Não é de se estranhar que a personagem Pérsio se defronta com os fantasmas do passado quando chega a uma pizzaria aterrorizado com os olhares de outras pessoas que podem identifica-los com aquilo que, parece-me, seria motivo de medo: gays. Daí, Pérsio, que até esse momento comandara a cena com sua conversa eloquente e teatral, suplica a Santiago que fale qualquer coisa para que não sejam percebidos e taxados como um casal de homossexuais: ―– já começaram a olhar, viu? Você quer que pensem isso de você, hein? Que nós somos veados, bichas, baitolas, putos, maricões, chibungos, jaciras, frescos, peras, homossexuais, invertidos?‖ (ABREU, 2010, p. 152). Na verdade, as duas personagens já se conheciam de um passado distante. Ambos viveram em uma cidade do interior e sentiram o medo do encontro com suas sexualidades 143 desde a adolescência. Sem dúvida, o que marcou mais Pérsio fora o tratamento homofóbico que recebera por parte das pessoas daquele lugar e que o marcaria para sempre, mesmo depois de sua chegada a São Paulo. Após anos sem se verem, reencontram-se em uma sauna e trocam telefone para saírem qualquer dia. Mas, Pérsio encontra-se num momento difícil, talvez numa crise existencial própria daquele momento de desfazimentos como se pode perceber na fala dele: ―– E de repente eu ia dizer não, não posso, não quero, não devo, estou doente, descobri que estou com AIDS, tenho um compromisso, tentei pular da janela‖ (ABREU, 2010, p. 153). O encontro com Santiago provoca em Pérsio o retorno do passado difícil e traumático em Passo da Guanxuma. Nesse momento, ele compreende a sua completa inadequação para uma vivência naquele lugar – mesmo tendo desejado voltar – e os episódios que marcariam, para sempre, a sua vida, sobretudo, na vivência da sua sexualidade: - Isso. Fresco, elas gritavam. Todas gritavam juntas. Ai-ai, elas gritavam. Bem alto, elas queriam ferir. Elas queriam sangue. E eu nem era, porra, eu nem sabia de nada. Eu não entendia nada. Eu era superinocente, nunca tinha trepado. Só fui trepar aqui, já tinha quase vinte anos. E cheio de problemas, beijava de boca fechada. (ABREU, 2010, p. 155). O quadro homofóbico que Pérsio rememora com Santiago, retoma algumas questões cuja importância o debate atual coloca em pauta na sociedade brasileira, conformando a leitura de Caio acerca de um problema cujas consequências não se restringiam a um passado remoto. No desenvolvimento da narrativa, tal quadro realça as posições movediças dessa personagem, uma vez que o discurso homofóbico atravessa os dilemas vividos por Pérsio no que tange a sua sexualidade e a aceitação do desejo pelo igual, confrontando-o com a aversão a esse desejo: ―Amor entre homens tem sempre cheiro de merda. [...] Eu não consigo aceitar que amor seja sinônimo de cu, de cheiro de merda‖ (ABREU, 2010, p. 168-169). Nesse contexto, havemos de concordar com Sedgwick (2008), quando diz que a homofobia desenvolvida nos anos de 1980 desencadearam não só a isenção das relações lésbicas sob pretexto médico, como também colocaram os gays – homens ou mulheres – num grupo distinto. O medo sentido por Pérsio reflete o choque com uma identidade pré-estabelecida do gay enquanto pessoa ―normal‖. Afinal, pertencer a uma classe estigmatizada e agora responsável pela disseminação de uma ―peste‖ conforma uma série de responsabilidades 144 que forjam uma responsabilização daquela personagem pelos eventos que atravessam esse momento. Dessa forma: [...] entendemos muito bem que um gay que decide identificar-se como gay e aceitar-se como tal é muito menos marcado em sua vida cotidiana pela ―tensão‖ evocada por Goffman e, portanto, menos dependente dessa ―identidade‖ que ela produz. O gay se reivindica como tal é mais livre, menos prisioneiro da identidade homossexual, que aquele que deve pensar nisso a cada instante, em todas as situações da existência, a fim de não ―trair‖ aquilo é que aos olhos dos outros. Logo, dizer-se gay também é libertar-se do peso da ―identidade‖ que pesa sobre aqueles que procuram dissimular sua homossexualidade. (ERIBON, 2008, 123-124, grifos do autor). A noite, então, desencadeia nas personagens uma espécie de magia que controla seus atos, provocando uma busca pela liberdade num movimento embalado pela dança. Caracteristicamente embalada pela música, a noite gay confere um dos principais estilos de vida do público gay nos anos 80. Apesar dos ―medos‖, Pérsio conclui que a vida continua e que a dança afastará todo tipo de ―neuras‖, como se pode perceber na sua fala: - Sinto, sinto. Claro que sinto. Tenho milhões de medos. Alguns até mais graves. Medo de ficar só, medo de não encontrar, medo de AIDS. Medo de que tudo esteja no fim, de que não exista mais tempo para nada. E da grande peste. Mas hoje não, agora não. Agora só tenho vontade de galinhar um pouco. Portanto nós já vamos estacionar este batmóvel, se os orixás ajudarem. Depois vamos descer e tomar uns bons drinques ali no Deer‟s, conhece o Deer‟s? (ABREU, 2010, p. 180, grifos do autor). E a noite transcorre naquela cidade com as duas personagens buscando uma solução para seus problemas, seus complexos. Apesar de parecer tudo igual para Pérsio: as pessoas, as roupas, o cabelo, ele confessa haver uma cultura gay da qual ele também faz parte, apesar de não consentir isso. Descendo e subindo a Avenida paulista, as personagens Pérsio e Santiago chegam a lugares de incrível diversão e possibilidades sensuais. Embalados pela música, pelo álcool, descobrem um mundo onde é possível vivenciarem sua sexualidade, onde o desejo não reflete a culpa de ser diferente. Enfim, descobrem que ainda há uma chance de encontrar o ―outro‖ que pareciam buscar: ―Provaram um do outro no colo da manhã. E viram que isso era bom‖. (ABREU, 2010, p. 216). 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Caio Fernando. Pela noite. In: Triângulo das águas. Porto Alegre: L & PM, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de janeiro: Zahar, 2011. ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the closet. London: California Press, 2008. 146 CORPO FEMININO E VIOLÊNCIA NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA: SOBRE ROSARIO TIJERAS, DE JORGE FRANCO Rosane Cardoso1 RESUMO: Esta comunicação analisa RosarioTijeras, de Jorge Franco Ramos, e o modo como a personagem femininaestárepresentada nas narrativas literária e cinematográfica. O cenárioescolhido pelo autorretrata as ruas de Medellín, Colômbia, ea intensa violência gerada pelo narcotráfico nos anos de 1980, fazendo da cultura do sicariato um evento mítico.Rosario, uma sexy assassina de aluguel, é a força bruta que apresenta este palco. Neste artigo, discutimos a transposição da personagempara o cinema como uma banalização midiática que atraiçoa, de certo modo, a sua construção no romance. Evidentemente, reconhecemosque as especificidades da linguagem literária não podem ser plenamente atingidas quando transpostas para a narrativa cinematográfica, por pertencerem a distintas formas de arte.Discute-se, neste caso, a subversão da personagem pelo filme que segue por uma direção que privilegia o cinema de aventura lucrativa, no qual a enigmática Rosario se transforma em um arremedo dafemmefatale.Com isso, a violência, queé o elemento fundamental do romance, se estende, segundo entendemos, também para a construção de uma personagem esvaziada pela dura estereotipia que a mulher ainda vive na sociedade. Este tema faz parte da pesquisa Violência e subjetividade na narrativa latino-americana contemporânea, do PPGL – Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul/Brasil. PALAVRAS-CHAVE:Romancesicaresco; Cinema; Corpo feminino; Violência. RESUMEN: Esta comunicación analiza Rosario Tijeras, de Jorge Franco Ramos, y el modo como el personaje femenino está representada enlas narrativas literaria y cinematográfica. El panorama elegido por el autor retrata las calles de Medellín, Colombia, y la intensa violencia generada por el narcotráfico en los años de 1980, haciendo de la cultura del sicariato un evento mítico. Rosario, una sexy asesina a sueldo, es la fuerza bruta que presenta este escenario. En este artículo, discutimosla transposición del personaje para el cine como una banalización mediática que traiciona, de cierto modo, su construcción en la novela. Evidentemente, reconocemos que las especificidades del lenguaje literaria no pueden ser plenamente atingidas cuando transpuestas para la narrativa cinematográfica, por pertenecieren a distintas formas de arte. Llamamos la atención, en este caso, a la subversión del personaje en la película que sigue por una dirección que privilegia el cine de aventura lucrativa, en el cual la enigmática Rosario se transforma en un estereotipo de la femme fatale. Con ello, la violencia, que es el elemento central de la novela, se extiende, según entendemos, también para la construcción de un personaje vaciado por la estandarización que la mujer aún vive en la sociedad. La discusión sobre este tema forma parte de la investigación Violencia y subjetividad en la narrativa latinoamericana contemporánea, del Programa de Maestría en Letras de la Universidad de Santa Cruz do Sul/Brasil. PALABRAS-CLAVES: Novela sicaresca; Cine; Cuerpo femenino; Violencia. 147 Desde que Rosario conoció la vida no ha dejado de pelear con ella. Unas veces gana Rosario, otras su rival, a veces empatan, pero si fuera a apostar a la contienda, con los ojos cerrados vería el final: Rosario va a perder. (FRANCO, 1999, p. 19). Overture A relação entre o cinema e a literatura parece ter existido desde sempre. A interfluência entre um e outro mostra-se coerente na medida em que, para ambos, contar uma história é fundamental. A fonte inesgotável para a narrativa está na vida, no cotidiano, nas tramas que se tecem sem que ninguém possa evitar. Por mais que os temas se repitam, sempre há o detalhe e a especificidade de cada fio que tece a existência. À literatura e ao cinema está permitido dar as tintas que lhes pareça mais adequada à história que desejam contar. Ou, no caso da cultura de mercado, ao tipo de trama que venda uma ideia ou um padrão de comportamento. Este artigo analisa a transposição do romance RosarioTijeras para o cinema e o modo como a protagonista, de um texto ao outro, se transforma como imagem de mulher, através de uma sexualização que banaliza a essência literária da protagonista. Não se trata, evidentemente, de uma comparação entre a narrativa literária e a narrativa cinematográfica, enquanto transposição da literatura para o cinema. Apesar das proximidades, são linguagens diferentes que, consequentemente, se estruturam emmodos distintos. Não se espera uma cópia do livro. O que se discute é, para além da adaptação do livro, as duas Rosarios com as quais nos deparamos.A personagem que, no romance, transita entre névoas da lembrança do narrador, deixando inúmeros vazios para o leitor interferir, no cinema se transforma em presença incisiva e óbvia, destacada mais pelo corpo amplamente fetichizado do que por nuances subjetivas. Action! RosarioTijeras resulta numa brilhante narrativa escrita por Jorge Franco no final dos anos de 1990. Na obra, a protagonista – que dá nome ao texto – é uma sicária, isto é, uma assassina de aluguel. Concomitantemente, exerce a função de prostituta ocasional. Advinda de uma situação familiar dura, Rosario conhece a violência das ruas desde menina. Estuprada aos oito anos de idade, negligenciada pela mãe, sofrendo repetidas violações físicas e morais, a vida de crime é, de certo modo, uma forma de vingança e uma válvula de 148 escape. O poder que Tijeras exerce ao portar uma arma, matar, submeter os homens – ao menos aparentemente – permite a ela se reconhecer como alguém visível na comunidade tremendamente machista e violenta em que vive. Franco ambienta sua história nas ruas de Medellín, durante do auge do império do narcotráfico liderado por Pablo Escobar, ao longo dos anos de 1980. Nesse período, o sicariato se tornou um modo de ascensão social para jovens sem grandes perspectivas econômicas e sociais. A delinquência tomava outro estatuto quando determinado jovem passava a estar a mando de um chefe do crime. Escobar, ademais, não era considerado, pelo povo, como um vilão. Ao contrário, suas ações eram vistas por muitos como as de um justiceiro diante do descaso que a população mais carente vinha sofrendo há anos (GARNIER, 2013). Pouco a pouco, neste cenário, o sicariatopassaa se desenvolver como um processo mítico. O sicário é o braço direito do capo, o homem de confiança. Viver cercado de admiração, perigo, poder, sob a iminência de morrer cedo é a trajetória natural da cultura sicaresca. Naturalmente, esse enredo começaa merecer a atenção de escritores e, ainda nos anos de 1990, Héctor AbdFaciolince inaugura o termo ―novela sicaresca‖ para a narrativa que traz como temática o assassino de aluguel vinculado ao narcotráfico. A figura do sicário está estabelecida na narrativa colombiana, ainda que não suficientemente estudada. Sobretudo, faz parte de um esteio da história dopaís, seguidamente apontado como o mais violento da América Latina, sufocado por guerrilhas, delinquência, narcotráfico.Obrasdo gênero sicaresco, então, acabam por unir aspectos documentais com testemunhais. Nesse rol, segundo Torres (2010), destacam-se quatro pilares: La virgen de los sicários, de Fernando Vallejo (1994); Morir com papá, de Óscar Collazos (1997); RosarioTijeras, de Jorge Franco (1999); e Sangre ajena, de Arturo Lape (2000). As narrativassicarescas mais conhecidas, no momento, em âmbito internacional, são RosarioTijeras e La virgen de los sicários, ambas transpostas ao cinema. Embora as críticas não favoreçam as versões cinematográficas, elas certamente deram repercussão à narrativa de origem. Segundo Torres (2010), a visibilidade do sicário se torna pública nos anos de 1980 e passa a representar um filão significativo na Sétima Arte. Víctor Gaviriase sobressai, roteirizando e dirigindo obras como Rodrigo D: no futuro (1990), La vendedora de rosas (1988), Sumas y restas (2005). Nesses enredos, ―el discurso del marginado aparece en su inmediatez, sin filtros, sin intermediarios, dentro de la voluntad de realismo que asume el cineasta‖(TORRES, 2010, p. 332). 149 RosarioTijeras é um suspense sem pausa para folego, repleto de peripécias e de perigos, remetendo ao gênero policial, muito próximo ao noir. Não se trata de investigar assassinatos ou roubos, mas de desvendar, através da narrativa de uma das personagens, Antonio, o mistério que envolve a protagonista. A trama começa pelo que seria o fim da trajetória de Rosario.À beira da morte, é trazida para um hospital por seu amigo Antonio. Ali, ele rememora o pouco que conhece dessa jovem, enquanto aguarda que saia da sala de cirurgia. Pasmo, descobre que sequer sabe seunome completo: – Entonces, ¿cómo se llama? – Rosario – mi voz dijo su nombre con alivio. – ¿Apellido? Rosario Tijeras, tendría que haber dicho, porque así era como la conocía. Pero Tijeras no era su nombre, sino más bien su historia. Le cambiaron el apellido, contra su voluntad y causándole un gran disgusto, pero lo que ella nunca entendió fue el gran favor que le hicieron los de su barrio, porque en un país de hijos de puta, a ella le cambiaron el peso de un único apellido, el de su madre, por un remoquete. Después se acostumbró y hasta le acabó gustando su nueva identidad. (FRANCO, 1999, p. 8) Aceitar a identidade indicada pela ―tijera‖ seguramente agrada a Rosario. Este sobrenome, mescla de apelido, foi seu passaporte para a própria liberdade. Ele lhe dá a fama de fatal. Quando conseguiu vingar-se de seu primeiro estuprador, matando-o com uma tesoura – não por acaso de sua mãe – ela descobre o caminho para a sobrevivência. Terá de lutar sempre por respeito ou por atenção. Ainda que seu corpo seja visto como objeto de prazer, ela sabe exatamente como lhe convém usá-lo. Não importa com quantos homens tenha de deitar-se, não pertencerá a nenhum. Rosario é uma mulher cuja consciência do próprio corpo permite configurá-la, guardadas as proporções. Seu corpo reage à dor e ao prazer como um protagonista à parte. Em sua transposição para o cinema, essa imagem lhe garante o status de femmefatale. Porém, em sua construção, lhe deixa somente o corpo. RosarioTijeras estreou em 2005 e foi bem recebido pelo público. No elenco estão: Flora Martínez (Rosario), Manolo Cardona (Emilio, namorado de Rosario), UnaxUgalde (Antonio, amigo), Rodrigo Oviedo (Johnefe, irmão). No filme, são ressaltadas as qualidades de cineasta de Franco, que coproduziu e auxiliou no roteiro. Mesmo no romance, sua técnica se aproxima bastante da cinematográfica. A narrativa literária é composta de diálogos curtos e secos, flashbacks, cortes de cenas. Essa relação não resulta potencialmente interessante no cinema. 150 O filme dirigido por Maillé consegue perceber com agudeza a violência e o ambiente das ruas de Medellín nos anos de guerra do narcoterrorismo. Os tons de cores, as luzes ao longe, a velocidade das cenas, o ambiente quase sempre sombrio e esfumaçado das boates por onde circula Rosario, ou, antes ainda, do lugar em que morava quando criança, prontamente assinalam a desesperança e dureza da situação. No entanto, segundo Skar (2007), o filme, quando destaca as cenas de estupro contra Rosario ou quando a mostra atuando como prostituta o faz ressaltando a agressividade da jovem e suprimindo a criança violentada e acossada em um ciclo de marginalidade (SKAR, 2007).Tijeras, na tela grande, sobrepõe-se principalmente através do corpo fartamente sexualizado. Nesse sentido, a história do corpo feminino no cinema não difereda história do corpo feminino fora das telas, feito para o olhar do homem, segundo Leorza (2004): La mujer en el cine, ha sido únicamente un cuerpo en el que se ha proyectado la sexualidad masculina, un cuerpo a ser mirado, un objeto, un fetiche. La mujer se convierte así en escenario de la sexualidad, y no en sujeto, quedando su propia sexualidad anulada, impidiendo su libre desarrollo personal, y la construcción de su propia subjetividad. Para las feministas, este proceso no es sino el reflejo de la cultura patriarcal que se intenta imponer a la mujer; se busca una mujer sumisa y dominada por la mirada masculina […]. El cine no hace sino recoger la dicotomía cultural y social, por la cual la mujer, o es una santa, o es una puta. (LEORZA, 2004, p. 306.) Talvez o cinema tenha logrado certo vanguardismo, pelo ousado de dizer claramente o que já era sussurrado pelos cantos, pelo que se espiava no buraco da fechadura. Estamos falando, é preciso esclarecer, de um filme que se volta para o êxito comercial. Ou, se essa não era a intenção, sua estrutura leva a ver uma obra que segue o roldão midiático de corpo feminino, quase pornografado. Rosario, ainda, como personagem fílmica, representa o filão que se inicia por volta dos anos de 1980, em blockbusters repletos de mulheres tomando papéis geralmente delegados aos homens. São as guerreiras, mercenárias, justiceiras, agentes secretas, etc. Tal performance não seria um problema, em absoluto, não fosse a clara erotização do papel. Sonja (Conan), Xena (Xena, a princesa guerreira) e algumas da série de Bond´s girls, por exemplo, ao mesmo tempo em que esmurram o inimigo, deixam ver seus fartos seios e o corpo esculpido em roupas justíssimas e curtas. É a premissa da imagem falsa de mulher emancipada. De longe se percebe que é, sobretudo, a parceira sexy do verdadeiro protagonista. Tijeras foge de ser um apêndice do herói. Inclusive pela solidão que elege para si. Ela é a única heroína das narrativas, tanto fílmica quanto literária. No entanto, na perspectiva do cine massivo, está construída a partir de elementos caros no sentido de atrair um grande público. À violência extrema se acrescenta acaloradas cenas de sexo e de 151 exposição do corpo. Não se pode dizer que tais elementos não estejam no romance. Porém, ali percebemos a complexidade desse corpo entre o que provoca e o que realmente sente: A Rosario la vida no le dejó pasar ni una, por eso se defendió tanto, creando a su alrededor un cerco de bala y tijera, de sexo y castigo, de placer y dolor. Su cuerpo nos engañaba, creíamos que se podían encontrar en él las delicias de lo placentero, a eso nos invitaba su figura canela, daban ganas de probarla, de sentir la ternura de su piel limpia, siempre daban ganas de meterse dentro de Rosario. (FRANCO, 1999, p. 9) Jorge Furtado (2003) estabelece questões que parecem cruciais nessa discussão. Do ponto de vista estético, preponderam problemas intransponíveis entre a linguagem escrita e a audiovisual. Primeiramente, existe o fato de que toda a informação posta na tela de cinema é visível ou audível. Em segundo lugar, sem se distanciar do anterior, a imagem propostapelo texto literário é elaborada pelo leitor. Se o autor não define qual a cor ou o formato de determinado objeto, o leitor, à medida que vai lendo, compõe a textura, a cor, a quantidade de objetos. O fluxo de pensamento, tão comum ao romance, pode seguir por páginas e ainda assim dar total acesso à leitura pessoal. Um cineasta precisa definir a cor e o número de objetos existentes na cena. Precisa, igualmente, encontrar formas de ―personificar‖ o fluxo de consciência. Ou seja, sobrepõe-se a leitura do diretor e, concomitantemente, a exequibilidade do projeto. Na mesma linha, o cinema rompe com o ritmo do receptor. Os leitores possuem tempos distintos para a leitura. Podem deter, acelerar, suprimir trechos da trama que tem diante de si. Já otempo necessário para o texto fílmico é determinado pelo autor e está preso a duas pontas compostas pelo tempo de duração: ―um filme de 1hora e 32 minutos é visto por qualquer espectador em de 1hora e 32 minutos‖(FURTADO, 2003, p.2).Talvez se deva considerar a dificuldade apresentada porRosarioTijerasno cinema, tendo em vista que no romance a protagonista é, sobretudo, uma presença sentida pelo narrador. No cinema, ela precisa tomar forma, mostrar-se na sua força, perigo e sensualidade. Certamente uma árdua tarefa. 152 Cartaz de divulgação do filme Fonte: http://www.rosariotijeraslapelicula.com/ Sexo e violência vendem. Além disso, permitem uma multiplicidade de tramas e acirram, por um lado, o voyeurismo que já é inerente ao cinéfilo e ao leitor e, por outro, permitem, pela adrenalina da ação, a necessária catarse diante do padrão de justiça que geralmente se apresenta em filmes do gênero. Como espectadores, não temos por que negar isso a um filme que se propõe a oferecer isso. No entanto, de um ponto de vista crítico, a narrativa fílmica se perde quando só oferece o óbvio. Ratificando, uma vez mais, as especificidades de cada linguagem – literária e cinematográfica – o choque que se estabelece entre uma e outra talvez esteja na perda de uma identidade para a protagonista. Na telona, Rosario é apenas mais uma, demasiadamente distanciada da personagem ambígua construída no romance. Existe, claro está, liberdade para o autor poder criar, a seu bel-prazer, os seres que transitam em seu filme, mesmo que apropriados de outro recurso. Nada os obriga a uma reprise, inclusive porque seria impossível. Portanto, esta análise talvez seja injusta com o filme de Maillé. Por outro lado, ainda apoiando-se em Furtado, um filme ruim é um filme ruim. E ponto. Final cut! Medellín, ao longo dos anos de 1990, dominada pelo narcotráfico, foi o centro do crime, da prostituição, do sicariato. A infraestrutura clandestina – ou nem tanto – alavancou todo o tipo de atividade ilegal. Contudo, por mais que o tráfico de drogas tenha tido influência nesses acontecimentos, os problemas sociais e econômicos do país estão na 153 origem dos problemas. Ademais, persistem as guerrilhas que atravessaram o século XX e seguem empanando a organização do país. Rosario não tem como sair desse invólucro. Não sabe como sair e sequer tenta porque não faz parte do manual que rege a cultura em que se encontra e tambémporque não faz parte dela desistir.O que decide para si já é uma reação. Igualmente, cumpre a mítica do sicário: vida curta, intensa e fatal. Vive em território onde predomina o mando do homem. É uma hierarquia que não tem perspectiva de mudar. A rebeldia de Rosario estáem lograr espaço onde a maioria das mulheres sobrevive à custa da boa vontade do chefão. No cinema, infelizmente, tudo trai a Tijeras, na medida em queo corpo distrai da personagem, a ação se sobrepõe à subjetividade e a assassina elude a RosarioTijeras.Segue fascinante, sexy, misteriosa. Mas tudo isso está na casca. O espectador relaxa e assiste ao filme. Nada mais é preciso. Referências FURTADO, Jorge. A adaptação literária para o cinema e a televisão. Palestra na 10ª Jornada Nacional de Literatura. Passo Fundo. 29 de agosto de 2003. Disponível em http://www.casacinepoa.com.br/site_antigo/port/conexoes/adaptac.htm. Acesso em 7 de março de 2013. GARNIER, Jorge (Direção). Pablo Escobar: ¿Ángel o demonio? Roteiro: Carlos J. Betancour. Edição: Jorge Cisneros. Produção: SierraltaEntertainment. Música: Adrian Van Woerkom. Local: Colômbia/Venezuela, 2007. 81 minutos. Disponível em: www.netflix.com.br. Acesso em 07 de março de 2013. LEORZA, María Castejón. Mujeres y cine – las fuentes cinematográficas para el avance de la historia de las mujeres. Berceo, nº147, p 303-327, 2004. MAILLÉ,Emilio (Direção). Rosariotijeras. Roteiro: Marcelo Figueras. Produção: 2005. Colômbia, México e Espanha: Moonshot Pictures, 2005. 126 minutos. RAMOS, Jorge Franco. Rosario Tijeras: una novela. New York: Siete Cuentos Editorial, 1999. SKAR, Stacey Alba D. El narcotráfico y lo femenino en el cine colombiano internacional: Rosario Tijeras y María llena eres de gracia. Alpha N° 25 Diciembre 2007 (115-131). In: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0718-22012007000200008&script=sci_arttext. Acesso em1º de março de 2013. TORRES, Antonio. Lenguaje y violencia en la virgen de los sicarios, de Fernando Vallejo. EstudisRomànics, vol.32. Barcelona, 2010, p.331-338. Disponível em http://publicacions.iec.cat/repository/pdf/00000111%5C00000024.pdf. Acesso em 7 de março de 2013. 154 LITERATURA: MEMÓRIA E IDENTIDADE Rosani Ketzer Umbach Resumo: Neste trabalho, pretende-se refletir sobre a construção de identidades marcadas pela alteridade, muitas vezes com a utilização do recurso da memória. Para tanto, busca-se apoio teórico em alguns dos autores propostos para o simpósio bem como em Aleida Assmann e Harald Welzer, cujos estudos estão centrados na questão da memória cultural e da memória social, respectivamente. Configurar experiências de exílio por meio da escritura constitui uma das estratégias de reconstrução de sujeitos em contextos hegemônicos adversos. Assim sendo, serão analisadas narrativas nas quais se configuram personagens provenientes de minorias sociais e que se encontram inseridas em situações de mobilidade geográfica e cultural. Palavras-chave: Alteridade; Exílio; Memória; Minorias; Identidade. Abstract: This paper intends to reflect about the construction of identities marked by otherness, often with the use of memory resource. Therefore, it seeks for theoretical support in some authors proposed for the symposium as well as in Aleida Assmann and Harald Welzer, whose studies are focused on the issue of cultural memory and social memory, respectively. To configure experiences of exile through writing is one of the strategies for rebuilding subjects in adverse hegemonic contexts. Thus, narratives will be analyzed, in which characters from social minorities and who are embedded in situations of cultural and geographical mobility are configured. Keywords: Otherness; Exile; Memory; Minorities; Identities. 1. Introdução A literatura constitui um meio privilegiado de expressão de memórias – e consequentemente de identidades. A memória, um conceito muito discutido na área de literatura e, ao mesmo tempo, definido e interpretado de forma distinta por diferentes disciplinas, é compreendida nos estudos culturais tanto com seus aspectos de representação como de construção. As concepções de memória cultural e de memória social surgiram no esteio dos estudos de Maurice Halbwachs (1877-1945), sociólogo francês que enfatizou o caráter social e reconstrutivo da memória com relação à história. Como um dos precursores da ideia de que a memória individual está associada à memória coletiva, Halbwachs (1990) destacou o papel constitutivo das lembranças que os indivíduos têm em comum na união de um grupo social. A memória coletiva, na sua concepção, seria composta pelas 155 lembranças de cada um dos indivíduos que pertencem a uma determinada coletividade e por isso apresentariam formas e conteúdos semelhantes de memória. Ao mesmo tempo, a memória coletiva seria o fundamento sobre o qual cada indivíduo constrói suas lembranças individuais. Dessa forma, Halbwachs também relacionou a memória individual ao meio social, uma vez que as lembranças individuais estariam concretamente baseadas na vida social, não ocorrendo isoladamente das ações e necessidades de uma sociedade. Em outras palavras, as lembranças são constituídas no contexto das relações individuais e coletivas. Estudos mais recentes seguem nessa linha de raciocínio. Como mostram Erll, Gymnich e Nünning na introdução de seu livro intitulado Literatura, memória, identidade (2003), é a memória de experiências passadas que possibilita uma consciência da continuidade e unidade do Eu, o que também valeria no plano coletivo. Segundo os autores, narrativas sobre o passado dentro de grupos sociais e coletividades servem para legitimar, e também para deslegitimar concepções de identidade e alteridade coletivas. 2. A discussão sobre os conceitos de memória Considerações filosóficas e teológicas sobre rememoração e memória são comuns desde a Antiguidade, basta lembrar a herança grega de Platão e Aristóteles e a ―tradição do olhar interior‖ de Santo Agostinho, conforme detalha Paul Ricouer (2007, p. 107). A elas acrescentaram-se novos aspectos a partir das contribuições das ciências culturais, mais notadamente das áreas da psicologia e da sociologia, as quais, na Modernidade, estimularam o interesse pela relação entre a memória individual, entendida como um processo de conscientização, e a memória coletiva, que é concebida como um processo comunicativo desempenhado por sistemas sociais que imprimem significados a determinados eventos. Para abrir caminho no emaranhado de conceitos de memória que circulam em diferentes áreas do conhecimento, recorremos às distinções elaboradas por Aleida Assmann (2006, p. 31), cujos estudos elucidam três dimensões da memória: neuronal, social e cultural. Nenhuma delas existiria independentemente das outras, e apenas a análise de sua interação é que daria uma ideia da complexidade e do potencial da memória humana. A dimensão neuronal da memória corresponde à sua base biológica, i. é, ao organismo com cérebro e sistema nervoso central. Essa base neurológica seria nutrida e estabilizada pelos dois outros campos de interação: o social, constituído pela rede de comunicação construída através de contatos interpessoais, e o cultural, no qual se situariam 156 tanto as representações materiais (textos, imagens, monumentos) como também práticas simbólicas (festas, rituais). Memória social e memória cultural seriam, então, de acordo com Assmann (2006, p. 33), construções coletivas. A primeira seria sustentada pelo grupo social enquanto que a segunda, pelos meios simbólicos. Naturalmente essas construções coletivas se sobrepõem muitas vezes na prática social da rememoração e da formação do passado, como aponta Harald Welzer (2001, p. 18), sendo distinguidas apenas analiticamente. O que caracterizaria a memória social, segundo esse autor, seriam os meios de prática social de construção do passado (interações, registros, fotos, espaços) que transportariam a história e construiriam o passado no uso social, sem que haja a intenção de formar uma tradição ou de transmitir a história. Aleida Assmann resume as diferenças entre essas dimensões da memória sob os aspectos dos portadores e da duração cronológica: Enquanto a memória social é a coordenação de memórias individuais produzidas por meio da convivência, de trocas linguísticas e discursos, a memória cultural e coletiva baseia-se em um conjunto de experiências e conhecimento que foi transferido de seus portadores vivos para portadores materiais de dados. Dessa forma, memórias podem ser estabilizadas através das gerações. Enquanto a memória social sempre passa com as pessoas que a compartilham, os sinais e símbolos culturais oferecem um suporte mais duradouro (ASSMANN, 2006, p. 34 – grifos da autora; tradução minha). Assmann (2006, p. 35) adverte, contudo, que a memória coletiva não deve ser imaginada como uma simples analogia da memória individual. Ao contrário, ―instituições e organismos como culturas, nações, estados, a igreja ou uma firma não ‗têm‘ memória, mas se ‗fazem‘ uma utilizando sinais e símbolos memoriais. Com essa memória, as instituições e organismos se ‗fazem‘ simultaneamente uma identidade‖. Quando se discute questões de memória e identidade aqui, tem-se em mente as considerações de Stuart Hall (2003, p. 340) sobre o momento ―pós-moderno global‖, que representaria uma abertura ambígua para a diferença e para as margens, provocando certo descentramento da narrativa ocidental, mas ao mesmo tempo viria acompanhado por uma resistência agressiva à diferença e, entre outras reações, pelo ―retorno às grandes narrativas da história, da língua e da literatura (os três grandes pilares de sustentação da identidade e da cultura nacionais)‖. Esse tipo de advertência contra as ―consequências negativas possíveis de nosso uso de identidades‖ também já havia sido manifestado por Hans Ulrich Gumbrecht (1999, p. 124), quando propôs ―minimizar identidades‖, no sentido de ―minimizar o projeto de ter identidade‖, substituindo-o por um ―jogo flexível de papéis‖. 157 Voltando o olhar para a literatura, ao se analisar um romance como Tropical sol da liberdade, de Ana Maria Machado, percebe-se nele configurações de experiências de exílio, uma estratégia de construção de identidade em contextos hegemônicos adversos. É o que se apresenta também em outro romance, A hora da estrela, de Clarice Lispector. 3. Configurações de memória e identidade em Tropical sol da liberdade Lena, a protagonista do romance Tropical Sol da Liberdade, vive um drama existencial. Mulher jovem, jornalista de profissão, ela tenta recuperar a saúde na casa da mãe e reflete sobre as várias etapas de sua vida. Atingida pelos traumas de sua militância política durante os anos de repressão militar, sua memória apresenta lapsos e seu raciocínio é lento, o que a impede de exercer sua profissão de forma adequada. Consciente dessa incapacidade, pois ―as palavras fugiam por completo, impossíveis de fisgar, ou se atropelavam‖ (MACHADO, 1988, p. 48-49), ela percebe que a cura é lenta e, para não submergir no trauma, deixando os mortos do regime militar no silêncio do esquecimento, sua luta se constitui em resgatar a si própria das fraturas internas e conseguir se articular. O desejo de montar uma peça teatral ajuda a personagem a criar esperança na cura. A encenação de experiências violentas vividas pela protagonista do romance configura-se como uma possibilidade de voltar-se novamente para o mundo, reinventar-se e desatar o nó que a amarra aos traumas passados, à dor e ao sofrimento. É Honório quem inicialmente faz Lena aventar a possibilidade de ela narrar os acontecimentos que presenciara naqueles anos de repressão sob a sua perspectiva, com a sua marca. Na visão desse amigo, contar o que sucedeu a ela seria importante, porque isso também teria acontecido com muitas outras pessoas. Concordando com Honório nesse ponto, Lena pensa inicialmente em escrever uma reportagem na tentativa de reter o passado: ―Uma coleção de testemunhos desse tempo. Um mapa de trajetórias diferentes. Ir anotando esses depoimentos, fazer um trabalho jornalístico de fôlego, em livro mesmo.‖ (35) Para Honório, porém, o jornal, ―a maior ficção do século XX‖, decididamente não seria o veículo adequado para contar essa experiência, conclusão a que também Lena chega algum tempo depois ao pensar que ―dessa vez Honório tinha toda razão. ‗A dor da gente não sai no jornal‘, já cantava um samba.‖ (35) Encontrar um meio de narrar a dor ao rememorar a experiência, esta parece ser a preocupação da personagem nesse momento. Se o jornal não constitui um veículo adequado, também a ficção não condiz exatamente com seus anseios: 158 E sentia também que ficção não tinha nada a ver com isso, podia ser uma coisa inventada ou acontecida, não estava aí a diferença, apesar do parentesco etimológico com a palavra fingimento. Onde estaria? Talvez na gana de botar para fora alguma coisa, de traduzir com palavras o olho do furacão íntimo de quem escreve, de permitir que a linguagem fosse mais importante que os fatos do enredo. Devia ser isso. Por aí... (MACHADO, 1988, p. 35) É a necessidade de externar seus sentimentos, de socializar sua experiência com a repressão que move a personagem em direção à escrita, mesmo que ainda não tenha encontrado uma forma adequada de expressar-se. Não lhe causa incômodo a diferença entre o relato testemunhal, verídico e a narrativa ficcional, se o que precisa é recuperar a memória de um passado, e com ela sua voz e sua identidade por meio da escrita: ―Deixar vir as lembranças, peneirar, separar, implicava necessariamente sentir dor de novo. E encarar de frente.‖ (114) A rememoração ocorre no plano individual e, através de critérios diversos, seleciona, organiza e sistematiza lembranças daquilo que foi vivenciado. É esse o procedimento da protagonista Lena em seu relato. Sloterdijk (1978, p. 6) afirma que narrar histórias de vida é uma forma de prática social, pois a autobiografia constitui um gênero literário no qual indivíduos organizam suas experiências de vida, colocando a dimensão individual em um contexto de interesses públicos, na busca de um sentido. Ao entrelaçar uma história pessoal com interesses coletivos, valores, fantasias e paixões, a autobiografia deixaria transparecer o instante ―mágico‖ do processo literário: a transição da experiência em conexões de sentido. Ao assumir um lugar contrário ao do grupo de referência representado pelo sistema político do país que a obriga a recorrer ao exílio, Lena encontra-se em uma situação que produz um sentimento de não-identidade e de alienação. A presença deste mecanismo negativo resulta do fato de que o sistema político brasileiro dos anos de repressão via seus opositores como inimigos perigosos, negando-se a reconhecer as vozes que não se alinhavam à sua proposta política e social. Aprisionando, rechaçando e obrigando homens e mulheres a viverem na marginalidade ou no exílio, as fronteiras naturais entre o eu e o outro tornam qualquer forma de negociação, naquele momento, traumática e impossível. 4. Configurações de alteridade em A hora da estrela Clarice Lispector explora questões como alteridade e exclusão social em seu romance A hora da estrela, publicado em 1977. O narrador-escritor Rodrigo S. M. se depara com um momento ―difícil‖: o atropelamento seguido da morte de Macabéa, uma datilógrafa de 159 origem humilde cuja história ele resolve escrever, tecendo ao mesmo tempo comentários a respeito de como concebe sua personagem. Trata-se da história de uma moça de dezenove anos com o ―olhar de quem tem uma asa ferida‖ (LISPECTOR, 1993, p. 41). A asa ferida, símbolo da incapacidade de alçar voo, metaforiza a incompetência de Macabéa de se posicionar no mundo: ―ela era incompetente. Incompetente para a vida.‖ (p. 39) Nascida em Alagoas, é levada para o Rio de Janeiro por uma tia beata, que lhe arranja emprego e morre pouco tempo depois, deixando-lhe como herança a submissão: ―Do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa.‖ (p. 44) Na descrição de sua personagem, o narrador-escritor é incisivo em destacar os aspectos negativos com os quais a compõe: ―a datilógrafa tem o corpo cariado‖ (p. 51), ―cara de tola, rosto que pedia tapa‖ (p. 39), aspecto ―pardacento‖ e com manchas, seu cheiro é ―murrinhento‖ pela falta de asseio – ―era um pouco encardida pois raramente se lavava‖ – além de sua completa desumanização, já que vive por instinto: ―Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é um cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para que, não se indagava.‖ (p. 42). Apesar de trabalhar como datilógrafa, Macabéa é semianalfabeta e não compreende o mundo ao seu redor, vivendo instintivamente e de forma totalmente alienada: ―Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.‖ Além disso, ―falava, sim, mas era extremamente muda‖ (p. 44), sem capacidade de argumentação, mesmo quando ela é brutalmente dispensada do trabalho pelo chefe grosseiro, motivo pelo qual o narrador se mostra irritado: ―Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.‖ (p. 41) A vida de Macabéa é a de uma excluída, e a sua morte é sinistra. Em seus comentários sobre a constituição da personagem, o narrador-escritor deixa clara sua intenção de denúncia, embora inicialmente não explicite seu teor: ―Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando.‖ (p. 43) Logo adiante, porém, expressa claramente seu propósito: ―através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo‖. (p. 49) Uma referência ao livro ―Humilhados e Ofendidos‖ (p. 56), publicado em 1861 por Dostoievski, corrobora a intenção do narrador de destacar a dura realidade enfrentada pelas pessoas oriundas das classes desfavorecidas da sociedade. O horror à vida miserável de Macabéa funciona como motor da denúncia, pois o escritor se sente culpado diante de tamanha desigualdade social: ―(Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga o fato de eu não a ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)‖ (p. 54) 160 O confronto com a ―asa ferida‖ de Macabéa, com a injustiça social, desestabiliza o narrador, provocando nele, além do sentimento de culpa, um questionamento sobre seu papel de escritor diante da miséria alheia: ―A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.‖ (p. 55) Sente então a necessidade de explicitar essa miséria econômica e social a fim de se redimir. Em seus comentários, porém, evidencia-se seu preconceito em relação à personagem, que define como ignorante: ―limitome a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário.‖ (p. 29) De certa forma, o narrador demonstra intolerância e má vontade com a sua personagem, não lhe concedendo o direito de migrar para tentar melhorar de vida na cidade grande. Para Rodrigo S. M., Macabéa representa o outro, o diferente, o que ele gostaria de ignorar, mas que acaba se incorporando a ele: ―Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um ruflar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo.‖ (p. 37) Ocorre assim uma transfiguração da personagem no escritor por meio do espelho, cujo significado simbólico está relacionado à busca da identidade, à autocontemplação e à reflexão sobre si mesmo. Essa identidade se constrói pela alteridade, por meio do choque com o outro. Da mesma forma como se transfigura em Macabéa, em certo momento Rodrigo se mostra ―cansado de literatura‖, afirmando ter de ―interromper esta história por uns três dias‖, durante os quais fica ―sozinho, sem personagens‖. Nesse período, então, consegue desincorporar sua criatura: ―despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer‖ (p. 88-89). Essa despersonalização, porém, não é duradoura, pois o narrador sente falta de Macabéa assim que ―emerge‖ novamente, voltando à consciência. Nesse episódio nota-se em Rodrigo um movimento da inconsciência para a consciência, que assim compreendida não é atribuição de Macabéa, pois ela não pensa, não sabe o que é, vive por instinto e, em dada circunstância, nas palavras do narrador-escritor, ―só sabia que não podia ver sangue, o resto fui eu que pensei‖ (p. 89). A Macabéa falta, pois, a autoconsciência: ―Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar.‖ (p. 48) Sem essa consciência de si, não há individualidade – uma instância que Frank (1986, p. 100) descreve como cronologicamente fluída, que se constrói num contexto social, sendo comunicável e descentralizada, isto é, sem núcleo sólido ou identidade fixa. Essa identidade deveria ser gerada por cada indivíduo como realização própria, sem que isso seja necessariamente 161 alcançado em cada caso. Essencial para essa realização seria a autoconsciência do indivíduo, um conhecimento reflexivo, no qual a pessoa se concentraria conscientemente em si mesma numa posição objetiva. Esse conhecimento de si, a autoconsciência, não impede a busca incessante por reconhecimento do eu pelo outro, apenas cria um distanciamento e uma compreensão acerca do fenômeno. De qualquer forma, é inegável, segundo a concepção de Frank, a influência do contexto social no qual a individualidade é construída. Pelo fato de Macabéa estar em uma condição de vulnerabilidade e não entender o que se passa a seu redor, ela se torna vítima do sistema excludente no qual vive. Percebe-se uma clara atribuição de papéis aos personagens no romance. Rodrigo pertence a um estrato social privilegiado, sem grandes preocupações acerca de sua existência, ao passo que a personagem criada por ele leva uma vida miserável e tem de lutar para sobreviver. Sem recursos intelectuais e financeiros, resta-lhe uma vida vegetativa e sem reconhecimento. Apenas na hora de sua morte, estendida no asfalto depois do atropelamento, algumas pessoas se agrupam em torno de Macabéa, porém ―sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência‖ (p. 100). 5. Considerações finais Em ambas as obras aqui brevemente analisadas, percebe-se a construção de identidades marcadas pela alteridade. Em Tropical sol da liberdade, é a personagem Lena que tenta recompor-se de seus traumas, reconstruindo sua identidade após as adversidades da repressão política e do exílio. Aqui, as narrativas sobre o passado estimulam a memória social do grupo. Em A hora da estrela, é o narrador-escritor Rodrigo S. M. que segue seu impulso de recriar, por meio da escritura, uma personagem em contexto hegemônico adverso. Esses processos de construção de identidades ocorrem na inter-relação com os outros: O processo de desenvolvimento da identidade não ocorre de modo puramente introspectivo; ao contrário, ele também sempre contém a relação com o meio social e, de acordo com as teorias psicossociais de identidade, acontece principalmente por meio da atuação, em interações. (GYMNICH, 2003, p. 30 – tradução minha) 162 Conforme a autora, um pressuposto básico da teoria psicossocial é que somente a identidade torna os indivíduos capazes de agir e interagir. Ao mesmo tempo, nessas interações, ela sempre é redesenhada e renegociada. Segundo Gymnich (2003, p. 30-31), ao interagir com os outros, o indivíduo estaria exteriorizando continuamente sua identidade, reagindo, tanto emocionalmente como por meio de ações, aos modelos de identidade que lhe são apresentados. Finalizando resumidamente, pode-se dizer que as formas de interação apresentadas em ambos os romances evidenciam que as identidades se constroem pela alteridade, por meio do choque com o outro. Referências bibliográficas ASSMANN, Aleida. Der lange Schatten der Vergangenheit. Erinnerungskultur und Geschichtspolitik. München: Beck, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. ERLL, Astrid; GYMNICH, Marion; NÜNNING, Ansgar (Org.). Literatur – Erinnerung – Identität: Theoriekonzeptionen und Fallstudien. Trier: WVT, 2003. FRANK, Manfred. Die Unhintergehbarkeit von Individualität. Reflexionen über Subjekt, Person und Individuum aus Anlaß ihrer »postmodernen« Toterklärung. Berlin: Suhrkamp, 1986. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Minimizar identidades. In: JOBIM, José Luís (Org.). Literatura e identidades. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. p. 115-124. GYMNICH, Marion. Individuelle Identität und Erinnerung. In: ERLL, Astrid et al. (Org.). Literatur – Erinnerung – Identität: Theoriekonzeptionen und Fallstudien. Trier: WVT, 2003, p. 29-48. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaide La Guardia Resende et. al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 21ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. MACHADO, Ana Maria. Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et. al. Campinas: UNICAMP, 2007. SLOTERDIJK, P. Literatur und Organisation von Lebenserfahrung. Autobiographien der Zwanziger Jahre. München: Carl Hanser, 1978. WELZER, Harald (Org.). A memória social. História, memória, tradição. Hamburg: Hamburger Edition, 2001. 163 PINTAR PARA NÃO ESQUECER Roseli Anater Resumo O presente trabalho fundamenta-se na pesquisa que está sendo desenvolvida junto ao Mestrado em Letras da Universidade Federal de Roraima, e discute a produção artística da artista plástica roraimense Carmézia Emiliano a luz das noções de identidade, cultura e memória. A artista é uma índia da etnia Macuxi que passou boa parte de sua vida na maloca. Somente ao vir para Boa Vista, em 1992, é que tem contato pela primeira vez com a pintura. Descobre-se artista e passa a pintar numa técnica bastante peculiar que é o estilo de arte naïf, que se caracteriza por uma técnica bastante específica, realizada na maioria das vezes por autodidatas, sem a preocupação de uma composição dentro dos parâmetros eruditos. Carmézia é enfática ao afirmar que, por meio de sua obra, representa a cultura indígena; que pinta para não esquecer suas origens e para que os outros a conheçam ou também não esqueçam. Ou seja, a artista pinta a partir das memórias do período em que viveu na maloca. Traz consigo a memória do cotidiano vivido na comunidade, da relação dos indígenas com a natureza, das lendas e mitos, das cenas de caça e pesca, do plantio, das colheitas e festas. Carmézia dialoga com suas referências culturais e étnicas através da pintura estabelecendo uma relação de trocas que enriquece a ambos. Identificar quais as características identitárias indígenas que desapareceram ou foram modificadas no decorrer do processo vivido pela artista são algumas das reflexões propostas com esse trabalho, a partir das ideias dos pensadores, Hall, Cuche e Woodward. Ainda, traçar um panorama de como se desenvolve esse processo de representação pictórica ou imagética da artista por meio de suas memórias, amparada nos teóricos Halbwachs, Bergson, Burke e Bosi, entre outros. Palavras-Chave: Memória; Cultura Indígena; Identidade. Resumen El presente trabajo se fundamenta en la investigación que está en marcha en el Máster en Letras de la Universidad Federal de Roraima y discute la producción artística de la artista plástica roraimense Carmézia Emiliano bajo las teorías sobre identidad, cultura y memoria. La artista es una india de la etnia Macuxi que vivió muchos años en la maloca. Solo al ir a Boa Vista, en 1992, tiene contacto por primera vez con la pintura. Se convierte en artista y pasa a pintar en una técnica bastante propia que es el estilo de arte naïf, que se caracteriza por una técnica muy específica, realizada en la mayoría de las veces por autodidactas, sin la preocupación de una composición dentro de los parámetros eruditos. Carmézia da énfasis al afirmar que, por medio de su obra, representa la cultura indígena; que pinta para no olvidarse de sus orígenes y para que los otros la reconozcan o también no la olviden. Es decir, la artista pinta a partir de las memorias del periodo en que vivió en la maloca. Trae consigo la memoria del cotidiano vivido en la comunidad, de la relación de los indígenas con la naturaleza, de las leyendas y mitos, de las escenas de caza y pesca, del plantío, de las cosechas y fiestas. Carmézia dialoga con sus referencias culturales y étnicas a través de la pintura, estableciendo una relación de cambios que enriquece a ambos. Identificar cuáles las características identitárias indígenas que desaparecieron o se modificaron a lo largo del proceso vivido por la artista son algunas de las reflexiones propuestas con ese trabajo, a partir de las ideas de los pensadores Hall, Cuche y Woodward. Aún, trazar un panorama 164 de cómo se desarrolla ese proceso de representación pictórica o imagética de la artista por medio de sus memorias, basada en los teóricos Halbwachs, Bergson, Burke y Bosi, entre otros. Palabras clave: Memoria; Cultura Indígena; Identidad Introdução ―Um homem que se lembra sozinho daquilo que os outros não se lembram assemelha-se a alguém que vê o que os outros não vêem.‖ Maurice Halbwachs, 1990. Este trabalho é resultado dos estudos e pesquisas realizado na Disciplina Cultura Regional, Memória e História, ministrada pela Professora Doutora Carla Monteiro de Souza1. Tem como objetivo principal, fazer uma ponte entre os textos trabalhados em sala de aula e a minha pesquisa do Mestrado1 que trata sobre a Arte Naïf da artista plástica Carmézia Emiliano. Carmézia Emiliano, índia da Etnia Macuxi, nascida na maloca do Japó, município de Normandia e há alguns anos vivendo em Boa Vista é uma pintora que executa sua obra dentro de um estilo de pintura bastante peculiar, conhecido como Naïf. Cabe aqui, brevemente, apresentar uma descrição do que seja Arte Naïf: Designação de origem francesa, naïf significa literalmente – ingênuo – para as pinturas e esculturas de técnica autodidata, livre, rude e frequentemente popular. Arte espontânea ou primitiva também é definição utilizada. Espontânea por ser uma arte realizada por autodidatas, sem a preocupação de uma composição dentro dos parâmetros eruditos. Ou seja, não segue as regras de composição criadas no Renascimento, (proporcionalidade, perspectiva linear, ponto de fuga, etc.). Utiliza basicamente as cores primárias e secundárias em grande profusão, por isso na sua grande maioria são bastante coloridas, com formas e cores uniformes e chapadas. É uma arte baseada na cultura do seu povo, em especial nos aspectos religiosos e sociais, destacando a simplicidade, a pureza e a ingenuidade dos artistas que a praticam. Minha pesquisa propõe, a partir das características da trajetória dessa artista, problematizar e investigar o que a leva a produzir segundo um estilo tão particular e específico, uma vez que só conheceu esse tipo de pintura ao deixar sua comunidade Macuxi e vir morar em Boa Vista, assim como, entender esse processo de pintar a partir das memórias do tempo em que viveu na maloca, visto que hoje seu contato com sua gente é esporádico. Também, discutir e problematizar quais características identitárias indígenas 165 permanecem e as que desapareceram ou foram modificadas no decorrer do processo de transculturação vivido pela artista. Carmézia é um exemplo de um fenômeno de transição, de transculturação por migração. Traz consigo a memória do seu cotidiano na maloca, da relação com os indígenas e a natureza, das lendas e mitos, das cenas de caça e pesca, do plantio, das colheitas e festas. Essa memória pictográfica impregnada em seu ser servirá de base e ―inspiração‖ para grande parte de sua produção artística e, agregando-se a essas imagens, farão também parte de sua obra as cenas dos espetáculos circenses. Aliando a principal característica da produção artística da Carmézia, que é pintar as imagens que permanecem vivas em sua memória e amparada nos textos que tratam sobre memória e cultura dos autores estudados nessa disciplina, pretendo traçar um panorama de como se desenvolve esse processo de representação pictórica ou imagética da artista. A memória proporcionando o prazer da pintura Carmézia Emiliano é uma artista plástica, índia, de temperamento introvertido, de poucas palavras, fala compassada, de frases curtas e sotaque marcante. Divide-se entre os afazeres domésticos, o cuidado com a família, sua pintura e colaborando nas tarefas do modesto circo do seu marido. Carmézia é um exemplo de fenômeno de transição, de pessoa traduzida, conforme o conceito atribuído por Hall (2006) de pessoas que transpõem fronteiras, mas mantêm fortes vínculos com o seu local de origem e suas tradições. Assim, aprendem a negociar com as novas culturas onde passam a viver sem serem completamente assimiladas por elas, pois, ―suas identidades não são mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas‖ (WOODWARD, 2000, p.87). À medida que sua obra torna-se conhecida e rompe as fronteiras do Estado de Roraima, Carmézia é agraciada com o Prêmio Buriti da Amazônia de Preservação do Meio Ambiente, na categoria revelação, em 1996. A partir de 2006, sob a orientação do roraimense Luitgards1, participa de workshops em Brasília e São Paulo, com artistas naïfs como Waldomiro de Deus e Clóvis Júnior. Em 2006, participa pela primeira vez da Bienal Naïfs do Brasil, promovida pelo SESC/SP em Piracicaba e suas duas obras são agraciadas com o prêmio aquisição, passando as mesmas a fazer parte do acervo daquela instituição. Em 2008, novamente participa da Bienal com duas obras, sendo que uma recebe Menção Especial. Na Bienal de 2010 tem mais duas obras selecionadas e uma recebe o Prêmio Incentivo. Recentemente, de agosto a dezembro de 2012, é novamente selecionada e 166 participa pela quarta vez do maior evento de Arte Naïf do Brasil. Vale ressaltar que, Carmézia também já participou em exposições em Brasília, Manaus e aqui em Boa Vista, tendo suas pinturas em coleções particulares e acervos como, por exemplo, no Museu Internacional de Arte Naïf, no Rio de Janeiro. Quero relatar a experiência vivida recentemente entre a Carmézia e eu. Como já citado no parágrafo anterior, a artista foi selecionada para a Bienal Naïfs do Brasil – 2012, na sua décima primeira edição. O SESC Piracicaba – SP, que é o organizador do evento enviou para a pintora, por meio de seu marchand, um questionário para ser respondido e também solicitando que a mesma escrevesse uma mensagem ou fizesse um desenho. O professor Luitgards, que mora em Brasília, mandou esse material para mim e pediu-me que orientasse a Carmézia na elaboração desse trabalho, pois o mesmo faria parte do catálogo da Bienal. Essa seria também uma forma de estreitarmos mais nossos laços e nos conhecermos melhor, uma vez que, temos uma longa jornada pela frente. No dia combinado, 07 de junho de 2012, fui até a residência da artista para realizarmos o trabalho. Carmézia tem bastante dificuldade para escrever, pois estudou somente até a segunda série do Ensino Fundamental. Combinamos que eu leria as perguntas para ela, escreveria suas respostas, conforme o seu entendimento e então ela copiaria para o material enviado pelo SESC. E assim foi feito. A outra etapa que consistia em escrever uma mensagem ou elaborar um desenho foi surpreendente. Como em um passe de mágica sumiu de minha frente aquela pessoa com tanta dificuldade na escrita. Carmézia, literalmente, se apossou do papel para o desenho e dos lápis de cor e exclamou: ―O que vou pintar? Acho que vou desenhar as índias tomando banho‖. Em seguida parece que se transportou para outro mundo, como se nada mais existisse. Ficamos o Léo Malabarista, seu marido, e eu conversando e ela desenhando. Depois de um determinado tempo, como de vez em quando eu ―espiava‖ o que ela estava fazendo, ela comunicou que resolveu pintar ―as índias fazendo farinha‖ e, novamente retornou ao seu mundo todo particular. Com o desenho pronto, os olhos brilhando e o semblante feliz, explicou que o mesmo representava as etapas da feitura da farinha de mandioca. A índia ralando a mandioca, espremendo para tirar o sumo e fazendo beiju. O mais incrível é que Carmézia parece que se transforma no momento em que está pintando. Em nenhum instante se mostrou insegura, ou buscou qualquer tipo de material de apoio para auxiliá-la na elaboração do desenho, tais como, outros desenhos ou imagens que pudessem servir de referência. Eis o desenho: 167 Quando ela comunica que optou por desenhar as índias fazendo farinha ao invés de desenhá-las tomando banho, remeteu-me a Pêcheux (2010) quando afirma que a memória não é homogênea e sim um espaço de deslocamentos e conflitos. Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos (PÊCHEUX, 2010, p.56). Embora, não tenha sentido em Carmézia, necessariamente um conflito ao fazer a opção por uma ou outra representação em seu desenho, é um momento em que ilustra efetivamente a afirmação de Pêcheux sobre como a memória se processa. Quando questionada, ou quando fala de sua pintura, sobre o que gosta de pintar, Carmézia é enfática ao dizer que pinta a cultura indígena, a cultura de sua gente. Ela faz questão de se colocar como índia e, embora, hoje, já agregue em seu trabalho elementos da cultura dos não índios, especialmente alguns elementos circenses, uma vez que atualmente é um meio pelo qual também circula através do circo administrado por seu marido, sua obra é essencialmente representativa da cultura indígena. Somos sabedores de que no âmbito das Ciências Sociais, identidade cultural se caracteriza por sua gama de diferentes significados e sua capacidade de transformação, de acordo com os conceitos defendidos por sociólogos, antropólogos, ou mesmo cientistas sociais. Cuche, (2002) coloca que: 168 A identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente. [...] A identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela identifica o grupo e o distingue dos outros grupos. Nesta perspectiva, a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseado na diferença cultural (CUCHE, 2002, p.177). Nesse sentido, posso afirmar que ao se identificar como índia e dizer que pinta a cultura de seu povo, Carmézia se coloca como pertencente a um determinado grupo e se localiza dentro de um determinado sistema social. Porém, quando ela, aqui em Boa Vista, ou mesmo em Brasília ou São Paulo, leva sua cultura, através de sua obra, para a apreciação de outros grupos ou sistemas sociais, ela se coloca também, como parte desse grupo, pois ali, acima de tudo está a artista submetendo sua obra, e não a índia e sua arte, apenas. É nesse momento que corroboro o que afirmei anteriormente quando, fundamentada em Hall (2006) e Woodward, (2000) apresento Carmézia como exemplo de pessoa traduzida que aprende a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. É nesse longo e paciente processo de hibridização cultural e de assimilação de um novo modo de vida urbano, embora periférico, que essa artista roraimense vai mediando sua identificação. Essa pessoa multifacetada, em que se confunde, transpõe-se a mulher índia e a mulher artista que se coloca como sujeito que tem algo a dizer através de sua obra. Pois, conforme Souza (1994, p.xiii), ―a identidade não é apenas uma faceta do sujeito, mas uma faceta que muda a cada instante em que o sujeito efetivamente diz o que tem que dizer‖, e Carmézia Emiliano diz o que tem que dizer se constrói multifacetada por meio de sua obra. É na linguagem da pintura que ela se torna sujeito de seu tempo e espaço e avança em suas conquistas. Carmézia quando pinta evoca lembranças do período em que vivia na maloca, fato comprovado com a experiência que vivi junto a ela e descrita anteriormente, quando desenhou para o catálogo da Bienal Naïfs. Segundo Davallon, (2010, p.25), ―para que haja memória é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância‖, que cause uma impressão forte o suficiente para promover a ―lembrança‖. Ainda, de acordo com Davallon, uma imagem, independente do que ela pode representar (os objetos do mundo) ou as informações que possa oferecer, produz cultura, ou seja, traz toda uma carga simbólica. Quem observa uma imagem desenvolve uma atividade de significação; uma liberdade de interpretação, que pode variar conforme as leituras, fazendo assim com que a imagem comporte um programa de leitura. 169 Duvignaud, (1990), no prefácio do livro de Halbwachs, A Memória Coletiva, também enfatiza a lembrança e a sua tradução em linguagem. A memória individual existe, mas ela está enraizada dentro dos quadros diversos que a simultaneidade ou a contingência reaproxima momentaneamente. A rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados. Nada escapa a trama sincrônica da existência social atual, e é da combinação desses diversos elementos que pode emergir esta forma que chamamos de lembrança, porque a traduzimos em uma linguagem (DUVIGNAUD, 1990, p.14). E, nessa análise da produção pictórica de Carmézia a partir das lembranças, sem dúvida, enraizadas no quadro das suas memórias, não posso deixar de citar e fazer um paralelo entre Bergson e Halbwachs, os grandes pensadores da memória. De acordo com Bosi (1994), Bergson em seus estudos apresentados no livro Matéria e Memória defronta a subjetividade pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). O espírito está ligado à memória e a matéria à percepção. Ele não tematiza os sujeitos que lembram; não relaciona os sujeitos com as coisas lembradas, ou seja, não trata a memória como fenômeno social. Para Bosi: Bergson quer mostrar que o passado se conserva inteiro e independente no espírito; e que o seu modo próprio de existência é um modo inconsciente. [...] Antes de ser atualizada pela consciência, toda lembrança ―vive‖ em estado latente, potencial. Esse estado, porque está abaixo da consciência atual (―abaixo‖ metaforicamente) é qualificado de ―inconsciente‖ (BOSI, 1994, p.51-52). Já, Halbwachs, vai estudar não somente a memória em si, mas os ―quadros sociais da memória‖, as interferências do meio social na evocação da memória. Bosi afirma, tendo por base o pensamento de Halbwachs: ―A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo‖. (Bosi, 1994, p.54). Halbwachs afirma: Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos. É porque concordam no essencial, apesar de algumas divergências, que podemos reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-las (HALBWACHS, 1990, p.25). Ou seja, da mesma forma como muitas vezes discutido em sala de aula, podemos evocar nossa memória para um determinado acontecimento quantas vezes quisermos, nas mais diversas situações e em diferentes períodos de tempo que nossas lembranças virão 170 adaptadas à situação atual. Nesse contexto mais uma vez posso usar a obra de Carmézia. Em determinado período ela pinta uma série representando danças indígenas, nas quais podemos observar diferentes representações de uma mesma temática. Outro autor que, assim como Bosi, se apropria dos conceitos de Halbwachs para elaborar seus pensamentos e teorias é o historiador Peter Burke, que enfatiza a importância dos meios pelos quais se registra e se recorda o passado, afirmando que ―as analogias entre o pensamento individual e o de grupo são tão ilusórios quanto fascinantes‖. (Burke, 2000, p.72). Porém, é fundamental e necessário cuidado ao usar determinados termos, importante estar atento e perceber as diferentes maneiras pelas quais ―as idéias dos indivíduos são influenciadas pelos grupos a que eles pertencem‖. (idem, p.72). Como historiador, Burke ressalta a necessidade de se estudar a memória como fonte histórica, com teor crítico e como fenômeno histórico, que ele chama de história social do lembrar. Nesse sentido, destaca que: Considerando-se o fato de que a memória social, como a individual, é seletiva, precisamos identificar os princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do tempo. As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade (BURKE, 2000, p.73). Podemos, da mesma forma que Burke traça uma analogia entre o pensamento individual e coletivo, traçar uma analogia entre o pensamento de Bosi e Burke, trazendo-os para a forma como Carmézia produz a sua obra e fazendo, ainda, uma ponte com o conceito de identidade cultural de Cuche quando ele afirma que ―deve-se considerar que a identidade se constrói e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais‖. (Cuche, 2002, p.183). Da mesma forma esse conceito aplica-se a memória. Evidentemente, a obra da artista reflete a cultura dos grupos sociais com os quais ela convive, assim como a representação cultural por meio de sua pintura é materializada através das lembranças que ela evoca em diferentes momentos e situações. 171 Considerações Finais A partir desse esboço de análise que aqui busquei fazer, uma vez que algo mais consistente demandaria um aprofundamento nos estudos dos teóricos do assunto, acredito não ter respostas definidas, mas algumas reflexões avançaram. Como o tema memória é de fundamental relevância e fator primordial para minha pesquisa, que está só engatinhando, considero que algumas colocações feitas por Burke sejam essenciais. Se levar em conta que Carmézia se desloca de uma comunidade indígena, na qual vive por mais ou menos trinta anos, para a periferia de Boa Vista; que é a partir de quando passa a residir em Boa Vista que começa a pintar e que sua pintura representa, na grande maioria de suas obras, a cultura indígena, é de fundamental importância, entender e identificar de que forma sua memória seleciona as imagens que reproduz na sua pintura. A memória social do grupo com o qual conviveu (em especial as histórias que seu avô contava) na infância e boa parte da vida adulta me parecem determinantes para sua produção artística. Burke afirma que ―a história social do lembrar é uma tentativa de responder a três perguntas principais: Quais os modos de transmissão de memórias; como esses modos mudaram ao longo do tempo e, de modo inverso, quais os usos do esquecimento?‖ (Burke, 2000, p.73). São três questionamentos que, acredito, deverão nortear minha pesquisa, pois, são essas memórias que foram se construindo e sendo elaboradas ao longo do tempo que servirão de referência para a produção artística da Carmézia. Devendo lembrar sempre que é a memória e o passado, que legitimarão o presente. Referências BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru – SP: EDUSC, 2002. DAVALLON, Jean. A Imagem, uma arte de memória? In: ACHARD, Pierre. (Org). Papel da Memória. 3ª edição. Campinas – SP: Editora Pontes, 2010. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre. (Org). Papel da Memória. 3ª edição. Campinas – SP: Editora Pontes, 2010. SOUZA, Octavio. Fantasia de Brasil. As identificações na busca da identidade nacional. São Paulo: Escuta, 1994. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.) Identidade e Diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis – RJ: Vozes, 2000. 172 LEITURA LITERÁRIA E ALTERIDADES Rubenilson Pereira de Araujo1 Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo (orientador)1 Resumo:O objetivo deste texto é relatar uma experiência docente na disciplina de Língua Portuguesa com a leitura de textos literários infantis,abordando a temática da diversidade sexual e relacionamentos interpessoais na sociedade vigente. O público-alvo é composto por adolescentes regularmente matriculados nas duas séries finais do Ensino Fundamental (8º e 9º anos) da Educação Básica, em uma escola públicade tempo integral da rede estadual de ensinono município de Porto Nacional, estado do Tocantins, no ano letivo de 2012.Ao longo do texto, mediante os dados obtidos, tecemos algumas reflexões teóricas sobre o ensino de literatura e formação de leitores,advindos de pesquisas pós-estruturalistas no campo educacional e dos estudos literários.Osresultados apontam a necessidade de se repensar a leitura no âmbito escolar e propor ações indissociáveis de letramento linguístico e literário para a formação de sujeitos aptos a exercer a real cidadania na contemporaneidade, contribuindo assim, para uma sociedade mais humana e igualitária. Palavras-chave:Educação literária; Leitura; Diferenças. Abstract:The aim of this paper is describe a teaching experience inPortuguese Language by reading literary texts for children about sexual diversity and interpersonal relationships in actual society. The students consist of teenagers from two upper grades of elementary school (8th and 9th grades) Basic Education in a public school full-time in state schools in the town of Porto Nacional, in Tocantins state in academic year 2012. Throughout the text, using the data obtained, we make some theoretical reflections on the teaching of literature and training of readers, coming from poststructuralist research on the educational and literary studies. The results suggest the need to rethink the reading in schools and propose actions inseparable literacy and literary language for the creation of individuals able to exercise real citizenship in contemporary age,contributing to a more human and egalitarian society. Keywords:Literary Education; Reading; Differences 1. Introdução Suscitar em crianças e jovens o hábito da leitura é livrá-los da vida rasa, superficial, fútil, e educá-los no diálogo frequente com personagens, relatos e símbolos (a poesia) que haverão de dilatar neles a virtude da alteridade, de uma relação mais humana consigo mesmos, com o próximo, com a natureza e, quiçá, com Deus (Frei Betto)1. Atualmente, veiculam-se discursos midiáticos de que a educação pública de qualidade ―é para todos‖, entretanto persiste resultados desanimadores com índices ainda elevados de evasão e/ou abandono escolar, principalmente nas séries finais da Educação Básica.As avaliações internas e externas apresentam déficits significativos de desenvolvimento das habilidades de leitura, ou seja, muitos de nossa/os aluna/os ainda 173 estão na mera decodificação linguística do texto e ainda há entre aqueles que concluíram a educação básica, os que se enquadram no índice de analfabetismo funcional1. Em nível nacional, notamos que as políticas educacionais vêm tentando implantar/implementar ações de efetivação da qualidade do ensino e aprendizagem em nossas escolas públicas, um divisor de águas foi o projeto dos Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998 (doravante PCN), os quais buscam equalizar diretrizes e orientações curriculares para a educação básica brasileira: O projeto que fundamenta os PCN pressupõe a conscientização de que o fracasso escolar localiza-se no campo da leitura e da escrita; por causa disso, o objetivo geral para o ensino do Português nas quatro últimas séries do Ensino Fundamental consiste em propiciar ao aluno o uso eficiente da linguagem. Concretizado esse objetivo, realizar-se-ia a finalidade principal dos PCN, a saber, o exercício competente e consciente da cidadania. (ZILBERMAN 2003, p.259). Diante de tal prerrogativa, podemos perceber a importância da área de conhecimento Linguagem, Códigos e suas Tecnologias1 no papel educacional no contexto de formação de nossas alunas e alunos inseridos na rede municipal, estadual e/ou federal de ensino. A proposta ideal é promover o uso efetivo da língua na interação social, onde o/a aluno/a sinta-se de fato como falante nativo e usuário do idioma português, revelando assim, o seu papel cidadão integrante ao meio social e também consciente de sua subjetividade. Ainda sobre o papel da área de ―Linguagens, Códigos e suas Tecnologias‖ na formação do/a aluno/a, notamos a importância da necessidade de se formar o/a leitor/a para que a ―leitura de mundo e a leitura da palavra‖1 se complementem e formem de fato um indivíduo apto a exercer de maneira cônscia a sua cidadania. Entretanto que necessitamos rever a nossa prática sistêmica de formação de um/a leitor/a apto/a a exercer a sua cidadania. Uma das formas viáveis seria valorizar as idiossincrasias dos sujeitos, permitir-lhes o desenvolvimento de sua subjetividade e convivência com o outro, facilitando assim, os processos de interação e construção da alteridade entre os pares [...] penso que temos dado insuficiente atenção ao papel da leitura literária no desenvolvimento dessas tão visadas proficiências. E, por outro lado, percebo que temos refletido pouco sobre aspectos da leitura que não estão diretamente relacionados à proficiência, como a própria constituição do sujeito leitor, no processo de ensino aprendizagem. (RANGEL 2008, p. 146) Notamos, portanto, o papel importante da Literatura, enquanto manifestação artística, na complementariedade de formação de um sujeito autônomo e apto a conviver 174 socialmente. Abordamos ainda, de acordo com Candido (1972), o caráter de formação/educação humana, propiciado pela literatura, pois ―por meio do ensino [dessa] disciplina, poderíamos mostrar aos estudantes novos caminhos, estimulá-los a permitir que novas mentalidades aflorem‖ (FACCO, 2009, p. 163). Neste sentido, a abordagem da literatura torna-se ―temida porque suscita duas tensões: a da força humanizadora e porque se teme a sua indiscriminada riqueza de sentidos‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 43).Com isso, a educação literária contribui para a edificação de pessoas mais críticas, reflexivas e humanas; o que contraria a pretensa alienação de pessoas pela classe dominante. Ainda em relação à literatura aliada à pedagogia, é importante enfatizar que a leitura do texto literário não visa apenas ideias moralizantes ou educativas, mas acima de tudo, provoca ―uma quebra nas tensões entre atenção e controle, brincadeira e ensino, fruição e aprendizagem, espontaneidade e intervenção pedagógica‖ (CORSINO, 2010, p. 199). Neste impasse, é salutar afirmar que ―uma relação com a literatura que se obriga a ser apenas pedagógica dificulta o potencial da criança para se tornar um leitor literário [afinal], a literatura não tem obrigação com o conhecimento, mas promove o conhecimento‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 43). Diante dessa sutileza e profundidade de ações, podemos notar explicitamente a necessidade de empreender ações de educação literária em nossas escolas e/ou espaços públicos. 2. Experiência de Educação Literária no Tempo e/ou Educação Integral Na rede estadual de ensino do estado do Tocantins, seguindo uma tendência das políticas públicas nacionaisnos últimos anos, há uma tentativa de implantação das escolas de tempo integral, ou seja, em meio a tantos resultados insatisfatórios, o governo, gradativamente, está ampliando a jornada diária dos alunos nas escolas públicas. Academicamente, notamos que o número de publicações de pesquisas que concernem a respeito do tempo e educação integral ainda é considerado insipiente, entretanto verificamos que no cenário brasileiro, a demanda pelo tempo integral, especificamente, apresenta uma forte base legal, de modo que podemos observar sua inclusão na LDB 9394/96: Art.34. A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola [...] Art.87. É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei [...]5o. Serão conjugados todos os esforços objetivando a progressão das redes escolares públicas urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral. 175 Diante do que preconiza a lei, sabemos que infelizmente, muitas práticas eleitoreiras, usam tal iniciativa como atos exclusivos de sua gestão dizendo tratar-se de algo inédito em seu governo, entretanto, como demonstrado anteriormente, trata-se apenas de um embasamento legal que fundamenta a educação pública brasileira, visto tal lei ter sido promulgada e estar em vigência no país há quase duas décadas. Tal iniciativa, portanto, é apenas um cumprimento do que preconiza a lei que rege o ensino no Brasil e não meros favores políticos à população. A nossa experiência de leitura de textos literários em questão foi realizada numa escola que se encontra em fase de implantação do tempo/educação integral. Trata-se de uma unidade escolar de ensino fundamental que atende uma clientela de aproximadamente150alunos de classe socioeconomicamente desfavorável. As turmas-alvo de nossa experiência de leitura de textos literários foram respectivamente o 8º e 9º ano nas aulas de Língua Portuguesa. Trata-se de um número relativamente pequeno de alunos por sala, o que, por tese, facilitaria a nossa intervenção pedagógica com um acompanhamento mais sistemático e individualizado. As duas turmas são compostas por alunos de uma faixa etária entre 12 a 15 anos, provenientes de famílias proletárias. Dividimos a turma em duplas e/ou trios por escolhas e/ou afinidade dos próprios discentes e distribuímos três exemplares originais de livros de literatura infantil que abordam a diversidade sexual, a saber: Livro 1: O gato que gostava de cenouras, de autoria de Rubem Alves;Livro 2: Olívia tem dois papais, de Márcia Leite eLivro 3: Menino brinca com menina?, de Regina Drummond. O livro 1 aborda metaforicamente a temática homoafetiva narrando a trajetória de um gato (Gulliver) vegetariano e seus conflitos interiores e nos relacionamentos interpessoais em virtude de sua identidade ―diferente‖. Durante a leitura do mesmo, a dupla emitia gargalhadas e permanecia compenetrada na leitura. A temática do livro 2 trata da especificidade das famílias homo parentais, ou seja, das novas possibilidades de configurações familiares na contemporaneidade. A dupla e/ou trios que leu a narrativa, também se mostrou envolvida e,periodicamente, associavam com as ilustrações disponibilizadas nas páginas do livro. O terceiro livro, também em seu suporte original, aborda as peripécias da infância marcada pelas proibições e interdições sob a vigilância dos corpos para não se render aos possíveis desejos homoafetivos. A dupla e trio de leitores desta obra vibrava com cada desenlace do enredo. 176 O fato de optarmos por livros da literatura infantil foi propositalmente romper com o paradigma de divisão e destinação de livros por idade, pois a ―boa literatura‖ não se fixa em divisões de determinado público-alvo, afinal ―a divisão de livros por faixas etárias é artificial, sendo mais uma invenção da escola e do que do literário em si‖ (MAGALHÂES, 2008, p. 10). Ainda de acordo com a mesma autora, Um bom texto literário, embora produzido para o público infantil, pode agradar ao leitor, independentemente de sua idade [...]. A literatura desconhece, portanto, as divisões de faixa etária, pois, ainda que os textos se diferenciem pela linguagem, todos eles apresentam, entretanto, um substrato atemporal, vinculado à sensibilidade, à imaginação e à criatividade, que pode dialogar com os leitores, independentemente de idade, época, local ou linguagem (p. 10 e 11). Tais pressupostos foram comprovados no decorrer da leitura realizada pelos alunos do 8º e 9º ano, pois de maneira geral, envolveram-se significativamente na leitura das narrativas em questão. A temática escolhida de abordagem nas obras literárias foi devido a necessidade de se efetivar um currículo que aborde a questão dos estudos de gênero imbricados com a identidade e diferença no tocante à diversidade sexual, pois compartilhamos da ideia de que ―a escola perde ao cercear os temas existenciais, entendidos como aqueles que abordam a morte, o medo, o abandono, as separações, a maldade humana, a sexualidade, entre outros‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 43). Além disso, háOrientação Sexual nos temas transversais propostos pelos PCN (1998) que orientam uma abordagem inter e transdisciplinar nas diferentes áreas e/ou disciplinas que compõem o currículo escolar; entretanto [...] o que temos presenciado ao longo dos anos é uma ausência em nossos currículos escolares referente à temática homossexual ou sobre questões diversas relacionadas às (homo) sexualidades, como se nossos alunos fossem todos heterossexuais e se adequassem perfeitamente às práticas discursivas e de (não) subjetivação, praticamente impostas por uma sociedade patriarcal e falocêntrica (ARAUJO, 2011, p. 18). Notamos, de modo geral, que temas como a sexualidade humana são silenciados principalmente porque ―a escola tem receio na abordagem por uma questão, ainda, de tabu‖. Entretanto, é importante perceber que a opção pela literatura infantil torna-se mais instigante, uma vez que ―por meio da literatura infantil é possível tratar desses assuntos com a delicadeza necessária‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 49-50). Um dos primeiros fatores observados na experiência com textos literários foi a ratificação de que muitos alunos sentem-se enfadados com a abordagem de leituras de 177 temas obsoletos que não dialogam com as suas inquietações existenciais, prevalecendo a impressão de ―há uma tentativa da escola de, por meio da filtragem recorrente dos textos, cercear a consciência crítica das crianças‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 43). Além disso, notamos a dificuldade de adaptaçãoà nova realidade imposta pelos pais e/ou responsáveis ampliando o tempo da jornada escolar. Em instrumentos diagnósticos (questionários),aplicados anteriormente, visando à sondagem da realidade deste/as aluno/as inserido/as na rotina de tempo integral, notamos que muito/as estão na escola de jornada ampliada por imposição de outrem (pais,responsáveis ou mesmo por questões/condições financeiras) e alguns, devido não ter encontrado vagas nas outras escolas de tempo regular do entorno. Notamos ainda que a infraestrutura da escola em questão continua nos moldes tradicionais, os espaços físicos ainda são considerados insipientes, visto as salas de aula ainda não disponibilizarem de um conforto melhor e as aulas ainda permanecerem no sistema tradicional de métodos meramente expositivos, como podemos observar na seguinte nota de campo: [...] encontrei alunos visivelmente desmotivados, alguns estavam de cabeça baixa sobre a carteira. Cumprimentei-os com um ―bom dia!‖ e pouquíssimos responderam-me. Falei com uma voz significativamente audível, solicitando-os ‗que acordassem para a vida‘. Aos poucos, foram levantando as cabeças, afirmando que tinham tido uma aula monótona e desejavam voltar para casa. Verifiquei que apenas dois alunos trouxeram o livro didático da disciplina de Língua Portuguesa. Informei-lhes que teríamos uma atividade de leitura sobre a convivência com a diversidade durante a aula [...] (Anotações docentes - 01/03/2012). Outro ponto preponderante observado ainda no início da aplicação das atividades previstas dessa experiência em relação à formação de leitores de textos literários foi a consciência de que ―o primeiro espaço da literatura na sala de aula é o lugar do texto, da leitura do texto literário. Tudo se inicia com o imprescindível e motivado contato com a obra‖ (COSSON, 2010, p. 58), atrelado a este contato com a obra está a importância do/a leitor/a tocar o texto fisicamente em seu suporte original, onde os mesmos tiveram a oportunidade de sentir a textura do próprio livro, visualizando as gravuras, manuseando-os. Percebemos que a didatização e/ou escolarização1dos gêneros textuais parece afugentar o gosto pela leitura. Notamos também que muitas duplas e/ou trios realizaram a pré-leitura ou leitura periférica da narrativa, visualizando todas as gravuras, antes mesmo de mergulharem na leitura propriamente dita. Foi visível o envolvimento dos alunos, agrupados em duplas e/ou trios manuseando-o no primeiro contato com o livro. Outro item observado durante esta experiência é o quanto parece arraigado no imaginário sociocultural da escola e, consequentemente dos alunos, a concepçãoda 178 leitura utilitária. Provavelmente, esse utilitarismo esteja relacionado à concepção de leitura deve-se aos resquícios de uma sociedade eminentemente hedonista de séculos anteriores.Podemos observar tais questões com as interrogações unânimes da turma insistindo em saber o que faríamos após a leitura, se era para responder um questionário/ ficha, resumo ou algo similar. Mediante a nossa resposta também insistente de apenas lerem, muitos chegaram a questionar: ―Então não é para fazer nada?‖ Ou ―É para passar o tempo?‖: Na turma do 8º ano, os alunos estavam bastante inquietos, falando alto e dizendo que não estavam a fim de copiar naquela aula. Expliquei-lhes que realizaríamos uma aula de leitura de narrativas interessantes e, de imediato, o aluno V.A.Rperguntou o que faríamos logo após esta leitura e insistiu na interrogação: ―Vamos ter que copiar toda esta história?‖apontando para um dos livros ainda fechados sobre a mesa. (Anotações docentes 01/03/2012). Tal concepção contraria a ideia da educação literária, pois [a] literatura, assim, não seria apenas o instrumento de uma possível expansão do domínio linguístico das crianças, como o hábito da leitura ou para escrever melhor, mas sua função seria a de propiciar novas possibilidades existenciais, sociais e educacionais (OLIVEIRA, 2010, p. 46). Isso nos leva a crer que pouco se lê na escola por prazer ou por fruição estética, ou seja,―a leitura literária está diretamente atrelada ao cumprimento de tarefas escolares‖ (SILVA, 2005, p 650). Surge, portanto a premente necessidade de ―incentivar a fruição do texto, o prazer da leitura, o alargamento da sensibilidade, da imaginação, da criatividade‖ (MAGALHÂES, 2008, p. 6) para que dessa forma possamos contribuir na formação de seres humanos mais sensíveis à dor do outro e das mazelas sociais. Após o término de uma aula de leitura (60 minutos), enquanto eles liam de maneira envolvida, eu realizava anotações em meu caderno de campo e ali estava convicto de não estava ―perdendo tempo‖ e sim, ganhando-o. 3. Resultados e Reflexões finais Ao término dessa experiência de leitura de textos literários com os adolescentes do 8º e 9º ano do Ensino Fundamental, matriculados numa escola de tempo integral, a sensação que nos permeia é de que o trabalho com as linguagens é profícuo, amplo e complexo. Necessitamosevitar a indissociabilidade entre a educação linguística e a educação literária para de fato contribuirmos ―por meio da literatura, [para que] crianças e jovens [tornem-se] mais conscientes, mais críticos, mas também mais sensíveis, menos segregantes‖ (MARTINS e GOMES, 2010, p. 168). 179 Nas produções de textos escritos motivados pelas leituras literárias em suportes impressos e digitais, bem como as discussões tecidas durante esta sequência didática, as reflexões foram de aceitabilidade da diferença como fator propulsor das convivências interpessoais: Eu não acho certo pessoas que não aceitam as diferenças dos outros, batem, xingam [...] cada pessoa tem seu jeito de ser e ninguém tem a ver com o seu jeito, então vamos saber respeitar as diferenças! (Aluna ECS – 8º ano, 13 anos) [...] Assim como eu ou qualquer outra pessoa, tem o seu jeito de ser, muitos ainda não aceitam as escolhas ou condições dos outros. Não discrimine, pois todos são iguais. (Aluna AFS – 9º ano, 14 anos). Diante dos textos produzidos e das mudanças de posturas percebidas nos relacionamentos interpessoais dos discentesao longo do ano letivo de 2012, notamos que o trabalho docente é também uma ação política e vale a pena intensificá-lo porque ―falar em diversidade e diferença implica posicionar-se contra processos de colonização e dominação‖ (MARTINS e GOMES, 2010, p. 145). O resultado não é imediato, mas profundo e sutil, pois se trata de formação das personalidades humanas que podem contribuir com uma sociedade mais humana e solidária. Nesta tarefa, encontramos na educação literária uma forte aliada,afinal [A] Literatura vem ocupando um lugar importante nesse cenário, em virtude de seu caráter mágico, ficcional e também discursivo, ou seja, pode-se introduzir discursos afirmativos, humanizadores, sobre as diferenças tratadas de forma desigual no contexto social no qual alunos e docentes vivem e se realizam como sujeitos no mundo (MARTINS e GOMES, 2010, p. 144). Para tanto, necessitamos de professores e demais agentes educacionais comprometidos com a formação consciente de novas gerações, aptos a assumirem o papel de mediadores de leitura do mundo e da palavra para o exercício cônscio da plena cidadania. REFERÊNCIAS: ALVES, R. O gato que gostava de cenoura. São Paulo: Loyola, 1999. ARAUJO, R. P. de. Gênero, diversidade sexual e currículo: um estudo de caso de práticas discursivas e de (não) subjetivação no ambiente escolar. 2011, 151fls. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins (UFT), Araguaína, 2011. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: MEC/COLTED, 1996. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa: Ensino Fundamental II. Brasília/Secretaria de Educação Fundamental: MEC/SEF, 1998. 180 CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e Cultura, SPC, v. 24, n. 9, set. 1972. CORSINO, P. Literatura na educação infantil: possibilidades e ampliações. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educcação Básica, 2010. COSSON, R. O espaço da literatura na sala de aula. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educcação Básica, 2010. DRUMMOND, R.Menino brinca com menina? São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006. FACCO, Lúcia. Era uma vez um casal diferente: a temática homossexual na educação literária infanto-juvenil. São Paulo: Summus, 2009 LEITE, M. Olivia tem dois papais. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2010. MACIEL, F. I. P. Educação, leitura e literatura: diálogos possíveis. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educcação Básica, 2010. MAGALHÃES. H. G. D. A importância das leituras de livre escolha na formação do leitor. Via Atlântica/USP, São Paulo, 14: 119-128, dez. 2008. MARTINS, A. A. e GOMES, N. L. Literatura Infantil/Juvenil e diversidade: a produção literária atual. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educcação Básica, 2010. OLIVEIRA, A. A. de. O professor como mediador das leituras literárias. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educcação Básica, 2010. RANGEL, E.O. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: ―os amores difíceis‖. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica/Ceale/FaE/UFMG, 2003. SILVA, M.C e MARTINS, M.R. Experiências de leitura no contexto escolar. In: BRASIL. Literatura: ensino fundamental. Coord. Aparecida Paiva, Francisca Maciel e RildoCosson. Brasília: Ministérios da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2010. SILVA, I.M.M. Literatura em sala de aula: da teoria literária à prática escolar. Recife: Programa de Pós-Graduação da UFPE, 2005. ZILBERMAN, R. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro. In: Aparecida Paiva et. Al. (org.) Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 181 SÓ HUMOR VOS LIBERTARÁ Salma Ferraz(UFSC)1 Resumo: O presente artigo pretende o humor sobre temas cristãos presente em um vídeo de amplo sucesso na internet, a saber: moshé, mosché, eres codó autoria do pregador independente Jalsom Matos Fontoura e indicar mais dois consagrados O Pastor mais sincero do mundo – A história de Ló do humorista paranaense Marcio Américo Alves e Braistorm do humorista Fábio Porchat do grupo de comédia Stand up Comedy Brasil Porta dos fundos para responder a seguinte pergunta: é possível rir do sagrado cristão? Palavras-chaves: Riso, cristianismo, vídeos. Abstract: This article aims to put humor about Christian themes present in a video of broad success on the internet, namely: Moshe mosche, eres Codo authored by independent preacher Jalsom Matos Fontoura and indicate two consecrated Pastor sincere World - The story of Lot comedian Paraná Marcio Américo Alves and Braistorm comedian Fabio Porchat group comedy Stand up Comedy Brazil Backdoor to answer the following question: Can the Christian holy laughter? Keywords: Laughter; Christianity; vídeos. A expressão latina ridendo castigat mores enuncia nossa intenção aqui neste breve artigo. Gostaríamos muito de entrar no debate teórico sobre o riso, o que ocuparia dezenas pelo menos cinco páginas. Não sendo possível, preferimos priorizar os textos de humor em vídeo que fazer humor em cima de textos cristãos, que causarem sensação na internet no ano de 2012 e neste ano de 2013. Antes de transcrevermos os vídeos, indicamos aos interessados nos teóricos do riso os seguintes livros constantes na bibliografia final. Um dos vídeos que mais fizeram sucesso na internet em 2012 foi intitulado de moshé, mosché, eres codó ou Pregando a Bibra de autoria de Jalsom Matos Fontoura. Temos poucas informações sobre o autor, apenas sabemos que é de Santarém, Pará. É uma pessoa simples, com aproximadamente 30 anos de idade, que ficou famoso com seu vídeo do pregador simples e analfabeto bíblico. O vídeo está postado no Youtube com pregando a Briba ou como moshé, moshé eres codó. O vídeo foi postado em 2009, mas fez sucesso mesmo em 2012. Segue abaixo a tentativa transcrição com o sermão com maior erro de português e erros de interpretação bíblica que já ouvi e li: 182 Pregando a Briba Salve os irmão com a bendita paz do Senhor. E a fartura de alegria está na Casa do Senhor. E ali a Briba fala que se eu tivé três em meu nome estou lá, para exaltá e para louvá e agradecê a Deus. A Briba diz que Isaac apresentô morto com Cristo. Mozés apresenta. Ali a Briba fala que Mozés cheiro do poder do espírito de Deus. A Briba fala que Mozés Bateu com a vala no... bateu com a vara no má. E o má se abriu. Porque Deus falô para ele naquele dia. A Briba fala tobém irmão Aleluia. Irmão, ali Deus falô ali para Mozés Mozés, Moshé, Moshé Erés Codó. Tira a sandália do teu pé Porque a terra que tu pisa é santa, Mozés. Ali Deus unçô Mozés naquela hora Disse: Mozés, te aumilha na presença de Deus. Ali a Briba diz tobém falô em Sonmuel. Sonmuel Fala... Sonmuel E Sonmuel respondeu e disse: Fala Senhor, porque teu cego ouça A voz do Espírito de Deus. A Briba diz tobém ali fala Elias morto com Cristo. A Briba fala morto com Cristo... Elias. A Briba ali ali tobém A Briba diz tobém fala Que Deus ali almou o mundo de tão maneira E deu seu filho ali gêmeo para todos aqueles que crê que a vida é eterna. Mais igreja do Senhor. Aleluia. Deus ali tobém disse ali E Zaqueu hoje campais em tua casa. 183 Desce hoje daí, Zaqueu. Hoje campais em tua casa Hoje existir salvação em tua casa Ali a Briba falou para Ali Deus falô para Mo... para Zaqueu Ali tobém Deus Pedro chamô Deus ali filho do truvão O nome Pedro e Thiago filho do truvão Filho do... filho do da bença de Deus. Ali tobém os... Deus apresen... Mozés a... Daniel apresenta Deus de justiça! Poque Deus Orava e Daniel orava três veis no dia. Porque esperava a bença de Deus. Ali Deus tobém falô para... falô para Davi Cego meu, seja banani comigo. Nova criatura em tudo te fez novo. És o cordeiro de Deus. Aquele que tira o pecado. João caprito primeiro versículo 29. Ali tobém o Deus falô para... Davi. Davi cheiro do poder de Deus. Ali usado na mão de Deus, o filho se revelou ao pai. Morreu num galho de arvre Porque disabedeceu a órdi de Deus. Sansão disbedeceu a órdi de Deus. Mas Deus... Deus é amor, mas é justiça. Igreja. Deus amô, Deus ti ama, Deus ti qué, Deus assim. Deus... ali a Briba diz que Deus uso até a jumenta de Baraial. Ele pode te usá tobém. Depende de você dar um lugar para Deus. Mas Deus é assim. Ele é amor, mas é justiça. A palavra de Deus é amarga, mas é doce. Para aqueles que... aqueles que aceitá ele a com Salvador. Jesus é assim. Ali a Briba tombém conta dum hômi cheiro do poder. A Briba diz que ele mandô ali Xuão Xuão cheiro do amor de Deus. Ali a Briba diz que Xuão cheiro do Espírito Santo. Subia a templo mais Pedro Subia mais Thiago E disse: Eu num tenho plata nem ouro Mas eu tenho Jesus de Nazaré Alevanta e anda! E ele alevantou o cego Darquineu. A Briba fala... nessa coisa. Deus amô o mundo. Ali tobém Deus conta Dum Jovi Abridiente Que honrava a Ele! 184 A Briba diz que Daniel honrava a Ele. Recebia o Rei que iria pra ele adorá Mas ele disse: Eu adoro um Deus vivo, um Deus que tem podê Um Deus que faz milagre Um Deus que alevanta aleijado Deus faz os cego enxergá. Meu irmão, Deus... Deus e amo. Jóvi que está Os jóvis tem tempo para exaltá A Briba diz que lembra-te do teu Criador Dos dias de hoje, Jovi O Salma 40 que diz assim: ―Esperei com paciênça no Senhor E o Senhor subiu meu cremor E viu meu... esperei com paciença no Senhor E a sua misericorda Dura para sempre.‖ O Senhor meu... e nada me faltará. Essas... e essas palavras que Deus me deu. Amém. A Briba diz que a Copalipre apresenta Os 4 cavalêro... Os 4 cavalêro do acopalipes. Fala O vermeio apresenta guerra Amarelo apresenta desespero Branco apresenta paz E azul apresenta... Preto apresenta morte! Briba disse que o Jovi É pe... a Briba disse que O jóvi, ele se dedicá a Deus. O jóvi tem tempo para exaltá O jóvi num tem tempo para falar mal da vida de seus irmão. O crente... ele exaltá Deus. O crente... a Briba fala que Deus... Deus é Amor, mas é Justiça. Jóvi Lembra do teu Criador dos dias de hoje da tua mocidade Ali Jesus morreu, mas no calvário. Ali morreu naquela cruz Para nossos pecado Jesus gosta do crente que tem amô. Pode falar até na linga dos anju Se você não tivé iamô, nada é impossive pra ir pro céu. João 11:35 ―Jesus chorou por nossos pecado.‖ A Briba diz que Xó Alia Briba diz que Deus destruiu Sodomo e Gomorra. Porque ali existia o pecado. E se Xó tivé dez pessoa Me adorá Eu não distróio tua cidade. Mas ele poupô a família de Xó. 185 Só a família de Xó que tinha. Mas Deus destruiu porque lá existia Viado... existia tanto tipo de imundiça Mas Deus destruiu. A lágrima de Senhor Do dilúvio ali Noé Destruindo eu vou mandar 40 dia e noite de chuva Porque com as lágrima do Senhor Destruiu aquela cidade Porque Deus ama... Deus ama... ama o pecado Ele ama o homem Mas não obedece o pecado. Fia do Sião, era de uma lindeza, para ali quem ver aquela boniteza. A Briba diz que Adão e Eva Era tava no jardinho de uedem Porque ali a Briba fala que Aquele Cho... aquele... Aquele chove Aquele que Sei, chamava Deus. A Briba fala que Eva, Eva era a mulher muito bonita Mas a Briba... a Briba... eu acho... é... A Briba não relata Eu tenho pra mim Parece com carapelli Mas a Briba fala que Uma arvre tão bonita ali Mas Ela, a Briba fala que ela saiu de uma costela de Adão. Eva saiu da costela de um... de Adão É uma... é uma coisa boa. Saiu do filé do homem E se Eva fosse feita daqui... da quipanha? Num sei não. Ah eu vou expricar porque. (é melhor parar) A Briba diz que Eva saiu numa costela do homem. Mas Disabedeceu a órdi de Deus. E de nesse dia A cobra disse: Eva Diz para Adão E Eva ―Como essa maçã que essa maçã não faze... Não faz mal.‖ Mas ela disabedeceu a órdi de Deus. Ali disabedeceu a órdi de Deus Comeu Mas ali eles pecaram e a Briba diz que eles pecaram. Adiante a de Deus. Porque Deus não rebedece o pecado Deus ama o pecador Não obedece o pecado. Vamos crente 186 Eles se servo de Deus O crente, ele obedecê a órdi de Deus Se Deus mandá tu falá, tu fala Se Deus mandá tu í acolá, tu vai Porque Deus, é Deus é amor, mas é Justiça! Tentei negritar alguns erros bíblicos, mas a tarefa foi árdua. Não abordarei os erros de português. O pregador é criativo cria até termos que eu nunca ouvi, como o verbo rebedecer. Apontemos somente alguns erros bíblicos: Isaac não morreu com Cristo, Moisés não cheirava nenhuma droga nem possuía uma vala, nem foi unçado por Deus, mas ungido por Ele. Cego tem problema com visão não com audição, escuta perfeitamente. De acordo com II Reis 2, Elias não morreu com Cristo, mas foi para os céus numa carruagem de fogo puxada por cavalos de fogo. Segundo seu sermão Jesus tinha um irmão gêmeo!. O poder e a benignidade de Deus foram tão grandes que mandou logo dois filhos para salvar o ser humano. Davi não era cego e também não cheirava nada. Segundo o evangelista Marcos o cego curado por Jesus chamava-se Bartimeu e não Darquineu. De acordo com I Crônicas 29:28, Davi morreu em boa velhice e farto em dias.Quem morreu suspenso num galho de árvore foi seu filho revoltoso Absalão, conforme relato de II Samuel 18:9. A jumenta que ele cita era do Profeta Balaão, não Baraial. Os personagens bíblicos estão todos embaralhados. E Davi não cego, mas servo de Deus. A criatividade do pregador é fantástica. A invenção de termos e nomes que não existem como Copalipre, Darquineu, quipanha (será que era picanha), banani. Quando não sabe o que representa o tal do cavaleiro azul do livro do Copalipre, ele simplesmente para a frase e pula. Sua engenhosidade faz-nos rir quando diz que a Bíblia não menciona, mas ela acha Eva parecia com a musa Carlas Perez: 187 Carla Perez, Google imagens Adão e Eva, de Rubens (1577-1640) 188 E não é que neste ponto ele tem razão! Sem falar do sua afirmação politicamente incorretíssima ao afirmar que em Sodoma e Gomorra havia viados e chamá-los de imudiça. Não faremos aqui uma exegese e hermenêutica deste episódio, mas acompanhando alguns estudos mais recentes, podemos afirmar que o que os sodomitas fizeram de pior foi pecar contra a lei da Hospitalidade, sagrada para os judeus. Eram violentos, orgulhosos, desprezam a Lei da Hospitalidade por serem xenófobos. Há outra vertente mais tradicional que insiste na acepção do pecado de Sodoma como sexo entre homens. Sobre este episódio bíblico indicamos um dos vídeos mais visto em 2013, o vídeo denominado O Pastor mais sincero do mundo – A história de Ló, do humorista paranaense Marcio Américo Alves. Ali ele explica porque não lê a Bíblia na sua Igreja, analisando a destruição de Sodoma e Gomorra como repleta de sodomia, cegueira, destruição, estátua de sal, e incesto. Termina dizendo que jamais pregaria tal livro para seus fiéis e seus filhos. O pregador humilde concedeu até entrevista. Segue a imagem desta figura ímpar: Jalsom Matos Fontoura O Vídeo ficou tão famoso que virou um funk – Funk da Briba do DJ Rapanui, também disponível no Youtube. E afinal o que queres dizer com a expressão que ficou famosa moshé, moshé, eres Codó. Jalson diz ter ouvido este hebraico isto num sermão. É um hebraico que nem Moisés entenderia! O que ele, provavelmente ouvir foi esta expressão: Moshe, Moshe, eretz Kodesh (Moisés, Moisés, terra sagrada ou terra santa), relatada em Êxodo 3:5): ―Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa". Indicamos também o criativo vídeo intitulado Braistorm do humorista Fábio Porchat do grupo de comédia Stand up Comedy Brasil Porta dos fundos: 189 Cléo Pires como Jesus Crista. Neste vídeo descobrimos que Jesus era uma mulher que se disfarçou de homem para lutar contra o preconceito reinante naquela época. Além de ser mulher, Jesus Cristo tinha um Pai que era negro. A agência de publicidade para alavancar o número de fiéis na Igreja Católica resolve fazer uma propaganda em que Jesus Cristo é uma mulher interpretada por Cléo Pires e Deus será interpretado por Seu Jorge. Pitágoras já dizia que o riso afasta o medo e quem não tem medo não tem fé. Estava errado, quem tem fé não tem medo e ri e muito. Não sabia o que o só o humor salva! Sejamos bananis com o ser humano para que possamos ser unçados por Deus! BIBLIOGRAFIA BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zarar, 1980 CHAIN, Isa Gomes da Cunha. O Diabo nos porões das caravelas. Juiz de Fora; EUFJF, 2003. ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. Rio de Janeiro: Record, 1986. MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz. Assunção. São Paulo: Unesp, 2033. D’ANGELLI, Concetta & PADUANO, Guido. O Cômico. Trad. Caetano Waldrigues Galindo. Curitiba: Editora da UFPR, 2007. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e Humor na Literatura. Belo Hortizonte: PUC Minas, 2006. Sites/vídeos/imagens Adão e Eva de Rubens. Disponível em http://fragmentosdahistoriadaarte.blogspot.com.br/2012/07/adao-e-eva-peterpaul-rubens.html, Consultado em 18/05/2013. BRAINSTOM. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RIXwHQ4NpNw, consultado em 18/05/2013. Moshé, Moshé, eres Codó. Disponível http://www.youtube.com/watch?v=iTmrJFy1s9s. Consultado em 07/05/2013. em 190 Braistorm. Disponível em http://www.standupcomedy.com.br/brainstorm-o-novo-videode-porta-dos-fundos-com-fabio-porchat/. Consultado em 07/05/2013. Carla Perez. Disponível em Disponível em Google imagens. Consultado em 18/05/2013. DJ RAPANUI, Funk da Briba. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=jcgOXrzgXOE, consultado em 13/05/2013. O Pastor mais sincero do Mundo – A História de Lot. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=y9g-YmLsgxE, consultado em 07/05/2013. 191 QUASE DE VERDADE: O UNIVERSO INFANTIL E A CRIAÇÃO LITERÁRIA NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTO Sarah Maria Borges Carneiro1 Fernanda Coutinho1 Resumo: O presente trabalho busca analisar de que forma o jogo da criação literária é mostrado na obra infanto-juvenil Quase de verdade (1999), de Clarice Lispector, e como este opera como uma tentativa de levar o leitor a participar do fazer literário. A interação entre leitor e narrador, presente na obra em questão, resulta em uma maior valorização da figura do leitor, já que este é chamado a tomar uma posição ativa no processo de construção da narrativa. O modus operandi da criação passa a envolver não apenas o autor, mas o leitor, aproximando realidade e ficção. O próprio título funciona como um convite ao questionamento das limitações entre o mundo real e o mundo ficcional. No texto, a fronteira entre realidade e fantasia é tênue. A relação entre a figura do narrador, o cachorro chamado Ulisses, que conta suas peripécias, e a personagem Clarice, que, por sua vez, as escreve, gera um entrelaçamento das vozes possíveis da narrativa. Quem conta a história? O cachorro Ulisses? Sua dona Clarice? Clarice escritora, personagem de si mesma? Quantas perguntas se faz o leitor, ou que leitor é esse, imantado a diversos vetores que se irradiam do texto! Dessa forma, procuramos problematizar a relação estabelecida entre narrador e leitor e de que forma a escrita lúdica de Clarice, quase de verdade, quase de mentira, resulta no rompimento das fronteiras entre mundo real e mundo ficcional. Palavras-chave: Criação literária, Leitor, Literatura infanto-juvenil Abstract: This paper aims to análise how the process of literary creation is showed in the juvenile literature Quase de verdade (1999), from Clarice Lispector, and how it works as a mean of having the reader participate of the literary construction. The interaction between the reader and the narrator results in a valorization of the reader, as he is called to take an active position in building process of the narrative. The modus operandi of criation evolves not only the author, but the reader, making reality and fiction closer. The title itself works as an invitation to questioning the limits between the real world and the fictional world. On the text, the boundary between reality and fantasy is tenuous. The relation between the narrator, a dog named Ulisses, that tells his adventures, and the character Clarice, that writes these stories, generates a lathing among the possible voices of the narrative. Who tells the story? Ulisses, the dog? His owner Clarice? The writer Clarice, her own character? How many questions the reader asks himself, or who is this reader, magnetizes the various vectors that irradiate from the text! As a reasult, this article aims to problematize the relation stablished between reader and writer, and how the playful writing from Clarice, almost true, almost a lie, results in the disruption of the boundaries between the real and the fictional world. Keywords: Literary creation, Reader, Juvenile Literature 1. Introdução Considerado o mais importante manifesto do classicismo, a carta ao Pisões ou Arte poética de Horácio rejeita a concepção platônica e neoplatônica do ato criador poético como manifestação de um ―frenesi‖ ou ―possessão divina.‖ Horácio discute o conflito entre a poética da arte e a do engenho, defendendo que as duas se relacionam dialeticamente. Segundo ele, porém, a perfeição estético-literária seria alcançada mediante o limae labor et 192 mora. O poeta não é apenas um gênio criador, mas um artífice. Para Horácio, deve haver equilíbrio entre engenho e arte no processo de criação literária, contrariando a crença então vigente de que bastava o engenho para realizar uma verdadeira obra de arte. A poesia depende, pois, do estudo, do trabalho, do exercício e da revisão constante e o poeta só atingirá a perfeição se tiver pleno domínio do material artístico. Para Abrams (2010), a expressão ―ut pictura poesis”, usada por Horácio no verso 361 de sua carta aos Pisões, ao ser empregada fora de seu contexto para fazer referência ao processo de criação literária, acabou sendo interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. A expressão, entretanto, mais relacionada ao processo de percepção da obra do que ao seu processo de construção. A poesia é como a pintura, haverá a que mais te cativa, se estiveres mais perto e outra, se ficares mais longe; esta ama a obscuridade, esta, que não teme o olhar arguto do crítico, deseja ser contemplada à luz; esta agradou uma só vez, esta revisitada dez vezes, agradará. (TRINGALI, 1993, p.35) Assim como ocorre na Arte Poética de Horácio, Platão, n‘A República, refere-se a imagens no espelho e a pintura para explicar sua concepção de poesia. A comparação foi utilizada em uma tentativa de ilustrar a qualidade mimética da poesia, que é menos perceptível do que em uma pintura. Palavras como ―cativar‖ e ―agradar‖ fazem alusão àquele que interage com a obra de arte, não ao processo de criação do objeto em si. Abrams afirma que a aproximação da literatura com a pintura contribuiu para o conceito de que esta é um reflexo de objetos e eventos. O valor da obra literária está, nesse período, agregado ao seu caráter mimético. Roland Barthes, em O grau zero da escrita (2006), mostra que, por volta de 1850, o panorama literário foi alterado ocasionando o surgimento da necessidade de se justificar a Literatura. O nascimento do capitalismo moderno, a secessão da sociedade francesa em três classes e a modificação demográfica da Europa foram acontecimentos históricos que abalaram a ideologia burguesa, possibilitando que outras escritas se multiplicassem. Barthes argumenta que, durante o período que chama de o da ―escrita burguesa triunfante‖, a forma tinha valor pelo uso, pois seus mecanismos reproduziam instrumentos já formados. Já que, no período em questão, a Literatura não tem mais seu valor associado ao uso, passa-se a lhe atribuir o valor-trabalho, o que gera uma fetichização do processo de escrita. A escrita é salva não por causa de sua destinação, mas graças ao trabalho que custou. Então começa a elaborar-se uma imagética do escritorartesão, como um operário na oficina, e desbasta, talha, pole e engasta a 193 sua forma, tal como um lapidário extrai a arte da matéria, gastando neste trabalho horas regulares de solidão e esforço. (BARTHES,2006, p.58). Barthes afirma que foi Flaubert quem instituiu esta escrita artesanal. Para ele, a escrita flaubertiana tentar reproduzir o real de forma imparcial, mas acaba sendo construída de forma ainda mais claramente artificial. Barthes aponta como um efeito negativo dessa substituição do valor-gênio pelo valor-trabalho o fato de o labor da escrita ―apontar o dedo em sua própria máscara‖ (BARTHES, 2006, p.59). Não há uma preocupação por parte do autor em esconder suas normas. Segundo James Wood (2011), para alcançar o efeito de uma ―espécie de assombro‖ no expectador, Flaubert aperfeiçoou uma técnica que é essencial para a narrativa realista: misturar o detalhe habitual e o detalhe dinâmico. ―Parece a vida real - de um modo belamente artificial‖ (WOOD,2011, p.49). Na Poética da Prosa (2003), Tzvetan Todorov relaciona essa máscara que esconde o artesanato por trás do texto à verossimilhança. Apesar das diferentes possibilidades semânticas do termo verossimilhança, aquela que se torna predominante atualmente, segundo Todorov, é a que se relaciona ao fazer crer. O verossímil é definido, nessa perspectiva, como ―a máscara com que se disfarçam as leis do texto, e que deveríamos entender como uma relação com a realidade‖ (TODOROV, p.116-117). O autor do texto busca, portanto, levar o leitor a acreditar no universo que ele cria. Para isso, as marcas de manipulação dos elementos linguísticos não devem ser reveladas. Em seu célebre ensaio intitulado A Filosofia da Composição (1999), texto precursor da teoria do conto moderno, Edgar Allan Poe defende a concepção de que o texto literário é construído através de um processo consciente, o qual envolve escolhas, edição e elaboração. Para Poe, assim como considerava Horácio, a criação literária provém de um trabalho guiado pelo raciocínio. Poe critica a concepção românica de que o poeta escreve ―sob um frenesi‖, defendendo, desse modo, a arquitetação do texto literário com o propósito, que para ele, é o efeito que este terá sobre o leitor. A escolha dos elementos que compõem a ficção, sejam personagens, ação, tom, ou ambientação, deve estar matematicamente relacionada a elaboração do efeito poético que a narrativa objetiva produzir. Poe prescreve até mesmo a extensão que considera ideal para a o poema, ou conto. Segundo ele, a brevidade intensifica o prazer proporcionado pela apreciação da obra. Ao deslindar o processo de construção do poema O corvo, Poe tenta desvincular a arte da mera inspiração, visão propagada pelos escritores românticos. A questão principal, para Poe, está em como os mecanismos linguísticos e literários são operados para prender a atenção do leitor. Para tanto, a intenção do autor deve preceder o ato da escrita. O texto começaria a ser escrito pelo seu fim, objetivando sempre manter a unidade de efeito. Ao 194 mostrar o maquinário que está por trás da obra, Poe ironiza a crença de que o texto literário é resultado de um ―transe‖ do autor, desafiando os poetas a exporem as ferramentas utilizadas por eles abrindo mão de sua vaidade: ...estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações. (POE,1999,p.1) Apesar de desenvolver seu ensaio através da descrição minuciosa das escolhas e edições envolvidas na construção de seu célebre poema O corvo, Poe admite que muito dificilmente um autor seria capaz de detalhar a gênese de sua obra tão precisamente. ―Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas‖ (POE, 1999,p.2). Para resguardar seu próprio ensaio dessa afirmação, ele se coloca como exceção, afirmando não ter a menor dificuldade em lembrar os passos progressivos de qualquer de suas composições. Usando as palavras de Barthes, pode-se afirmar que Poe aponta o dedo para a própria máscara ao descrever o maquinário que opera sua escrita. Há uma ruptura dos limites entre relato e ficcionalização do processo de criação literária. Seria Poe realmente capaz de detalhar cada uma de suas motivações para a criação do poema, ou estaria ele ficcionalizando a construção da narrativa para fortalecer sua teoria de que a esta é construída de forma consciente? Baudelaire, responsável por levar a obra de Poe aos franceses, duvida que a obra deste seja o resultado apenas da combinação de elementos linguísticos e de cálculos, porém, acredita que o gênio de Poe se submetia à aplicação das técnicas por ele descritas com o objetivo de manter a unidade de efeito. ―Depois de tudo, um pouco de charlatanismo é permitido ao gênio, e o mesmo não lhe faz mal‖ (BAUDELAIRE, 2003, p.20). Compagnon (2001), assim como Poe, defende a intencionalidade do texto literário, afirmando que esta é concretizada na articulação interna que confere coerência a obra. Entretanto, segundo Compagnon, intenção não é premeditação. Há, para ele, uma intenção prévia que teria incentivado a escrita, mesmo que o autor não possa prever todas as significações e impressões que vemos no texto, mas essa intenção não significa domínio total do processo: 195 A intenção do autor não implica uma consciência de todos os detalhes que a escritura realiza, nem constitui um acontecimento separado que precederia ou acompanharia a performance, conforme a dualidade falaciosa do pensamento e da linguagem. Ter a intenção de fazer alguma coisa – devolver a bola para o outro lado da rede ou compor versos – não exige consciência nem projeto. (COMPAGNON, 2001, p. 91) Através deste breve panorama histórico sobre o processo de criação da ficção, pode-se perceber que, apesar do esforço por parte do autor em ―mascarar‖ os recursos estilísticos, seja através da verossimilhança, seja através da descrição do processo da escrita, estes são ainda evidenciados. O presente artigo pretende analisar como o jogo literário é mostrado na obra Quase de Verdade, de Clarice Lispector, e como este opera como uma tentativa de fazer com que o leitor acredite na realidade que o autor tenta criar através da figura do narrador-escritor. 2. A metaficção em Quase de Verdade A obra de Clarice Lispector voltada para o público infanto-juvenil é composta pelos livros O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A Vida íntima de Laura (1975), Quase de verdade (1978) e Como nasceram as estrelas (1987). Dentre eles, Quase de verdade se destaca por aludir ao processo de criação literária, levando o leitor a questionar os limites entre realidade e ficção. O próprio título revela ao leitor a criação por trás da narrativa, mesmo que o discurso do narrador tente, por vezes, atestar a veracidade de seu relato. A frase ―Era uma vez....Era uma vez: eu!‖ abre o texto, introduzindo um universo semelhante ao dos contos de fadas, no qual a narrativa se dará em primeira pessoa. O narrador se anuncia como personagem, apontando para a digressão que irá tomar todo o desenvolvimento do conto. O narrador é o cachorro Ulisses que narra suas peripécias para Clarice, uma Clarice já personagem da escritora, que decifra os latidos de Ulisses e escreve sua história. Dessa forma, há um entrelaçamento das vozes possíveis da narrativa. Não é possível traçar limites claros entre as vozes que irradiam do texto. Quem conta a história? O cachorro Ulisses? Sua dona Clarice? Clarice escritora, personagem de si mesma? Levado a tantos questionamentos, o leitor é chamado a participar ativamente da construção da narrativa. Além da pluralidade de vozes que compõem o texto, este adquire uma complexidade ainda maior por sua metaficcionalidade. O narrador, mesmo afirmando que sua fala ―é o resultado de uma observação‖(LISPECTOR, 1978, p.2) sua sobre a casa, volta a aproximar realidade e ficção, revelando o modus operandi da criação que passa a 196 envolver não apenas o autor, mas o leitor. ―Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade? Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu‖ (LISPECTOR, 1978, p.4). A escrita lúdica de Clarice, quase de verdade, quase de mentira, resulta no rompimento das fronteiras entre mundo real e mundo ficcional, convidando o leitor a entrar no mundo da criação. ―- Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz de conta que está‖ (LISPECTOR, 1978, p.5). As intervenções do narrador corroboram para que seu discurso seja cada vez mais passível de dúvida. Personagem de si, ele convida o leitor a adentrar esse universo onírico, deixando claro, porém, que se trada de um processo de criação, e não da reprodução do real. O efeito de ―assombro‖ buscado por Flaubert surge aqui como uma estratégia para levar o leitor a atentar para os mecanismos de arranjo do texto. O modus operandi da criação, mencionado por Poe, passa a envolver não apenas o autor, mas o leitor. O sistema metaficcional do conto em questão é resultado da combinação de duas instâncias narrativas: a primeira apresenta Ulisses e suas aventuras nos quintais dos vizinhos, enquanto a segunda envolve a personagem Clarice, que por sua vez, recontará a história, tal qual Sherazade nas Mil e uma noites. O leitor precisa estar atento para compreender de que forma as informações sobre a narrativa dentro da narrativa inicial se organizam. As experiências de Ulisses, sejam elas reais ou imaginadas, servem como inspiração para a construção do texto, criando a ilusão de que este está sendo escrito simultaneamente a leitura. Os nomes das personagens, Ulisses, Ovidio e Odissea, fazem referência à grandes narrativas que também desestabilizam as fronteiras entre realidade e ficção. Assim como não estão traçados limites estáveis acerca de quem está sendo representado na pintura Las Meninas, analisada por Michel Foucault no seu ―As palavras e as coisas‖ (1999), não podemos traçar uma distinção clara entre o narrador enquanto ―eu‖ e enquanto ―personagem de si‖. É estabelecido um jogo de reflexo infinito. Não há como precisar quem está sendo representado ou quem é ―real‖. Tal jogo de reflexos opera de forma a aproximar a criança do universo da leitura. O personagem Ulisses é um guia que conduz a criança ao universo onírico construído através do contato com a obra literária. ―Para ajudar você a inventar sua pequena cantiga, vou lhe dizer como se canta. Canta assim: pirilim-pim-pim, pirlim-pim-pim, pirilim-pim-pim‖(LISPECTOR, 1978, p.5, grifo nosso). A canção destacada no excerto se repete ao longo do livro, destacada em 197 outra cor, evidenciando ao leitor que se trata de um universo mágico, que ele também ajuda a construir. 3. Considerações Finais A revelação do processo de criação literária é, na verdade, uma atuação, uma ficcionalização do processo da escrita. Assim como Baudelaire, leitor, tradutor e crítico de Poe, se dá conta de sua farsa ao detalhar cada passo na feitura d‘ O corvo, nós, leitores de Je ne parle pas français, encontramos elementos que apontam para a máscara dos narradores de Quase de verdade. Podemos pensar que seu propósito é exatamente esse: apontar sua própria máscara para convidar o leitor a participar ativamente do jogo de criação. Através de marcas no próprio formato do texto, de tentativas de comunicação direta com o leitor, requerendo uma participação ativa por parte deste, e do entrelaçamento de duas instâncias narrativas, o autor utiliza-se da figura de um narrador-personagem para descrever a máquina da criação literária. Essa descrição, porém, não se trata de um relato, mas de uma ficção dentro da ficção maior, que engloba todo o texto. Mesmo expondo os mecanismos utilizados para a criação, o autor busca envolver o leitor, através de um discurso lúdico, permeado de elementos mágico, no processo de construção da narrativa. O labor da escrita, que antes se julgava resultar de um processo consciente por parte do autor, passa a fazer parte, também, da consciência do leitor. REFERÊNCIAS: ABRAMS, M. H. O espelho e a lâmpada: teoria romântica e tradição crítica; tradução Alzira Vieira Allegro. – São Paulo: Editora Unesp, 2010. BARTHES, Roland. O grau zero da escrita; tradução: Maria Margarida Barahona. Lisboa, Portugal. Edições 70, 2006. CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números) / Jean Chevalier, Alain Gneerbrant, com a colaboração de: André Barbault...[ et al.]; tradução: Vera da Costa e Silva [ et al.]. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum; tradução de Cleonice Paes, Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; tradução Salma Tannus Muchail. – São Paulo: Martins Fontes, 1994. LISPECTOR, Clarice. Quase de verdade. – Rio de janeiro: Rocco, 1999. POE, Edgar Allan. ―A Filosofia da composição‖. In: BARROSO, Ivo (org.). “O Corvo” e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000 (2ª edição). 198 TODOROV, Tzvetan. Poética da prosa; tradução: Claudia Berliner. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. TRINGALI, Dante. A arte poética de Horácio. – São Paulo: Musa Editora, 1993. WOOD, James. Como funciona a ficção; tradução: Denise Bottmann. Cosacnaify, 2011. 199 Damas do Jornal: a circulação de romances folhetins de autoria feminina francesa n'A Província do Pará. Shirley Laianne Medeiros da Silva1 Profª. Drª. Germana Maria Araújo Sales (Orientador) 1 Resumo: A democratização da leitura e a modernização da imprensa na Europa propiciaram um aumento sem precedentes no número de leitores no século XIX. Corroborando com essa expansão das letras surge na França, em 1836, o romancefolhetim, prosa de ficção publicada em fascículos nos jornais, esses vendidos a preços baixos. O sucesso dessa invenção propiciou a sua expansão pelo mundo ocidental, chegando também a várias províncias do Brasil, incluindo a província do Pará. Pesquisas realizadas pelo projeto Trajetória literária: a constituição da história cultural em Belém no século XIX (CAPES/UFPA), a partir da observação de periódicos disponíveis na Biblioteca Arthur Vianna, comprovam a maciça circulação de textos de autoria francesa nos periódicos diários de Belém na coluna Folhetim, demonstrando a preferência desse público leitor pelos enredos folhetinescos franceses. Este trabalho se propõe a analisar, a partir dessa influência francesa na rotina dos leitores paraenses, uma peculiaridade do periódico oitocentista A Província do Pará: a publicação de textos autoria feminina francesa, dando ênfase à produção de uma autora em especial, Condessa Dash. Propõe-se também observar a circulação da obra dessa autora em Belém e confrontar o seu romance A marquesa ensanguentada, que circulou no periódico já citado, com a publicação do mesmo no Diário do Rio de Janeiro, de modo a perceber quais influências sofreram e o que circulava entre os leitores paraenses do século XIX. Palavras-chave: A Província do Pará, Condessa Dash, romance-folhetin, século XIX. Abstract: The democratization of lecture and the press modernization in Europe provided an unprecedented increase in the number of readers in the nineteenth century. Corroborating with this expansion of the letters appears in France in 1836, the novelfeuilleton, prose fiction published in installments in newspapers, these sold at low prices. The success of this invention led to its expansion throughout the Western world, also coming to various provinces of Brazil, including the province of Pará. Surveys by Trajetória literária: a constituição da história cultural em Belém no século XIX (Trajectory literary project: the establishment of cultural history in Belém in the nineteenth century) (CAPES/UFPA), from the observation of journals available in the Library Arthur Vianna prove the massive circulation of texts written in French daily journals from Belém in the Feuilleton column, demonstrating the preference for this French serial novels. This work aims to analyze, from this French influence in the routine of paraense readers, a peculiarity of the nineteenthcentury periodical A provincial do Pará (The Province of Pará): the publication of texts French female authors, emphasizing the production of an author in particular, Countess Dash. It is also proposed to observe the movement of the work of this author in Belém and confront her novel A marqueza ensanguentada (The Marquise bloody), which circulated in the journal already mentioned, with the publication of the same text in the Diário do Rio 200 de Janeiro (Journal of the Rio de Janeiro), to understand the influences and what circulated among readers paraenses in nineteenth century. Keywords: A Província do Pará, Condessa Dash, serial novels, nineteenth century. 1. Introdução Quando tratamos de imprensa, principalmente no século XIX, devemos reconhecer importância desse momento para o suporte e também do suporte para esse momento. O período oitocentista, inegavelmente marcado por transformações políticas, sociais e ideológicas resultantes da Revolução Burguesa ocorrida no século anterior, refletiu amplamente na educação européia que, com laicização do ensino e universalização da escola, conforme Antonio Hohlfeldt (2003), proporcionou o surgimento de uma considerável demanda de leitores. Em meio a esse contexto, o aprimoramento técnico e a popularização do jornal foram uma questão de tempo. Logo os periódicos passavam a ser vistos não só como fonte de informação e oportunidades de negócios e instrução, mas também e, principalmente, como meio de entretenimento que atendesse a essa demanda de leitores sem tradição intelectual. A criação da imprensa moderna, a partir de 1836, atribuída ao jornalista e empresário francês Émile de Girardin, a quem Marisa Midori Daecto (2011) denomina como "magnata da imprensa", possibilitou o barateamento do material e introduziu ao corpo do jornal sessões-chave que marcariam a existência desse meio de comunicação: na vertente econômica, a propaganda, e na vertente do entretenimento, o romance-folhetim. Este ultimo, resultado da publicação de fatias de narrativas numa coluna já existente, a Folhetim, se tornou um verdadeiro fenômeno entre os leitores oitocentistas, ultrapassando fronteiras, se espalhando pelo continente europeu e transpondo oceanos, até chegar ao Brasil. Contudo, hoje sabemos que essas narrativas circulavam, e não timidamente, não só nos periódicos da Corte, mas em diversas províncias como comprovam pesquisas de Barbosa (2007), Hohlfeldt (2003), Nadaf (2002) e Sales (2003). Essa circulação dos apaixonantes romances em fatias, difundidos em vários lugares do país também foi corriqueira na Província do Grão-Pará, que, como em todo o país, apresentava uma imprensa em franca efervescência no XIX, como nos é possível observar a partir da obra de Vicente Sales (1992). E acerca dessa circulação, nos deteremos, dentre os periódicos paraenses, n‘ A Província do Pará, periódico diário de grande circulação em Belém, como veremos a seguir. 201 2. Liberal e literário: A Província do Pará O jornal sobre o qual este trabalho se debruça começou a circular em 25 de março de 1876. Um periódico diário que abraçou publicamente e sem reservas um forte posicionamento político voltado a apoiar o partido liberal do estado. Além dessa característica, o jornal também apresentava forte apelo econômico, com a presença da sessão de annuncios, distribuída, não raro, na primeira e última páginas desse. E, por fim, apesar desse segmento politico ser tão presente no periódico, A Província do Pará também apresentava uma gama de textos reservados ao entretenimento desse publico leitor, publicações diversificadas tais como prosas de ficção, crônicas e poesias que serviam ao deleite do público. Além dos aspectos político e comercial, o periódico apresentava também outras colunas fixas como a ―Secção Official ‖e ―Editaes‖, com os expedientes do governo, ―Boletim do Dia‖, com notícias da capital e do interior da província e havia ainda colunas que apareciam não diariamente, mas com certa frequência, tais como: ―Miscellanea‖, ―Imprensa Nacional‖, ―Collaboração‖, ―Variedades‖ e ―Imprensa Estranjeira‖. Mas, se esses aspectos apresentados sobre A Provincia aparentemente eram comuns a tantas outras folhas da época, o que o faria um jornal diferente dos demais na Província do Grão-Pará? Por que escolhê-lo como objeto de estudo? Essas respostas, para nós, encontra-se exatamente nas veiculações da coluna Folhetim. A primeira aparição da coluna nesse jornal foi em 30 de março de 1876, cinco dias após o início de sua circulação, com o texto "O noivado no mar", caracterizado como conto e extraído do Jornal do Commercio. No entanto, o fator que nos chamou a atenção nessa folha seria a segunda aparição dessa coluna que, dessa vez, veiculava um "romance", caracterizado assim pelo próprio jornal. A primeira prosa de ficção do periódico, publicada no dia 30 de Abril de 1876 e , entrecortada por outros textos curtos, perdurou até 23 de Dezembro como único romancefolhetim publicado naquele ano. O título "A marquesa ensangüentada", carregado de dramaticidade e mistério, nos chamou a atenção não somente pela atmosfera melodramática que proporcionava, mas também e principalmente porque, numa seara que já havia consagrado tantos autores, como Sue, Dumas e Ponson apenas para exemplificar alguns autores ilustres , A Província do Pará escolheu para seu primeiro romance não a criação de um autor, mas de uma autora. Isso mesmo! A prosa de ficção em questão é da autoria de Condessa Dash, pseudônimo de Anne Gabriele Cisterne de Courtinas, 202 viscondessa de Saint-Mars. A Romancista francesa do século XIX, tinha como ponto forte representar a vida aristocrática, suas artificialidades e imoralidades e, dessa maneira, situar uma crítica social sutil a diversos aspectos desse modo de vida1. Esse primeiro achado nos motivou buscar outras possíveis publicações de autoria feminina na coluna Folhetim d‘A Província do Pará, preferencialmente as prosas de ficção mais longas, posto que essas publicações passavam temporadas fazendo parte da vida dos leitores que tinham no século XIX participação mais ativa junto aos jornais, segundo BARBOSA (2007), ou seja, para perdurar nos jornais, era necessário que o enredo caísse no gosto do povo, do contrário, as intervenções do público junto ao jornal levaria certamente à sua interrupção. Para nossa satisfação, não tardou a localização de outras produções femininas. No ano seguinte, 1877, ocorre a publicação do título classificado como novela "Não é bom brincar com a dor", de Delphine de Girardin, jornalista francesa esposa do empreendedor dos jornais, Emile de Girardin publicado de. Em 1879, encontramos parte de uma prosa de ficção intitulada "Dosia", sob a autoria de Henry Grevile, pseudônimo de Mademoiselle Alice Durand, romancista francesa. Dessa mesma escritora localizamos no ano de 1883 o título "Consórcio de uma artista". Por fim, em 1886, publicação da obra "Um remorso‖, de Th. Bentzon, pseudônimo de Therese Bentzon, escritora também francesa. Como podemos observar, as prosas de ficção de autoria feminina apresentadas aqui nos mostram mais de um ponto em comum: além do gênero, a nacionalidade das escritoras, o que nos leva a considerar que as mulheres francesas de certo possuíam maior liberdade para exercer atividades intelectuais e suas expressões de pensamento, mesmo no século XIX. Apesar de quatro publicações de autoria feminina serem um número pequeno se compararmos às outras 28 produções de autoria masculina publicadas no mesmo periódico entre 1876 e 1886, acreditamos que é um numero significativo tanto pra demonstrar a existência dessa produção feminina quanto para percebermos a disparidade existente entre a produção no que se refere aos gêneros. A partir de agora, nos dedicaremos à observação da primeira prosa de ficção apresentada, ―A marqueza ensangüenta‖, de Condessa Dash. 3. A Marqueza pelo Brasil 203 Na busca por possíveis hipóteses para a escolha de tal publicação, tentamos observar a trajetória de circulação dessa obra em outros jornais brasileiros e localizamos a mesma publicada no Diário do Rio de Janeiro entre os anos de 1852 e 1853. A diferença de mais de 2 décadas no período de publicação não solucionaria nossa primeira reflexão, sobre uma possível motivação para essa publicação, mas nos conduziria a uma outras: será que os leitores de Condessa Dash do Rio de Janeiro de 1852 e os de Belém em 1876, tiveram acesso ao mesmo texto, melhor dizendo, ao mesmo enredo? Seria a obra publicada posteriormente uma contrafação da primeira? Que características desse texto fariam com que continuasse circulando entre os leitores ainda que num espaço de mais de vinte anos entre as publicacões? Em meio às dificuldades que todo pesquisador de periódicos do dezenove encontra, tais como mutilações e páginas ilegíveis e ausência de números do jornal, mesmo assim, resolvemos confrontar essas publicações, o que nos proporcionou elencar os seguintes aspectos: O tempo de circulação das obras varia entre uma e outra publicação, tendo o romance circulado no Rio de Janeiro por seis meses de Outubro de 1852 a Abril de 1853, e apresentando por volta de 70 fascículos, dos quais nos foi possível recuperar 64. A estimativa que hajam outros 6 fascículos faltando foi gerada exatamente pela comparação entre as obras, que mostrou pequenas partes de descontinuidade nesse primeiro folhetim, provavelmente pela a ausência de números do jornal, o que não chega a comprometer o enredo da história, diferentemente do texto publicado em Belém que, tendo os fascículos numerados um a um pelo jornal, nos mostra a quantidade de 94 números publicados, dentre os quais há muitas mutilações, precisamente entre os capítulos 39 e 60, o que compromete relevantemente a continuidade do folhetim, somando-se a isso ainda visibilidade bastante comprometida do jornal a partir do número sessenta do folhetim, que dificultou a recuperação desse texto. Optamos então por trabalhar com a primeira parte do romance, que encontra-se em bom estado. Quanto a ideia de contrafação da segunda obra pela primeira, acreditamos que essa hipótese não se sustenta devido a alguns fatores, tais como o jornal A Província do Pará informar no dia 30 de abril, pela coluna boletim do dia, que tradução era realizada diariamente por um colaborador do próprio jornal que, infelizmente, não teve o nome revelado. Constatamos ainda pequenas diferenças textuais que demonstram não se tratar da mesma tradução, como nos exemplos seguir: 204 Diário do Rio de Janeiro (1852/1853) A Província do Pará (1876) - A senhora viscondessa está fazendo -A senhora viscondessa está mandando por arranjar no salão o enxoval e corbelha para no salão o enxoval e o açafate para a que M.elle ache tudo prompto logo que menina achal-os ali quando se levantar. E’ acordar. Esta tarde terá a grande hoje á tarde a grande exposição; todas as exposição, todas as amigas de M.elle e amigas da menina, todas as conhecidas da todas a pessoas relacionadas com a senhora hão de vir examinar as bellas cousas senhora devem vir examinar essas bellas que ahi está. cousas.‖1 É possível observar a variação de termos como no primeiro período, em que no trecho sobre o enxoval da protagonista, as palavras corbelha e açafate designam a mesma ideia, que seria de cesto para guardar o enxoval. Há ainda a diferença de referência à protagonista, na qual, o primeiro texto refere-se a ela como mademoiselle, demonstrando uma proximidade do texto com o idioma vernáculo da autora e talvez um tom a mais de polidez e, na segunda publicação, o texto refere-se à protagonista como menina. Notamos também que, na marcação do tempo em que a ―grande exposição‖ ocorreria, em ambos os casos, vem acompanhada pelo termo ―tarde‖, embora os elementos que acompanham não são exatamente iguais, como podemos notar a diferença entre ―Esta tarde‖ e ―Hoje á tarde‖ respectivamente. Notamos, portanto, que tais variações ocorrem ao longo do texto, em virtude da diferença de traduções. Contudo, quanto ao enredo, não observamos alterações no que diz respeito aos acontecimentos, pelo contrário, acreditamos que embora haja uma considerável diferença de tempo entre as publicações, as alterações entre uma tradução e outra estão ligadas a alguns termos mas não ao conteúdo da narrativa em si. 4. Conclusão Para finalizar, Acreditamos que o Periódico A Província do Pará apresenta como particularidade entre os jornais oitocentistas de Belém, a publicação desses textos femininos na coluna Folhetim, dos quais elencamos os romances como nosso objeto de estudo, mas que não se restringem somente a esse gênero e atribuímos essa abertura ao próprio posicionamento político do jornal que, com uma postura de oposição, abria esse espaço para a pena feminina, diferentemente da maioria dos jornais em Bélem. 205 Acrescentamos ainda a importância da observação da circulação das obras em todo o país, o que nos permite muitas vezes preencher lacunas e complementar processos de leitura que ocorreram em diferentes localidades no século XIX. Por fim, destacamos que, a presença feminina nas páginas dos jornais, ainda que não tão abundante como a masculina, demonstra de forma incontestável a produção literária de mulheres no século XIX, a preferência pela escrita francesa refletida também na escrita feminina e mais do que isso, o consumo e aceitação dessas escritoras que muito embora, não raro, se utilizassem da estratégia do pseudônimo, mesmo assim, eram publicadas e o mais importante, eram lidas. REFERÊNCIAS: O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista. 1. ed. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2011. v. 1. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. MEYER, Marlise. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. HOHLFELD, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas: O romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé de miscelâneas: o folhetim nos jornais de Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. _______.Presença de Mulher: ensaios. Rio de Janeiro: Lidador, 2004. SALES, Germana Maria Araújo. Mulheres entre Linhas: entre coser, ler e escrever. Duc in Altum. Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina. Muriaé,nº 1., p. 13-24, set .2003. 206 CINEMA, LITERATURA E POESIA DE MASSA: O DISCURSO INTERSEMIÓTICO E A CONDIÇÃO HUMANA NA URBE CONTEMPORÂNEA, A PARTIR DA LETRA DA CANÇÃO “A CIDADE”, DE CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI. Sílvio Sérgio Oliveira Rodrigues1 Selvino José Assmann1 Resumo: O presente trabalho, surgido a partir das discussões de textos em sala de aula no curso de Doutorado Interdisciplinar (DINTER-UFSC/IFPE), referentes à disciplina de Tópicos Especiais em Assuntos Interdisciplinares, tem como proposta avaliar a relação entre Literatura e Cinema, partindo de uma discussão sobre cidade e modernidade, tendo como objetos de estudo o filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis e a poesia de massa representada pelo Manguebeat pernambucano. Partindo dessa relação de tradução e de projeção do movimento poético-musical do mangue no filme de Cláudio Assis, propomos uma leitura sócio-semiótica da letra de “A cidade”, com o fim de apresentar a problemática contemporânea das grandes cidades, bem como a relação do artista com o mundo social, assim como fez o diretor de Amarelo Manga. Como uma espécie de “flâneur” da cidade do Recife, com suas cores, sons e imagens, o poeta mangueboys constrói uma poética que traz, no contato com a cidade, a formação de uma sensibilidade, que o coloca como portavoz dos oprimidos ao construir uma poesia vanguardista e de choque. Palavras-chave: Cidade; Cinema; Poesia de Massa; Intersemiose; Modernidade Abstract: The present work, coming from discussions about texts in the classroom in the Inter-Discipline Doctorate Program (DINTER-UFSC/IFPE), referring to the subject of Special Topics on Inter-Discipline Matters, has as a proposal evaluating the relation between Literature and Cinema, going from a discussion about city and modernity, having as studying object the movie ―Amarelo Manga‖ (mango yellow) by Claudio Assis and the mass poetry represented by Manguebeat music style from Pernambuco state in Brazil. Starting from this relation of translation and projection of the poetic and musical movement of the mangrove in Claudio Assis‘ movie, we have proposed a social semiotics reading of the lyrics of ―A Cidade‖ (The City), aiming to introduce the big cities‘ contemporaneous problems, as well as the artist‘s relation with the social world, like the director of ―Amarelo Manga‖ has made. As a kind of ―flaneur‖ (who feels lonely apart from reality) in the city of Recife, with its colors, sounds, and pictures, the ―mangueboys‖ poet builds up a poetry, bringing along with the city the formation of a sensibility, putting him as a spokesman of those who are oppressed, when he builds a shocking and vanguard poetry. Keywords: City; Cinema; Poetry of Mass; Inter semiosis; Modernity 1. A Cidade em “Amarelo manga”: experiências e reificação humana na cinematografia do movimento mangue. 207 A cidade configurada no filme Amarelo Manga aponta para a problemática contemporânea dos grandes centros urbanos. As relações entrecortantes que suscitam nas imagens expostas por Cláudio Assis se apresentam de forma completa ao trazerem à tona os conflitos humanos, a partir da intensidade das relações que envolvem suas personagens, fazendo com que o viver na cidade seja a mesma coisa que tatilizá-la ou mesmo impregnarse de todas as suas variadas formas de sensibilidade. Como aponta Michel de Certau, esses ―praticantes ordinários da cidade‖ (1974, p. 21), vagueiam em busca de algo, de uma identidade, perdidos no vazio de suas vidas, tendo em seus corpos o delírio de viver à deriva da carne, levando-os a uma cegueira que faz com se percam no espaço por eles habitado, vivendo cada um desses corpos o risco desafiador de quem se propõe enfrentar o dia-a-dia causticante da urbe. Assim como as premissas estéticas propostas pelo Manguebeat, o filme de Cláudio Assis injeta uma cena forte no cinema brasileiro, ao expor uma imagem de impacto, de fusões semióticas, como reflexo da caótica situação da cidade do Recife (que também pode ser o mundo cosmopolita em geral), compondo um caleidoscópio amplo dos becos, das ruelas degradadas da cidade, dos mistérios tenebrosos, dos mendigos, das prostitutas, dos catadores de lixo, enfim, de uma galeria de tipos humanos marginalizados, que faz com que o cineasta pinte com tintas fortes esse mundo exterior, de uma vida pulsante, mas que representa o lado épico da modernidade. São os heróis despossuídos (os lumpemproletariados a que se referia K. Marx e F. Engels em A ideologia alemã,) que entram em cena, aqueles mesmos que foram evocados por Baudelaire, na citação de Benjamin, ―descei, descei, ó tristes vítimas‖ (1989, P. 91) e que representam os heróis da modernidade. No filme, Recife deve ser observada a partir de olhos bem abertos, para que se possa dimensionar a problemática gerada pela condição econômica de classes subalternas engolidas por uma paisagem desordenada e deteriorada, como numa espécie de indigestão intestinal de um ambiente que sofre a explosão de uma miséria que envolve o homem. Nesse sentido, o filme parte de um psicofisiologismo na representação das personagens para uma análise mais psicanalítica que pressupõe um debate sobre as profundezas das neuroses sexuais que surgem nesse prosaísmo da vida. Cláudio Assis, ao seguir as pegadas dos mangueboys, nos traz a imagem do homem do Recife, aquele que apanha caranguejo, mas também se globaliza ao fundir maracatu com funk para despistar a cegueira cultural. Aquele homem que mostra seu apreço pelo desmantelo, que subverte as normas de comportamento com sua conduta sexual, 208 surpreendendo a todos que o visitam, mostrando que alguns traços da colonização não forma dirimidos com a chegada da globalização, mas, pelo contrário, foram na verdade, revitalizados. 2. A linguagem híbrida em A cidade: a intersemiose entre o sonoro, o visual e o verbal na convergência entre a poesia literária e a poesia de música. A prática de veiculação de várias manifestações da linguagem, através da fusão de diferentes sistemas artísticos, tem sido característica marcante no Pós-Modernismo. A literatura e a música em diálogo constante com outras semioses cada vez mais se apresentam consubstanciadas como necessidade de atuação nas manifestações artísticas da contemporaneidade. A semiótica como ciência geral de todas as linguagens, aponta, nesse contexto global, para a necessidade de mostrar que a relação entre o mundo e a linguagem apresenta um intercurso que implica na confluência crítica de diversas tradições discursivas contemporâneas e pregressas. Para Peirce (Plaza, 2003, p. 19), ―o signo não é uma entidade monolítica, mas um complexo de relações triádicas, relações estas que, tendo um poder de autogeração, caracterizam o processo sígnico como continuidade e devir.‖ Nesse sentido, a definição que Peirce vai fazer de signo traz em seu cerne uma justificativa para o processo semiótico, ou seja, o signo, em constante ação, vai cada vez mais se transformar em signos novos numa sequência sucessiva e sem interrupção. Qualquer pensamento, portanto, é, inevitavelmente, uma forma de tradução, já que se caracteriza pela transferência constante de signo em signo. No disco ―Da lama ao caos‖, de Chico Science, pode-se constatar essa relação de sentidos e linguagens que se cruzam, quando observamos a alquimia musical, as variações de ritmos, em que o tribal se funde ao estilo figurativo da voz que se destaca, além, é claro, da hibridação pertinente de ritmos regionais e globais. Segundo Peirce (PLAZA, 2003, p. 20-21), ―um conhecimento imediato não é possível, visto que não há conhecimento sem antecedentes pensamentais. (...) O signo é a única realidade capaz de transitar na passagem da fronteira entre o que chamamos de mundo interior e exterior.‖ Podemos perceber, então, que mesmo o pensamento mais interiorizado possível, existente apenas na forma de signo, já apresenta em seu cerne um certo ―gérmen social‖ que lhe permite a possibilidade de ultrapassar a fronteira de si para o outro. 209 Na abertura da música A cidade (ver anexo), do disco de Chico Science, a representação do barulho, do burburinho de uma feira livre, intuitivamente, (que Peirce chama de ―primeiridade‖), nos remete a um espaço imenso, apresentando apenas vozes dispersas de um frenesi urbano, lembrando os rappers marginalizados de Nova Iorque. Esse fenômeno interno nos leva a um externo, representado pelo barulho da rua e uma mãe, que, ao se dirigir ao filho, mostra toda sua preocupação e piedade diante de sua condição. Em paralelo a esse rápido diálogo entre mãe e filho, o som dos instrumentos regionais do Nordeste, sobretudo aqueles utilizados nas tradições de reisados, se apresentam ao fundo, como a querer imediatamente identificar de fato o espaço periférico urbano. A intuição, ou na perspectiva hegeliana, a experiência, a consciência como ser imediato do espírito, cria nessa imediaticidade um instante presente, que não se pode tocar, o puro acaso, um simples momento, uma impressão. Trata-se, pois, de uma consciência imediata tal qual é. Nenhuma outra coisa senão pura qualidade de ser e de sentir. A qualidade da consciência imediata é uma impressão (sentimento) in totum, indivisível, não analisável, inocente e frágil. (...) Nessa medida, o primeiro (primeiridade) é presente e imediato, de modo a não ser segundo para uma representação. Ele é fresco e novo, porque, se velho, já é um segundo em relação ao estado anterior. (SANTAELLA, 2007, p. 43/45) Nesse primeiro momento, ainda intuitivo, a música, em seu sentido lato, apresenta em suas filigranas uma música ainda sem a visível presença da fala já que, nesse nível de manifestação, ―a música não passaria de um possível em aberto, ainda não realizado‖ (SANTAELLA, 2005, p. 381). A possibilidade de sentido ainda não se apresenta rapidamente. Mas apenas rapidamente, já que, em um segundo momento, um novo estágio de apresentação do signo irá se processar. O estágio sígnico em sentido de pureza irá ceder espaço a uma outra representação. Uma sugestão perceptiva se processará em seguida, através de uma imagem visual, numa espécie de ―secundidade‖, na perspectiva peirceana, que agora já pode ser pensada. Através de um ritmo que se assemelha ao galope de uma cantoria do nordeste brasileiro, como se de fato as sílabas galopassem em ritmo veloz, o mundo pensável se apresenta nesse instante. Surge agora a representação de um novo ritmo que absorve, pouco a pouco, o burburinho inicial, superando-o pelo envenenamento rítmico das guitarras eletrônicas. A matriz sonora cria agora de forma híbrida e simultânea uma imagem de violência sonora, ao arrombar o ritmo suave e tênue inicial pela porrada aguda de um segundo som. É a cidade que vai se apresentar ―aos olhos‖ do ouvinte-leitor imbricada com o ruído das guitarras. É 210 a matéria tomando corpo, fazendo com que esbarremos no cotidiano de uma grande cidade, com seu sol, suas pedras e seus arranha-céus monstruosos. Essa performance sonora surge como forma de criar uma espécie de reação da consciência em relação ao mundo. O existir segue ao sentir, que se processou no primeiro momento. Certamente, onde quer que haja um fenômeno, há uma qualidade, isto é, sua primeiridade. Mas a qualidade é apenas uma parte do fenômeno, visto que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matéria. A faculdade do existir (secundidade) está nessa corporificação material (SANTAELLA, 2007, p. 47) O puro sentir inicial, essa qualidade do acaso, antes de ser percebida já traz em si, em sua capacidade sensitiva, uma certa existência material que ainda não se apresentou de imediato. Logo, toda e qualquer sensação já é em si mesma uma secundidade. Qualquer que seja o fenômeno que nos toca, por mais fraco que se apresente, tem a capacidade de produzir em nós efeitos paralelos. Qualquer excitação que se manifesta em nosso estado mental, se forma através de imagens e impressões que produzem reações que se conflituam entre a força e a resistência. Nesse sentido, primeiridade é intrinsecamente um elemento que compõe o segundo. Finalmente podemos constatar o aparecimento de um terceiro estágio da linguagem e do pensamento referente ao signo de Peirce. Trata-se de uma síntese intelectual, de um interpretante, de uma elaboração cognitiva. Ele é, segundo Peirce, ―o próprio resultado do significante, ou seja, efeito do signo, podendo também ser algo criado na mente do intérprete‖ (NOTH, Winfried, 1995, p. 71). É o ad infinitum em que consiste a semiose ilimitada de Peirce, onde cada signo traz uma nova interpretação, que se caracteriza como representamen de um signo novo, fazendo com que a relação semiótica resulte numa espécie de encadeamento de interpretantes contínuos. Algo parecido com o que Hegel chama de ―intuição‖, ―saber‖ e ―linguagem‖ e que Peirce vai denominar sequencialmente numa relação de sentido de ―qualissigno‖, ―sinsigno‖ e ―legissigno‖, ou seja, qualidade, associação e discurso. Chegamos, então, na composição de Chico Science, A cidade, a um terceiro estágio de sentido, a essa terceiridade, ao verbal, quando alcançamos a tradução de um pensamento em outro pensamento ininterrupto, sequencial, que nos coloca, no âmbito da interpretação, na utopia da urbanização. A destruição do sonho trazido pela ideia do progresso tecnológico, em que o caos se consuma como consequência dos conflitos e dos desequilíbrios sociais. 211 Observando de forma atenta a construção dessa composição, podemos constatar que o aceleramento da tecnologia gerando o crescimento da cidade, manifestada em seu amanhecer, em sua movimentação cotidiana, é o grande tema dessa canção, focalizada na subida dos arranha-céus e daqueles que vivem dentro deles, isolados do movimento lá fora; aí está o verdadeiro cerne de uma apartação social. O termo ―pedras evoluídas‖ reforça semanticamente o sentido intencional de ―pedreiros suicidas‖, já que a ideia da pedra, como a imagem da dureza, remete ao sistema opressor e duro, que é o capitalismo, que provoca a eliminação dos mais fracos, representados aqui pela figura dos pedreiros, ou seja, a representação do subalterno, que alimenta o sistema opressor e que, em contrapartida, não usufrui dele. A violência da cidade também se manifesta na tessitura da canção. Policiais que vigiam as pessoas independentes de quem sejam, pois a cidade oferece perigo imediato a todos aqueles que se expõem nela cotidianamente. Ao se oferecer, a cidade chama atenção por sua multiface, como num caleidoscópio formado por seres humanos de todas as classes sociais, que circulam entre coletivos, metrôs, automóveis, deixando clara a ideia de que a urbanização está ligada à ideia do mal estar e do caos pós-industrial, de uma cidade que não conhece sua verdadeira face. A ironia presente no enunciado ―A cidade não pára/a cidade só cresce/ o de cima sobe/ e o debaixo desce‖ fica por conta da desilusão em torno das desigualdades sociais, pois, enquanto ―o de cima sobe‖, se isola em seu arranha-céu, se distanciando cada vez mais, ―o debaixo desce‖, contrastando violentamente, uma vez que faz referência à condição do subalterno, das minorias sociais, que se afundam no mangue, na fedentina permanente e imutável da cidade, executando um movimento contrário ao daqueles que sobem que se sublimam que se beneficiam por se tornarem imunes à violência que se instala lá em baixo. A prostituição usada na utilização do turismo que trazem ―pessoas de outros lugares‖ faz crescer a fama da cidade, que ultrapassa os mares, numa clara referência intertextual aos feitos lusitanos cantados por Camões em sua célebre obra ―Os lusíadas‖. Assim, Recife se aproxima do mundo, se globaliza, se internacionaliza por sua miséria e desrespeito à cidadania. No fechamento da canção, percebe-se a sugestão para uma saída, que se processa na ideia de um resgate cultural, de uma assimilação de vários sons, através dos ritmos regionais, que se acercarão do global, do envenenamento das guitarras, para fundir-se a ―uma embolada‖, a ―um samba‖, a ―um maracatu‖ como forma de dialogismo e possibilidade de alcançar a grande proposta do movimento Manguebeat, que é a 212 conscientização social e a busca de uma representação política e cultural daqueles que estão na lama, símbolo da cidade e da identidade do homem que precisa enfrentar o caos mundial para poder reaver sua cidadania. Na promiscuidade dos ritmos, a canção se fecha com uma diminuição do ritmo pesado e envenenado das guitarras, interagindo o erudito com o popular, implicando na confluência entre o som global e regional, e, de forma rápida e quase que imperceptível, a voz inicial da mãe que dialogava com o filho, reaparece e some rapidamente. 3. Conclusão Portanto, buscamos mostrar nesse trabalho que, assim como o Manguebeat compõe uma poética da cidade, as imagens de Amarelo Manga trazem o som e o cheiro, o sujo e o sofisticado, o que é melódico e o que é atonal, numa miscelânea de sensações que já tinham sido exploradas em videoclipes de bandas iniciais da cena cultural mangue, ao inserir a influência do pop na paisagem da cidade do Recife, numa simbiose entre o tradicional e o cosmopolita, redimensionando a cultura popular, hibridizando-a e dando-lhe um sabor de alquimia e encanto. Ao ver a cidade, onde ―o de cima sobe e o debaixo desce‖ (SCIENCE, 1994), o filme dialoga com o movimento mangue logo em sua fase inicial, quando mostra por intermédio de uma câmera do alto, a decadência e a aporia da personagem Lígia em seu cronotopo (seguindo a esteira de Bakthin), ao acordar para o seu ramerrão diário em um modesto bar. Assim fará também Chico Science ao mostrar o amanhecer na quarta pior cidade do mundo (ver anexo). É no sabor do encanto e do desconcerto que filme e poesia convergem para um mesmo ponto. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. A Modernidade. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Martins Barbosa e Hermerson Alves Baptista. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: arte de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 213 PLAZA, Júlio. A tradução intersemiótica como pensamento em signos & A tradução semiótica como intercurso dos sentidos. In: Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 17-43. SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. 3. ed. – São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2005. SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2007. SCIENCE, Chico & nação Zumbi. Da lama ao caos. Sony &BMG, 1994. TELLES, José. Manguebeat. In: Do Frevo ao Manguebeat. S. Paulo: ed. 34, 2000. Filme: ASSIS, Cláudio. Amarelo Manga. Recife, 2003 ANEXO A cidade (Chico Science & Nação Zumbi) O Sol nasce e ilumina as pedras evoluídas, Que cresceram com a força de pedreiros suicidas. Cavaleiros circulam vigiando as pessoas, Não importa se são ruins, nem importa se são boas. E a cidade se apresenta centro das ambições, Para mendigos ou ricos, e outras armações. Coletivos, automóveis, motos e metrôs, Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade se encontra prostituída, Por aqueles que a usaram em busca de saída. Ilusora de pessoas e outros lugares, A cidade e sua fama vai além dos mares. No meio da esperteza internacional, A cidade até que não está tão mal. E a situação sempre mais ou menos, Sempre uns com mais e outros com menos. A cidade não pára, a cidade só cresce 214 O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tú. Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. (haha) Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tú. Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. (ê) Num dia de Sol, Recife acordou Com a mesma fedentina do dia anterior. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce 215 (DES) CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE(S): UMA ANÁLISE DA OBRA MAD MARIA Sônia Mara Nita1 Resumo: No intuito de abordar a questão da identidade sobre a perspectiva da pósmodernidade, foi selecionada a obra Mad Maria de Márcio de Souza, escrita em 1980, que aborda sobre a construção da estrada de Ferro Madeira Mamoré, no estado de Rondônia, entre os anos de 1907 e 1912. Trata-se de um romance histórico pós-moderno, sendo que o objetivo desse trabalho é o de verificar as marcas identitárias, no romance Mad Maria, tendo como foco o propósito de averiguar as diferentes culturas e raças convivendo em um mesmo espaço, os conflitos e dificuldades pelo qual passaram e a influência desse convívio para a (des)construção da identidade dos diversos homens que se dispuseram a trabalhar nesse projeto, e para tal utilizou-se como principal referencial teórico as concepções de Stuart Hall. Este autor destaca que com a globalização, a noção de sujeito como identidade unificada e estável fragmenta-se, cedendo lugar à de um sujeito composto não de uma única, mas de várias identidades, sendo o sujeito pós-moderno, marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e pelo deslocamento, não possuindo uma identidade fixa ou permanente. Palavras-chave: identidade; pós-modernidade; globalização. Abstract: In order to address the issue of identity from the perspective of postmodernity, the work was selected for Mad Mary of Márcio de Souza, writing in 1980, which covers about road construction Madeira Mamore Railway in the state of Rondônia, between years 1907 and 1912. This is a historical novel postmodern, and the aim of this work is to verify the identity marks, Mad Mary in the novel, focusing on the purpose of ascertaining the different cultures and races living in the same space, conflicts and difficulties they went through and the influence of this interaction for the construction of the identities of several men who were willing to work on this project, and this was used as the main theoretical conceptions of Stuart Hall. This author points out that with globalization, the notion of subject as unified and stable identity is fragmented, giving rise to a compound subject of not one but multiple identities, with postmodern subject, marked by discontinuity, the fragmentation and displacement, not having a fixed identity or permanent. Keywords: identity, postmodernity, globalization. 1 MAD MARIA E A IDENTIDADE CULTURAL DO SUJEITO PÓSMODERNO De acordo com Hall (1998), o conceito de identidade é demasiadamente complexo, pouco desenvolvido e pouco compreendido na ciência social contemporânea, distinguindo três concepções diferentes de identidade no percurso histórico: o sujeito do Iluminismo, como um indivíduo centrado, unificado, contínuo ou ―idêntico‖ ao longo da sua existência; o sujeito sociológico, formado na relação com o outro, na interação entre o eu e a sociedade; e o sujeito pós-moderno, fragmentado, composto de várias identidades, sem 216 uma identidade fixa ou permanente. A representação da identidade ocorre na relação que se estabelece na condição de homem, entre sua posição de ser produtor e ser produzido em uma realidade social. Assim, nesta pesquisa, tendo como foco a obra Mad Maria, pretende-se analisar a forma como a globalização (capaz de unir pessoas de nacionalidades diferentes em um mesmo território), depois de atingir a identidade cultural de uma nação, passa a influenciar diretamente na identidade particular do homem pós-moderno, mas que sempre estará afetando diretamente a construção e o desenvolvimento das identidades locais, pois o indivíduo partindo do pressuposto por Stuart Hall, sendo um sujeito detentor de uma identidade fragmentada, é capaz de modificar toda a estrutura social tanto do seu espaço local quanto do espaço global e tais fatores serão verificados na narrativa desse romance histórico pós-moderno. 2 TRABALHADORES DA ESTRADA DE FERRO: OS EXPLORADOS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE(S) Na crise de identidade do homem pós-moderno o grande dilema da sociedade é até onde a sua cultura está sendo sucumbida pelas identidades heterogêneas oferecidas pela indústria cultural e até onde ele está sujeitando-se a outras culturas, a pós-modernidade trás consigo esse questionamento, comprovando a instabilidade das identidades modernas, Stuart Hall argumenta que: [...] as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um ―sentido de si‖ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma ―crise de identidade‖ para o indivíduo (HALL, 1998, p. 9). O sujeito pós-moderno tende a abandonar os seus referenciais de tradição e cultura para sentir-se inserido no mercado global. Embora muitas vezes ele nem saiba esta sua 217 nova opção cultural, assim o faz devido às condições impostas pela sociedade para a sua subsistência como um membro do grupo, apesar de muito falar-se da individualização do homem ele necessita fazer parte de um grupo social, ao qual ele se identifique. Com a infiltração cultural, a noção de sujeito como identidade unificada e estável fragmenta-se, cedendo lugar à de um sujeito composto não de uma única, mas de várias identidades. Essa é, para Hall (1998), a concepção de sujeito pós-moderno, marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e pelo deslocamento, o sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa ou permanente. Optando pela pluralidade, assume identidades diferentes para cada momento que vivencia. Por isso, Hall (1998, p. 10) declara: "naquilo que é descrito [...] como nosso mundo pós-moderno, nós somos também ‗pós‘ relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade‖. Referindo-se a identidade na pós-modernidade, as contribuições dos estudiosos Jean-François Lyotard e de Linda Hutcheon são, nesse sentido, referências que não se podem deixar de mencionar. Considerado por alguns como "o mais representativo portavoz do pós-moderno" (COUTINHO, 2005, p. 162), Lyotard (1993) reagiu a toda forma de pensamento de identidade hegemônica ou uniforme. Semelhantemente, Linda Hutcheon (1991, p. 19) defendeu o pós-moderno como um fenômeno fundamental e deliberadamente contraditório, "que usa e abusa, instala e subverte, os próprios conceitos que desafia". Por isso, segundo Hutcheon, quaisquer oposições binárias devem ser questionadas, já que negam a natureza híbrida, plural e contraditória do pós-moderno. A crise de identidade, mencionada no início desse tópico, acontece pelo fato do homem pós-moderno viver em uma sociedade que dissolve a todo momento suas referências culturais ou sociais, criando novas necessidades e valores. Na obra Mad Maria, observa-se esse homem pós-moderno produto de uma internacionalização das relações econômicas, inserido no projeto de construção da estrada de ferro, em um amplo processo fragmentário de identidade, na qual ele não consegue mais sentir-se representado no ambiente em que está inserido e nem resgatar a identidade do seu local de origem. Em análise da obra, há o relato de muitos trabalhadores, de diversas nacionalidades, que se deslocaram de sua localidade de origem, até mesmo de outros países longínquos, em busca de trabalho, vindo parar no estado de Rondônia/Brasil. O narrador quando se refere às nacionalidades usa adjetivação pejorativas tais como: alemães turbulentos, espanhóis cretinos, barbadianos idiotas, chineses imbecis e portugueses, italianos, brasileiros estúpidos, dentre outras nacionalidades exóticas não mencionadas. Apesar da construção da estrada de ferro ser realizada no Brasil menciona-se que há apenas poucos brasileiros 218 trabalhando nesse projeto. Há uma outra nacionalidade mencionada, porém a conotação é diferenciada, não são usados adjetivos pejorativos. São os norte-americanos, considerados como seres superiores, sendo os mais graduados e, como tal, ocupam cargos diferenciados. Segue o trecho a seguir ilustrando essa concepção: ―Os manda-chuvas são norteamericanos e aquele é um projeto norte-americano. Mas Collier é cidadão inglês, um velho e obstinado engenheiro inglês. Todos os homens que se relacionam diretamente com o engenheiro são norte-americanos [...] (SOUZA, 2005, p. 6-7). Vê-se a diversidade das raças, porém, não há interesse, por parte dos responsáveis pela contratação dos trabalhadores, com a integração e a criação de uma identidade local, como diz no final: cada um que cuide de seu próprio pescoço. Essa divisão e separação entre os membros dessa nova comunidade formada as margens do rio, em Porto Velho, não ocorre somente com as identidades, mas também com seus delimitadores espaciais, cada qual, de acordo com a nacionalidade ocupa uma atividade na construção da ferrovia e criam-se semigrupos dentro desse novo espaço, delimitam suas ―fronteiras‖, seu território, fronteira esta que pode ser considerada móvel, devida as várias influências que recebem e dependem nessa dinâmica global de convivência. Havia ainda divisão por grupo de nacionalidade para cumprir cada serviço. Metade do dia os homens passavam trabalhando, mas as condições em que estavam os igualavam, agora começam a assumir características de identidade semelhantes: [...] o aspecto de cada homem é igual, independente de sua nacionalidade. Todos estão igualmente maltrapilhos, abatidos, esqueléticos, decrépitos como condenados de um campo de trabalhos forçados (SOUZA, 2005, p. 7). As mudanças de território e de costumes que esses homens vivenciam influenciam na constituição da identidade, criando assim, uma crise, em face da instabilidade que enfrentam: Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que ternos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma "crise de identidade" para o indivíduo (HALL, 1998, p. 1). Mesmo os trabalhadores querendo estabelecer o isolamento entre os grupos, destaca-se que são as relações entre ―nós‖ e os ―outros‖ que vão estabelecer no que são singulares enquanto pertencentes ao mesmo grupo, mesmo território, mesma sociedade dentro do plano do vivido, sentido, percebido e concebido, e em oposição, o que os outros 219 têm de diferente para serem os ―outros‖, de um espaço estranho. Pelo comportamento das personagens há sim a percepção das diferenças, das singularidades, porém ao invés de se estabelecer um novo contexto local ocorre a exclusão e desentendimentos entre os grupos. Nesse processo de novas tentativas de integração destaca-se que: [...] a "globalização" se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaçotempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado (HALL, 1998, p. 18). Nesse contexto de globalização, de aproximação das diferentes culturas, devido, principalmente, as diversidade de nações/identidades reunidas em uma mesma localidade, em prol da construção da estrada de ferro, começam as confusões entre os grupos, os negros carregam a carga do preconceito, são acusados, pelos alemães, dos roubos ocorridos naquela localidade. Um dos enfermeiros alerta sobre a igualdade em que se encontram todos ali, independente da nacionalidade, faz crítica aos alemães, dizendo que antes de estarem no Brasil, perambulavam em suas terras sem trabalho e defende o negro enquadrando-o como trabalhador: ―[...] São todos iguais. Esses alemães estavam sem trabalho quando os agentes da Companhia descobriram eles, um bando de mortos de fome, perambulando no porto de Hanôver. Os barbadianos são diferentes, conhecem o trabalho que estão fazendo, são profissionais‖ (SOUZA, 2005, p. 12). Tal exaltação é feita aos barbadianos devido ao fato de ser mais importante naquele momento não a tradição e cultura que cada povo carrega, mas sim sua força de produção em prol da construção da estrada de ferro. No entanto, os alemães, na obra, consideram-se superiores, deve-se a isso a questão cultural imbutida no país de origem deles, verifica-se que a população do continente europeu considera-se superior aos demais. Conforme Backes (2000, p. 16) o etnocentrismo europeu, em seu discurso, enquadra a América de forma inferior: ―Povoar o globo com a raça européia, que é superior a todas as outras raças de homens; torná-los viajável e habitável como a Europa, eis a tarefa através da qual o parlamento europeu deverá continuamente exercer a atividade da Europa e mantê-la sempre‖. Em outro trecho há o reforço sobre as diferenças entre negros e alemães: ―[...] os alemães não davam a menor importância aos chineses e aos espanhóis, a ninguém mais, e canalizavam o ódio para os negros barbadianos com uma convicção muito forte. Talvez os alemães fizessem desse ódio uma espécie de última identidade que ainda podiam cultivar‖ (SOUZA, 2005, p. 15). Os alemães, conforme mencionado, possivelmente alimentavam o ódio por 220 essa raça, talvez por serem os mais diferentes deles, com relação as características que carregam, como se isso fosse uma das últimas formas para cultivarem a identidade, mas conforme mencionado anteriormente, estão todos, na mesma situação, assumindo agora, uma identidade semelhante. Ao longo da história que o livro conta, os alemães impõem sua kultur às pessoas que consideram como mais primitivas e, no fim, vê-se que são todos igualmente primitivos. Tudo se mistura na grande luta para levar um trem de Madeira a Mamoré. Misturam-se as raças, os idiomas, os hábitos alimentares, misturam-se as religiões, dos índios, dos negros, dos indianos e as muitas religiões dos brancos. Percebe-se que o ódio entre as raças é intensificado pela dificuldade de compreensão por causa da língua: ―O que há com eles? — pergunta um barbadiano, incrédulo frente a carga de ódio que chega até ali vinda do pequeno aglomerado de alemães. — Sabe lá, eles enrolam muito a língua, é difícil entender o que eles querem‖ (SOUZA, 2005, p. 16). E para tentar reverter a perca da identidade anterior, pode ser que os alemães, com as confusões que propagam, busquem, mesmo inconscientemente, seus antigos valores culturais, em uma tentativa de firmar o seu ―EU‖ social e satisfazer suas necessidades pessoais. A identidade compõe os vários fragmentos de culturas e o homem pós-moderno é aquele que procura saber quem ele é, e a qual sociedade ele pertence, que seria o seu eu exterior, que o faz interagir com o meio no qual ele vive, buscando compreender seu eu interior. E frente a essas diferenças Hall (1998) afirma que a sociedade não é, unificada e delimitada, mas está constantemente sendo "descentrada" ou deslocada por forças externas. E nesse descentramento e deslocamento social, ocorrem as brigas internas, mas os superiores não estavam preocupados com o bom convívio entre os trabalhadores e sim com o desempenho do trabalho, tal fato é evidenciado neste trecho: ―Collier não via nenhum mal nesse ódio, os alemães que se fodessem, mas não podia permitir que isto interferisse no andamento da obra‖. (SOUZA, 2005, p. 15). Apesar de ocorrerem tantos conflitos internos no ambiente em que os trabalhadores estavam reunidos para a construção desse projeto, entretanto, não quer dizer que esta desestruturação da identidade seja um fator planejado ou calculado pelos detentores do poder da sociedade contemporânea, ela ocorre à revelia de todo e qualquer processo, seja de transnacionalização ou da globalização da economia, da sociedade e do consumo. Ela nasce do desejo do homem em conquistar novos horizontes, sendo essa busca de novos 221 ―territórios‖, relacionada diretamente com o conhecimento, com a informação e com uma tentativa, mesmo que inconsciente, de proteger-se da globalização, ao mesmo tempo em que tenta dominar esse movimento global. As várias identidades retratadas nesse romance histórico pós-moderno geram muitas vezes embates, as tensões múltiplas entre grupos de habitantes, como populações tradicionais em áreas de pressões econômicas com interesses privados que são obrigadas a se mudarem para localidades com costumes diferentes, e isso de fato ocorreu nesta parte do Brasil, recebendo os refugiados e marginalizados de outros países. Elias e Scotson (2000) falam dessa relação de segregação entre indivíduos antagônicos: os estabelecidos e os forasteiros outsiders, considerados como estrangeiros que não partilham os valores e o modo de vida vigentes e acabam sendo segregados nas relações sociais intergrupais. Neste contexto, comparam os Hindus com os alemães, dizendo que os Hindus são o tipo de trabalhadores perfeitos devido à submissão: Os Hindus diferentemente dos alemães comportam-se bem durante o trajeto da viagem, aceitam silenciosamente as ordens que são repassadas, a ponto do poderoso Farquhar elogiá-los e dizer que finalmente tinha encontrado o tipo ideal de trabalhador (SOUZA, 2005, p. 271). A falência dos Estados-nação, e com isso, do sentimento de segurança, estabilidade e ordem que deles derivavam, fazem com que os grupos minoritários, como nesse caso os hindus, migrem de seus territórios e após esse fato estão suscetíveis a serem absorvidos pelo processo de homogenização cultural decorrente do fenômeno da globalização e terem a sua cultura/identidade exposta à infiltração cultural. Esses movimentos minoritários, constroem-se a partir de discursos excludentes e preconceituosos, que reivindicam e afirmam sua identidade através de relações identidade/diferença, por meio dos símbolos, signos e representações que compõem a identidade da comunidade, desta forma, desenvolvem discursos e práticas de negação e não aceitação dos ―seus diferentes‖, possibilitando a exclusão e a marginalização daqueles estigmatizados pela comunidade. As contradições acontecem pelo fato de haver o choque entre duas identidades distintas, e apesar da globalização tentar impor novas formas de representação do local e do global, ela acaba também por criar um sentimento de revalorização das identidades nacionais, em detrimento do movimento de globalização. Porém, na pós-modernidade as identidades locais estão experimentando um novo sentimento de revalorização, Stuart Hall observa esse sentimento de valorização da seguinte forma: ―As identidades nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de 222 cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importantes‖ (HALL, 1998, p. 73). Porém, mesmo com essa tendência à valorização das identidades locais e comunitárias, é notório, desde o início da narrativa de que as condições não eram favoráveis, evidenciando qual será o destino de muitos que ali estão, tanto pelas más condições, quanto pela adaptação: ―Os homens estão passando por condições de trabalho jamais imaginadas. Muitos morrerão, porque o trabalho é duro, porque nunca estarão suficientemente adaptados para enfrentar terreno tão adverso. [...] As condições de trabalho não eram o forte daquele projeto maluco‖ (SOUZA, 2005, p. 6). Neste sentido, ficam revoltados com a situação e tentam fugir do trabalho na estrada de ferro, há uma desestabilização da identidade e da perspectiva de vida: Mas Günter não era exatamente um homem revoltado, não tinha perspectivas claras e nenhuma vontade especial quanto a sua vida. A única coisa que ele agora desejava era escapar, ver-se livre da prostituição do Abunã, escapar das malhas da Companhia, nunca mais voltar a pegar uma marreta para martelar dormentes de uma estrada de ferro que lhe escapava da compreensão (SOUZA, 2005, p. 150-151). O personagem Gunter é a demonstração do que aconteceu com muitos trabalhadores, por não suportarem as condições que viviam, consideraram que a melhor saída era a fuga. Este, além dessa atitude, assumiu uma nova postura frente ao grupo, antes em condição de isolamento e em determinado momento foi o responsável por liderar uma equipe, para assim tentarem escapar daquelas condições de trabalho. Neste sentido, destaca-se que o comportamento de cada um naquela estrada de ferro e a identidade estão relacionados às heranças sociais, culturais e definições anteriores ao sujeito estarem naquela localidade, por isso alguns se sentiam mais suscetíveis ou revoltados com as circunstâncias que estavam inseridos. As identidades se formam pela vivência nas comunidades e a constatação dessa identidade ocorre às pessoas porque ainda vigora o sentimento de pertencimento a algum lugar, alguma cultura, comunidade, grupo de ideias e princípios. Mas, à medida que as pessoas são expostas a muitas e diferentes comunidades e passam a refletir sobre esse fato, e a não aceitação deste fator, torna a mutação das identidades como algo problemático. Esta questão pode ser notada no seguinte fragmento: — Mas é com teimosia e competência que a nossa civilização tem avançado — disse Finnegan, sem muita convicção. — Nossa civilização! Fazia muito tempo que eu não ouvia essa asneira. Foi preciso que um doutorzinho chegasse aqui para me fazer lembrar que isto existe. Um 223 doutorzinho que está aqui só algumas semanas e ainda se lembra que temos uma civilização (SOUZA, 2005, p. 12). Verifica-se uma insatisfação, em que Collier, não considera estar mais em um ambiente considerado civilizado, e Finnegan, recém chegado àquele território ainda considera os padrões organizacionais de uma nação. Segundo Bauman (2005), ter consciência de que o ―pertencimento‖ e a ―identidade‖ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‗pertencimento‘ quanto para a ‗identidade‘. E quanto ao pertencimento, Finnegan, após algum certo tempo convivendo na selva, no meio da construção da estrada de ferro, passa a reconhecer o quanto devia ser difícil viver longe da pátria de origem, ainda mais, quando na nova localidade não possui condições mínimas de sobrevivência: ―- Olha aqui, Collier, eu te entendo. Quer dizer, eu procuro te entender. Eu agora sei o quanto é difícil passar anos e anos fora de sua pátria, vivendo experiências difíceis em territórios fodidos. Eu acho que é isto que é ser pioneiro‖ (SOUZA, 2005, p. 212). Esse sentimento de pertencimento e não pertencimento começa a invadir o imaginário dos personagens. Passam a sentir falta do território considerado como pátria, mesmo que os motivos que levaram até esse novo território, na maioria dos casos, foi a situação caótica desencadeada também em seus países de origem. Portanto, mesmo os trabalhadores alimentando a vontade de retorno à pátria, sabe-se que no território de origem, em que a priori passava a sensação de segurança pela falsa percepção da unidade, na verdade é algo ilusório. É importante destacar que o pertencimento a uma nação, por mais natural e evidente que possa parecer, é uma convenção, cultivada e aprendida pelas pessoas ao longo da história das sociedades e que se tornou parte conformadora do homem moderno. Quando o poder unificador do estado-nação começou a fraquejar, devido a um pensamento capitalista liberalizante que se disseminou mundialmente, resultando em perda de garantias, segurança e privilégios para seus membros, a identidade nacional em crise perdeu ―suas âncoras sociais que a faziam parecer tão natural, predeterminada e inegociável‖ (BAUMAN, 2003, p. 30) começando a fracassar como conceito. Consolidando essa ideia, citando Hall (1998, p. 18), questiona-se: ―O que, então, está tão poderosamente deslocando as identidades culturais nacionais, agora, no fim do século XX? A resposta é: um complexo de processos e forças de mudança, que, por 224 conveniência, pode ser sintetizado sob o termo ´globalização‘". E justamente esse fator desestabilizador mencionado anteriormente e a globalização que possibilitaram a vinda de vários homens de nacionalidades diferenciadas a reunirem-se no norte do Brasil, para fazerem parte do projeto da construção da estrada de ferro. As diásporas pós-coloniais também tiveram um papel muito importante no processo de (re)construção, (re)significação pelo qual passam as identidades culturais no mundo contemporâneo, com elas acelerou-se o transporte de culturas de um lugar para outro, e a tradição dessas culturas e dessas pessoas, de suas identidades, no novo local para o qual se deu a migração, possibilitando a transformação da cultura local e, consequentemente, a produção de identidades culturais híbridas. Consequentemente, também teve influência direta sobre as transformações na percepção espaço-temporal e na configuração atual da alteridade, visto que no ―entre-lugar‖ (assim Bhabha (1998) denomina os lugares em que se instalam os migrantes ) ―a diferença não é nem o Um nem o Outro, mas algo além, intervalar‖. Mas, apesar do homem pós-moderno adotar várias identidades como sua, neste hibridismo cultural ele sempre estará buscando a sua identidade no seu regionalismo, o sujeito pós-moderno, necessita de reconhecimento, mesmo que seja somente de sua cultura, ele necessita saber que ela está sendo preservada ou globalizada em outros Estadosnações. As identidades fixas de antes, plenamente definidas, recortadas e desprovidas de ambiguidade, parecem não mais funcionar e passam a buscar ―identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo.‖ (BAUMAN, 2005, p. 32). E essa consideração de identidade em movimento e a tentativa, algumas vezes frustrada, de identificação com grupos diferenciados, foi um fator evidente em toda obra, sendo a globalização, o capitalismo, o poder e as novas relações da pós-modernidade fatores preponderantes para o desencadeamento desta questão. Manter-se em movimento deixa de ser uma opção: torna-se uma obrigação para aqueles que se pretendem incluídos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nessa análise do romance histórico pós-moderno, Mad Maria, consolida-se, a apresentação de dois polos: os detentores do poder capitalista, e as minorias: os trabalhadores vindos de várias localidades para colaborarem na construção da estrada de ferro Madeira Mamoré. Vê-se nesses dois extremos que a (re)/(des)construção, flutuação, embates, imposições foram elementos que estiveram sempre ligados ao processo de 225 formação da identidade desses sujeitos pós-modernos ao longo da narrativa. Propôs-se assim, a discussão da obra sobre a identidade, e a reflexão sobre como essa temática foi tratada na narrativa e as reações comportamentais dos personagens frente às mudanças territoriais, de cultural e de comportamento, e segundo Bauman (2005), essa discussão é profícua e necessária, porém, muitas vezes, equivocada quando se volta para a busca de respostas definitivas e tranquilizadoras. REFERÊNCIAS BACKES, Carmen. O que é ser brasileiro? São Paulo: Escuta, 2000. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. _________. Globalização: as consequências Humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed, 2003. COUTINHO, Eduardo. Revisitando o pós-moderno. In: BARBOSA, Ana Mae; GUINSBURG, J. (Org.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. 2. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. HUTCHEON, L. Poética do pós-podernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LYOTARD, J. F. The Postmodernism condition: a report on knowledge. Translation Geoff Bennington and Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. SOUZA, Márcio. Mad Maria. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. 226 HISTÓRIA E LITERATURA: APONTAMENTOS SOBRE A VERTENTE TESTEMUNHAL DA CONTÍSTICA PÓS-64 Prof.ª Suellen Batista1 Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Sarmento-Pantoja (Orientadora)1 Resumo: A partir da década de 1960 ocorre uma mudança significativa na temática e na elaboração estética da produção literária brasileira. Segundo Silviano Santiago (1989), o tema da exploração do homem pelo homem sai de cena e deixa espaço para a entrada de uma temática ocupada com a discussão do modo como funciona e atua o poder, mudança influenciada pelo regime ditatorial vigente no país. No campo estético, Antonio Candido (1987), pontua dois aspectos centrais da produção literária pós-64: o ultrarrealismo e a dissolução das barreiras dos gêneros. Neste trabalho, visamos demonstrar que da confluência entre o aspecto estético e histórico/temático surge uma vertente testemunhal da contística brasileira. Para comprovarmos tal hipótese, partimos da análise de como categorias, como, por exemplo, o trauma e a memória são movimentadas nos textos que compõe a vertente. Tomamos por base nesta análise, principalmente, as formulações de Seligmann-Silva (2001) acerca do testemunho de catástrofes históricas e da dimensão ficcional dessas produções, o estudo de Ginzburg (2001) acerca do trauma enquanto categoria tomada da psicanálise, e os trabalhos de Schwarz (2001), de Candido (1989) e de Santiago (1989) sobre a produção literária durante o regime ditatorial brasileiro. Palavras chaves: Vertente testemunhal; Conto brasileiro pós-64; Regime Militar ; Memória; Trauma Abstract: From the 1960s there is a a significant change in thematic and aesthetic development of the Brazilian literary production. According Silviano Santiago (1989)the theme of exploitation of man by man leaves the scene and leaves room for the entrance of a busy theme with a discussion of how power works and operates, changes influenced by the dictatorial regime prevailing in the country. In the aesthetic field, Antonio Candido (1987), points out two key aspects of literary post-64: ultrarrealismo and the dissolution of the barriers of genres. In this work, we aim to demonstrate that the confluence between the aesthetic and historical / thematic strand comes a testimonial from contística Brazilian. To prove this hypothesis, we start from the analysis of how categories such as, for example, trauma and memory are handled in the texts that make up the strand. We take based this analysis mainly formulations Seligmann-Silva (2001) concerning the testimony of historical catastrophe and the fictional dimension of these productions, the study of Ginzburg (2001) about the trauma while making category of psychoanalysis, and the work of Schwarz (2001), Candido (1989) and Santiago (1989) on the literary production during the Brazilian dictatorship. Keywords: Vertente testimony; Tale Brazilian post-64; Military Regime; Memory, Trauma INTRODUÇÃO ―Há momentos coletivos em que o élan revolucionário polariza e comove tanto os homens de ação quanto os criadores de ficção.‖ (BOSI, 1996: p. 18) É inquestionável a relação entre a obra literária e o período histórico de produção e circulação do texto. Porém, há momentos nos quais a relação entre literatura e sociedade ultrapassa um mero reflexo de aspectos da sociedade na obra, e o contexto social passa a 227 elemento motivador e ordenador do discurso literário. A esses momentos únicos na história de um povo é que a epígrafe acima faz referência; períodos em que a exposição dos acontecimentos torna-se necessária tanto para o homem militante, quanto para o homem criador de ficções. Observando a história do Brasil, podemos afirmar que o período de vigência da ditadura militar, instalada no país em 1964 e que vigorou por mais de vinte anos, corresponde a um desses períodos em que o contexto social interfere diretamente na produção artística. No que diz respeito à produção literária nota-se que diversos foram os modos utilizados pela literatura para narrar durante o período (romances, contos, peças teatrais, poemas, etc.); modos escolhidos em razão de diferentes motivos, como, por exemplo, expor as atrocidades cometidas pelos militares, burlar a censura, registrar fatos, construir testemunhos, etc. Neste trabalho propomos a análise de um recorte da produção deste período. Pois, visamos demonstrar que houve e como se configurou uma vertente da produção de contos publicados durante as décadas de 1960, 1970 e 1980 no Brasil que optou pela utilização do realismo cru na construção das cenas de violência relacionadas, diretamente, com o regime militar instalado no país. Ao propormos tal estudo pretendemos demonstrar que os textos selecionados, ao retratarem cenas de violência relacionada a tortura, realizam algo que vai além de um retrato ou exposição da violência legitimada naquele período e elaboram uma abordagem estética desse contexto social. Antes de realizarmos a análise e exposição da caracterização da vertente, convém expor os elementos norteadores do recorte proposto e da seleção dos contos que compõem o corpus da pesquisa. “Alias, o escritor escreve sobre o passado. Quem escreve sobre o presente é o jornalista”1: considerações sobre o recorte e a seleção dos contos A discussão sobre a literatura que aborda o período de vigência do regime militar no Brasil é recente. Segundo Márcio Seligmann-Silva(2003), os estudos realizados durante as décadas de 1970 e 1980, quase sempre, se debruçaram sobre o mesmo aspecto: registro e/ou denúncia da violência que foi legitimada nesse período. Essa abordagem advém das características dos textos de maior circulação nessa época (as autobiografias, contos que dialogam com notícias etc.) que, em sua maioria, traziam um registro mais cru da realidade, aproximando-se os textos literários de reportagens pela linguagem utilizada e pela forma de abordagem do tema. Esse aspecto, da diluição das barreiras dos gêneros, da produção 228 literária desse período foi apontado por Antonio Candido (1987), no artigo A nova narrativa, ao afirmar que [...] não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (CANDIDO, 1987: p. 208) A partir das nuanças da produção, é possível propor abordagens que mesclem o aspecto estético e histórico das obras. Em razão das diversas características da produção literária apresentada por Candido, no excerto acima, neste estudo, a seleção das narrativas pauta-se em três aspectos: o gênero (conto); o recorte temporal (narrativas produzidas e publicadas durante os anos de 1964 e 1985) e o recorte temático (contos que tenham como temática a violência relacionada ao regime militar ditatorial instalado no Brasil durante o período). Ao escolhermos tal recorte realizaremos uma análise que vai de encontro à afirmativa de Autran Dourado utilizada como título deste momento do texto, pois o foco do estudo será investigar a composição da escrita do presente nos contos, observando como os autores transformam o presente ou, mais precisamente a violência legitimada neste período, em elemento da tessitura do texto. Abordar a violência legitimada durante o regime militar é o aspecto central da delimitação da vertente literária testemunhal, objeto deste estudo. Muitos críticos literários a o debruçarem-se sobre a produção de contos brasileira do século XX apontam a existência de diversas vertentes como, por exemplo, a vertente da narrativa fantástica, a dos relatos memorialistas, as da voltada para reflexão existencialista, entre outras1. Dentre as várias vertentes apontadas pelos autores destaca-se a da violência, indicada por vários deles e que passa a figurar mais ostensivamente nas produções após década de 1960, tendo como principal expoente a obra de Ruben Fonseca com sua mescla do cru e do cruel nas relações e ações humanas. É nesta vertente que se costuma inserir as obras literárias que abordam as violências relacionadas ao regime militar. Este enquadramento é, para nós, inapropriado, pois ao delimitarmos uma vertente literária estamos lidando com a delimitação de um recorte que me permite enquadrar um grupo de obras que partilham aspectos comuns e que juntas compõem uma face da produção de uma literatura. 229 Ao inserir os contos que abordam a violência ligada ao regime militar a vertente da violência, não há a distinção entre textos que abordam uma violência social e os que abordam uma violência legitimada por um regime totalitário. Retira-se da delimitação a importância do contexto social e político na elaboração das obras, importância não apenas ligada a um sistema de repressão que instala a censura das obras publicadas, determinando o que deve ou não ser lido1, mas, sobretudo, perde-se a atenção da escrita destas narrativas que elaboram esteticamente uma violência que está ligada a matéria que é narrada, no caso das obras que compõe o corpus deste trabalho, centra-se a observação da narrativa da tortura legitimada neste período pelo estado. Pensar em como se dá a escrita da dor nestes textos é o que nos permite diferenciar o texto literário dos jornalísticos e dos memorialísticos produzidos neste período, enquanto estes visam o fato, aquele lida com as aporias da narrativa da violência, da dor; os limites e as alternativas para narrar o sofrimento durante e após a tortura. A partir dos aspectos anteriormente elencados selecionamos para compor o corpus deste trabalho cinco contos: ―O mar mais longe que eu vejo‖, de Caio Fernando Abreu (1977); ―O leite em pó da bondade humana‖, de Haroldo Maranhão (1973); ―O jardim das oliveiras‖, de Nélida Piñon (1980); ―Não passarás o Jordão‖, de Luiz Fernando Emediato e ―Saindo de dentro do corpo‖, de Flávio Moreira da Costa (1982). Outro aspecto que nos levou a escolha destas narrativas é que apesar de lançarem mão de estratégias narrativas diversas, os contos problematizam a narrativa do trauma ao ficcionalizar o testemunho, ou seja, os contos realizam uma apropriação do gesto testemunhal para narrar as violências sofridas (tortura) pelos personagens. Dessa forma os textos transformam a impossibilidade de narração do trauma em elemento da composição estética do texto. Antes de passarmos a análise dos elementos que caracterizam a vertente convém apresentar os contos selecionados. O primeiro, ―O mar mais longe que eu vejo‖, de Caio Fernando Abreu, publicado pela primeira vez em 1970 em Inventário do irremediável, livro de estreia do autor. O enredo do conto é simples alguém que encontra-se prisioneiro e/ou abandonado em uma praia, rememora fatos que ocorreram desde sua prisão neste lugar. Porém, esta rememoração não se dá de modo linear, ela é entrecortada por alucinações, delírios e uma constante aproximação do narrar à violência sofrida com a morte. Por ser narrado em primeira pessoa o texto cria a sensação de que a violência é narrada por quem a sofreu. O segundo, ―O leite em pó da bondade humana‖, de Haroldo Maranhão, circula pela primeira vez em 1975 na coletânea de contos entitulada Chapéu de três bicos. Um livro que é 230 publicado em uma tiragem reduzida, de apenas 200 cópias, que não são comercializadas e sim distribuídas entre amigos do autor. Essa estratégia serve para que o texto circule, em certa medida, clandestinamente, e não chame atenção das autoridades. Vale ressaltar que, no ano de 1975, ainda vigora o Ato Institucional nº 5, que será o responsável pelo cerceamento das manifestações artísticas contrárias ao governo1.O texto só circulará de modo abrangente após abrandar-se a repressão, o que ocorre no início da década de 1980. Quando o texto compõe a coletânea As peles frias publicado em 1983, após a coletânea de contos ganhar o prêmio do Instituto Nacional do Livro no ano de 1981.O conto de Maranhão apresenta como enredo a narrativa de sessões de tortura às quais um homem, que não é nomeado, foi submetido durante um interrogatório. Lançando mão da narrativa em primeira pessoa o conto realiza uma mescla entre a narração de ações e/ou acontecimentos e a descrição dos pensamentos e sensações vividas pelo personagem durante as sessões de tortura, que são descritas detalhadamente no texto. O terceiro, ―No jardim das oliveiras‖, de Nélida Piñon, publicado em 1980, compõe a coletânea de contos No calor das coisas. O conto traz como enredo a história da segunda prisão de Zé, seu sofrimento ante a certeza da tortura e a angústia de não saber se irá suportar a violência e não entregar o paradeiro de Antônio, companheiro de militância. O quarto, ―Não passarás o Jordão‖, de Luiz Fernando Emediato, narra a prisão de Cládia B., jovem de 22 anos que é presa e submetidas a diversas formas de tortura. O aspecto diferencial desta narrativa é a utilização de três narradores: Cláudia B., torturador e um narrador em terceira pessoa, que gera na narrativa uma sensação caleidoscópica, permitindo múltiplos enfoques de um fato. Chama-nos a atenção o fato do conto incorporar fragmentos de textos não ficcionais, como depoimentos e discursos, à narrativa, o que reafirma a ligação do texto com o contexto de circulação e publicação do conto. O quinto e último conto, é ―Saindo de dentro do corpo‖, de Flávio Moreira da costa, publicado na coletânea Malvadeza Durão, no ano de 1982. A narrativa, em primeira pessoa, transita entre o passado (período em que o narrador foi preso e torturado, e que é marcado textualmente pela presença dos parênteses, utilizados como metáfora para uma memória aprisionada) e o presente (momento pós-prisão no qual o narrador busca organizar sua vida e suas ações, mas vê-se atormentado pelas lembranças e as possibilidades de vida após o trauma). Fica nítida na organização do texto a dimensão que o passado ocupa na vida do ex-preso político, restando ao presente apenas fragmentos da vida cotidiana. Procurou-se evidenciar durante a apresentação dos enredos dos contos o foco narrativo e o narrador utilizados, primeira pessoa do singular e um narrador autodiegético, 231 esse aspecto será determinante para compreendermos o aspecto central da composição da vertente: o testemunho. Testimonio ouZeugnis : o testemunho e suas aporias Na base da formulação do testemunho, encontra-se o evento traumático que o origina. Seligmann-Silva (2001), aponta a distinção entre o testimonio ligado, principalmente, às narrativas latino-americanas que surgem durante os regimes ditatoriais implementados entre as décadas de 1960 e 1970, que possuem como pano de fundo uma discussão prioritariamente partidária, não estando preocupadas em uma percepção estética do testemunho, e o Zeugnis que tem por pano de fundo a Shoah e realiza o cruzamento de diversos campos teóricos, como, a teoria literária, a história e as teorias psicanalíticas. Dessa forma, a escolha do idioma da palavra ―testemunho‖ para ser utilizada em um estudo não se restringe à seleção lexical, mas corresponde a uma escolha teórica. Por termos como objeto de análise o texto ficcional, propomos uma interseção entre o sentido do testemunho histórico e o sentido do sobrevivente, pois percebemos que há uma parcela da literatura de testemunho1 produzida no Brasil que não objetiva apenas o registro ou a denúncia do período de exceção, mas compõe-se de obras que abordam esse período histórico e o reelaboram esteticamente em seu texto, como é o caso dos contos selecionados. Em razão deste recorte, optaremos pela utilização do termo ―testemunho‖, em detrimento a tradução alemã ou castelhana do termo. O testemunho, em síntese, apresenta-se em três acepções, uma de sentido jurídico (o da narrativa que se pressupõe verídica em um tribunal), outra de sentido histórico (enquanto registro de um acontecimento não ―anotado‖ na história oficial) e uma última no sentido de ―sobreviver‖ a um evento-limite traumático1 (SELIGMANN-SILVA, 2003: p. 3). Em todas as acepções, há um aspecto comum: a impossibilidade. Todo testemunho é marcado pelo fato de ser um ponto de vista sobre o fato, dessa forma, jamais poderá ser concebido como a narrativa do que realmente aconteceu. Quando se analisa as narrativas testemunhais pós-traumáticas, que é o tipo de narrativa que será objeto deste trabalho, esbarra-se em outro aspecto da impossibilidade, que é a problemática da narrativa do até então impensável, pela crueldade e pela violência das situações vividas. Nesse contexto, requisita-se o ficcional como ponte entre a vivência e o registro, pois somente ele pode dar conta de recobrir o que fora vivido por meio da fabulação. 232 Partindo do conceito de testemunho exposto anteriormente, propomos três aspectos que caracterizam a vertente da contística que abarca as narrativas que lidam com a elaboração da cena de tortura: A apropriação do gesto testemunhal; Poder e crueldade: o papel do torturador e A linguagem abjeta: realização discursiva da dor. Em razão da pesquisa está em andamento, realizaremos a exposição dos dois primeiros aspectos. A apropriação do gesto testemunhal Ao ficcionalizar o testemunho os contos selecionados realizam uma apropriação do gesto testemunhal e transformam em elemento ordenador do texto as aporias do testemunho, como, por exemplo, a dificuldade de ordenação cronológica. Pois segundo Seligmann-Silva (2008: p.69), ―Ele [o testemunho] se dá sempre no presente. O tempo passado é tempo presente (...). Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa‖. Como podemos perceber no seguinte fragmento do conto de Abreu (2005: p.45): ―Chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu e eu senti fome‖. Ao realizar a mescla entre tempo presente e pretérito (chove/sentia) o conto cria uma atmosfera de incerteza temporal na narrativa, pois transforma a rememoração em um reviver da dor e da violência, que atinge de tal forma a vítima/narrador, que este torna-se incapaz de organizar o que é narrado, de separar o passado do presente. Outro aspecto observado nas narrativas é a problemática rememoração do trauma, pois, ao utilizarem um narrador autodiegético, o rememorar e, consequentemente, o narrar, segue o fluxo intenso do pensamento, ocorrendo a justaposição de temores, lembranças e delírios, como no fragmento abaixo. Os cúleos. Nitidamente subiram à memória, que trabalhava acionada por alta rotação, antiguíssimos tormentos, nomes e minúcias. Quando lera isso, onde? Os cúleos, sacos grossos de couro: onde se costuravam os parricidas, juntamente com uma cobra, um cachorro, um galo e um macaco, e os atiravam ao mar. [...] A tortura mais horripilante, que naquele instante me sobressaltava e pela qual temi, a alma eriçada: o esburga-pernas. Botas apertadas eram calçadas à forca, botas de couro cru, por baixo das quais se acendia fogo lento, que lento encolhiao couro, assando pés e pernas; e então com violência extrema tiravam as botas, vindo grudadas pele, gordura, cartilagens, expondo o esqueleto com restos de carne e sangue. A calcinha de Isabel, lembro bem, 233 enrijeceu o jovem peruzinho, foi minha primeira, fremente emoção. Meses atrás encontrei Isabel saindo de um cinema em Maceió, vasta como o aeroporto de Nova Iorque: quase lhe peco a bênção. ―A bênção, mamãe!‖ Ela não respondeu mais. Estava em meus braços, sacudia-a, não se mexeu mais. Puseram-lhe espelho colado à boca, não se embaçou; alfinetaram-lhe a palma deum dos pés, sem qualquer reação. Injetaram-lhe um líquido no abdômen e o líquido refluiu para a seringa: estava morta e eu saí em prantos pela rua. Albinoni. Quinteto para oboé e cordas: dele me lembrei e isso alarmou-me, temendo pela minha sanidade: um completo fodido de mãos e pés amarrados lembrar-se de Albinoni! Teriam me torturado botando ao máximo volume o Quinteto de Albinoni? Não. Esses quadrúpedes ouviram lá falar de Albinoni?!,nem o comandante poltrão, nem ele! Resistiria a novos espancamentos? Pensei, firme, em Giuliana Isfrán de Martínez; em Júlia. Iam me matar. Iam me matar. (MARANHÃO, 1989, p. 1819) Percebe-se, no excerto acima, a transição do recurso do monólogo interior (maneira mais articulada de expressar pensamentos e sentimentos do personagem) para a utilização do recurso do fluxo de consciência (maneira menos articulada de narrar, onde há a manifestação direta do inconsciente e a perda da maneira lógica da narração). A utilização deste segundo recurso interfere diretamente na construção do texto, pois o autor, para dar conta da profusão de lembranças e sensações narradas, recorre a um alongamento do parágrafo, por exemplo, o fragmento transcrito acima faz parte de um parágrafo que se estende por quase três páginas, o que problematiza a pontuação do texto interferindo diretamente na leitura deste. Esse alongamento será responsável por transpor, para a estrutura da narrativa, a exaustão e a angústia do personagem durante a sessão de tortura e durante a rememoração do trauma. Esta construção é percebida em todos os contos selecionados, pois sempre que se narra a tortura sofrida pelo narrador/personagem transpõe-se para estrutura da narrativa a problematização da rememoração. Poder e crueldade: o papel do torturador Para a abordagem do conceito de poder parto da premissa que ―a primitiva noção subjacente a toda questão sobre o poder, é a noção de que A de algum modo afeta B‖ (LUKES, Apud, Miranda 2005: p. 4). Deste modo o poder pode ser exercito por qualquer um, quer seja um grupo, um indivíduo, um país etc. Conceitualmente, a palavra poder pode tanto significar faculdade, força, capacidade, quanto pode ser usado como sinônimo de estado. Percebe-se nas narrativas que as duas 234 concepções estão intimamente ligadas, pois enquanto representantes do estado (detentores de Poder) os militares ao aprisionarem e torturarem os presos exercem um poder físico sobre os mesmo e encontram as condições propícias para exercerem o que Freud (1930) chamou de cruel agressividade, nesse caso mascarada como uma ―violência acionada para estabelecer o poder político, mantê-lo e fazê-lo funcionar‖ (Michau, Apud, Miranda, 2005: p.7), ou seja, utilizam de uma violência legitimada para dar vazão a crueldade que lhes é inerente. Observando a obra de Freud podemos dizer que a crueldade pode ser considerada como inseparável da natureza do homem: ―[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. [...] essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas‖ (FREUD, 1930, p. 133) Este aspecto da narrativa é perceptível principalmente nos contos que trazem a fala ou a descrição das expressões do torturador durante a tortura. Como podemos observar no seguinte fragmento do conto ―Não passarás o Jordão‖, no qual fica evidente que em primeiro plano está a prisioneira como um ser do qual ele poderá dispor, para ações que vão além de um interrogatório para obtenção de informações de interesse do estado, justificativa oficial para a prisão e para o interrogatório: Sim, eu não podia esquecer. A julgar pelo retrato, ela era mesmo muito bonita – muito melhor, mesmo, do que aquelas das quais costumamos dizer que são boas. Talvez fosse virgem, pensei comigo, e seria muito interessante o tipo de trabalho que poderíamos realizar com ela. [...]agora estou aqui, aqui neste lugar que não sei onde fica. E este homem velho que me insulta, e nada me explica, nadame pergunta, apenas me insulta, como se eu fosse a mais miserável das criaturas. São todos iguais. Não percebem, não são capazes de perceber com o que estão tratando, com quem estão tratando. Tentam se passar por ingênuos (inocentes úteis?), tentam se fazer de inocentes. E são todos iguais, embora jovens. Iguais, todos iguais1. (EMEDIATO, 1994: p. 175-176) Considerações finais 235 Os aspectos elencados neste trabalho correspondem aos primeiros apontamentos acerca da hipótese levantada na pesquisa que realizo para elaboração da dissertação de mestrado, na qual pretendo comprovar que existe uma vertente dos contos produzidos durante o período de vigência do regime militar que elaboram esteticamente a violência legitimada neste período. Tal comprovação dar-se por meio da delimitação de aspectos partilhados pelas narrativas coletadas. Delimitar esta vertente nos permitirá refletir teoricamente sobre as narrativas de resistência brasileiras, pois nos possibilitará analisá-las enquanto grupo coeso de textos, que mesmo partilhando características com outras vertentes literárias (como, por exemplo, a do realismo mágico), possuem característica particulares decorrentes da influência do período histórico na composição do texto (temáticas e formais) e na circulação das obras. Esta proposta nos dá a possibilidade de pensar sobre a história recente do país, pois ―é evidente que qualquer fato histórico mais intenso [...] permite – e exige! – o registro testemunhal‖ (SELIGMANN-SILVA, 2002: p. 9). E o registro do período de exceção foi feito pela literatura brasileira de diversas maneiras, o que a torna um campo vasto de investigação. REFERÊNCIAS: ABREU, Caio Fernando. Caio em 3D: O essencial da década de 70. [contos, correspondência, poesia e depoimentos]. Rio de Janeiro: Agir, 2005. BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. Itinerário, Araraquara, n 10, p. 11-27, 1996. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: _______. Educação para noite & outros artigos. São Paulo: Ática, 1989, p. 198-215. CARDOSO, Marta Rezende; MALDONADO, Gabriela. O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. Psic. Clin. Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 47–57, 2009. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003a. ______. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003b. GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. Diálogos Latinoamericanos. Ârhus, n. 30, p. 131-146, 2001. ______. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, Porto Alegre, Vol. 3, n. 3, p. 61-66, 2008. ______. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Disponível em: http://www.msmidia.com/conexao/3/cap6.pdf. Acesso em: 11 jul. 2012. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou a polêmica em torno da ilusão). 10. ed. São Paulo: Ática, 2002. (Série Princípios) LUCAS, Fábio (org.). Contos de repressão. Rio de Janeiro: Record, 1987. MARANHÃO, Haroldo. As peles frias. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1983. MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção Primeiros Passos) MIRANDA, A. G. O poder (im) pronunciado: uma leitura de Verde Vagomundo. 1995. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura), Centro de Letras e Artes, Universidade 236 Federal do Pará, 1995. SANTIAGO, Silviano. Poder e alegria: A literatura brasileira pós-64 – Reflexões. In: ______. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras. 1989. SCHWARTZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: ______. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 7-58. SELIGMANN-SILVA, Marcio (org.). História, memória, literatura: O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003. _______. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psic. Clin. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008. ______. “Zeugnis‟ e “Testimonio”: um caso de intraduzibilidade entre conceitos. Letras. nº 22 (Dossiê Literatura e Autoritarismo), 2001. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2004. 237 EXPERIÊNCIA DOCENTE NA PÓS-GRADUAÇÃO: LIMITES E ALTERNATIVAS Suellen Monteiro Batista1 Veridiana Valente Pinheiro1 Resumo: A experiência profissional é um ponto importante nas seleções de trabalhadores nas mais diferentes áreas, e o campo docente não está alheio a tal exigência. Porém há momentos na formação acadêmica que a atuação profissional é cerceada. Como ocorre em algumas pós-graduações, quando o aluno contemplado com bolsa de pós-graduação ―não pode‖ exercer atividade remunerada, seja por desconhecimento do orientador de que este pode dar a permissão para o aluno exercer esse tipo de atividade, desde que esta seja na área da pós-graduação em andamento, ou por proibição do programa de pós-graduação ao qual o aluno está vinculado. Nesse contexto, resta ao aluno, como meio de adquirir experiência profissional, o estágio docência, que, na nossa observação, resulta pouco produtivo para formação do profissional, pois não permite ao aluno uma experiência efetiva na docência, uma vez que este estará em sala de aula, na maior parte do tempo, observando um professor ministrar suas aulas, ação que desenvolve desde que ingressa na vida acadêmica. Partindo de nossas experiências profissionais pretendemos, com este trabalho expor duas alternativas as quais podemos lançar mão para contornar o entrave do estágio docência (a tutoria nos cursos à distância e a docência nas turmas do PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica), assim como pontuar os reflexos e a importância dessas experiências na nossa formação. Pois, observamos que essas atividades nos permitem atuar, efetivamente, como professores no ensino superior. Primeiramente, por possibilitarem o contato com os diversos momentos que envolvem o processo de ensino aprendizagem, como, por exemplo, o planejamento, a aplicação e a avaliação e, em seguida, pela troca de experiências com profissionais que estão décadas atuando, muitas vezes, em situações precárias, no que diz respeito à formação e às condições de trabalho. Palavras - chave: Experiência docente; Educação à distância; Pós-graduação. Resumen: La experiencia laboral es un punto importante en la selección de los trabajadores en diferentes áreas, y campo de la enseñanza no es ajena a tal requisito. Pero hay momentos en los que se restringe la actividad profesional académica. Como en algunos cursos de postgrado, cuando los estudiantes de posgrado otorgado becas "no pueden" desempeñar una actividad remunerada, ya sea por ignorancia del asesor que esto puede dar permiso para que el estudiante desarrollar dicha actividad, ya que este es en el área de postgrado en curso, o que prohíba el programa de posgrado al que está enlazado el estudiante. En este contexto, sigue siendo el estudiante como medio de adquirir experiencia profesional, la etapa de la enseñanza, que, en nuestra observación, improductivo a la formación profesional, ya que permite a los estudiantes experimentar la enseñanza efectiva, ya que será en la sala de clase, la mayoría de las veces, mirando a un maestro enseñar a sus clases, el desarrollo de la acción desde que entró en la vida académica. A partir de nuestra experiencia profesional nos proponemos con este trabajo exponiendo dos alternativas que podemos recurrir para eludir la enseñanza etapa obstáculo (tutoría en los cursos a distancia y la enseñanza de las clases en el PARFOR - Educación Nacional de Formación del Profesorado Básico) como reflejos y anotar la importancia de estas experiencias en nuestra formación. Bueno, hemos observado que estas actividades nos permiten actuar eficazmente como profesores en la educación superior. En primer lugar, permiten el contacto con muchos momentos que involucran el proceso de enseñanza y aprendizaje, por ejemplo, la planificación, ejecución y evaluación, y luego, mediante el intercambio de experiencias con 238 profesionales que están sirviendo décadas, a menudo en situaciones precarias, en lo que respecta a la formación y condiciones de trabajo. Palabras - clave: Experiencia instructor, Educación a distancia, Pós - graduación. Introdução A pós-graduação1 tornou-se, nos últimos anos, uma etapa importante na formação docente, figurando como uma exigência do mercado profissional. Além desta importância, a pós-graduação é um momento complexo para quem cursa, diante das exigências do programa de pós-graduação, da complexidade das disciplinas cursadas e da questão financeira. Por se tratar de aspectos que exigem dedicação, o exercício da docência fica comprometido em relação ao orçamento mensal do pós-graduando. Como possibilidade de contornar tal problema existem as bolsas de pesquisa, oferecidas por instituições federais, estaduais e por meio de parcerias com a iniciativa privada, que como qualquer outra coisa possui aspectos positivo e aspectos negativos. Dentre os positivos, destacam-se a possibilidade do aluno conseguir uma renda fixa durante o período em que cursa a pósgraduação, em contrapartida está a impossibilidade de possuir vínculo empregatício. A experiência profissional é um ponto importante nas seleções de trabalhadores nas mais diferentes áreas, e o campo docente não está alheio a tal exigência. Porém há momentos na formação acadêmica que a atuação profissional é cerceada.; como ocorre em algumas pós-graduações, quando o aluno contemplado com bolsa de pós-graduação ―não pode‖ exercer atividade remunerada, seja por desconhecimento do orientador de que este pode dar a permissão para o aluno exercer esse tipo de atividade, desde que esta seja na área da pós-graduação em andamento, ou por proibição do programa de pós-graduação ao qual o aluno está vinculado. Nesse contexto, resta ao aluno, como meio de adquirir experiência profissional, o estágio docência, que, na nossa observação, resulta pouco produtivo para formação do profissional, pois não permite ao aluno uma experiência efetiva na docência, uma vez que este estará em sala de aula, na maior parte do tempo, observando um professor ministrar suas aulas, ação que desenvolve desde que ingressa na vida acadêmica. Partindo de nossas experiências profissionais, pretendemos com este trabalho expor duas alternativas as quais podemos lançar mão para contornar o entrave da proibição de vínculo empregatício e, consequentemente, experiência profissional: a tutoria nos cursos à distância e a docência nas turmas do PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, assim como pontuar os reflexos e a importância dessas experiências na nossa formação. Pois, observamos que essas atividades nos permitem atuar, 239 efetivamente, como professores no ensino superior, para tanto comparamos essas experiências a experiência do estágio docência, atividade obrigatória para os alunos bolsistas. 1. PARFOR Com a implantação do PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, a sociedade passou por diferentes transformações, tanto no âmbito social, quanto no educacional, principalmente no que diz respeito à concorrência e a busca incessante do saber, pelos profissionais da educação, muitos desses profissionais possuíam apenas o segundo grau. Tal parâmetro ganhou clareza quando fui1 convidada a ministrar a disciplina ― Arte e Educação‖ pelo PARFOR-ABAETETUBA, no município de Acará. Experiência que será relatada a seguir; antes vamos apresentar o que vem a ser o PARFOR. PARFOR, como dito anteriormente é o (Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica), tal plano possui especificações, em três abordagens, de acordo com as informações contidas no site da CAPES1, o plano tem como objetivo fomentar a oferta de turmas especiais em cursos de: I. Licenciatura – para docentes em exercício na rede pública da educação básica que não tenham formação superior ou que mesmo tendo essa formação se disponham a realizar curso de licenciatura na etapa/disciplina em que atua em sala de aula; II. Segunda licenciatura – para docentes em exercício há pelo menos três anos na rede pública da educação básica e que atuem em área distinta da sua formação inicial; III. Formação pedagógica – para docentes graduados não licenciados que se encontram no exercício da docência na rede pública da educação básica. Ainda segundo informações contidas no site da Capes o objetivo do programa é: ―Induzir e fomentar a oferta de educação superior, gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede pública de educação básica, para que estes profissionais possam obter a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e contribuam para a melhoria da qualidade da educação básica no País‖1. A experiência em ministrar aulas pelo PARFOR favoreceu algumas observações significativas, referente a formação acadêmica como docente. Durante o período em que as aulas foram ministradas, era visível observar o impacto, que o saber provocava nos alunos e 240 na sociedade daquele local. A turma, cuja disciplina foi ministrada, apresentou pontos positivos e negativos. Primeiro vamos tratar do negativo, como alguns alunos estavam muito tempo afastados de sala de aula, os textos a serem discutidos na disciplina parecia algum muito difícil de ser compreendido, pois se observou que os alunos não estavam familiarizados com textos de ordem técnica. Ouvi relatos de alguns discente daquele turma, que disseram estar a mais de 20 anos, sem contato com leituras técnicas. A segunda dificuldade diz repeito à adequação dos discentes com os horários de aula, pois como o PARFOR, funciona em horário intensivo e sistema blocado, eles os alunos apresentavam um cansaço natural pelo grande volume de atividade em curto espaço de tempo. A terceira dificuldade diz respeito ao uso de recursos tecnológicos, ou seja, quase noventa por cento da turma era de regiões ribeirinhas, sem acesso as essas novas tecnologias, como computador, internet, etc. Vale salientar que muitos possuíam aparelho celular, que tinha apenas telefonia, ou seja, ligar e atender chamadas sem outros recursos virtuais. É importante frisar, que muitas outras dificuldades foram apresentadas pelos discentes, no entanto, resolvemos elencar as que consideramos mais relevantes para fins deste trabalho. Diante das dificuldades exibidas, recorreu-se aos PCNs - Parâmetros curriculares nacionais, em que se procurou buscar algumas ferramentas, que pudessem promover o ensino aprendizagem de maneira dinâmica e acima de tudo que este ensino pudesse aguçar a curiosidade dos discentes por leitura técnicas. Segundo os PCNs, em seu subitem – ―Critérios para a seleção de conteúdos‖, verificamos que há três eixos que se inscrevem de maneira articuladora no processo de ensino e aprendizagem. ―pois se acredita que é necessário, para a seleção e ordenação dos conteúdos gerais, [voltados as] Artes Visuais, Música, Teatro e Dança por ciclo, [...] considerar os seguintes critérios: conteúdos compatíveis com as possibilidades de aprendizagem do aluno; [...] valorização do ensino de conteúdos básicos de arte necessários à formação do cidadão, considerando, ao longo dos ciclos de escolaridade, manifestações artísticas de povos e culturas de diferentes épocas, incluindo a contemporaneidade; [...] especificidades do conhecimento e da ação artística.‖1 Diante desta especificidade do conhecimento, que diz respeito à manifestação artística na contemporaneidade, é que a dificuldade em trabalhar com esses alunos foi maior. Nesse sentido, surgiram algumas perguntas, uma delas foi como construir conhecimento com professores que acham não ser necessário acrescentar mais nada as suas aulas; especialmente no que diz respeito ao ensino de artes? Diante disso, mais uma vez os 241 PCNs, auxiliaram a encontrar soluções para as dificuldades. Relendo-os, foi possível observar que, o próprio acervo das vidas daqueles professores, guardados há tanto tempo serviria servia de material para exploração do ensino de artes. De acordo com os PCNs, para a produção do conhecimento artístico, é necessário que ―[a] obra de arte situa-se no ponto de encontro entre o particular e o universal da experiência humana‖1. Diante desse diagnostico inicial foi traçado um plano de ação voltado à construção de reflexões que envolvesse primeiro o conhecimento de mundo desses professores acerca de sua necessidade e seus anseios relacionados ao ensino de arte. Com essa proposta presente nos PCNs, traçamos um plano de ação em que procuramos abordar alguns objetivos iniciais na execução da disciplina. A disciplina teve como objetivo geral desenvolver a ideia de introduzir concepções de arte na educação estética e artística, a partir de um contexto da formação docente, em que se trabalhou dentro de uma perspectiva interdisciplinar. Abordando principalmente discussões de diversas concepções de arte aplicadas ao ensino; relacionado percepções existentes entre os diversos campos da arte e os processos de ensino aprendizagem; no sentido de compreender aspectos e categorias ligados ao campo das sensibilidades; Outro aspecto trabalhado foi a elaboração de procedimentos necessários para a construção de projetos relacionados à arte e educação. Além disso, procurou-se ensinar a arte e educação como um projeto de manifestação cultural inserido em um contexto étnico; diante de um mundo tecnológico e cientifico, em que procuramos trabalhar como a internacionalização da economia têm contribuído para este fenômeno e promovido mudanças, também, na ―natureza e na organização da produção‖. 2. Educação à distância – EAD A educação a distância é um a modalidade de ensino que vem crescendo nos últimos anos no Brasil, principalmente, a partir do ano de 2006, quando foi instituída a Universidade Aberta do Brasil – UAB, que corresponde a um sistema integrado por universidades públicas que tem como objetivo possibilitar o acesso de pessoas, que vivem em localidades distantes dos grandes centros, ao ensino superior. O público alvo deste sistema são professores que atuam na educação básica, assim como gestores e demais profissionais envolvidos com educação nestas localidades. Ao estudante de pós-graduação é dada a possibilidade de atuação, nesta modalidade de ensino, como tutor, presencial ou a distância. As atividades dos tutores estão 242 relacionadas a mediação do conhecimento por meio de sessões de orientação presencial, atendimento virtual dos alunos e aplicação de avaliações. Neste processo de ensinoaprendizagem o tutor assume um papel importante, pois ele constitui o elo entre professor e aluno, dessa forma sua atuação é requerida desde o planejamento das atividades até a avaliação. A EAD/UAB é uma importante forma de atuação para o estudante de pósgraduação, uma vez que permite, ao profissional, o acumulo de bolsas (de trabalho e de pesquisa), amparado pela Lei nº 11 502, de 11 de julho de 2007 e, consequentemente, dá ao aluno de pós-graduação a possibilidade de exercício do magistério no ensino superior sem a perda da bolsa de pesquisa, o que configura um incentivo a inserção de profissionais qualificados no mercado de trabalho. A partir de minha experiência1 de um ano atuando na tutoria presencial do curso de Letras, com habilitação em língua portuguesa, ofertado pela Universidade Federal do Pará/Universidade Aberta do Brasil, no município de Barcarena, posso afirmar que a experiência resulta muito significativa, pois me permitiu a atuação em diversos momentos do planejamento das disciplinas desde a definição dos modos de avaliação, das atividades desenvolvidas durante os encontros presenciais, assim como a aplicação de avaliações. Outro aspecto favorável da EAD é que as atividades desenvolvidas são orientadas e supervisionadas por professores da instituição, responsáveis por conduzir as disciplinas junto com os tutores, o que permite uma troca de experiências muito significativa para o aluno de pós-graduação que está ingressando no magistério superior, pois este tem um direcionamento das atividades que vai executar. Vale ressaltar que outro ponto interessante é a carga horária, que abarca não apenas as atividades executadas durante o sábado (dia em que as atividades são desenvolvidas), como também a preparação das e para as atividades, pois o tutor não atua somente nas disciplinas em que é especialista, mas sim em todas as disciplinas que compõem a grade do curso. Dessa forma, é imprescindível ao tutor um tempo de dedicação a revisão dos conteúdos que serão abordados durante o encontro presencial. A nosso ver a tutoria é uma possibilidade que o aluno bolsista de pós-graduação tem para adquirir experiência na docência no ensino superior, com orientação de profissionais pertencentes ao quadro docente da instituição e de complementar a renda, pois é condição para o recebimento da bolsa que o aluno de pós-graduação não possua vínculo empregatício, o que impede o aluno de exercer atividades na área de sua formação. Assim com transpõe a barreira que impede o aluno de pós-graduação de acumular bolsas 243 de instituições de fomento à pesquisa. Em razão dos aspectos anteriormente elencados procuramos demonstrar a importância que essa possibilidade de atuação tem para o pósgraduando. 3. Estágio supervisionado A condição de bolsista implica diversas obrigações, entre as quais o estágio supervisionado, que consiste na atividade de acompanhamento de uma disciplina do curso de graduação. Este acompanhamento corresponde à observação das aulas ministradas por um professor da instituição, geralmente, o orientador do bolsista. O estágio supervisionado ocorre em um semestre todo, em uma das disciplinas, que o professor orientador da dissertação sugere. Tomamos como objeto deste trabalho o estágio realizado no 1º Semestre de 2012, no curso de Licenciatura Plena em Letras, a disciplina foi Literatura Portuguesa Clássica, com a professora Drª. Tânia Sarmento-Pantoja, no turno noite. Pontos relevantes do estágio é o contato direto com o ensino superior, pois através do estágio foi possível realizar planejamento da disciplina, plano de aula e desenvolver estratégias de avaliação, tudo isso juntamente com o professor da turma. Essa experiência acrescenta muito na preparação do aluno para atuar no ensino superior. Por outro lado foram observados alguns pontos negativos durante o estágio; um deles foi o período longo, que estagiário precisa ficar em sala apenas observando, o professor da turma ministrar aula, seria interessante se o estagiário tivesse a oportunidade de ministrar uma disciplina toda, de forma que o professor da turma apenas o orientasse em como ministrar de maneira eficiente tal disciplina. Não mais, o estágio oferece ao aluno de pós- graduação uma experiência sem igual no ensino superior, pois trabalhando juntamente com o professor da turma, aprendemos a elaborar aulas objetivas, claras e coesas, além disso, aprendemos também a elaborar estratégias de avaliações eficientes, a ministrar aulas dinâmicas de qualidade. Considerações finais A nosso ver tanto o PARFOR, quanto a EAD e o estágio supervisionado são possibilidades que o aluno de pós-graduação em Letras tem para exercer na prática, sua formação de docente, pois somos bolsistas e enquanto tal não podemos ficar restrito a experiência das aulas que assistimos no mestrado; o contato direto com a sala de aula é de 244 suma importância. Vale ressaltar que apenas o estágio supervisionado não dá conta da experiência necessária que precisamos para formação enquanto professor. A tutoria permite ao bolsista de pós-graduação a captação da experiência na docência do ensino superior, com orientação de profissionais pertencentes ao quadro docente da instituição, além de complementar a renda financeira do aluno. O PARFOR, por outro lado, possibilita o contato direto com os alunos e principalmente o contato com as particularidades de cada turma e local; é importante frisar que quando obtive1 a experiência com PARFOR já era bolsita, portanto não pude receber bolsa referente às aulas ministradas, apenas recebi o valor das diárias referentes aos dias de aulas ministradas, logo a vontade da experiência é que suplantou a dificuldade que a ausência da bolsa causou. Dessa forma o PARFOR, nos ensinou o quanto o aluno de pós graduação deve ser determinado, na sua busca pelo aprimoramento da docência no ensino superior. O que não ocorre de maneira mais efetiva no estágio de docência, ou seja, mesmo o estágio tendo a importância que tem, ele não permite aos bolsitas um contato direto, apenas permite traçar observações sobre o que assiste das aulas do professor da disciplina, além disso na pós graduação, apenas o discente que é bolsita realiza estágio, os que não são deixa de ter a oportunidade de ter o contato com o ensino superior. Nossas experiências instrumentalizam e aperfeiçoam, nossa formação na pósgraduação, o que possibilita o aluno de pós, atuar efetivamente no ensino superior; além disso, ela viabiliza o fomento de aspectos relevantes não só a pesquisa, mais também a formação como docente. Referências bibliográficas PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCNs). Disponível no site: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/arte.pdf. Acessado em 25/02/2013. PARFOR. Disponível no site: http://www.capes.gov.br/educacao-basica/parfor. Acesso em: 01/02/2013. __________. Disponível no site: http://www6.seduc.pa.gov.br/planodeformacao. Acesso em: 10/04/2013. 245 A RECEPÇÃO CRÍTICA DO SERTÃO A BACKLANDS EM GUIMARÃES ROSA Suellen Cordovil da Silva1 Prof. Dr. Sílvio de Oliveira Augusto de Holanda (Orientador)1 Resumo: Esta comunicação visa determinar em que medida a tradução americana de Grande sertão: veredas (1956) se corresponde com o projeto de João Guimarães Rosa, o que a recepção crítica discutia, e, ainda comenta sobre a obra americana. Observar-se-á na execução dessa comunicação que a importância da recepção estética de determinada obra, nota-se que o leitor é aquele que se guia por um comportamento estético, por exemplo, estuda-se em Grande sertão: veredas (1956) que foi conhecida como The devil to pay in the backlands (1963) probabilidades da tradução americana não incorporar o projeto poético rosiano, de maneira que se propõe investigar tais fatores da tradução, bem como a contribuir para o escopo de trabalhos com viés estético recepcionais ao encontrarmos as leituras críticas da época quanto à versão americana. Guimarães Rosa mencionava que a tradução para o inglês americano de Grande sertão: veredas não deveria ser um ―lugarcomum‖, e que os tradutores teriam uma tarefa de recriar a linguagem, não de forma banal. Com as trocas de correspondências entre o autor e os tradutores Harriet de Onís (18991968) a qual iniciou a tradução da narrativa e revisou a edição final, enquanto James Taylor (1892-1982) complementou a tradução americana, a versão torna-se uma ferramenta em que cria diálogos. Desse modo, para um dos teóricos que reflete sobre a teoria da tradução, Antoine Berman (2002) afirma que a tradução deve trazer diálogo, abertura, mestiçagem e descentralização. Palavras-chave: Diálogos. Guimarães Rosa. Recepção. Tradução. THE RECEPTION OF CRITICISM IN SERTÃO THE BACKLANDS IN GUIMARÃES ROSA Abstract: This paper aims to determine the extent to which American translation of Grande: sertão veredas (1956) corresponds with the project of João Guimarães Rosa, which discussed the critical reception, and also comments on the American work. Shortlist will be running in this communication that the importance of the aesthetic reception of certain work, we note that the reader is one that guided by an aesthetic behavior, for example, studies in Grande: sertão veredas (1956) that was known as The devil to pay in the backlands (1963) American translation probabilities of not incorporate the poetic project rosiano so that proposes to investigate these factors in translation, as well as to contribute to the scope of work with aesthetic recepcional to meet critical readings of the season as the American version. Guimarães Rosa mentioned that the translation into English of American Grande sertão: veredas should not be a "commonplace" and that the translators have a task to recreate the language, not so banal. With the exchange of correspondence between the author and the translators Harriet de Onis (1899-1968) which initiated the translation of narrative and revised the final edition, while James Taylor (1892-1982) complemented the American translation, the version becomes a tool that creates dialogues. Thus, for one of the theorists who reflect on the theory of translation, Antoine Berman (2002) assumes that translation should bring dialogue, openness, decentralization and miscegenation. Key word: Dialogues. Guimarães Rosa. Reception. Translation. 246 1. Introdução Neste artigo baseia-se nos estudos teóricos de Antoine Berman (1942-1991) e Hans Robert Jauss (1921-1997) dessa maneira, o primeiro e o segundo abarcam semelhanças quanto aos estudos comparativos, ampliando assim demais subcampos para a Literatura Comparada, pois acompanham discursos diversos implícitos da tradução, como, por exemplo, prefácios, críticas da tradução em periódicos que será o nosso percurso em especial, aqui. Então, Berman propõe um estudo sobre a crítica de um texto traduzido, que de fato desencadearia uma literatura crítica da obra literária. Neste caso, observa-se a tradução e sua crítica, que amplia uma perspectiva do leitor ao ler a fortuna crítica da obra literária traduzida, o que também contribui para outras retraduções e reinterpretações. Com isso, se interliga dentro desta tradução, no caso, The devil to pay in the backlands (1963) a primeira tradução de Grande sertão: veredas (1956) a relevância de adotar-se um modelo de forma sistêmica considerando a época, os leitores e seus horizontes de expectativas proposto por Robert Jauss dentro dos estudos literários, o que faz com que haja aproximações entre as disciplinas de tradução e recepção crítica, como já menciona Batalha & Jr. Pontes que ―[...] Todo ato tradutório é necessariamente um ato hermenêutico, isto é, implica a interpretação‖ (2007, p.78). Dessa forma, o leitor americano se encontra em 1963 com uma obra traduzida que trouxe diversas críticas na época citados nos jornais entre eles o da New York Times, The Baltimore Sun, The Sunday Star Washington entre outros. Nestes jornais apontava-se um resumo da obra e as descrições de lançamentos das demais obras juntamente com a tradução de Grande sertão: veredas que seria The devil to pay in the backlands1. Dessa maneira, procura-se descrever e analisar o contexto dos periódicos para uma possível interpretação proposta dentro da perspectiva jaussiana para a obra rosiana, e a relevância da tradução americana de Grande sertão: veredas com suas leituras críticas desenroladas dentro destes periódicos, que além de desencadearem uma interpretação dos leitores da época, e uma revisão dos conceitos de recepção e da tradução que permeiam ao longo deste trabalho, e suas importâncias comunicativas que envolvem outros âmbitos sociais como, por exemplo, a cultura enquadrada dentro de um sinônimo de formação social. Jauss menciona quanto à importância da aplicação que não, necessariamente, seja, pela crítica, e, como, a Estética da Recepção ressalta características fenomenológicas, a seguir, trata-se do que constitui a aplicação para a função estética: 247 [...] esta aplicação de um lado não pode desembocar numa ação prática, mas, do outro, pode satisfazer um interesse não menos legítimo, o de medir e ampliar, na comunicação literária com o passado, o horizonte da experiência própria a partir da experiência de outros (JAUSS, 1983, p.313). Como nota-se uma leitura dos autores destes jornais futuramente estudados que se segue, uma rede de informações pela experiência da leitura que se propõem vínculos uns com os outros, como, por exemplo, decorrentes do boom rosiano da década de 60, visualizado bem, com a descrição de uma Nova narrativa1 caracterizada por Antonio Candido. Com isso, a tradução está em meio à crítica e a filosofia, por isso ela revela algo que não se ver na versão original, além de se intuitiva servindo um ritmo técnico e a literária de acordo com Berman (2002), e qual toma base nas reflexões acerca da tradução desenvolvidas na Alemanha Clássica, propõe uma breve discussão sobre o espaço da tradução ao longo dos anos. Período que compreendia a tradução: Partir do pressuposto que a tradução é a captação do sentido, é separá-lo de sua terra, de seu corpo mortal, de sua casca terrestre. É optar pelo universal e deixar o particular. A fidelidade ao sentido opõe-se – como para o crente e o filósofo – à fidelidade à letra. Sim, a fidelidade ao sentido é obrigatoriamente uma fidelidade à letra (BERMAN, 2007, p. 32) Em uma relação com o presente e passado, a História da tradução procurou averiguar um mundo cultural o qual girava entorno das traduções, em cada espaço, e, em cada época distinta, dispondo para uma janela direcionada para o presente, como Berman, apresenta, já voltado para uma condição ancilar da tradução, ou seja, repercute uma visão do oculto e até mesmo reprovado de um conflito entre a fidelidade e a traição desta tradução. Com a perspectiva de Berman de que uma tradução etnocêntrica é aquela que trata de uma apropriação do Outro ou estrangeiro. Isso, para Berman traz uma reflexão quanto à prática de resistência ao Outro, pois ao ser considerado por meio de uma comparação entre as traduções, melhor que o estrangeiro. O teórico não afirma que nenhuma tradução não seja em algum ponto etnocêntrica, e admite que tradução deva percorrer uma relação de alcançar o outro ou não é nada. Verifica-se dentro desta proposta uma observação das críticas da tradução estuda aqui, além de comentar a visão do autor e tradutores diante de seus projetos tradutórios. 2. Recepção crítica da tradução americana 248 A obra The devil to pay in the backlands obteve uma recepção de contradições nos Estados Unidos, pois foi considerada ―soberba‖, ―excelente‖, e, até, recebida com diferentes pontos de vistas, como, por exemplo, mencionado por Adler como se fosse até um Brazilian „Western‟ ou ―faroeste americano‖. No prefácio da obra Jorge Amado aborda a edição como uma mistura de realidade e imaginário, o que demonstra o poder criativo do autor por não limitar suas fronteiras, além de revelar na narrativa um mundo recriado. Isto se relaciona com a expectativa dos leitores da narrativa, por justamente, a obra trazer uma autenticidade ao ser brasileira e universal ao mesmo tempo como o crítico do periódico enfatiza retirando o trecho do prefácio da tradução americana. Como Adler (1963) afirma: ―How true! The unusual narrative style and power of Guimarães Rosa –by profession a diplomat, by avocation an author- cast its magic with the first page.‖ (ADLER, Brazilian ‗Western‘, The Baltimore Sun, April, 1963). Dessa forma, os tradutores demonstraram que com as inclusões das palavras da obra no original de João Guimarães Rosa na obra americana, não tiram a essência do original. Logo, a tradução tornou-se uma forma singular e dependente de um glossário para uma melhor interpretação da obra para os leitores americanos, talvez desconhecidos do projeto poético rosiano, o qual era ponte de busca para outro lugar da literatura, visava desconstruir o original sem perder sua essência. No artigo de Piers Armstrong chamado Guimarães Rosa in translation: scrittore, editore, traduttore, traditore procura-se examinar a participação do autor dentro do processo de tradução com os tradutores sobre a obra Grande sertão: veredas e Corpo de Baile para o Italiano. Neste caso, o autor atua de modo flexível e com uma característica pragmática, pois compreende que o leitor estrangeiro perpassa por um contexto cultural e alheio a versão brasileira. Neste artigo de Piers Armstrong que a versão norte-americana foi traduzida por Harriet de Onís que era considerado uma das mais importantes tradutoras já que traduziu Dona Flor and her two Husbands de Jorge Amado e Mansions and chartres de Gilberto Freyre, enquanto ela passou algumas enfermidades, James L. Taylor também completou Gabriela de Jorge Amado. Depois Harriet traduziu Sagarana (1966) durante a tradução de Primeiras histórias por Barbara Shelby, todas publicadas pela editora Knopf. Dentro do periódico The Baltimore Sun em 14 de abril de 1963 escrito pela autora Betty Adler com o título Brazilian ‗Western‘ que caracteriza uma leitura da obra, com o detalhamento dos personagens entre eles Diadorim e Riobaldo, e descreve a versão 249 americana como uma leitura diferenciada quando afirma no primeiro parágrafo ―But I was assured this novel was different‖ pela escrita modernizante dos demais escritores da época ao balancear o real com o irreal, além cita o prefácio de Jorge Amado que foi um escritor também de autoestima pela literatura moderna. Dessa forma, Betty Adler descreve que os brasileiros críticos consideram a obra como um faroeste americano o que não cita o autor desta crítica, o qual é comum em ver na televisão, porém, não é considerada para a autora do periódico uma versão ―lugar comum‖ e pelas suas declarações neste jornal The Baltimore Sun que tem 176 anos há completar em 2013 e com sua primeira impressão em 17 de maio de 1837, conta-se que Guimarães Rosa mantém o encanto transportando para uma terra distante, que se superou com o cavalheirismo o qual participava constantemente e a todo o momento com a brutalidade, além da supertição de lutar com a realidade. Apresenta Riobaldo como um homem velho que recorda e tenta explicar suas emoções com a intinerância do bando até se tornar um chefe do mesmo. Ao perceber que a obra declara um universo de vozes ou A Hearing Universe, conta diferentes histórias, talvez venha ser este motivo do tema do subtópico, um universo de vozes. A descrição da obra também se encontra neste recorte de jornal com o nome Autobiog, escrito pelo professor assistente do colégio Long Beach State, na Califórnia, chamado Arnulfo D. Trejo em 15 de abril de 1963. No primeiro documento do arquivo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) com o código JGR-R 15,02,07, observa-se que contém o mesmo texto do código JGR-R 15,02,09, pois o primeiro seria um rascunho para a publicação no Library Journal, desta maneira nota-se que a revisão do texto durou quase um mês para a publicação. Neste periódico o escritor descreve sobre um sertão do noroeste brasileiro que narra à história de vida de jagunços, e como Riobaldo passou como um dos guerreiros. E cita que a obra foi semelhante aos textos de cowboy e estórias indianas do sudoeste americano, o que se verifica batalhas com armas e explorações heroicas. Conta que Guimarães Rosa tem um estilo de escrita detalhado e desconexo, e sua marca de oralidade na obra foi considerada um pouco eficaz. Com isso, pode-se entender que o leitor crítico propôs uma diferença no ato de interpretar a versão, a qual foi o entendimento de uma linguagem considerada complicada para o leitor neste caso ao dizer ―[...] his convesational manner is quite effective [...]‖ (TREJO, Autobiog, April, 1963) Além deste ponto de discussão que Trejo afirma que a narração é divertida, mas por causa do seu realismo que às vezes é considerada de modo grosseira, pode ser desagradável 250 ou tedioso para os leitores exigentes. Então, o crítico marca a obra como uma realista e não menciona o místico que indiretamente a obra imbrica para os leitores. Por fim, Arnulf D. Trejo recomenda o livro para leitores que gostam de ação. No texto de periódico chamado Brazilian Bandit Reminisces do autor Tom Schelesinger do jornal The Virginian Pilot em 19 de março de 1963. No primeiro parágrafo observa-se um comentário sobre a editora Alfred Knoft, que tem publicado 20.000 edições a obra Gabriela de Jorge Amado na versão americana, a qual foi considerada bem sucedida o livro latino americano. E já no segundo parágrafo menciona a versão épica de jagunços ou the backland bandits, ou os bandidos do sertão, que Jorge Amado escreve no prefácio da versão de Grande sertão: veredas e afirma com os adjetivos que a obra é “...brutal, savage, vast as Brazil itself‖. Tom Schesinger denuncia que a versão não foi muito bem recebida para os norte-americanos, no âmbito da estrutura rítmica, nomes diferentes e estranhos à cultura americana, além dos lugares e uma história desconhecida. O comentarista da coluna fala sobre os leitores que foram os norte-americanos que talvez não reagisse muito bem com o a linguagem, ou seja, o ritmo da rica prosa e mesmo com o glossário, com uma parada na leitura para entender os nomes diferentes, e lugares não familiares de uma história desconhecida. Ressalta que a estrutura da obra trata de um homem idoso o qual relembra sua vida na primeira pessoa na narrativa, e torturado pelo questionamento se a assinou um pacto com o demônio para triunfar sobre seu rival. No jornal New York Times rodado em 11 de abril de 1963, com o nome inicial Books and Author e com o primeiro subtópico Spotlight on Brazil, ou seja, holofotes no Brasil como menciona o subtópico o qual foram publicadas duas obras brasileiras, a primeira o livro de sociologia The mansions and the chanties de Gilberto Freyre e a novela The devil to pay in the backlands the Guimarães Rosa. Então, o senhor Knopf logo com poucos dias depois observou que o número de leitores da America do sul, se interessou pelas obras, pois houve uma aproximidade destes leitores com o Brazil de alguma maneira, e isso contribuiu para que os pedidos das obras brasileiras aumentassem entre os pedidos está Gabriela, glove and cinamon de Jorge Amado o qual vendeu mais de 20.000 cópias de acordo com este jornal. O chefe de editora o senhor Knopf estimou o Brasil, e afirma que por considerar que ainda seja um limite do abismo, nunca cairá, pois o limite é bem maior que o abismo. Além disso, declara que a obra de Gilberto Freyre é um clássico da sociologia e a versão de Guimarães Rosa uma novela distinta. Nestes trechos comentados não apresenta o nome do crítico, que por fim termina sua coluna no seu outro subtópico o qual tem o nome The 251 Other View of Snow ou outro olhar ou outras visão do autor Charles Snow. Então, nota-se que nestes periódicos observa-se uma recepção crítica estimada pelo leitor americano e traçam comparações com a sua cultura norte-americana, por considerar Grande sertão: veredas um faroeste americano no sertão do Brasil. 3. Projeto poético tradutório rosiano Nas correspondências Harriet de Onís é chamada de minha madrinha, e Rosa escreve que a tradução era uma obra com maior fluidez, fluência e transparência e velocidade o que frequentemente menciona a versão americana. Já para o tradutor alemão Meyer-Clason, Guimarães Rosa comenta que o livro americano tem diversas falhas e muitas alterações. Observa-se um passo de interpretação pessoal com esta travessia de compreensão do outro, ou seja, do texto original, e no que implica o trabalho dos tradutores, entra-se em choque esta operação entre as línguas e os textos na questão cultural vinculada no ato tradutório. Ao pesar em cultura e tradução nota-se outra questão para Gabriela Reinaldo (2010) diante das afirmações de Haroldo de Campos em relação a Guimarães Rosa: O demo para Rosa não era uma metáfora, mas tinha um sentido concreto. Haroldo, agnóstico, compara a experiência de Rosa à de Mallarmé. O horror da página branca de Mallarmé é o demo de Guimarães Rosa, era algo com que ele dialeticamente se debatia para dar nascença ao texto. (REINALDO, 2010, p.270) Com isso, nesta entrevista conhecida pela Gabriela Reinado (2010) descreve que Haroldo diz que Guimarães Rosa tem ―estômago de ostra‖, dessa maneira se debatia para dar uma plurisignificação, uma nova linguagem ao texto, uma nova travessia da linguagem para o texto, entretanto Haroldo critica que o conhecimento de Guimarães no panorama da literatura mundial é prejudicado pelas versões escritas de sua obra. Dessa forma, Guimarães comenta sobre seu projeto rosiano em suas cartas para Harriet de Onís, ele diz que a tradução deverá ser estranha ao leitor, e acrescenta que em suas obras em português procuravam ―chocar‖ o leitor, como afirma Berman: A teoria do próprio e do estrangeiro, da elevação ao estado de mistério (ao estado de estranheza, de compenetração do conhecido e do desconhecido) tal como expõe Novalis, remete a esse movimento de metamorfose, e não é incorreto dizer que as mais altas traduções são ‗míticas‘ e ‗transformantes‘. (BERMAN, 2002, p. 224- 225) 252 Neste contexto a atuação do ato tradutório está em relação com a transformação do texto para o leitor. Para Cardozo (2012) o leitor em seu ato de ler também reler, e dessa forma o tradutor que ler também interpreta e retraduz desde o princípio ou como chama grau zero dentro de uma compreensão relacional inicial, já que assim Novalis como Berman cita acima, que as mais altas traduções são transformantes, e Cardozo traz a tona esta reflexão diante da poiesis da relação, neste diálogo com os outros teóricos: Já a transformação que tem lugar numa compreensão relacional da tradução, como a que instrui esta reflexão, não é acidente, não é o prejuízo da relação − seu desgaste ou sua inflação −, não é a prova de sua ineficiência, não é a razão de sua falência. Se há poiesis da relação, se há um trabalho, um esforço relacional, há necessariamente transformação. Nesse sentido, não estão dadas, como estanques e definidas, as relações entre texto original e texto traduzido, entre texto original e tradutor, entre texto traduzido e leitor. Na medida em que têm lugar como uma poiesis, como um esforço de relação, essas relações são, antes, relações em construção e, portanto, sempre em transformação. (CARDOZO, 2012, p.188). As relações entre os tradutores e o autor por meio das cartas, por exemplo, transmite um esforço de relação e negociação um percurso cheio de limitações, o que se propõe não sua ineficiência, mas uma transformação. E conforme se pode observar em trecho de uma de suas cartas endereçadas a tradutora Onís que o movimento dentro do processo de tradução desembocar-se em um mistério próprio pelo conhecido e o desconhecido, referendo-se logo abaixo: Deve ter notado que, em meus livros, eu faço, ou procuro fazer isso, permanentemente, constantemente, com o português: chocar, ‗estranhar‘ o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões domesticadas e acostumadas; obrigá-lo a sentir a frase meio exótica, uma ‗novidade‘ nas palavras, na sintaxe. Pode parecer crazzy [sic] de minha parte, mas quero que o leitor tenha de enfrentar um pouco de texto, como um animal bravo e vivo. O que eu gostaria era de falar tanto ao inconsciente quanto ao consciente. 1 Observa-se que causar um ―estranhamento‖ ao leitor é um dos alvos do autor em suas obras. Este talvez seja um dos motivos pelo qual o único romance de Rosa continua em aberto para tradução, constituindo um desafio constante aos que desejam aventurar-se nas veredas dessa escritura. 4. Conclusão 253 Enfim, neste processo de observação da recepção crítica oriundos de alguns periódicos, e sobre a tradução The devil to pay in the backlands, diante do projeto rosiano para as suas traduções das obras conta-se convergências e divergências, conforme se verifica nos diálogos entre os críticos, tradutores e o autor. Nesta negociação apartir do diálogo entre os três encontra-se as hipóteses com os impasses e possibilidades na tradução de uma possível retradução e reinterpretação da obra brasileira do autor Guimarães Rosa. Então, em uma passagem entre o estrangeiro e o próprio ocorre uma negociação cultural com empréstimos, críticas entre outros elementos comparativos diante da tradução. Dessa forma, relembrando que o crítico da tradução encontra-se em descobertas desde os estudos de percursos estéticos, para que os leitores e o público tenham uma melhor compreensão quanto à explicação do processo de negociações, e também da tradução em uma obra de arte, como prenunciado por Berman ―Compreender uma obra é, portanto, situá-la no Todo da arte e da Literatura, mostrar sua essência simbólica, que é a de significar, bedeuten, esse Todo e a própria Idéia da arte. É resgatar o ‗sentido infinito‘ da obra.‖ (BERMAN, 2002, p. 218). Dentro dessas críticas verificam-se as positivas e negativas, a primeira visa um ideal em concordância em relação à obra de arte, a segunda se aproxima de temas polêmicos. REFERÊNCIAS ADLER, Betty. Brazilian ‗Western‘. Baltimore Sun, April, 1963. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP – João Guimarães Rosa, código: JGR-15,02,06. BATALHA, Maria Cristina; PONTES JR, Geraldo. Tradução. Petrópolis: Vozes, 2007. BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Trad.: Maria Emília Pereira Chanut. São Paulo: EDUSC, 2002. BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Trad. Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras/ PGET, 2007. CARDOZO, Mauricio Mendonça. Tradução como transformação: liminaridade, incondicionalidade e crítica da relação tradutória. Revista Letras, Curitiba, n. 85, p. 181-201, jan./jun. 2012. Editora UFPR. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte de leitura. Trad. Marion S. Hirschman. In: LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da Literatura em suas fontes. 2.ed. ver. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v. 2. 254 KRAUSE, James Remington. Translation and the reception and influence of latin american literature in the United States. Dissertation Submitted to the Faculty of the Graduate School of Vanderbilt University in partial fulfillment of the requirements for the degree of doctor of philosophy in Spanish and Portuguese. December, 2010. ARMSTRONG, Piers. Guimarães Rosa in translation: scrittore, editore, traduttore, traditore‖. Luso-Brazilian Review. Madison, v. 38, n. 1, p. 63-87, summer 2001. REINALDO, Gabriela. Estômago de ostra – notas sobre processos tradutores em Haroldo de Campos, Vilém Flusser e Guimarães Rosa. São Paulo, n. 19, p. 263-273, jul. 2010. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. p. 264. ROSA, João Guimarães. The devil to pay in the backlands. Trad. James L. Taylor e Harriet de Onís. New York: Alfred A. Knopf, 1963. p. 494. ROSA, João Guimarães. [Carta] 02, maio, 1959, Brasil [para] ONÍS, Harriet de. Estados Unidos. SCHLESINGER, Tom. Brazilian Bandit Reminisces. The Virginian – Pilot. March, 1963. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP – João Guimarães Rosa, código: JGR15,02,08. TREJO, Arnulf D. Autobiog. April,15,1963. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP – João Guimarães Rosa, código: JGR-15,02,09. VASCONCELOS, Sandra Guardini T. João & Harriet (Notas sobre um diálogo intercultural) In.: LEITE, Ligia Chiappini Moraes; VEJMELKA, Marcel (Org.) Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa dimensões regionais e universalidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 72-81. VERLANGIERI, Iná Valéria Rodrigues. João Guimarães Rosa: correspondência inédita com a tradutora norte-americana Harriet de Onís. Parte I. Araraquara, 1993. 357 p. Dissertação de Mestrado em Letras, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade do Estado de São Paulo. 255 TERRUÁ PARÁ: A música e o espetáculo como política de estesia Talita Cristina Araújo Baena1 Prof. Dr. Otacílio Amaral Filho1 Resumo: O artigo analisa a experiência musical do espetáculo e projeto de divulgação da música produzida no estado do Pará, denominado Terruá Pará. Neste exercício, o artigo relaciona a experiência do Terruá Pará com estágios da música popular massiva e aspectos identitários da cultura da música na Amazônia Paraense. Partindo da concepção de que “o princípio da midiatização orienta a priori a representação e a interpretação dos fenômenos comunicacionais” (Muniz Sodré), o artigo descreve o espetáculo e conclui que além de uma política de estesia, o Terruá Pará é produto de uma espécie de metonímia das experiências musicais vivenciadas no território paraense, pronto para ser comercializado no mainstream. Palavras-chave: Música; Midiatização; Estesia. Abstract: The article analyzes the musical experience of the show and project dissemination of the music produced in the state of Pará, named Terruá Pará. For this exercise, the article relates the experience of Terruá Pará with stages of the massive popular music and aspects identity of the culture of music in Paraense Amazon. Starting from the conception that "the principle of mediatization guides a priori the representation and interpretation of the communication phenomena" (Muniz Sodré), the article describes the show and concludes that beyond a aesthesia policy, the Terruá Pará is a product of a kind of metonymy of the musical scene from state of Pará, ready to be marketed in the mainstream. Keywords: Music .Mediatization. Aesthesia 1. Introdução O presente artigo apresenta alguns aspectos observados na análise midiática do projeto de divulgação da música paraense denominado Terruá Pará. Como nos últimos anos o projeto governamental tem-se apresentado como determinante para a publicização de práticas musicais da capital paraense, Belém, uma abordagem analítica do espetáculo mostra-se fundamental para o entendimento de como vem se estruturando a cultura da música na Amazônia paraense. Assim, nesta análise, parte-se da ideia de que ―o princípio da midiatização orienta a priori a representação e a interpretação dos fenômenos comunicacionais‖ (Muniz Sodré, 2007). Como para o autor os objetos comunicacionais descrevem e integram uma experiência imediata e comum, que é a da midiatização, isto é, ―da articulação das instituições com as mídias – o bios virtual‖, esses objetos inscrevem em si mesmos um agenciamento cognitivo, uma ―estratégia sensível‖. 256 É nesta perspectiva de uma ambiência midiática que se observa o fortalecimento de práticas musicais em determinadas cenas musicais1 na Amazônia paraense. Vale destacar que são inúmeros os vetores desse fortalecimento. Porém, em certa medida, o crescimento vertiginoso das comunidades de gosto numa sociedade midiatizada, marcada por uma tecnocultura que virtualiza a vida, é o principal vetor de visualidade da música produzida na Amazônia Paraense. E como nessas comunidades virtuais ficam materializadas as redes e relações de interação social, as formas simbólicas de práticas culturais e suas retóricas, o projeto Terruá Pará busca, por meio de suas gramáticas de produção de sentido, produzir efeitos de um sentir único do que pode ser entendido como a musicalidade paraense. Dessa forma, entende-se o Terruá Pará como uma política de estesia, no qual, a música de natureza gregária, que destaca a experiência vivida do ser a partir do mito da natureza bela e exuberante, é transformada em potência de estesia. A fantasia da harmonia entre o homem e natureza é convertida, por meio da música, num fluxo de emoções e sensações que caracteriza a experiência sensível do espetáculo e dos produtos do Terruá Pará. Sobre o termo estesia, Sodré (2006, p. 46) argumenta: Estética ou estesia são de fato designações aplicáveis ao trabalho do sensível na sociedade. É um tipo de trabalho feito de falas, gestos, ritmos e ritos, movido por uma lógica afetiva em que circulam estados oníricos, emoções e sentimentos. A emoção é o que primeiro advém, como consequência da ilusão que fazemos de caminho para chegar à realidade das coisas. ―A alma não conhece sem fantasia‖, ensina Aristóteles (Sobre a alma), indicando que inexiste o triunfo absoluto do logos sobre o mythos (SODRÉ, 2006, p. 46). É portanto nesta perspectiva de sentir único que a trama enunciativa de diversos produtos do projeto deixa de revelar a diversidade da experiência musical paraense, que pode ser encontrada e reconhecida no espaço intersticial que é o espaço da cultura (BHABHA, 1998). O que o projeto revela, na verdade, são experiências sonoras do carimbó e das práticas musicais contemporâneas como a guitarrada e o tecnobrega, articuladas a códigos hegemônicos da música popular massiva (JANOTTI JÚNIOR, 2011), tendo como objetivo uma política de estesia que favoreça a manutenção do imaginário alegórico nativista paraense. A título de contextualização, projeto Terruá Pará foi desenvolvido, no ano de 2006, a partir do programa especial de televisão exibido na TV Cultura do Pará, emissora de televisão mantida pela Fundação de Telecomunicações do Pará (Funtelpa). O programa foi gravado ―no auditório do Parque Ibirapuera, em São Paulo, e reuniu naquele ano 60 músicos paraenses em três apresentações‖ (CASTRO, 2012). Em 2007, com o governo 257 estadual nas mãos do Partido dos Trabalhadores (PT), o projeto Terruá Pará foi interrompido e só voltaria a ocorrer no ano de 2011, com a volta da administração do PSDB, autor da proposta. Nesta segunda edição, o show é dirigido e produzido por Carlos Eduardo Miranda e Cyz Zamorano, produtores musicais reconhecidos do âmbito da grande indústria (mainstream) da música. Nesta nova edição, o show é ampliado para um projeto de difusão do que é, para o projeto, a musicalidade ―genuinamente‖ paraense a partir do trabalho de 46 artistas que participam do espetáculo. Para divulgar a musicalidade paraense, o projeto constrói um amplo plano de marketing. Jornalistas e produtores culturais são contratados e artigos de naturezas diversas são produzidos. Tal iniciativa de reunir as experiências musicais ocorridas no território paraense obteve repercussão positiva na crítica musical nacional. Contudo, se a priori as identidades não são unificadas (Woodward, 2012, p. 7), seria possível definir em um só conceito a complexidade das experiências e diferentes identificações sonoras de um determinado lugar? Neste trabalho tal definição não seria possível, a menos que a trama enunciativa de um empreendimento como o Terruá tenha por objetivo construir um projeto de identidade pautado numa concepção holística da cultura, reduzindo assim os conflitos e as dinâmicas e formas culturais de um território. No caso do Terruá Pará, as experiências musicais visibilizadas pelo projeto corroboram para a reprodução do que Castro (2012) denomina imaginário alegórico do nativismo paraense, já que, de acordo com ele, a palavra Terruá É uma adaptação do vocábulo terroir, que, em francês, designa um produto, geralmente alimentício, de fabricação artesanal e, por isso mesmo, valorizado por sua autenticidade. O Terroir é um produto também simbólico, um bem cultural de raiz, e evoca uma dimensão identitária bastante valorizada na França contemporânea, país cuja opinião pública, crescentemente, tende a valorizar – e a re-valorizar – suas produções locais – face ao globalismo conquistador que julga ameaçar seu espaço mental (CASTRO, 2012, p. 162). Ao analisar a superfície discursiva (VERON, 2004) da trama narrativa do espetáculo, e a retórica dos que definem o conceito do espetáculo, observa-se que as marcas, os traços da rede enunciativa construída em torno do Terruá evidenciam gramáticas de produção conforme estratégias mercadológicas. Mas, além de oferecer uma cena musical enquanto produto, os efeitos de sentido do Terruá também buscam a manutenção de um projeto de identidade cujo motor seria uma subjetividade caracterizada por um pensamento conservador de longa duração e com grande eficácia simbólica no imaginário paraense. Ainda segundo Castro, tal pensamento 258 Decorre da apropriação, pelos setores sociais dominantes do estado do Pará, do imaginário social popular, num processo que procura construir, em torno da noção de identidade cultural, uma representação social corrente, marcada pela simplicidade, pela padronização e pela negação dos conflitos sociais no plano da cultura. Uma representação letárgica da cultura, pode-se dizer, já que nega o dinamismo e o conflito inerentes a todo processo cultural. Além disso, esse pensamento possuiria uma função política simbólica: a de fornecer elementos de identidade para o poder público e para os grupos sociais hegemônicos, que historicamente se revezam na ocupação da estrutura do Estado (CASTRO, 2012, p. 150). A busca por uma unidade na experiência musical no Terruá Pará pode ser confirmada nas inúmeras entrevistas concedidas por Carlos Eduardo Miranda. Explicando o conceito do Terruá, o diretor confirma que a ideia é mostrar uma unidade na diversidade, quando ele afirma que: ―um não olhava para o outro. O carimbó não convivia com o tecnobrega, que não convivia com a MPB, que não convivia com a guitarrada. E com o projeto Terruá Pará, nós fizemos todo mundo se olhar, entender a unidade da música paraense sempre preservando a diversidade. (TERRUÁ PARÁ, Programa Cultura Livre. São Paulo, 2012) Seguindo o conceito do espetáculo, alguns artistas que compõem o espetáculo adotam, em suas performances, gramáticas de produção e reconhecimento dos produtos da indústria do entretenimento. Com a assimilação dos códigos da indústria, a utilização de processos estratégicos de agenciamento (CARDOSO, 2006, p. 56) do campo da produção musical, os músicos e artistas do projeto articulam valores de culto e de exposição (Benjamin, 1994), isto é, trabalham aspectos tradicionais e valores mercadológicos no sentido de promover uma musicalidade que, na retórica do Terruá Pará, é apresentada como única, diferente (Fig. 1). Figura 1 - Trecho do Vídeo de apresentação publicado no Youtube. 259 Assim, partindo da perspectiva de desconstrução das identidades de Homi Bhabha (1998), que partem da metáfora progressiva da coesão social ―muitos como um‖, tenta-se desconstruir o projeto de identidade proposto pelo Terruá Pará. Nossa ideia, é que são inúmeras as experiências estéticas (Dewey, 2010) e sonoras da cena musical paraense e que, conforme o formato que atualmente apresenta-se o projeto, o mesmo não compre o papel que anuncia. 2. A música regional e a música popular massiva como política de estesia Dessa forma pode-se dizer que, embora a experiência musical do espetáculo Terruá Pará seja pautada por três sonoridades regionais – o carimbó, a guitarrada e o tecnobrega –, o que é visibilizado pelo projeto é, essencialmente, o carimbó estilizado e reproduzido pela intelectualidade paraense. É a sonoridade do carimbó que acaba como um fio condutor do espetáculo, pois é com ele que o show começa na apresentação do grupo de carimbó ―Uirapuru‖ e termina com o retorno de todos os participantes ao palco cantando carimbó. Outra marca que revela o sentido nativista do espetáculo é a cenografia. Composta por três cenários com mais de 300 peças feitas em miriti e confeccionadas por artesões da Associação Arte Miriti de Abaetetuba, a cenografia do espetáculo funciona como uma moldura que ambientaliza e remete cada experiência sonora em três momentos do espetáculo. Nas edições de 2011 e de 2012, o primeiro cenário só é revelado após a apresentação do grupo de carimbó, quando a banda-base entra no palco. É neste primeiro momento que o colorido das peças de miriti forma a plástica e revela a fruição estética dos tradicionais brinquedos de miriti. É nesta moldura que, na edição de 2012, entram em cena alguns nomes da música instrumental e popular – Trio Manari, Orquestra de Violoncelistas da Amazônia, Sebastião Tapajós, Grupo Charme do Choro, Paulo André Barata, Pio Lobato, Dona Onete e Toni Soares. A estética nativista deste momento do espetáculo, além de representar a intersubjetividade da classe artística de Belém, também revela o processo de conversão semiótica (PAES LOUREIRO, 2001, p. 54) de determinados códigos do contexto tradicional da cultura amazônica paraense e que compõem uma política de identidade cultural. E para aumentar os efeitos desta política de identidade, o projeto Terruá Pará faz uso do sentir em comum dominante, entrecruzando-o com as regras de visibilidade do mercado. Ao resgatar os nomes e formas dominantes da música paraense, não é a lógica da 260 dinâmica cultural que se observa no espetáculo, mas sim, a lógica do colonizador, que pretende manter o modelo cultural imposto por meio de uma política de estesia. Dessa forma, tal estética e a sonoridade do carimbó revelam o aspecto folk e residual do espetáculo. Indo além de um posicionamento estético, o aspecto folk do Terruá forma um conceito de produto vinculado ao que Amaral Filho (2011) determina como a marca Amazônia, isto é, uma representação simbólica e mercadológica da região. E sobre as circunstantes históricas determinantes para a produção da marca Amazônia, o autor argumenta que : A Amazônia incorpora-se na mediação também por uma condição global como característica atribuída à região. Pertencer a esta identidade amazônica transforma-se numa condição de comunicação, de trafegabilidade pela imagem como relação de pertença e representação espetacular.[...] Platéia no boi de Parintins, torcendo pelo Garantido ou Caprichoso, no Sairé, virando boto, dançando tecno-brega ao som do Calipso ou da Gabi Amarantos, bebedor de açaí com os dentes roxos na foto postada na internet, protetor dos bichos e da floresta, ou na estampa da camisa da grife que está na moda. Estas possibilidades identitárias estão nas perspectivas oferecidas pela tecnicidade em moldes culturais não mais tradicionais conduzidos pela cadeia de transmissão, mas como forma de conhecimento tecnológico publicizado que permite a escolha identitária. (AMARAL FILHO, 2011, p. 95). Numa lógica em que a dinâmica da cultura é domesticada o que predomina é a lógica mercadológica. Na lógica e no espaço da cultura coexistirão formas e práticas culturais não só dominantes, mas também formas residuais e emergentes da cultura. Embora, segundo Williams, práticas residuais da cultura adotem processos imediatos de reprodução, em muitos casos elas também são formas alternativas às práticas dominantes, já que, para Williams, a reprodução cultural ocorre essencialmente no nível (em mudança) do dominante. No extremo oposto das práticas residuais estão as práticas emergentes da cultura. Elas são vistas como obras novas e variadas. As práticas culturais emergentes são correlatas, mas não idênticas às práticas inovadoras. E o que é denominado pelo Terruá como único e original da experiência musical paraense é, na verdade, resultado de um longo processo de interculturalidade, e por conta disso tal experiência configurou-se de diversas formas. Na verdade, o que pode ser denominado como particular e talvez singular na sonoridade da música paraense foi construído ao longo da história da ocupação da região. Como bem lembra Vicente Salles (1980), a música da e na Amazônia paraense é fruto de fluxos e refluxos culturais que não estabelecem dependência, mas sim interdependência. 261 Em um segundo momento do espetáculo, após apresentar a música popular brasileira com aspectos regionais, o ritmo da guitarrada é novamente exibido como mais um gênero genuinamente paraense. É neste momento que Lia Sophia, Solano, Luê Soares e Jade entram no palco. E, para remeter ao contexto do surgimento da guitarrada, a plástica do cenário muda. No show de 2011, somente as caixas das aparelhagens formavam uma espécie de paredão típico dessas festas. Já na edição de 2012, o cenário é composto por rádios, toca-discos, aves amazônicas e bonecos de casais dançando. Todos esses objetos de cena compõem uma espécie de paisagem sonora que pretende remeter ao contexto de surgimento da guitarrada. No entanto, diferentemente do argumento de genuíno, Lamen (2011) observa que a Amazônia que a guitarrada nos permite pensar ―resiste à ―operação de homogeneização‖ (Albuquerque, 1999, p.26) à qual a ―cultura regional‖ é submetida, porque a guitarrada em si resiste ao reducionismo regional, tanto na sua orientação estética cosmopolita, como nas suas origens no contrabando de discos estrangeiros (Farias, 2009)‖ (Lamen, 2011, p. 147). Dessa forma, longe da retórica de autenticidade, da poética nativista que a música popular, instrumental e erudita possuía, a guitarrada nasceu nas camadas mais populares da região metropolitana de Belém durante a década de 1970. Com a influência das rádios caribenhas de amplitude modulada (AM) e também da música tocada nos bailes populares e embalada pelas aparelhagens, a então lambada, hoje guitarrada, surgia em Abaetetuba com uma poética da beirada, como caracteriza Lamen (2011). A poética da beirada é a expressão de uma consciência geográfica social. Se, por um lado, ela se alicerça na proximidade afetiva e geográfica do Norte brasileiro com o Caribe, por outro, ela surge da marginalização social e política da Amazônia em relação aos centros de poder nacionais. Como sugeriremos a seguir, a poética da beirada também dá expressão a um desejo de mobilidade e pertencimento cosmopolita que é fruto contraditório dos processos de colonização e globalização (Lamen, 2011, p. 150). O terceiro e último momento do Terruá Pará volta-se para a sonoridade do tecnobrega, com a performance do DJ Waldo Squash, Gang do Eletro, Edilson Morenno e Gaby Amarantos. É o subgênero da música brega paraense que assume o ápice do espetáculo. Na edição de 2011, a passagem da guitarrada ao tecnobrega é marcada apenas pelo jogo de luz, que ganha uma velocidade mais acelerada. Já na edição de 2012, o cenário da guitarrada é substituído pelo cenário das aparelhagens, que marca outro momento da experiência sonora de Belém. 262 As grandes caixas de som remetem às antigas festas de aparelhagem, que nos anos 1950 eram chamadas de sonoros. Elas eram de válvula e toca-discos, mas ao longo destas cinco décadas foram muitas as mutações tecnológicas que tais festas e a música brega sofreram. É certo que sempre houve uma certa ideia de mutação tecnológica em torno do brega paraense. Contudo, a estética do tecnobrega, o subgênero da música brega paraense surgiu na sociabilidade da fronteira (SANTOS, 2011, p. 351), na ―periferia‖, já sob os auspícios de uma cultura digital que se manifestava, sempre se orgulhou de exibir os avanços tecnológicos na reprodução do som e imagem com telões de LED, por exemplo. Sem sombra de dúvida, o tecnobrega, ao assimilar códigos da música popular massiva, alcançou patamares representativos de sucesso, porém isso não ocorreu apenas porque a música tecnobrega tornou-se música midiática. Antes disso, a prática e a experiência da música brega já haviam construído uma longa rede cultural e comunicativa que foi além do circuito bregueiro de Belém e expandiu a visibilidade do subgênero, superando as fronteiras do espaço amazônico. Juntamente com a rede comunicativa, o circuito bregueiro paraense criou um novo modelo de negócio pautado nas festas de aparelhagem, que também sofreram reformulações. Foi por meio de toda essa dinâmica econômica e cultural que a prática da cultura da música na Amazônia alcançou a visualidade da rede virtual e conquistou o status na crítica musical. Vários estudos sobre a origem da música brega de Belém, como Costa (2009) e Lemos e Castro (2008), afirmam que os primeiros nomes surgem em 1970, quando após o fenômeno da Jovem Guarda, várias vertentes da música brega surgiram em todo país. Mas, certamente, foi com o resurgimento do brega, vivenciado na segunda metade dos anos 1990, que o terreno para a criação do tecnobrega estava preparado. Como relata Lemos e Castro (2007), ―com influência do ritmo caribenho, aceleração das batidas e a introdução de guitarras, surge o bregacalypso, na voz não apenas de cantores antigos, mas também de novos artistas, atraindo um público mais amplo e diferente‖. Assim, ainda segundo Lemos e Castro (2007), o tecnobrega surge entre os anos 2001 e 2003. A música nasceu da fusão da música eletrônica com o brega tradicional. Sobre a criação do tecnobrega, o DJ Tony Brasil revela: Antigamente chamavam o dance de house. Aí virou dance porque mudaram as batidas. Fiquei com essa ideia: ‗por que o brega não pode também mudar?‘ Botar uma batida mais pesada. Aí tive essa ideia aí. E deu certo. Montei o tecnobrega. Era só trance. Pedacinho assim de vinheta, de música, peguei uma batida, o baixo de uma música, de tudo... Fui montando. Aí peguei o brega. Só que fiquei pensando em como eu ia chamar, que é um ritmo mais pesado. Aí como tinha gente falando de 263 tecnobrega, mas não era ainda tecnobrega como é hoje, era teclado... Aí falei, esse aqui vai ser o verdadeiro tecnobrega. Lancei e todo mundo quis dançar. Depois disso começaram a vir outros... E até hoje (BRASIL, APUD LEMOS; CASTRO, 2007, p. 31). Apesar da histórica mutação tecnológica da música brega paraense e suas conexões com a música popular massiva, a experiência musical do espetáculo é marcada por uma certa negação dos códigos observados nas festas do circuito bregueiro de Belém. A Gang do Eletro é representativa da cultura como um modo de vida dos grupos de jovens que frequentam o circuito da festa de aparelhagem. No entanto, na estética do Terruá Pará o grupo é apresentado como música eletrônica com uma pitada de punk, com direito ao grito Hey! Ho!, eternizado pela banda de punk-rock Ramones. Já a própria Gaby Amarantos não é mais aquela vocalista da Tecnoshow, que desde o início era venerada pelo público GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros) do Pará. Gaby ainda permanece como diva da música pop em terras amazônicas. Mas agora, sob a direção de Miranda, Gaby é a cantora de música popular brasileira e regional que dialoga com o universo da música pop. 3. Conclusões Embora a experiência musical do espetáculo Terruá Pará construa a sua trama narrativa relacionando as práticas musicais e as mutações das experiências observáveis na cidade de Belém, prometendo diversidade e a originalidade da produção contemporânea, a análise aqui empreendida revela que tal música está cada vez mais articulada com os padrões dominantes e mercadológicos que caracterizam a música popular massiva na contemporaneidade. Estas articulações favorecem uma identificação imaginária e nativista com a cultura amazônica, evidenciando aspectos canônicos e vanguardistas da cultura e prática musical ao longo do século XX. As marcas desses aspectos são observados mesmo quando o show volta-se para a música pop regional com as performances da Gang do Eletro e Gaby Amarantos. Dessa forma, o projeto e o espetáculo constituem-se como uma política de estesia que promove determinados ritmos da experiência musical paraense no mercado mundial de bens simbólicos. É por meio desta política de estesia e de uma ampla ação mercadológica de posicionamento de mercado que a experiência musical da cidade de Belém é reveberada como genuinamente paraense. Neste cenário, a experiência musical do terruá pará é resultante de uma espécie de metonímia de cenas musicais paraense, pronto para ser comercializado no mainstream. 264 REFERÊNCIAS: AMARAL FILHO, Otacílio. Verde que te quero verde: a estética da marca Amazônia. In: MALCHER, Maria Ataide; SEIXAS, Netília Silva dos Anjos; LIMA, Regina Lúcia Alves [et al.]. Comunicação Midiatizada na e da Amazônia. Vol.2. Belém, FADESP, 2011. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. In: Magia e técnica, arte e polítca: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CARDOSO FILHO, Jorge. Música popular massiva na perspectiva mediática: estratégias de agenciamento e configuração empregadas no heavy metal. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006. _____; OLIVEIRA, Luciana Xavier de. Espaço de experiência e horizonte de expectativas como categorias metodológicas para o estudo das cenas musicais. Anais do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Fortaleza (CE), 2012. _____; JANOTTI JÚNIOR, Jeder. A música popular massiva, o mainstream e o underground: trajetórias e caminhos da música na cultura midiática. Anais do XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Brasília, 2006. CASTRO, Fábio Fonseca. Comunicação, identidade e TV pública no Pará. Em Questão, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 149-167, jul./dez. 2012. COSTA, Antonio Maurício Dias da. Festa na cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará. Belém: EDUEPA, 2ª edição, 2009. DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010. JANOTTI JÚNIOR, Jeder. Simon Frith: sobre o valor da música popular midiática. In: _____; GOMES, I. (Org.). Comunicação e Estudos Culturais. Salvador: EDUFBA, 2011. LAMEN, Darien. Pelo mar do caribe eu velejei: a guitarrada, mobilidade, e a poética da beirada em Belém do Pará. Anais do V ENABET - Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia. Belém: 2011. LEMOS, Ronaldo; CASTRO, Oona. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. O que é Terruá? Criação/Motion de Igor Chá. Belém, 2012. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=T1JBIYxom5I. PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica – uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras, 2001. 265 SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará. Belém (PA): Conselho Estadual de Cultura, 1980. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2011. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. _____. Sobre a episteme comunicacional. Matrizes. Revista do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade de São Paulo, São Paulo, nº 1, pp. 1522, segundo semestre, 2007. Terruá Pará - Vol. 1 [DVD]. Belém: Governo do Estado do Pará; 2012. VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo (RS): Editora Unisinos: 2004. Williams, Raymond. Cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra: 1992. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. 266 DALCÍDIO JURANDIR: (RE) PENSANDO O ROMANCE Tayana Andreza de Sousa Barbosa (UFPA) 1 Marlí Tereza Furtado (Orientado) 1 Resumo: Esse trabalho tem como corpus principal duas crônicas do escritor paraense Dalcídio Jurandir, apresentadas nos periódicos O Estado do Pará e Diretrizes. Estes textos intitulados ―O arranha céu e o lírio dos campos‖ e ―Romances em 43‖ foram publicados em diferentes momentos da vida do autor. O primeiro, no ano de 1938, na cidade de Belém do Pará e o segundo, em 1943, no Rio de Janeiro. A partir da leitura desses textos, pode-se dizer que houve uma reconstrução do pensamento dalcidiano acerca dos caminhos estéticos da criação literária. Diante disso, pretende-se com este trabalho analisar essas duas crônicas do escritor marajoara, procurando entender quais os motivos que o levaram a modificar seu pensamento diante da produção artística do escritor Érico Veríssimo e quais as implicações que isso teve no seu próprio fazer literário, uma vez que seu projeto romanesco – ciclo Extremo Norte (composto por dez romances) – ainda estava em construção. Palavras-chave: Dalcídio Juradir; crônicas; Érico Veríssimo; crítica. Resumen: Este trabajo tiene como corpus principal dos crónicas del escritor paraense Dalcídio Jurandir, presentadas en el Estado de Pará y Diretrizes. Estos textos intitulados ―O arranha céu e o lírio dos campos‖ y ―Romances em 43‖ fueran publicados en momentos diferentes de la vida del autor. El primer en 1938, en la ciudad de Belém do Pará , y el segundo, en 1943, en Rio de Janeiro. De la lectura de estos textos, se puede decir que hubo una reconstrucción del pensamiento dalcidiano acerca de los camiños estéticos de la creación literaria. Por lo tanto, se pretende analisar estas dos crónicas del escritor marajoara, tratando de entender las razones que le llevaron a modificar su forma de pensar sobre la producción artística del escritor Erico Veríssimo y qué implicaciones que esto tenía sobre su propia obra literaria, una vez que su proyecto novelístico - ciclo Extremo Norte (compuesto por diez romances de ficción) - todavía estaba en construcción. Palabras-clave: Dalcídio Jurandir; crônica; Érico VeríssimA; crítica. 1. Considerações iniciais Além de sua atividade como romancista, o escritor paraense Dalcídio Jurandir colaborou para diversos jornais e revistas, com artigos, ensaios, críticas literárias, crônicas e reportagens. Entre os periódicos para os quais o escritor colaborou, chama-se atenção para O Estado do Pará e Diretrizes, dois importantes jornais que circularam nas cidades de Belém do Pará e do Rio de Janeiro, respectivamente. Há, nesses dois periódicos, duas críticas do romancista a respeito da produção literária do escritor Érico Veríssimo. Na primeira, publicada na década de 30, o crítico faz uma série de elogios aos romances do escritor gaúcho e o coloca como um grande criador 267 de personagens fortes e complexas. Já na segunda, publicada na década de 40, ele se apresenta bastante contrário à sua crítica anterior. Nessa última, Dalcídio faz uma ácida crítica às obras do mesmo escritor, chegando a chamá-las de comuns e com pouca densidade literária. Como se pode perceber, esses textos apresentam um crítico em momentos diferentes de sua atividade intelectual e com uma mudança de perspectiva a respeito da qualidade literária da obra de Érico Veríssimo. Pode-se dizer que há uma reconstrução de pensamento e de conceitos por parte de Dalcídio a respeito do que vem a ser uma boa obra literária. Diante disso, pretende-se, com esse trabalho, analisar as duas críticas do autor, procurando entender quais os motivos que o levaram a modificar seu pensamento diante das obras do escritor Érico Veríssimo e quais as implicações que isso teve no seu próprio fazer literário, uma vez que seu projeto romanesco – ciclo Extremo Norte – ainda estava em construção. 2. Dalcídio Jurandir e sua trajetória literária Dalcídio Jurandir nasceu em Ponta de Pedras, na ilha do Marajó, em 10 de janeiro de 1909 e morreu em 16 de junho de 1979, na cidade do Rio de Janeiro. Em sua trajetória literária elaborou um projeto que traça os costumes e tradições marajoaras sob o título Extremo Norte, o qual abarca dez romances: Chove Nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963), Primeira Manhã (1968), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978). Em meio à composição do ciclo, o romancista escreveu a obra Linha do Parque, publicada em 1959, cuja proposta estética é bastante diferente da proposta utilizada no ciclo. Além dos romances, o escritor escreveu para alguns periódicos e revistas. No Pará, colaborou para o jornal: O Estado do Pará e para as revistas: Revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana. No Rio de Janeiro, com os periódicos: O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz operária, Correio da Manhã, Tribuna Popular, Novos Rumos, O Jornal, Imprensa Popular, Literatura, O Cruzeiro, A Classe Operária, Para Todos, Problemas e Vamos Ler. Em razão de sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Dalcídio Jurandir publicou Linha do Parque. A obra foi uma encomenda do partido com a exigência de que o romance devesse se configurar sob as regras do realismo socialista1. Assim, com o intuito 268 de passar aos leitores uma maior veracidade dos fatos e, consequentemente, uma maior credibilidade, o escritor foi enviado pelo partido à cidade do Porto do Rio Grande para vivenciar de perto todos os caminhos do movimento operário, ocorrido nessa cidade, na primeira metade do século XX. Entretanto, intrigantemente, a obra foi censurada pelo próprio PCB, permanecendo arquivada durante alguns anos e sendo publicada somente em 1959. De acordo com Moraes (1994), As revistas culturais frequentemente publicavam capítulos de romances, contos e poemas sintonizados com o realismo socialista. Pelo menos três romances foram escritos de encomenda, sendo os autores obrigados a conhecer de perto as condições de vida do proletariado para retratá-las com fidelidade. O paraense Dalcídio Jurandir foi mandado para a cidade gaúcha do Rio Grande a fim de preparar um livro sobre os portuários locais (...). Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e custaram a ser editados. Alina Paim e Dalcídio Jurandir tiveram que mudar os seus, várias vezes, por ―inconveniências‖. (...) Linha do Parque adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até 1959, o que permitiu a Dalcídio elaborar a versão final sem os rigores do início da década. (Moraes 1994, 160-162) Como se pode observar, não somente Dalcídio teve que se submeter às regras zhanovistas no Brasil, mas também outros escritores consagrados foram convocados a compor obras que servissem de propaganda das ideias do PCB, entre eles estão Alina Paim, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Contudo, se o romancista seguiu à risca as regras do realismo socialista, só uma análise mais detida sobre o assunto poderá responder. Para este trabalho, entretanto, deterse-á à produção crítica de Dalcídio Jurandir acerca das obras do escritor Érico Veríssimo, nas páginas dos periódicos O Estado do Pará e Diretrizes. Apesar de sua longa trajetória literária, o nome de Dalcídio ainda é pouco lembrado no panorama literário brasileiro. Pode-se dizer que a História da Literatura não foi complacente com o escritor. Ao contrário, os críticos dedicam-lhe poucas linhas de suas obras, quase sempre dando destaque para os aspectos regionalistas que, segundo eles, existem nos romances do escritor marajoara. Massaud Moisés, por exemplo, em sua História da Literatura Brasileira, resume em um único parágrafo os dez romances que compõem o ciclo Extremo Norte, destacando-o como uma vasta narrativa de aprendizagem, que oscila entre o documental e o autobiográfico. Além disso, atenta para a reconstrução do ambiente amazônico e para os elementos coloquiais que permeiam a obra, dando ao autor um perfil de fabulista popular. Segundo Moisés, 269 Vasta narrativa de aprendizagem, obedece ao fluxo histórico do tempo, com personagens recorrentes, em meio a outras que saem de cena após cumprir o seu papel. Oscilando entre documental e autobiografia, colocando lado a lado as notas psicológicas e as líricas, narra a trajetória existencial de um menino pobre, mestiço, que pouco a pouco descobre o mundo e suas injustas discriminações. O homem perante o universo natural e citadino, num diálogo dramático, que a progressiva tomada de consciência dos problemas sociais aguça, eis, em síntese, a substancia desse ciclo torrencial, apaixonado, estuante de vida e movimento (...). Dalcídio é bem o fabulista popular, engajado na reconstituição do mundo ao redor do Amazonas, num estilo dasataviado, permeado de coloquialismo e expressões locais. (Moisés 1989, 251-252) Outro que também dedica modestas e superficiais linhas para destacar esse caráter regionalista nas obras de Dalcídio é Alfredo Bosi. Embora o classifique como o mais complexo e moderno entre os autores amazonenses, Bosi o insere dentro de um numeroso grupo de escritores dos anos 30 e 40 que serviram ao chamado ―regionalismo menor‖, reproduzindo em suas obras, o típico, o exótico e uma linguagem que não conseguia ser, nem acadêmica, nem livremente moderna, por ter fortes apegos às velhas convenções narrativas. A respeito dos escritores que encarnaram esse gênero de ficção, Bosi afirma, Tiveram numerosa prole de romances que encarnavam um regionalismo menor, amante do típico, do exótico, e vazado numa linguagem que não acadêmica, mas que não conseguia, pelo apego a velhas convenções narrativas, ser livremente moderna. Não haveria mãos a medir se se pretendesse aqui arrolar os autores que das várias partes do país concorrem para engrossar esse gênero de ficção (a literatura regional amazônica). Que, aliás, assume, nos casos mais felizes, um inegável valor documental. Parte dela resiste à leitura pelo decoro verbal que logrou atingir. É o caso dos romances amazonenses de Peregrino Jr,, escritor que vem dos fins da década de 20 (Pussanga é de 1929; Matupá, de 1933), de Abguar Bastos (Terra de Incamiabas e Safra, de 1937), de Osvaldo Orico (Seiva, 1937), de Raimundo de Morais (Os Igaraúnas, 1938; Mirante do Baixo Amazonas, 1939); enfim, do mais complexo e moderno de todos, o marajoense Dalcídio Jurandir. (Bosi 2006, 426) Não se pretende, com as falas dos dois críticos, travar nenhuma discussão sobre os aspectos regionalistas ou não nas obras de Dalcídio, nem, tampouco, sobre seu status de representante do regionalismo amazônico, mas sim demonstrar a pouca atenção que se deu à narrativa do escritor marajoara por parte da crítica literária, dedicando-lhe estudos modestos e superficiais. Apesar disso, é importante ressaltar que, atualmente, esse quadro vem se modificando, uma vez que muitos estudiosos estão se debruçando sobre a produção de 270 Dalcídio. Esses estudos estão se expandindo cada vez mais e ultrapassando os limites da produção romanesca do escritor. Nos últimos anos, muitas teses, dissertações, monografias e projetos de pesquisas já foram desenvolvidos sobre seus romances e sobre sua produção jornalista, possibilitando uma maior ampliação do nome do escritor, no cenário literário e um maior aprofundamento de sua criação literária. Para citar alguns, em 1999, o professor Dr. Paulo Nunes apresentou, na Universidade Federal do Pará, sua dissertação sob o título: ―Aquonarrativa dalcidiana: uma leitura do tecido narrativo de Chove nos campos de Cachoeira‖. Em 2007, esse mesmo pesquisador elaborou sua tese de doutorado: ―Útero de Areia, um estudo do romance Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir‖. No ano de 2002, a Professora Dra. Marlí Tereza Furtado apresentou sua tese de doutorado intitulada ―Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir‖, na Universidade de Campinas (UNICAMP). Além disso, essa mesma estudiosa coordena um projeto pioneiro nos estudos acerca dos textos jornalísticos do romancista paraense. Esse projeto vem sendo desenvolvido desde 2007 até os dias atuais e já rendeu três dissertações de mestrado, dez projetos de Iniciação científica, quatro Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e duas dissertações em andamento. 3. Revendo seus conceitos: a reconstrução do pensamento de Dalcídio Jurandir Os textos jornalísticos de Dalcídio Jurandir, publicados na imprensa de modo geral e na imprensa comunista de modo particular, permitem que se observe um escritor em diferentes momentos de sua atividade intelectual e, ao mesmo tempo, a modificação do seu pensamento político-literário ao longo dos anos. Sabe-se que as ideias do indivíduo não são estanques. Elas são modificadas no curso da vida do ser humano, à medida que este entra em contato com o mundo externo. As leituras feitas, o trabalho, a escola e os outros ambientes sociais ajudam a reconstruir o pensamento do sujeito. Em um texto memorialístico, por exemplo, o passado é reelaborado com o material e as representações que se tem à disposição hoje. A partir do contato com outros integrantes do mesmo grupo, a memória se sustenta e se reinventa, uma vez que o indivíduo que lembra não é mais o mesmo do passado. Suas expectativas, experiências e desejos são outros. De acordo com Jobim, 2012, Trata-se, portanto, de uma reconstrução do passado sob o ponto de vista do momento em que se escreve. As memórias podem remeter a uma ideia de unidade, de permanência do sujeito que se considera contínuo personagem da biografia de si mesmo, mas a narrativa autobiográfica é feita a partir de uma consciência de si que o sujeito possui no momento mesmo em que a produz. (Jobim 2012) 271 Embora as duas crônicas de Dalcídio Jurandir não sejam consideradas textos memorialísticos, percebe-se que elas seguem a mesma premissa. São textos que tratam de um mesmo assunto pretérito, em momentos diferentes da produção do escritor e apresentam uma modificação em seu conteúdo. Nota-se que a leitura de Dalcídio, nesses textos, é bastante impregnada por alguns conceitos já desenvolvidos pelo escritor em outros artigos publicados na imprensa. A concepção de realismo na obra literária, herdada da tradição marxista e da qual o crítico se apropria, é uma das ideias instrumentalizadas por ele para permitir uma leitura coesa da realidade, constituindo uma ―visão de mundo‖. Por apresentar um perfil militante em sua atividade jornalística, colaborando para o PCB e compondo uma obra, supostamente, aos moldes do realismo socialista, pensa-se que há uma oscilação no pensamento do romancista em relação aos dois conceitos dialéticos – realismo crítico e realismo socialista. É importante ressaltar que, independente da dialética do pensamento dalcidiano a respeito do realismo, sabe-se que o escritor marajoara entende que os modos de representação literária devem estar diretamente ligados à realidade social que os integram. De acordo com ele, Muitos acreditam que o romance é a representação exata da vida, tal qual ela é, uma espécie de história em que tudo deve ser verdadeiro no sentido documental, no sentido ―histórico‖, como se o romancista fosse um historiador, um repórter, um cientista, [...] A verdade da vida numa obra de arte manifesta-se através da imagem, através do estilo, graças ao engenho do artista em apreender os fatos e os personagens segundo uma ação inventada, artisticamente construída. (Jurandir, 1954) O texto ―O arranha céu e os lírios dos campos‖ foi publicado no jornal O Estado do Pará, em 1938. Nessa crônica, Dalcídio Jurandir faz uma série de elogios ao romance de Érico Veríssimo e o coloca como um dos grandes romancistas brasileiros, criador de personagens fortes e complexas. Para ele, o escritor gaúcho balançou o seu romance ao tratar do imenso conflito que absorve os homens: Os homens correm atrás do arranha céu, das maquinas devoradoras, dos capitais homicidas, dos lucros fáceis. Todos correm e caem aniquilados. Para alcançar o arranha céu, para sentar num bom Pakard não importa que outros homens caiam esmagados ou que nos casebres outras criaturas botem os pulmões para fora ou mordam os pulsos com ódio e miséria. (Jurandir 1938, 1-2) Percebe-se que o crítico vê a abordagem dos problemas cotidianos como algo positivo, no romance. As agruras do homem diante das mudanças ocorridas no mundo 272 moderno, as quais desencadeiam uma perda das singelezas na sociedade, são um assunto que sempre chamou a atenção de Dalcídio. Não por acaso, os menos favorecidos sempre estiveram no palco de suas representações artísticas. Em seu projeto literário – ciclo Extremo Norte –, o romancista evidencia importantes dramas sociais vividos pelos trabalhadores rurais e os diversos problemas causados pela má distribuição do capital. Ao compreender a arte como a intermediária entre o homem e a vida, o crítico observa no romance de Érico uma mensagem de otimismo pela vida. De acordo com ele, isso causa, à alma dos leitores, uma serena tranquilidade diante das catástrofes humanas. O romance de Érico é um canto pela vida, faz com que o leitor se reconcilie com ela e consigo mesmo. A ambição da personagem Felipe em construir o maior arranha céu da América Latina e o desejo de Olívia em cultivar, no ser humano, a natureza, a poesia e os lírios dos campos para poder suportar ―um arranha céu e respirar a poeira das cidades de aço e fumo‖, são o verdadeiro ―sermão da montanha‖ (manual de coragem para a vida, deixado por Olívia a Eugênio, antes de morrer) para os leitores. Érico trata, em suas obras, dos problemas reais da sociedade, mas sem deixar de romantizar, em certa medida, essa mesma realidade. Seus enredos são recheados de horrores e desvarios, como a vida, mas ao mesmo tempo, não deixa de lado a esperança e os sonhos de uma vida melhor. Essa é a marca dos seus romances. Seu maior desejo talvez fosse o de simplesmente contar histórias, com a deliciosa irresponsabilidade dos novelistas do velho tempo. A segunda crítica, ―Romances em 43‖, foi publicada no periódico Diretrizes, em 1943. Nesse texto, diferente do anterior, Dalcídio faz uma ácida crítica aos romances do mesmo escritor, chegando a chamá-los de comuns e superficiais. Em uma das passagens do texto, o crítico afirma que o autor de Clarissa ocupa um lugar que qualquer outro romancista poderia ocupar. Falta-lhe força e densidade a seus romances, bem como a seus personagens. De acordo com Dalcídio, Érico dá conta dos enredos fáceis, garantindo seu primeiro lugar em matéria de ―‗bestseller‘ para moças‖. Não há personalidade na obra do escritor gaúcho. O povo que inspirou as personagens e o ambiente onde as ideias nasceram não são evidenciados. Pra Dalcídio, sendo a produção de uma imagem que dê conta de manifestar a própria essência da realidade uma das principais características do romance, enquanto gênero, é necessário que o espaço, o tempo e as personagens sejam coerentes com a realidade que se está projetando. A crítica, portanto, é à falta de coerência presente na obra 273 de Érico, ocasionada por essa simplicidade e superficialidade do enredo. Note-se o excerto abaixo: O autor de "Música ao longe", fluente e superficial, conhece a técnica com muita habilidade. Um artífice como poucos no Brasil. Acontece que o seu romance ainda não atingiu a maioridade. Falta-lhe caráter, o caráter da terra, do povo, do tempo e da vida em que o ambiente, os personagens, as ideias, o estilo e o sentido de seus romances nasceram. (Jurandir 1943) Essa ausência de coerência acaba por fraturar o realismo da obra literária, do qual Dalcídio era adepto. Em seu romance Marajó, segundo do ciclo, pode-se observar, de forma bastante explícita, o tom de denúncia social que o romancista faz ao apontar as mazelas provocadas pelas cercas do latifúndio à população rural da região do Marajó. Nessa obra, o escritor se mostra profundamente conhecedor da vida e dos costumes da região, bem como dos problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais. No romance, o domínio da terra pertence à família Coutinho, cuja hegemonia do latifúndio é estabelecida por herança. O coronel Coutinho é apresentado como um patriarca dominador e impiedoso, cuja autoridade vai além das cercas da casa grande. Dirige seu trabalho com pulso firme e sem um mínimo de preocupação com seus subordinados. Via-os como indivíduos que tinham por único direito o de lhe servir e de render frutos a sua propriedade. Seu filho, futuro sucessor na administração das extensivas terras da família, vive em um aparente dilema, pois, ao mesmo tempo em que admira a maneira com a qual seu pai dirige suas propriedades, tem um olhar revolucionário diante dessa atual configuração administrativa. Sonha com uma propriedade que proporcione à região maior desenvolvimento e que melhore a situação de vida dos trabalhadores locais. Apesar de Missunga encerrar a narrativa dando prosseguimento ao legado deixado pelo pai, tornando-se um verdadeiro Coutinho, tal qual foi seu pai, seu avó e seu bisavó, ele demostrou uma preocupação com os trabalhadores da região, revelando atitudes revolucionárias diante de determinadas posturas impostas pelo pai Missunga, na véspera, discutia com o pai sobre o trabalho nas fazendas. Aquela malhada, com urros e gritos, poeiras e cavalos, desentorpecia-o, transmitia-lhe certo desejo de responsabilidade, certo impulso para lutar contra o que pensava ser o seu sangue, ave de rapina que havia em todos os Coutinhos. - Meu filho, falava o pai, você não sabe o que é isto. Pensa que fazenda em Marajó é criação de gado na Inglaterra? Vaqueiro nasceu vaqueiro morre vaqueiro. - Eles deviam pelo menos ter uma sociedade como os pescadores. 274 - Mas que sociedade têm os pescadores, meu filho? O que é que você anda sonhando. (Jurandir 1978: 205-206) Como se pode observar, o pensamento de Dalcídio a respeito do realismo na obra de arte também foi transposto para seus romances, demonstrando que o escritor foi consciente de seu fazer literário. Ao criticar a ausência do ―caráter da terra, do povo, do tempo e da vida em que o ambiente, os personagens, as ideias, o estilo e o sentido de seus romances nasceram‖ (JURANDIR, 1943), em ―Romances em 43‖, o crítico provou, em seus romances, que não caiu no mesmo erro do escritor de Música ao longe. Escritores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos também são citados como nomes que souberam oferecer a seus leitores histórias reais, do seu tempo, do seu lugar, de sua gente, as quais não precisaram ser romantizadas ou fantasiadas. Esses autores foram dois que contaram histórias do povo. Brutas e vivas, mas verdadeiras. Percebe-se, portanto, que há uma dissonância entre as duas críticas analisadas. Enquanto que, na primeira, há um enaltecimento do estilo narratológico de Érico Veríssimo, vendo positivamente o realismo trabalhado por ele, em sua obra; na segunda, há um desprestígio desse tratamento. De acordo com o crítico, o escritor gaúcho não foi coerente nem firme em sua narrativa e optou por continuar escrevendo ―romances bem comportados, bem armados e felizes.‖. Em outro artigo, publicado em 1954, no Imprensa Popular, Dalcídio fala a respeito de um romance de Jorge Amado e critica o criador de Gabriela por não distinguir ―a simples fantasia romântica da fantasia criadora que se inspira na realidade e que só pode se alimentar da realidade‖ (JURANDIR, 1954). Talvez essa seja a razão pela qual o escritor marajoara tenha modificado seu pensamento ao longo dos anos. A maturidade do tempo lhe permitiu distinguir entre a realidade fantasiada e a fantasia da realidade. No primeiro texto, Dalcídio elogia a obra de Érico por tratar dos problemas e contradições sociais, assunto que sempre lhe chamou atenção. As personagens tentam sobreviver em um mundo cheio de miséria e com pessoas sem caráter e egoístas. Apensar disso, há a esperança e a busca pela solidariedade entre os homens. O sermão da montanha, deixado por Olívia, ―aconselhou a paz, a doçura, o auxilio mutuo, a fraternidade construtora, o ideal do trabalho que não somente erga os arranha céus, mas enobreça a espécie humana‖ (JURANDIR, 1943). Essa romantização e idealização exacerbada, sem uma coerência com a realidade, posta apenas para confortar o coração do leitor diante das catástrofes humanas, talvez sejam a fraqueza dos romances de Érico. No segundo texto, o escritor gaúcho peca por ausentar o caráter da terra e o ambiente no qual seus personagens foram inseridos. 275 Optou por criar um mundo paralelo à sua realidade e não tratar de seu universo. O crítico esperava que Érico trouxesse os problemas sociais dos pampas ou do povo do sul. Em ambos os textos, há o emprego dos preceitos do realismo, porém de uma forma pouco inverossímil, fraturado e com um romantismo exacerbado, ocasionados pela exaltação exagerada à vida coletiva e a um sentimento utópico em relação à solidariedade humana, na luta pela existência. Tal fato, não pôde ser desenvolvido pelo crítico em seu primeiro texto, escrito há cerca de quatro anos de distância do último. Por essa razão, portanto, acredita-se que há a dissonância entre as duas crônicas. 4. Considerações finais Observa-se que Dalcídio Jurandir foi um escritor comprometido com as mazelas sociais, fazendo de sua arte uma arma contra os problemas enfrentados pelos sujeitos menos favorecidos. Ao mesmo tempo, não deixou de lado suas concepções a respeito da arte e da função dela no mundo. Dalcídio entendia a arte como criadora de imagens do mundo real. Para ele, o romancista deve tomar cuidado para que o substrato histórico não sirva apenas de pano de fundo para se construir a narrativa. Ao contrário, é necessário que esse realismo histórico se entrelace com o indivíduo. O romancista deve criar uma imagem da vida e não o retrato de uma época, lugar ou caráter. Além disso, o escritor deve saber distinguir a realidade fantasiada da fantasia da realidade, cuidando para que não haja uma romantização da realidade, a partir da qual o romance nasceu e se desenvolveu. A visão crítica da realidade é fundamental para que não se caia em enredos superficiais e inverossímeis. Foi o que o crítico soube dosar em seus romances, como Marajó, por exemplo, o qual apresenta forte dinâmica social e personagens reais, com todas as complexidades do homem comum. Por essa razão, acredita-se que a mudança de postura do escritor marajoara se deva ao exagerado trato da realidade, excessivamente romântica, trabalhada por Érico Veríssimo, em alguns romances, e à falta de coerência com o mundo real, em outros. Esse fato só foi permitido ser observado e trabalhado por Dalcídio quatro anos depois, na segunda crítica, feita por ele, aos romances do escritor gaúcho. Além disso, a partir desse estudo, pôde-se observar que o modo de ver modo de ver e de entender a literatura, por Dalcídio Jurandir, foi conscientemente transposto para seus romances, uma vez que em suas obras sempre procurou denunciar as enfermidades da sociedade na qual ele estava inserido e lutar contra um modelo de produção opressor e segregador. Referências Bibliográficas 276 BARBOSA, Tayana A. S.; FURTADO, Marlí Tereza. Dalcídio Jurandir: para além do romancista. DLCV (UFPB), v. 7, p. 54-61, 2011. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo: Editora Unesp, 2011. JOBIM, José Luís. O Movimento Modernista como memória de Mário de Andrade. Manuscrito. Rio de Janeiro, 2012. JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1978. ______. O arranha céu e o lírio dos campos. In: O Estado do Pará. Belém, Agosto de 1938. ______. Romances em 43. In: Diretrizes. Rio de Janeiro, Dezembro de 1943. ______. A realidade histórica no romance. In: Imprensa Popular, 1954. MOISÉS, Massaud. O modernismo. Col. A Literatura Brasileira. São Paulo: Cutrix, 1989. MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado. A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. 277 MAX MARTINS: SILÊNCIO E PENSAMENTO POÉTICO Thiago de Melo Barbosa1 Prof. Dr. Antônio Máximo Ferraz (Orientador) 1 Resumo: Inevitavelmente imersos na lógica da técnica como estamos, é difícil pensar fora dos padrões predeterminados. É muito raro, quase doloroso, retornarmos ao lógos enquanto palavra, verbo criador. Sendo assim, quase impossível é também superarmos as ideias negativas que comumente temos sobre o silêncio e, muito menos, conseguir encará-lo como criativo, ―funcional‖, porém não funcionalizado; pensar assim, não demora a ser tido como ―coisa de poeta‖. Refletindo sobre isso, este artigo propõe a escuta da questão do silêncio por meio de um caminhar pelo ―pensamento poético‖ — em clara oposição ao pejorativo ―coisa de poeta‖ — que acontece nos poemas de Max Martins. Para tanto, parte, principalmente, mas não exclusivamente, do pensamento de Martin Heidegger e, assim, encara o silêncio como a essência da linguagem — é preciso silêncio para que a linguagem se instaure. Pretende-se, deste modo, não uma análise, mas antes uma travessia pelos textos que compõem a obra martiniana, refletindo sobre como eles nos convocam, por meio de um ―poetar do silêncio‖, a um pensamento originário, inaugural, que empreende a superação da linguagem como instrumento de comunicação e recai sobre as discussões acerca do Ser. Palavras-chave: Silêncio; Poesia; Max Martins. Abstract: Inevitably immersed in the logic of technique as we are, it is hard to think outside the predetermined standards. It is very rare, almost painful, returning to the lógos while word, verb creator. Therefore, it is also almost impossible to overcome the negative ideas that commonly we have about silence and, even less, to be able face it as creative, "functional", but not functionalized; think so, do not delay to be seen as "thing of poet ". Reflecting on this, this article proposes the listening of the silence question by means of a walk by the "poetic thought" — in clear opposition to the pejorative "thing of poet" — what happens in the poems of Max Martins. It recognizes mainly, but not exclusively, starting from the thought of Martin Heidegger and thus sees the silence as the essence of language — it is necessary silence to the language happens. The aim is thus not an analysis, but before crossing the texts that make up the martinian work, reflecting on how they call us, through a "berhyme of silence", a thought originates, inaugural, which undertakes the overcoming the language as a communication tool and falls on the discussions of Being. Keywords: Silence; Poetry; Max Martins. E, no entanto... Talvez, já desde séculos, o homem vem agindo demais e pensando de menos. Martin Heidegger 278 Dentro da atual época marcada pela construção técnico-científica do real, habituamo-nos a entender e nos relacionarmos de modo extremamente conceitual com o mundo. A verdade, originariamente dada pela polivalência do acontecer mítico, hoje está reduzida a certezas, fórmulas, conceitos, teorias etc., cientificamente bem delimitadas. Deste modo, todo o pensar é sistematizado, criam-se estruturas pelas quais o ―pensador‖ deve caminhar — com o devido cuidado para não perder-se por obscuros caminhos —; então a filosofia, bem como os estudos literários, é compreendida por meio de suas correntes crítico-teóricas. Frente a isso, é comum encontrarmos um pendor para deslegitimação de todo proceder intelectual que não enquadre-se, seja por opção ou impossibilidade, no modelo científico de se pensar. Sendo assim, nada mais ―natural‖ do que abdicarmos do contado direto com os textos literários em prol de uma leitura intermediada por teorias prévias. Além disso, é patente a tendência ao movimento de colocação da poesia — e diria até que da arte de modo geral — em um lugar subalterno, imediatamente inferior ao da ciência, no que diz respeito a algo que possa fornecer respostas válidas para as questões que assolam o homem. Por isso, pode-se dizer que a ideia geral que vigora em nossa época ainda é a mesma que a de George Boas, quando no seu Poetry and Philosophy, de 1932, declarou que ―...as ideias contidas na poesia são normalmente cediças e muitas vezes falsas; e nenhuma pessoa com mais de dezesseis anos acharia que valesse a pena perder tempo a ler poesia apenas pelo que ela diz‖ (BOAS, 1932, p. 9 apud WELLEK; WARREN, 1971, p. 135). A fala de George Boas aparece naquela que talvez seja a Teoria da Literatura mais conhecida de todas, refiro-me à obra assinada por René Wellek e Austin Warren. Mais especificamente, a citação de Boas encontra-se no início do Capítulo X, intitulado ―Literatura e Ideias‖, no momento em que os autores discorrem sobre uma das duas maneiras, que eles apontam como sendo as mais frequentes, de se ver a relação entre literatura e ideias. Em suma, estes dois modos seriam: um que enxerga a literatura como um verdadeiro tratado filosófico, e outro que a tomaria como totalmente desprovida de relevância filosófica. Logicamente, George Boas foi usado como exemplo para este segundo caso. Ainda neste Capítulo X da obra de Wellek e Warren encontra-se outro exemplo de como é tratada a relação literatura e filosofia pelos críticos, e que não necessariamente está associado com os dois modos citados no parágrafo anterior. Neste, que talvez possa ser entendido como um terceiro modo comum de se abordar problema central do capítulo em questão, nota-se a intenção de se tomar o texto literário como espelho das correntes 279 filosóficas de determinada época, tal qual os autores demonstram valendo-se de exemplos da literatura inglesa, na seguinte passagem: É fora de dúvida que se pode demonstrar ser a literatura inglesa um reflexo da história da filosofia. A poesia isabelina está impregnada do platonismo do Renascimento: Spenser é autor de quatro hinos que descrevem a ascensão neoplatônica da matéria à Beleza Celestial [...] Em Marlowe, ouvimos reverberações do ateísmo e ceticismo coevos, de influência italiana. Até em Shakespeare se encontram muitos vestígios do platonismo [...] O próprio Milton desenvolveu uma teologia e uma cosmogonia muito pessoais, as quais — segundo uma das interpretações de que foram objetos — combinam elementos materialísticos e platônicos, inspirando-se ambas no pensamento oriental e nas doutrinas de algumas seitas contemporâneas, como a dos mortalistas (1975, p. 138). Toda essa discussão entre ―Literatura e ideias‖ que vemos delineada no célebre manual de Wellek e Warren possui ainda inúmeras outras nuances, nem se quer citadas pelos autores. A ―querela‖ filosofia v.s poesia é muito mais complexa do que nos permite ver o capítulo X da Teoria da Literatura. De acordo com Benedito Nunes, por exemplo, tal disputa remonta às origens da própria definição de filosofia, para o filósofo e críticoliterário o episódio platônico do banimento dos poetas da república é uma espécie de ―símbolo‖, um marco no que diz respeito ao afastamento da filosofia de todo conhecimento que não seja ―verdadeiro‖. Partindo disso, percebe-se, quando nos debruçamos sobre a História da Filosofia, um gradativo afastamento desta do texto poético, ou melhor, da poiésis, concomitantemente a uma sucessiva aproximação do conhecimento ―científico-racional‖. Benedito Nunes afigurasse aqui como um pensador importante não pela sua conhecida amizade com o poeta Max Martins, nem apenas por ter a importância histórica de ter sido o primeiro crítico da obra deste autor, mas, sobretudo por conta da sua intensa preocupação — talvez relativa da sua dupla atividade: crítico e filósofo — em discutir os pontos de ―fuga‖ e ―contato‖ da poesia com o pensamento. Um bom texto para se compreender tal preocupação do pensador é o ensaio ―Filosofia e Poesia‖, no qual Benedito traça um percurso histórico dos principais momentos da querela em questão, indo desde sua origem, com Platão, até o advento daquilo que ele denomina como ―hermenêutica heideggeriana‖ — isto sem esquecer-se de voltar aos chamados présocráticos (ou pensadores originários), para salientar o entrelaçamento filosófico-poético que acontece nas buscas pela explicação do real propostas por eles. 280 O texto de Benedito Nunes desemboca na filosofia do alemão Martin Heidegger não por acaso. Heidegger, especialmente a partir da sua chamada ―segunda fase‖, empreende um radical projeto filosófico, no qual a inversão dos preceitos até agora apresentados é latente: o pensamento se afasta da ciência e se aproxima da poesia. É em diálogo com tal ―ruptura‖, ou ―revolução‖, que refletimos acerca da existência e importância de um ―pensamento poético‖. [...] a verdade é que nem o pensamento existencial, nem os derivados franceses da fenomenologia que se abasteceram de Heidegger fizeram dessa transação, como tema filosófico axial, à semelhança do que sucede na hermenêutica heideggeriana da segunda fase, ou do segundo Heidegger — como se diz impropriamente diante da publicação da Gesamtaugabe [obra completa] —, um intercurso dialogal, que corresponderia a um dichtende Denke [pensar poético] ou, inversamente, um dekende Dichten [um poetar pensante] (NUNES, 2011, p. 19). A decisão heideggeriana de adotar como principal ponto do seu pensamento a questão da linguagem ou, mais especificamente, da poesia, carrega consigo inevitáveis polêmicas. Dentre estas, sem dúvida, a mais marcante é a com a ciência, afinal, o filósofo alemão chegará a declarar literalmente que ―A ciência não pensa‖ e, no mesmo texto, um pouco depois, reafirma: ―A relação entre pensamento e ciência só se mostra autêntica e frutífera quando se torna visível o abismo que há entre as ciências e o pensamento‖ (HEIDEGGER, 2010, p. 115). Tais declarações muito nos assustam, uma vez que de tão imersos em um mundo cuja técnica e a ciência alcançaram proporções enormes, a ponto de determinarem a maior parte de nossa relação com a realidade (na maioria das vezes em forma de virtualidade), não conseguimos conceber facilmente um pensar que não seja o científico. Como pensar fora das determinações científicas e das correntes crítico-teóricas das mais diversas áreas do conhecimento? Como atingir esse tal ―pensamento poético‖? E ele teria realmente alguma legitimidade para refletir acerca das questões do homem? Todas estas perguntas são típicas daqueles que habituados ao frenesi da técnica contemporânea, procuram sempre respostas rápidas, diretas e completas, tanto quanto um fast-food. Na poética, entretanto, mais do que o responder, dá-se ênfase no questionar: o conhecimento não se centra nos objetivos — algumas vezes ―produtos‖ — alcançados, mas na ―travessia‖, no percurso necessário a todo o conhecer. Porém, e a poesia propriamente dita? O que ela tem para nos ensinar? Frente a tais questionamentos, vale uma releitura das palavras de George Boas, citadas no início deste artigo, isto porque, a bem da verdade, devemos salientar que em uma coisa ele está certo: 281 realmente não faz nenhum sentido lermos poesia apenas pelo que ela nos diz, isto porque, num texto poético, o que mais propriamente nos fala não é o seu dizer — no sentido do seu conteúdo de superfie —, mas o seu silenciar. Este silêncio, que acontece na poesia, é pensado aqui como fenda, abertura, para que a linguagem se instaure e, deste modo, é a própria essência do lugar de busca humana, uma vez que o ―homem só pode assumir essa exigência [da busca pela essência do habitar] a partir de onde ele recebe. Ele recebe no apelo da linguagem‖ (HEIDEGGER, 2010, p. 167). Dentro desta perspectiva, se pôr à escuta do poema é fundamental para melhor compreendermos não apenas o poema em si, mas a nossa própria essência enquanto ―sersendo‖ que é a partir da linguagem. É visando o diálogo com tais questões que empreendemos a discussão acerca da poesia de Max Martins, i.e, não simplesmente procurando onde o debate teórico-filosófico ocorre nos poemas martinianos. Não se quer a repetição do ―método‖ de ver as obras como meros reflexos de discussões filosóficas, mas sim propor a escuta do silêncio que inevitavelmente acontece nos textos em que a poesia é acentuada, para então empreender a travessia pelas questões que ele mesmo provoca. Deixar a poesia falar é reivindicar a legitimação do pensamento poético. A obra de Max Martins é abundante de ―vitalidade‖, de pensamento radical, de questões que a cada verso se ―des-velam‖ aos olhos dos seus leitores, questões incontornáveis ao homem, não apenas são discursadas nos seus textos, mas antes são ―um acontecer‖ pululando no silêncio plasmado nos poemas. Contudo, a pergunta ainda perdura: se a poesia pensa, o que tem ela para nos ensinar? Não há outra maneira de responder tal indagação, se não pelo confronto direto com a poesia. Sendo assim, ler um poema como ―Folhas Vivas e Verdes‖, pode ajudar, não a responder, mas a aprofundar a pergunta, uma vez que pensar não está diretamente relacionado com o responder, mas sim com o questionar. Folhas vivas e verdes tem muita relva ainda no teu peito, dizes voz ardente – verdes folhas vivas pulsam impulsionam vogam o teu caminho e a tua verdade elementar: a sede 282 (MARTINS, 2001, p. 85) O poema faz parte da última coletânea publicada por Max Martins, Calmando a Lacuna (2001), que integra o Poemas Reunidos e não chegou a ter publicação independente. Apesar de o livro ser de 2001, há uma indicação de fim de página de que o poema foi escrito em abril de 1985, na ―Germânia‖. Este dado extratextual tem algo no mínimo curioso: o poeta declara-se como que escrevendo de uma região ―inexistente‖ no presente, i.e, da antiga Germânia. Talvez daí dê para especular acerca do compromisso do poeta não com o ―real factual‖, mas com a ficção, que não se resume ao falso, pois é antes um desdobrar do real. Em um poema como ―Folhas vivas e verdes‖ não há nada para se aprender acerca da botânica das folhas, nenhuma informação legitimada pela biologia se encontra nos curtos versos de Max Martins. E quanto aos preceitos filosóficos do texto? De quais correntes ele é espelho? É difícil responder quando se tem pela frente a sintaxe desorganizada, ou mesmo ―ilógica‖, de um poeta que nem se quer respeita a tradição dos versos: certamente, em algo assim, nenhum pensamento sério pode existir. Para começar, o poema não começa e muito menos finda, como dá a entender pela ausência de ponto final e também pela utilização da letra minúscula do primeiro verso, ―tem muita relva ainda‖, tal qual se a frase tivesse sido abruptamente recortada do meio de outro texto e colada ali. Muitas informações faltam ao leitor, há um ―dizes‖ e uma ―voz ardente‖, mas há quem pertence este dizer e esta voz ardente? nós realmente não podemos saber com certeza. E o ―verdes‖ que aparece na segunda estrofe, seria a cor ou a forma nominal da 2ª pessoa do plural do verbo ver? E se for a segunda opção, poderíamos pensar que o uso desta forma verbal associada ao ―voz ardente‖ estaria fazendo alusão à passagem bíblica da sarça ardente? Afinal, temos um ―vós‖ que vê as folhas que não queimam e ouve uma voz que lhe impulsiona para prosseguir o seu caminho. Então estaria tudo claro, tratar-se-ia de um poema com teor teológico que nos ensina o mesmo que o episódio bíblico? Não é possível dizer nem que sim, nem que não, para as perguntas e os vislumbres de interpretação que começaram a se abrir no parágrafo anterior. O poema não se entrega com facilidade, há sempre um ―algo mais‖ à espreita. E é nesta possibilidade sempiterna de ―algo mais‖ que o silêncio se enreda, i.e, se dá a ver, ainda que não se esgote, pois no passo seguinte ele se retrai, mantendo sempre a dinâmica do dar em se retirando própria de toda questão. Vale ainda ressaltar que, o que normalmente tomamos como ―falta‖, ou 283 ―incompletude‖, dentro do poema, é na verdade um instaurar de possibilidades significativas, como pode esclarecer a leitura do seguinte comentário de Eni Orlandi, em As Formas do Silêncio: Quanto à completude, já tivemos ocasião de observar em diversas ocasiões que a incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o ―nada‖. Mas o silêncio significa esse ―nada‖ se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos se apresentam (2007, p. 47) Orlandi trabalha com o discurso pensado na fala do dia a dia, no que os linguistas chamam de ―língua em uso‖. Nós temos a vantagem de trabalhar a poesia, que não é vantagem por esta ser uma forma mais nobre da linguagem ou algo do gênero, quanto a isso concordamos inteiramente com Heidegger, quando afirma que a poesia ―nunca é propriamente apenas um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrário. É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não mais ressoa‖ (2008, p. 24). Ou seja, a ―vantagem‖ ocorre pelo fado de que na poesia tem-se ―viva‖ a questão do silêncio: é nela que se encontra a maior ênfase na criação de possibilidades de significar. Voltando ao poema, continuando a sua travessia, é possível agora abandonar um pouco a ideia, talvez um tanto excêntrica, do diálogo deste com o episódio bíblico da sarça ardente. Concentrando-se no vocábulo ―folha‖, que aparece logo título do texto, não é forçado encontrar mais de um significado para ele, pois a folha pode ser da árvore, como pode ser a de papel. Ora, a folha de papel é um instrumento do poeta, local onde ele registra seu poema. Tendo em vista isso, a leitura do texto se desdobra em outra; por exemplo, se é concorde que a folha de papel é apenas um instrumento, então o que lhe daria o sopro de vida seria a poesia — que jamais se entrega como instrumento —, sendo assim, as ―folhas vivas‖ que aparecem no poema, são as folhas preenchidas com poesia. Com base nesta outra leitura, nota-se que a discussão acerca da questão poesia e vida (poiésis e dzoé) ganha força, ―tem muita relva ainda/ no teu peito, dizes‖. O entrelaçamento entre o poético e o caminhar (ou o viver) é destacado, torna-se mais claro o entendimento de que só é possível ―vogar o caminho‖ quando se tem o impulso da poiésis, vale lembrar os famosos versos de Hölderlin: ―Cheio de méritos, mas poeticamente/ o homem habita esta terra‖, tão citados por Heidegger. Essa discussão é pertinente dentro de toda poesia martiniana, frente a isso não há dúvidas de que Max Martins seja um poeta do 284 Eros, da poesia-vida. Portanto, não é de se estranhar que ―Folhas vivas verdes‖ possa dialogar também com esta interpretação. Ainda no poema em questão, vale ressaltar os intrigantes últimos versos, destacando-os como aparecem no poema: e a tua verdade elementar: a sede No trecho tem-se a culminância do poema, que consiste na intenção de responder ao chamado do Ser, da ―verdade elementar‖. São nesses versos que a ideia de ―vida-poesia‖ assume a condensação máxima, pois neles o que move tanto o fazer poético, quanto o viver dos viventes, ―a verdade elementar‖, é posto em obra, desvela-se ao leitor. Contudo, para ser autêntico, este desvelar não pode escapar ao encobrimento que nele já está pressuposto — visto que o ser não é, senão, seria ente. Por conta disso, no esboço da resposta, lança-se a questão de maior abertura: ―a sede‖. O poema ―finda‖ na incompletude da sede, na encenação daquilo que só faz sentido enquanto vigor de uma falta, e que ―impulsiona‖, ou permite todo caminhar, como só por entre o silêncio a linguagem pode vigorar, sem silêncio não há dizer próprio, apenas falação. Encerrando-se na abertura da sede, talvez a pergunta, ―o que nos ensina o poema?‖, que norteou este percurso interpretativo, fique sem uma resposta objetiva. É provável que o poema não tenha mesmo nada a ensinar, no sentido doutrinário da palavra, entretanto, a partir dele chega-se a lembrança do ―chamado‖, por ele e com ele somos convidados a lembrar que o Ser tende ao não-Ser, ao nada. É pela fenda que a poesia abre que podemos espiar a ―verdade‖, visto que ela nos força, nos encaminha ao que é próprio do pensar, i.e, a criatividade (poiésis). O verdadeiro poema só é respondido, porque assim exige, poeticamente. Por isso, a poesia pode não ensinar conceitos, doutrinas ou teorias, porém, o pensamento, antes de tudo, é poético. 285 REFERÊNCIAS HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2008. _____. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. MARTINS, Max. Poemas Reunidos: 1952-2001. Belém: EDUFPA, 2001. NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971. O DIABO NA LITERATURA: TRAÇOS DO DEMONÍACO EM DOIS CONTOS DE EDGAR ALLAN POE Thiago Silva da Costa1 Douglas Rodrigues da Conceição (Orientador)1 Resumo: A temática do diabólico na literatura de Edgar Allan Poe integra parte do enredo que constitui a tendência ao mistério, ao lúgubre e absurdo que dimensionam uma concepção de vida nos parâmetros do extraordinário. Tencionamos analisar os traços 286 psicológicos do demoníaco nas personagens dos contos Nunca aposte sua cabeça com o Diabo e O Diabo no campanário como repercussões de um ethos típico do imaginário cristão ocidental situado no contexto do romantismo. O aspecto do demoníaco enquanto força de dissolução e desestruturação das referências normativas sociais espelha um dos elementos característicos ao qual Poe recorre para expressar em sua obra literária aspectos do espírito humano que desvelam a ausência do sentido de cotidianidade em face do lado sombrio, extraordinário da vida e dos sentimentos que integram o absurdo como parte do real. A abordagem das tendências envolvendo o diabólico na literatura relaciona-se com aspectos da construção do imaginário da figura do Diabo haja vista que a tendência psicológica do demoníaco representa um modelo de compreensão do real fundado no dualismo típico da cultura Ocidental influenciada por concepções de cunho religioso. Palavras-chave: Imaginário; Demoníaco; Romantismo. Abstract: The theme of evil in the literature of Edgar Allan Poe incorporates part of the plot which is the tendency to mystery, the eerie and absurd that scale a conception of life in the parameters of the extraordinary. We intend to analyze the psychological traits of demonic characters in tales of his head Never bet with the Devil and The Devil in the Belfry as consequences of an ethos of Christian imagery typical western set in the context of romanticism. The appearance of evil as a force for dissolution and disintegration of social normative references reflects one of the characteristic features of which Poe uses to express in his literary aspects of the human spirit that reveal the absence of a sense of daily life in the face of the dark side, extraordinary life and feelings that make up the absurdity as part of reality. The approach of the aspects involving the diabolical literature relates to aspects of the construction of the imaginary figure of the Devil is seen that the trend of the demonic is a psychological model based on the understanding of real dualism typical of Western culture influenced by conceptions of a religious nature. Keywords: Imaginary; Demon; Romanticism. Introdução A literatura de Edgar Allan Poe desenvolve a temática do misterioso e o incorpora na trama da narrativa como um contraponto ao senso do cotidiano ao mesmo tempo em que associa o aspecto do extraordinário à realidade vivenciada por suas personagens que passam por um processo - no caso das relações com o diabólico - impactante de autoconsciência do sujeito inserido na dimensão do incomum. Os contos de Poe em que transparece o sentido sugestivo de um fundo moral revelam-nos os mais intrincados aspectos dos sentimentos humanos mediante a presença de algo que extrapola ao simples entendimento humano, de aspectos do sobrenatural que se infiltram paulatinamente na tessitura do que aparentemente constitui o real ordinário. O próprio Poe1 afirma que em seus textos existem aspectos morais, ou seja, através de suas histórias extraordinárias o leitor pode recepcionar algo que ultrapassa a mera fruição estética ou o sentimento ingênuo do terror. De acordo com Poe: 287 Toda obra de ficção deve ter uma moral; a crítica literária descobriu que toda obra de ficção de fato tem. [...] Não há razão, portanto, para a acusação que me foi feita por alguns ignorantes, de que eu nunca escrevi um conto de cunho moral, ou, para usar uma terminologia mais precisa, uma história com uma moral. Não são estes críticos que vão me corrigir e desenvolver minha moral – este é o segredo. (2012: p. 69 – 71, com grifos do autor). Os contos Nunca aposte sua cabeça com o Diabo e o Diabo no campanário são referências das intenções de Poe no que tange ao seu trabalho como uma modalidade ficcional na qual a recorrência ao imaginário do demoníaco reforça a tendência para o cultivo do mistério, todavia, também como recurso artístico dotado com uma proposta de cariz moral. As tendências ao macabro nos textos de Edgar evidenciam uma recepção do tema antropológico da decadência e do vício considerados a partir do imaginário cristão formando o contexto ficcional repleto de comportamentos que dão força plástica à expressão do demoníaco. Tais tendências só são possíveis graças a criação de um ethos do demoníaco, algo que vem se configurando no Ocidente através de tradições religiosas que influenciaram nossa cultura e plasmaram na literatura - no caso os textos vetero/ neo testamentários da Bíblia - um processo demonológico. A respeito disso, Nogueira afirma: A cristianização da cultura europeia traz consigo uma viragem decisiva para a história do imaginário. [...] Assistimos à construção de um sistema de conteúdos simbólicos onde se articulam de maneira eficaz a realidade e o imaginado, o mundo dos vivos e o além-tumba, [...] que de uma maneira ferozmente maniqueísta, empenha-se num combate sem tréguas [...]. Combate que transborda da esfera do sagrado para pautar condutas e comportamentos cotidianos, servindo de explicação para a realidade e as desventuras vividas, para explicar os impulsos incontroláveis da carne, e para ensinar à boa coletividade, ao ―rebanho dos fiéis‖ onde se encontra Satã e seus agentes. (2002: p. 11). Neste trabalho iremos abordar a recepção desta atmosfera cultural nas obras de Poe e a maneira como suas personagens se relacionam com as tendências do demoníaco, tais como a noção de pecado, vício, a presença do mal, dentre outros aspectos. O Demoníaco em Nunca aposte sua cabeça com o Diabo O conto Nunca aposte sua cabeça com o Diabo: uma história com uma moral (Never Bet the Devil Your Head)1 trata das lembranças de uma personagem que narra a vida de Toby Dammit que já carrega no próprio nome a agourenta significação do infortúnio que sugere ao leitor que o vício e a maldade são traços que este traz consigo desde o berço. 288 A metáfora do nome de Mr. Dammit1 sugere uma propensão da personagem ao mal, o quinhão que lhe cabe segundo sua natureza, o que reforça a ideia de um traço de maligna e despojada sordidez que se infundi no núcleo da personalidade e do qual o portador nem sempre é consciente visto que lhe parece ser mais fundamental do que sua existência no mundo, daí o personagem/ narrador afirmar: Não é minha intenção, portanto, vituperar meu amigo falecido, Toby Dammit. Ele era um patife infeliz como um cachorro e morreu uma morte de cão; mas de fato não era ele o culpado por seus vícios. Foram o resultado dos defeitos da personalidade de sua mamãe. Ela se esforçou o máximo para espancá-lo com frequência enquanto ele era menino. (idem, ibidem: p. 72). A desgraça que se instala nesta existência desafortunada marca a maneira como Dammit viria a se relacionar com o extraordinário e o macabro. Uma das tendências demoníacas já percebidas pelo narrador reside no fato de que Dammit faz o tipo humano contrário aos demais, uma ruptura com o tipo convencional de homem, o que lhe confere a aura de homem da anti-estrutura. Sendo, pois, o demoníaco uma tendência associada ao marginal aspecto daquele que subverte a ordem estabelecida, o vício inscreve-se nos atos de Dammit desde a tenra infância: O fato é que sua precocidade no vício foi terrível. Aos cinco meses de idade, costumava ter acessos de raiva tão grandes que era incapaz de falar. [...] Aos sete meses, já havia adquirido o hábito constante de agarrar e beijar os nenês do sexo feminino. [...] Aos oito meses, ele se recusou peremptoriamente a assinar um compromisso de que não tomaria bebidas alcoólicas. (idem, ibidem: p. 73). Tornou-se, portanto, maníaco por fazer apostas, e com isto iniciou sua trajetória de encontro com o macabro: uma atitude demoníaca que lhe conduziria ao demônio. Como já afirmamos um dos traços do demoníaco nos contos de Poe está associado a uma descompostura, uma violação das regras que conduz a personagem ao erro, sendo, portanto, o ato de apostar um indício do vício, uma tendência demoníaca: [...] tinha adquirido o costume de xingar e praguejar e reforçar todas as suas afirmativas por meio de apostas. Através desta última prática, tão contrária aos costumes dos cavalheiros, a ruína que eu havia predito para Toby Dammit finalmente o alcançou. [...] Não que ele de fato jogasse a dinheiro [...]. O costume era simplesmente uma fórmula – nada mais que isso. (idem, ibidem: p. 73). O narrador fala-nos da mania que Dammit tinha de se envolver em apostas, não no sentido financeiro, mas como se tudo fosse motivo para usar a expressão ―[...] ‗aposto tal e 289 tal coisa‘, [...]. O hábito era imoral [...]. Era um hábito condenado pela sociedade [...] por uma lei do Congresso Americano [...].‖ (idem, ibidem: p. 74). A todo o instante o personagem / narrador tenta alertá-lo da imoralidade de seus hábitos, todavia, tais conselhos não valeram de nada, pois para reforçar seu aspecto marginal de pobreza herdada da mãe, Dammit passa a utilizar como fórmula de suas apostas a figura do próprio Diabo: ―[...] ‗Aposto minha cabeça com o Diabo‘, [...].‖ (idem, ibidem: p. 75, com grifos do autor). Margeando um rio, ambos os personagens percebem uma ponte a qual resolvem atravessar. Poe apresenta no conto o referencial no qual se demonstrará a espacialização do extraordinário e macabro: a ponte era coberta sendo que em seu interior o jogo estabelecido entre a pouca luminosidade e sombras constitui o ambiente propício para a hierofania1 do demoníaco. A respeito da hierofania e sua relação com a delimitação de um espaço sagrado, Eliade afirma: Quando o sagrado se manifesta por uma qualquer hierofania, não só há rotura na homogeneidade do espaço, mas há também revelação de uma realidade absoluta, que opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente. [...] a hierofania revela um ―ponto fixo‖ absoluto, um ―Centro‖. [...] Em contrapartida, para a experiência profana o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes de sua massa. O espaço geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que direção for, mas nenhuma diferenciação qualitativa, portanto [...]. (1992: p. 17-18). A ponte se torna, portanto, o centro para a hierofania, constituindo-se na fonte espacial para a referência ao mistério e à manifestação do demoníaco, à morte, tornando-se de enorme importância para a circunscrição de um ambiente propício ao extraordinário descontínuo, pois nele ocorre a quebra da percepção de algo comum. Em algumas tradições religiosas os deuses que são associados à morte, ao funesto, são referidos com relação ao aspecto sombrio do espaço em que habitam, sendo a escuridão um ponto de contato entre o extraordinário e o mundo humano. A respeito disso, Hallam refere: Hécate: Deusa grega das horas escuras [...]. Nas profundezas da noite, também podia ser encontrada nas encruzilhadas ou nos atalhos, [...]. Mictlantecuhtli era o senhor asteca do mundo dos mortos, [...]. Era para esse mundo gelado e sombrio que iam os que não tinham direito a nenhum lugar nos céus. [...] Hades tornou-se o deus supremo do mundo inferior, um lugar escuro circundado pelo rio Stix, [...]. (2002: p. 199 – 214). 290 Os dois personagens adentram a ponte que constituirá a metáfora da passagem para um mundo extraordinário em que as sombras são preponderantes e a parca luz que se espraia a partir de ambas as aberturas da entrada e saída apenas aumenta a tensão do momento. Avistaram uma roleta localizada no centro da ponte, a qual Dammit disse que iria transpor com um salto e apostou a cabeça com o Diabo como o faria com êxito. Da escuridão emerge figura senil e de um aspecto sem igual: [...] quando escutei, junto a meu cotovelo, uma tosse baixa que soava muito parecido com a interjeição „ahem!‟ Assustei-me e olhei em torno, [...] meu olhar recaiu sobre a figura de um velho cavalheiro, um pouco coxo e meio baixote, [...] não somente usava um terno preto completo, mas sua camisa estava perfeitamente limpa [...], percebi que ele usava um avental de seda preta sobre seus calções, [...]. (POE, 2012: p. 80, com grifos do autor). Na expressão do narrador ao relatar que se espantou percebemos o impacto da visão do que lhe afigurou, para utilizarmos a expressão de Otto, algo ―totalmente outro‖, numinoso1, típico do reconhecimento de algo sagrado, ou seja, da maneira como o sujeito reage diante daquilo que ele considera a manifestação do misterioso (Mysterium tremendum): Se encararmos o aspecto mais básico e profundo em cada sentimento forte de espiritualidade no que ele seja mais que fé na salvação, confiança ou amor, [...] sugere-nos necessariamente a sensação do mysterium tremendum, do mistério arrepiante. Essa sensação pode ser uma suave maré a invadir nosso ânimo [...]. Pode induzir estranhas excitações, inebriamento, delírio, êxtase. Tem suas formas selvagens e demoníacas. Pode decair para horror e estremecimento como que diante de uma assombração. [...] Não é o temor natural nem de um suposto e generalizado ―medo do mundo‖ [Weltangst] que a religião nasceu. Isso porque o assombro [das Grauen] não é medo comum, natural, mas já é a primeira excitação na forma bruta do ―inquietantemente misterioso [...]. A sensação do numinoso em seus níveis mais elevados é muito diferente do mero receio [...]. (2007: p. 44-49). O medo expresso pelo narrador demarca o momento da hierofania do ente de aspecto demoníaco, que se dirige ao encontro de Dammit e aperta-lhe a mão dizendo ―ahem!” como que firmando um contrato, no que é seguido pelo personagem da aposta que repete “ahem!”. Dammit se encaminha para o salto, guiado pelo velho: ―O velho cavalheiro o tomou pelo braço e o conduziu para dentro da sombra da ponte, a vários passos de distância da roleta.‖ (POE, 2012: p. 80). Dammit lançou-se em direção da roleta transpondo-a com um salto, todavia, no final da parábola descrita pelo seu corpo na quase escuridão Mr. Dammit tomba de costas no chão: ―Corri até onde ele estava e cheguei a conclusão de que ele tinha recebido o que 291 pode ser chamado de um sério ferimento. A verdade é que ele não tinha mais cabeça.‖ (idem, ibidem: p. 85). Ao pular por sobre a roleta, Mr. Dammit não percebeu a barra de ferro suspensa acima na horizontal cruzando a ponte de lado a lado: foi onde se chocou, tendo a cabeça decepada. O narrador avistou ainda, o velho de terno recolhendo a cabeça de Dammit e envolvendo-a no avental. Poe encerra o conto dando continuidade ao senso do absurdo e macabro, pois mesmo sem cabeça Mr. Dammit é levado aos homeopatas para que esses lhe administrem remédios que sendo ineficazes torna-se, portanto, inevitável o óbito pela segunda vez. Ao enterro de Dammit segue-se ainda a inexpugnável afirmação de sua condição demoníaca e marginal, quando o narrador afirma: Cobri seu túmulo com minhas lágrimas, acrescentei uma barra sinistra ao brasão de sua família1; para pagar as despesas de seu funeral, mandei uma conta bastante moderada aos esotéricos. Os patifes se recusaram a pagar a fatura e, assim, mandei desenterrar Mr. Dammit imediatamente e vendi sua carcaça para um fabricante de alimento para cães. (idem, ibidem: p. 86). A noção de erro e de torpeza acompanha a descrição que Poe faz de Dammit do início ao fim do conto, o que ressalta os traços do demoníaco circunscritos na condição da indigência, obscuridade, vícios e contrariação das regras estabelecidas em sociedade. O demoníaco como anti-estrutura em O Diabo no campanário Se as instituições que ordenam a vida das pessoas podem ser consideradas como a estrutura do mundo social, a dimensão nomotética, um dos traços do demoníaco – enquanto ente marginal – repousa sobre a função do desmantelamento da ordem, do estabelecido, o contrassenso que sugere o proibido. O elemento associativo que permeia o conto O Diabo no campanário esboça a função normativa da sociedade e do estabelecimento daquilo que, de acordo com Carvalho, define o grupo social como ―um conjunto de pessoas, unidas por idéias, sentimentos e fins comuns‖. (1967: p. 28). Esta estrutura social fornece a possibilidade do confronto e emergência da figura demoníaca como contraponto, como desvio da função estruturante que a sociedade assume em face do indivíduo: o demoníaco se faz, portanto, a personagem da anti-estrutura. A própria configuração do mal, encarnada na figura do demônio, tem a conotação de ser um tipo de força contrária à ordem estabelecida. De acordo com isso, Nogueira comenta: ―O Demonio representa a oposição fundamental, dialeticamente relacionada com o ethos 292 dominante, ao qual se opõe virtualmente, frequentemente como força de rebeldia.‖ (2002: p. 12). A força de dissuasão, que caracteriza um dos traços do demoníaco na obra de Poe, expressa um jogo, uma tensão psicológica vivida pelas personagens em considerar a transgressão dos valores normativos tradicionais uma forma de pecado, algo típico do ethos cristão, segundo Ascher: O pecado é a obsessão característica do cristianismo. Sem ele, catolicismo, protestantismo etc. talvez nem existissem ou seriam incompreensíveis. E o que é o pecado? Trata-se de uma transgressão, da perpetração de algo proibido. Um crime, portanto, [...]. A lista clássica dos sete piores pecados, os assim chamados ―capitais‖, foi elaborada há mais de um milênio e meio pelos eremitas cristãos dos desertos egípcios e codificada na Idade Média [...]. (1996: p. 143). O narrador fala de uma cidade situada em um local isolado e pacato, mas que fora abalada por uma catástrofe, o que sugere que a desordem se instalou - algo típico dos contos de Poe nos quais o mal se instala sutil e absurdamente. Os valores tradicionais desta sociedade são a tônica sobre a qual recai o esforço do narrador em descrever como era o ambiente social: Tudo ali é antigo e se conserva como no começo. O homem mais idoso dali não poderia se recordar da menor diferença em qualquer pormenor de seu aspecto [...], a simples sugestão de tal possibilidade seria considerada um insulto. A cidade não muda, mas ninguém está interessado em que mude. (POE, 1996: p. 13435). As referências geográficas preparam o leitor para a iminência do conflito, pois apresenta a estrutura que será ameaçada pela figura diabólica no conto. A presença do diabólico fornece ao conto aquilo que Nunes afirma ser o ponto central do enredo: o conflito. De acordo com Nunes: ―o conflito, via de regra, determina as partes do enredo: 1. exposição [...], complicação [...], clímax [...], desfecho [...].‖ (1998: p. 11). O enredo do conto O Diabo no campanário apresenta a organização dada por Nunes tendo como seu eixo o conflito e no qual na exposição o leitor pode pressentir o desfecho conflituoso instaurado pelo demoníaco. Na exposição o narrador apresenta os fatos iniciais, personagens, tempo e espaço que fazem parte do conto: O vilarejo localiza-se num vale. [...] Inteiramente circundado por morros. [...] Mas o cimo de nenhuma deles a população até hoje se aventurou ultrapassar. Todos acham isto um bom motivo para crer que nada absolutamente existe do outro lado. [...] As casas são tão 293 parecidas no interior como no exterior. Os móveis distribuem-se num mesmo plano. (POE, 1996: p. 135). Ao descrever o local, o narrador sugere o tipo psicológico dos próprios personagens que fazem parte desta sociedade. São eles propícios ao sentido gregário da vida em sociedade e acomodados ao status quo, pois não sentem-se atraídos a ir além do ambiente em que vivem. Não só suas residências são parecidas como também se vestem da mesma maneira e são fisicamente semelhantes: Em todas as casas a mesma coisa. Sempre uma pessoa vigiando as coisas no fogo. De aparência física sempre parecida. E todas seguram um pesado relógio holandês. Os meninos ficam no jardim. Todos parecidos, com roupas semelhantes, [...]. Na porta da frente, numa cadeira de braços, senta-se o dono da casa. Assemelha-se em tudo aos meninos, só que em tamanho maior. Como eles, também tem um relógio. (idem, ibidem: p. 136). A metáfora do relógio completa o sentido da estrutura a qual estão submetidos os personagens do conto, pois está relacionado ao símbolo central que organiza a vida cotidiana e ao campanário. É nele que está o grande relógio que dita a hora para a cidade e no qual funciona o Conselho: O campanário é a sede do Conselho da Cidade. [...] Desde que passei a morar nesta cidade, vi o Conselho tomar três resoluções importantes: ―É errado alterar o bom e velho curso das coisas‖; ―Não há nada tolerável fora [do vilarejo]‖; ―Sempre conservamos nossos relógios e nossos repolhos.‖ Acima da sala de reuniões do Conselho fica propriamente o campanário. Ali existe o motivo de orgulho e admiração de todos da cidade: o grande relógio. (idem, ibidem). É importante notar que tanto no conto Nunca aposte sua cabeça com o Diabo quanto em O Diabo no campanário Poe faz referência a dimensão do nomos plasmado nas instituições que ditam as regras em sociedade. Todavia, a estrutura social sofreria um abalo, como que em um atávico senso escatológico pela crença que nada de bom poderia vir de fora da cidade: ―Há muito existe entre os habitantes mais sensatos um dito de que ‗nenhuma felicidade pode vir dos morros.‘ Essas palavras parecem conter uma profecia.‖ (idem, ibidem: p. 137). Seguindo a estrutura do enredo citado por Nunes (1998), o momento da complicação, no qual emerge o conflito, relaciona-se a presença do demoníaco: ―Anteontem, quando faltavam cinco minutos para o meio-dia, surgiu um objeto de estranha aparência no alto dos morros.‖ (POE, 1996: p. 137). Segue-se a descrição da figura estranha: 294 Sua pele era escura, o nariz recurvo, olhos redondos, boca larga. Vivia rindo, de orelha a orelha. Pelo menos, dava essa impressão. Bigode, barba. E nada mais se podia ver no seu rosto. Cabelos encaracolados. Vestia um terno apertado, com cauda negra de pinguim. Sapatilhas achatadas. Para dizer a verdade, apesar do riso, o tal sujeito tinha um rosto sinistro. (idem, ibidem: p. 138). Situamos a figura estranha na categoria do ―totalmente outro‖ pela maneira como é expressa no conto sua atitude extraordinária de se lançar ao campanário e de tal acontecimento resultar o sentimento de espanto por parte da personagem que vigiava o relógio, sentimentos estes que para Otto (2007) configura o encontro do homem com aquilo que é considerado o numinoso, ou seja, com algo que é sobrenatural. O narrador nos fala sobre a maneira como o vigia reagiu ao estranho que chegara ao campanário: ―se lançou num vôo, exatamente para o alto do campanário. Ali o homemvigia, quando o viu, ficou assombrado.‖ (POE, 1996: p. 138). O caos se instala no momento em que os moradores esperam as badaladas do relógio para anunciar o meio dia e evidenciam que já é mais tarde, treze horas, e é neste momento que ocorre o clímax, que se dá na identificação da figura estranha com o demoníaco e a evidenciação do desmantelamento da ordem social resultante da ação diabólica sobre o relógio: Estavam todos ocupados em prestar atenção às badaladas. Onze! – disse o grande relógio. Onze! – responderam os menores. Doze! – disse o grande. [...] Mas o grande sino ainda não terminara: Treze! – disse ele. O Diabo! – assombraram-se todos os pequeninos senhores idosos em suas cadeiras, deixando cair seus cachimbos [...]. O Diabo! – gemeram. – Treze! Treze! Santo Deus, são treze horas! [...] Foi um tumulto geral. (idem, ibidem: p. 139). A sociedade entra em colapso após o relógio marcar o horário que todos não esperavam. O traço do demoníaco representa-se pela dissociação da regularidade das ações cotidianas, o que marca o extraordinário e absurdo no conto de Poe: Os relógios e os repolhos entalhados na mobília começaram a dançar. Alguns relógios continuavam a bater horas como se estivessem enfeitiçados. [...] Formou-se a mais abominável das confusões. Os objetos voavam indo de encontro ao rosto das pessoas. [...] E o vil patife, no alto do campanário, se esforçava o máximo para que reinasse o caos entre os tranquilos habitantes do vale. (idem, ibidem). O desfecho do enredo representa o estado de desordem no qual a cidade se encontra após a intervenção da personagem diabólica e da retirada do personagem/ narrador do vilarejo: 295 Com as coisas neste lamentável estado, parti daquele lugar, com grande desgosto. Agora peço a ajuda de todos [...]. Vamos seguir juntos para lá e restaurar a antiga ordem de coisas [...] expulsando aquele sujeitinho da torre do grande relógio. (idem, ibidem: p. 140). Os termos que Poe utiliza para se referir ao personagem que instaura a desordem sugere um processo de personalização do demoníaco no qual a vilania, a torpeza e a marginalidade tornam-se marcas fundamentais da caracterização desta personagem. É importante considerarmos a extensão da caracterização do ente diabólico nos dois contos em que transparece a continuidade de alguns elementos. No conto Nunca aposte sua cabeça com o Diabo, assim como em O Diabo no campanário, percebemos semelhanças entre as personagens diabólicas: 1. Ambas são consideradas figuras abjetas. 2 Tem a mesma estatura: são baixos. Talvez uma alusão a sua situação de marginalidade na ordem social. 3. As duas personagens trajam-se elegantemente. Sendo assim podemos falar de um processo de criação da figura do demoníaco que é transposta de um conto para outro. Conclusão O enredo dos contos de Poe é propício à análise de um processo psicológico pelo qual passam suas personagens no que tange ao encontro com o misterioso, com elementos que possibilitam o desenvolvimento de uma pesquisa relacionada aos estudos da religião, o que demonstra a possibilidade interpretativa que situa os contos de Poe na dimensão da interface entre os estudos pertinentes a área de conhecimento denominada Ciências da Religião e os estudos literários. Ressaltamos o caráter do demoníaco e suas tendências próprias como uma evidência da recepção estética de temas religiosos que são desenvolvidos pela literatura não religiosa, ou seja, os contos de Poe demonstram que a trama ficcional desterritorializa os temas da religião ao fazer uso metafórico e artístico/ literário de uma figura como a do Diabo, todavia sem perder seu apelo ao mistério e ao sobrenatural continua utilizando a força simbólica que esta personagem carrega advinda de um contexto em que a religião influencia o imaginário. A recepção estética da figura do Diabo e sua tendência principal constitutiva de uma força anti-nomotética reforça o imaginário da luta entre o bem – enquanto via de coformação da vida em sociedade e suas instituições – e o mal que, por sua vez, reitera a ideia de desmantelamento, e dissolução dos antigos referenciais normativos. Isso demonstra que a força de um ethos religioso é utilizada por Poe para dar plasticidade aos 296 sentimentos humanos de baixeza, vilania, bastardia, mas também impregna de um teor moral seus contos no que tange as relações do homem com o mistério e o absurdo da própria existência, bem como pela tendência do demoníaco ocorre a possibilidade da crítica a dimensão normativa e de acomodamento pelo qual a sociedade faz retroceder as formas de expressão individuais, criativas, diferentes, portanto, demoníacas. REFERÊNCIAS ACHER, Nelson. Pecado, In: ____________. Pomos da discórdia: política, religião e literatura etc. São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 143-45. BLOOMFIELD, Shelley Costa. O Livro completo de Edgar Allan Poe: a vida, a época e a obra de um gênio atormentado. Tradução de Soraya Borges de Freitas. São Paulo: Madras, 2008. CARVALHO, Irene M. Introdução aos estudos sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1967. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas, 2010. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. HALLAM, Elizabeth. Deuses das trevas, In: O livro de ouro de deuses e deusas. Tradução de Vânia de Castro. São Paulo: Ediouro, 2002, pp. 189-214. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. 2ª ed. Bauru, SP: EDUSC, 2002. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1998. OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional. Traduzido por Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007. POE, Edgar Allan. Nunca aposte sua cabeça com o Diabo; O Diabo no campanário, In: ____________. Histórias extraordinárias de Allan Poe. Tradução de Clarice Lispector. 8ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, pp. 95-102; 133-140. _______________. Nunca aposte sua cabeça com o Diabo: uma história com uma moral, In: ______________. Assassinatos na rua Morgue e outras histórias. Tradução de Williams Lago. Porto Alegre: L&PM, 2012, pp. 69 – 86. 297 O PAPEL DA LITERATURA E DO CINEMA NA INTEGRAÇÃO DOS POVOS DA REGIÃO DA AMÉRICA LATINA Prof. Dr. Ulysses Maciel de Oliveira Neto1 Resumo: Dentre as possibilidades de se promover a integração latino-americana, rompendo as fronteiras geopolíticas, linguísticas e culturais, encontra-se o intercâmbio sociocultural e artístico. A desejada integração, prática que se coloca acima das fronteiras arbitrariamente traçadas, da convivência tensa das línguas herdadas da Europa – o português e o espanhol – e destas com as línguas pré-existentes na região que hoje abrange a América Latina, apesar de tensa, apresenta-se como convivência fértil e invasões pacíficas. O que orienta estas afirmações é o diálogo ocorrido entre Antonio Candido (crítico literário brasileiro) e Ángel Rama (historiador da literatura e crítico uruguaio), ocorrido em 1973, no VII Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada. Quanto aos avanços e esforços práticos no sentido da integração, é de se considerar o diálogo interdisciplinar entre os cinemas e as literaturas nacionais. Cabe agora acompanhar histórica e criticamente esse intercâmbio de realizações, identificando e analisando as novas estéticas geradas no decorrer desse processo, avaliando os rumos indicados pelos diversos agentes e comparando dialeticamente temas e enredos das obras criadas em diferentes países e comunidades da região. Isso é necessário para que se definam os rumos e se trace políticas concretas e eficazes. Palavras-chave: Integração cultural; Literatura comparada; Estéticas do cinema. Abstract: Among possibilities of promoting Latin American integration, breaking the geopolitical borders, language and culture, is the exchange cultural and artistic. The desired integration, practice that puts itself above the borders arbitrarily traced, the tense coexistence of languages inherited of Europe – Portuguese and Spanish – and with those languages pre-existing in the region that today covers Latin America, despite tense, presents itself as fertile coexistence and peaceful invasions. What guides these assertions and the dialog occurred between Antonio Candido (literary critic Brazilian) and Angel Rama (historian of literature and critical Uruguayan), occurred in 1973, the VII Congress of the International Association of Comparative Literature. Concerning the progress and practical efforts toward integration, and to consider the interdisciplinary dialog between the theaters and the national literature. It is now accompany historical and critically this exchange of achievements, identifying and analyzing the new aesthetic generated in the process, evaluating the directions indicated by the various agents and comparing dialectically themes and storylines of the works created in different countries and communities of the region. This is necessary to define the pathways and if trace practical policies and effective. Keywords: Cultural integration. Comparative Literature. Aesthetics of the cinema. Um dos primeiros autores a problematizar as diferenças existentes no espaço geográfico da América do Sul e Central foi o brasileiro Silvio Romero, em sua obra História da literatura brasileira, de 1888 (ROMERO, 2001). Este autor, entretanto, baseia suas reflexões nas características étnicas e linguísticas existentes no Brasil e nos países da América hispânica. Isso o leva a chegar à conclusão de que, entre outros aspectos, a não introdução do elemento negro na maior parte das repúblicas espanholas nos habilita a um afastamento destas ―de um modo bem positivo‖ (p. 100). Afirma também Romero que na área da América onde se instalaram portugueses e negros habitava a família indígena dos brasilio-guaranis e que esta não se confundia com qualquer outra existente no continente, 298 determinando uma outra causa da separação entre nós (brasileiros) e as ―gentes hispanoamericanas‖ (p. 101). Essas teorias romerianas apontavam para a ideologia do século XIX, que privilegiava os meios físico e geográfico como elementos determinantes na formação dos povos. Visando, como indica o título de sua obra, historiar a literatura brasileira, embora atribuísse pouca importância à ação dos homens na história, esse autor via como natural a separação entre o Brasil e os demais países da América hispânica e até mesmo julgava positiva essa separação, pois, formalmente, cabia determinar diferenças e não promover a integração. Vislumbrava, até mesmo, uma condição de supremacia brasileira em relação às outras nações e previa para o Brasil ―um grande destino cultural histórico‖. Tratava-se, portanto, de acirrar as diferenças e de marcar as fronteiras culturais e geopolíticas. Essa postura ultrapassou a barreira do século XIX e vigorou durante parte do século XX. Na contemporaneidade houve uma mudança significativa nos comportamentos, deslocando o eixo das identidades de estruturas e processos centrais para uma grande quantidade de identidades descentradas, o que exigiu a redefinição dos conceitos de fronteiras e de diferença. Estes conceitos passaram a ser definíveis apenas do ponto de vista cultural, o que transcende as fronteiras geopolíticas, tão claras no século XIX e tão caras a pensadores como Silvio Romero. Essa mudança de conceitos desconstrói a noção, apontada acima, de diferenças naturais entre as nações do Cone Sul, uma vez que ideias como raça e língua se perdem na complexidade das relações culturais. A partir de então, esta complexidade transcende os estudos científicos e passa a ser um objeto privilegiado a ser expresso pela arte, especialmente pelo cinema que escapa ao contexto da indústria cultural da divulgação fácil e lucrativa, e que se recusa a expressar os comportamentos previsíveis que devem ser conhecidos por realizadores e espectadores, como num mecanismo de codificação / decodificação. Quem consome esses produtos deleita-se com a descoberta do olhar já visto, da frase já falada, da forma de amar ou de odiar já expressa. Seja a cena passada no futuro, na era vitoriana ou na antiguidade, o comportamento – a inveja, a pusilaminidade, o ódio, o amor, a coverdia – será identificado com alguém próximo a nós, para que meu sentimento em relação a ele possa ser identificado com a moda. O cinema que reflete a moda se pauta pelo autoritarismo e por modelos muito estreitos. Por outro lado, é característica do sistema da moda ditar o 299 comportamento dos receptores da arte, fazendo com que estes se satisfaçam com o dejà vus, e não com a busca da fruição pela investigação do novo. As chamadas artes de massa, portanto, se afastam da poesia como forma de expressão, da poesia entendida como expansão do valor de dicionário das palavras, da aparência das imagens e do exercício da metáfora. Contrariamente, e ainda mais no contexto do cinema realizado no Cone Sul, trata-se de se valer da complexidade das novas identidades, aquelas que ultrapassam fronteiras geopolíticas, estreitas e pré-determinadas, abrindo caminho para uma nova forma de crítica comparatista (NITRINI, p. 66), que busque as identidades na comparação de obras diferenciadas quanto aos países de origem, mas que, em seus personagens e enredos, sejam capazes de expressar a trajetória da América Latina em seu conjunto, rompendo as fronteiras étnicas e linguísticas, consideradas no passado como definitivamente estabelecidas e até mesmo como naturais. Foram selecionados, como objetos de análise para constar deste artigo, três filmes que fornecem material para um estudo comparativo e crítico que aponta algumas semelhanças entre eles e, dessa forma, possamos complementar o conteúdo conceitual deste artigo, a fim de chegarmos à visão integradora pretendida. São eles o filme São Paulo Sociedade Anônima (1965), de L.S. Person, que é uma abordagem realista dos conflitos de um homem que se encontra sem saída na São Paulo da década de 1950, quando o capitalismo se expandia a qualquer custo, combinando competição e opressão. Esta abordagem é típica dos anos de 1960, período marcado pela industrialização desenfreada no Brasil e pelo golpe militar de 1964. O personagem principal, Carlos, pode ser lido num recorte estético que faz referência ao personagem Paulo Honório, do romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, filmado em 1971 por Leon Hirszman, pois o conflito é o mesmo: algo mais forte que o homem se sobrepõe a ele e o leva a uma luta heroica e inglória. A intenção é formar uma ―trilogia‖ e fazer um estudo comparativo que leve em conta os momentos históricos e as diferentes regiões, mas que vise sempre à estética literária e cinematográfica. O outro componente da trilogia é o filme argentino Últimas imágenes del naufrágio (1989), de Eliseo Sublela e Lorenzo Quinteros. Nos três filmes são escolhidos como personagens que encarnam o quadro de contradições entre o homem e o capitalismo, respectivamente, Carlos, Paulo Honório e Roberto. Os três personagens citados acima são marcantes quanto ao conflito que impõe ao homem a inserção na sociedade capitalista e materialista, na qual os valores maiores são o progresso, a acumulação de riqueza e, no fim da linha, o poder. Os filmes, apesar de terem sido realizados em diferentes épocas e diferentes países, representam a competição 300 desenfreada que deve ser levada a cabo pelos personagens a fim de manter em funcionamento o sistema voltado para o consumo e o lucro. Para isso os três personagens devam colocar em segundo plano sua instância emocional, estetizada nos três filmes pela presença das personagens femininas Madalena (São Bernardo), Luciana (São Paulo...) e Estela (Últimas imágenes...). O filme Últimas imágenes del naufrágio representa um momento de crise econômica, social e existencial na sociedade argentina. Na primeira cena do filme, a personagem Roberto, cidadão de classe média e corretor de seguros, pretende escrever um romance que, entretanto, não consegue começar. Este filme argentino, como sugere o título, privilegia as imagens. Assim, na primeira cena, numa imagem focada no rosto de Roberto, este afirma que ―é um sobrevivente‖. Logo em seguida, na plataforma do metrô, homens cabisbaixos, de terno e pasta, esperam. Depois disso, Roberto, sentado no interior do vagão lotado, se pergunta ―quantos de nós seriam escolhidos‖ para sobreviver ou se aqueles que ali estavam eram os ―condenados a dias cinzentos e a mortes insignificantes‖. Nenhum deles, afirma ainda a personagem, consegue enxergar qualquer salvação, mas que qualquer coisa seria melhor do que a mansidão com que se deixam conduzir ao matadouro. ―Uma só palavra – pensa Roberto – poderia ser o início de um grande romance‖, ou seja, da sua salvação. O filme argentino cria uma atmosfera de caos, de guerra e destruição, de desesperança, projetando imagens como os homens cabisbaixos e a casa de Estela. São imagens não realistas, simbólicas, metafóricas, que poeticamente fazem o telespectador resgatar do inconsciente, como num sonho, lembranças e traumas recalcados. Se pensarmos na literatura argentina e hispano-americana em geral, em Borges, Cortázar, Lezama e Carpentier, entre outros, poderemos encontrar as raízes dessa narrativa em prosa que tem as marcas da poesia. Poesia que se traduz também na personagem Estela (Últimas imágenes...) que se comporta como a Maga, personagem de Julio Cortázar em Rayuela (em português O jogo da amarelinha) que deixava sempre mos encontros com seu amado ao sabor do acaso. Roberto, depois que conhece Estela, que mora na periferia e cujo irmão é ladrão, não cabe mais dentro dos seus conceitos pequeno-burgueses e da sua acomodação. O romance que está escrevendo passa a ser a história da crise econômica e familiar de Estela, sua mãe e seus irmãos. Os dois filmes brasileiros em questão projetam imagens mais realistas, influenciados pelo cinema neorrealista italiano e marcados pela estética do cinema novo. Numa São Paulo bastante documental, Carlos (São Paulo Sociedade Anônima) vai estudar inglês para 301 poder vencer seus concorrentes na busca pelo emprego, ansiando por ascender socialmente. O discurso de Carlos, criado e dirigido por Luis Sérgio Person, é o discurso do poder, pois Carlos tem uma ambição tão desmedida que não percebe quanto está se desumanizando. Nem mesmo o encontro com Luciana, o contraponto emotivo para sua ambição e pragmatismo, consegue despertá-lo do sonho capitalista. Paulo Honório, personagem emblemático de São Bernardo, de Graciliano Ramos, e do filme homônimo de Leon Hirszman, por não morar em uma grande metrópole, diferencia-se tanto do argentino Roberto quanto de Carlos. Sua ascensão social foi marcada pela violência – ―negociações feitas com armas engatilhadas‖ –, e pelo poder econômico, como na cena em que Paulo Honório pressiona Padilha, personagem de personalidade fraca e beberrão, a vender a fazenda São Bernardo por uma bagatela. Ao vencedor, as batatas. Paulo Honório, personagem antipatizado pelo público, é um sintoma das relações sociais baseadas na competição e no pragmatismo. Como Carlos e Roberto, o senhor de São Bernardo ainda encontra o seu contraponto emotivo em Madalena, frágil professora que ele toma como esposa e leva com ele para a fazenda, onde ela se torna alvo de seu poder desmedido e motivadora do longo monólogo inicial, em que o herói do romance e do filme fica frente a frente com o conflito que ele mesmo simbolizou, entre o homem espiritual e o homem material, o capitalista. Diante do exposto acima, pode-se pensar a literatura e o cinema latino-americanos dialogando entre si e possibilitando o diálogo entre as diversas nações do Cone Sul, tanto mais que, se diferenças existiram na formação desses povos e ainda existem, os personagens brasileiros, argentinos, nordestinos ou uruguaios, colocados nas obras literárias ou fílmicas, dialogam de forma dialética e crítica, e este diálogo aponta as identidades de forma produtiva. Tais são as identidades criadas pela arte, pela literatura e pelo cinema, que definem politicamente e poeticamente os homens diante do conflito em que se encontram com forças invencíveis que historicamente lhes são impostas e se sobrepõem até mesmo às causas naturais que Silvio Romero apontou como causadoras das diferenças. Buenos Aires é Alagoas. São Paulo é uma Sociedade Anônima e, metaforicamente, é onde Carlos se perde de Luciana e se perde da sua natureza humana. Segundo Sandra Nitrini (p. 66), foi no VII Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, realizado em Ontário, em 1973, que ocorreu o encontro histórico entre dois importantes críticos literários latino-americanos, o brasileiro Antonio Candido e o uruguaio Ángel Rama. O diálogo entre os dois resultou em um projeto de escrever uma ―História da literatura latino-americana‖. O teor da intervenção de Candido no Congresso 302 citado, intitulada ―Le Roman latino-américain et les novateurs brésiliens‖, ainda citado por Nitrini, aborda o isolamento da literatura brasileira em relação à literatura hispanoamericana. A intervenção de Ángel Rama, intitulada ―Un proceso autonómico: de las literaturas nacionales a la literatura latinoamericana‖, seguiu a mesma linha do crítico brasileiro, o que marcou uma grande aproximação entre os intelectuais da América Latina com o intuito de discutir as questões da integração entre as literaturas e os povos. Hoje tal movimento de integração é reforçado pelo cinema, uma vez que a busca de um conceito comum de crítica se liga à definição das identidades entre as nações e suas literaturas, extrapolando as fronteiras geopolíticas arbitrariamente demarcadas e buscando as identidades culturais. Como foi exposto acima, o cinema sutilmente expõe as questões culturais expressando a poesia das imagens inusitadas e de conflitos que são comuns aos povos do Cone Sul e afetam e afetam de forma idêntica os homens e mulheres da América Latina. Candido sustenta em sua intervenção no Congresso que o processo de autonomização da literatura latino-americana em relação às literaturas das metrópoles coloniais se deu no mesmo momento em que a fantasia ganhava força nas primeiras. Candido cita como protagonistas desse processo autores como Cortázar, García Marques e os cubanos Lezama e Sarduy. Esse fenômeno também é visível hoje no cinema latino-americano. São significativas, nesse sentido, as imagens do encontro de Estela com Cristo. Primeiramente é mostrada, no interior de uma igreja a cruz vazia e, em seguida, Cristo senta-se ao lado de Estela no banco e esta lhe oferece um sanduíche de mortadela. Esta cena é o pretexto para Estela definir seu relacionamento com Roberto: ela conta para Cristo que gosta de um homem mas que este pode machucá-la se não gostar dela e que eles sobrevivem porque são muito duros. ―Se amolecermos, já era‖. Também o cinema brasileiro tem investido nas cenas inusitadas, como o show musical apresentado na Festa da menina morta, de Matheus Nachtergaele (2008), filmado em plena selva amazônica, no município de São Gabriel da Cachoeira. Este filme representa a invasão do capitalismo predador e extracionista na Amazônia brasileira, a todo momento expresso como conflito e contraste entre a natureza e a população, existindo ainda praticamente em seu estado primitivo, e as novas práticas culturais impostas e, ao mesmo tempo francamente adotadas. Além de repetir o processo de extrair riquezas do solo e da selva, o capitalismo consumista e o progresso avassalador intervêm na festa que cultua uma relíquia, o vestido da menina desaparecida e morta. 303 Estas identidades são o objeto de estudo que as intervenções citadas acima, de Angel Rama e de Antonio Candido, suscitam quando se pensa o diálogo entre a literatura e o cinema latino-americanos, que podem ser locais ou podem abranger obras de diferentes países. Voltando às considerações iniciais deste artigo, podemos pensar que Silvio Romero não conheceu o cinema e não podia avaliar o quanto esta nova forma de expressão poderia influenciar a literatura dos diversos povos que compõem esta unidade a que chamamos América Latina e o quanto a tradição da fantasia do nosso realismo fantástico poderia sugerir cenas como o oferecimento a Cristo de um sanduíche ou o show de pop brega encenado diante do santo de A festa da menina morta. REFERÊNCIAS CORTÁZAR, J. Rayuela. 2. ed (crítica). Coord.: Julio Ortega e Saúl Yurkievich. Madri, Paris, México: ALLCA XX, 1996. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. NITRINI, S. Literatura Comparada. 2. ed. São Paulo: EdUSP, 2000. RAMOS, G. São Bernardo. 47. ed. Rio de Janeiro: Record, 1988. ROMERO, S. História da literatura brasileira. T. 1. Rio de Janeiro: Imago, 2001. REFERÊNCIAS FÍLMICAS A FESTA da menina morta. Direção: Matheus Nachtergaele. Roteiro: Hilton Lacerda, Matheus Nachtergaele. Produção: Bananeira. Intérpretes: Brasil. (115 min.; cor). SÃO BERNARDO. Direção e roteiro: Leon Hirszman. Baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos. Produção: Mapa. Intérpretes: Othon Bastos; Isabel Ribeiro; Rodolfo Arena; Jofre Soares. Brasil. (113 min.; cor). SÃO PAULO Sociedade Anônima. Direção e roteiro: Luís Sérgio Person. Produção: Socine. Intérpretes: Walmor Chagas; Eva Wilma; Darlene Glória; Otello Zeloni; Etty Fraser. Brasil. (107 min; p&b). ÚLTIMAS imágenes del naufrágio. Direção e roteiro: Eliseo Subiela. Produção: Cinequanon, Televisión Española (TVE). Intérpretes: Lorenzo Quinteros, Noemí Frenkel, Hugo Soto. Argentina. (131 min.; cor) 304 CORTEJO, LÁGRIMAS E CACHAÇA: UM ESTUDO ETNOCENOLÓGICO DO RITUAL FÚNEBRE DE SÃO JOÃO DO ABADE, EM CURUÇÁ, NO PARÁ Valéria Fernanda Sousa Sales¹ Profª Drª Giselle Guilhon Antunes Camargo (Orientadora)² Resumo: O ritual fúnebre de São João do Abade, conhecido como ―Frete‖, consiste em velórios e cortejos com bebidas, comidas, jogos e muita conversa, inclusive com o morto. A comunidade local rejeita a construção de um cemitério em Abade, portanto os sepultamentos se dão após um cortejo, de aproximadamente 4 km, até o cemitério São Bonifácio, na sede do Município de Curuçá. A população leva nos braços o caixão do ente querido para sua última caminhada com festa, cachaça e lágrimas. O estudo em questão assume uma abordagem etnográfica, empreendendo uma análise dos elementos constituintes do Frete, a partir da experiência de acompanhamento do ritual fúnebre, mediante o cruzamento de relatos de participantes do Frete, História, História Oral e pesquisa documental. A presente pesquisa está fundamentada na Etnocenologia, etnociência que ―[...] estuda, documenta e analisa as formas de expressão espetaculares dos povos [...], as formas de manifestações que são fruto de uma elaboração, de uma premeditação, de uma memória coletiva, e os que são atos ponderados e repetidos, seguindo regras estabelecidas [...]‖ (KHAZNADAR, 1999, p 58). Este estudo está vinculado à linha de pesquisa Interfaces em Arte, Cultura e Sociedade, do Programa de Pós-graduação em Artes (PPGARTES), do Mestrado Acadêmico em Artes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Palavras-chave: Ritual fúnebre; Oralidade; Etnocenologia. Abstract: The funereal ritual of Sao Joao do Abade, known as ―Frete‖ (freight), consists in funerals and processions with drink, food, cards and dominoes games and lots of conversation, including ―talks‖ with the dead. The local community refuses the construction of a cemetery in the district of Abade, so the burials occur after a procession, which is around 4 km (2.485 m), to the Sao Bonifacio Cemetery, in the Curuca municipal seat. The population carries with her own arms the coffin of her beloved one to its last walking with feast, sugar cane rum and tears. The present study assumes an ethnographical approach, analyzing the component elements of ―Frete‖ (freight), from the experience of funereal ritual observation, through the crossing of accounts of the ―freight‖ participants, history, oral history and desk research. The present research is based upon the Ethnoscenology, an ethnoscience which ―[...] studies, documents and analyzes the spectacular forms of peoples expression [...], the forms of manifestation which result of an 305 elaboration, of a premeditation, of a collective memory, and also those are considerate and repeated acts, according to established rules [...]‖ (KHAZNADAR, 1999, p 58). The study is bound to the research current of Interfaces in Art, Culture and Society, in the Graduation Program in Arts (PPGARTES), in the Academic Master‘s Degree in the Sciences of Art Institute, of the Federal University of Para. Key-words: Funereal ritual, Orality, Ethnoscenology. 1. O RITUAL FÚNEBRE DE SÃO JOÃO DO ABADE Morte, palavra que nos acompanha durante a vida. Surpresa, deleite, terror, diversas são as formas de lidar com essa senhora funesta, seja se deliciando com o herói byroniano em ―Noite na Taverna‖ de Álvares de Azevedo, seja com a crueldade do cotidiano ou com os ritos de passagem em tantas culturas. Os estudos sobre rituais fúnebres em Curuçá, no Pará, revelam muito mais que pertencimento histórico, religiões, comportamentos, espetáculos festivos, falam de amizade. São João do Abade possui um ritual fúnebre conhecido como Frete, cuja organizadora é a Ana Lúcia (dona do Frete), que com o anúncio da morte, reúne a comunidade para o velório e o cortejo de seu ente querido. Velório regado a orações, bebidas, comidas, jogos e muita conversa, até com o morto. Chegada a hora, o cortejo espetacular corta o cotidiano, a comunidade leva nos braços o seu amigo. Quatro homens tiram o caixão da casa e entram com ele no cemitério, a dona do Frete pede coleta para comprar vinho para as mulheres e cachaça para os homens. As mulheres levam o caixão a partir do ponto da mangueira até a porta do cemitério São Bonifácio na sede do Município. O cortejo faz um trajeto de aproximadamente 4 km, pois a população do Abade não aceita a construção de um cemitério na localidade, dizem que ―Abade é um lugar para viver não para morrer!‖. Tal afirmação veio depois do anúncio do projeto de lei do ex-vereador Oscar Araújo (falecido em 22.01.2013, cujo Frete foi o maior de todos) para a construção de um cemitério na comunidade. O que lembra o Movimento da Cemiterada na Bahia, em que as irmandades não aceitaram a construção do cemitério e o destruíram no dia 25 de outubro de 1836, ―Extraordinário acontecimento teve lugar na Bahia do século passado: uma revolta contra um cemitério‖ (REIS, 1991, p. 13). Momentos importantes foram vividos nestes primeiros passos de ―Cortejo, lágrimas e cachaça: um estudo etnocenológico do ritual fúnebre de São João do Abade em Curuçá no Pará‖, pesquisa em andamento vinculada ao Programa de Pós Graduação em 306 Artes da Universidade Federal do Pará, com a orientação da Profª Drª Giselle Guilhon Antunes Camargo. Segui o cortejo das ―memórias em ação‖ (SCHECHNER, 2012, p.49), realizei observação participante, entrevistas e análise de documentos. Através destes estudos, apresento aqui, memórias, impressões, visões e transpirações do ritual fúnebre de São João do Abade. 1.1- O RITO DE PASSAGEM Erotíldes Saraiva Negrão, 66 anos, professora aposentada, é uma das mulheres que rezam nas casas dos abadienses por várias ocasiões: aniversários, visitas aos doentes, aos moribundos, no momento da morte, nos velórios. As orientações para essas orações – segundo a Dona Erotildes – vieram com o Monsenhor Edmundo Igreja que escreveu um livro (Cristão Prático) sobre o ritual fúnebre e o que não havia no livro foi complementado com dados da oralidade, da memória. Muitas orações – às vezes pequenas frases, chamadas de jaculatórias – foram passadas por gerações de rezadeiras. É feita a descrição do Ritual do velório: 4 momentos (chamados de vigílias) e dependendo da família – se conseguir a presença do padre ou do diácono – tem as exéquias (encomendar o corpo): oração de corpo presente. Antigamente, quando tiravam o caixão, a casa era toda varrida e trancada, só abrindo para o povo rezar durante os sete dias, contudo hoje, não é mais frequente essa parte do ritual. No início dessas orações em Abade, se fazia o Rosário pelos defuntos ou o 1º terço do Morto no mesmo dia do sepultamento, hoje se reza no dia seguinte, pois a família chega do cortejo, muito cansada. O ROSÁRIO PELOS DEFUNTOS É a maneira mais simples de que os fiéis católicos usam para sufragar as almas do Purgatório. Em muitos lugares vigora, aliás, o maravilhoso costume de um bom número de pessoas do bairro ou da comunidade rural irem rezar o Terço todas as noites, durante uma semana, na casa da família enlutada. (DIOCESE DE BRAGANÇA- PA, 1991, p. 63) De acordo com a Dona Erotíldes, as orações durante o velório e os sete dias, são para ajudar o morto a sair do Purgatório e chegar ao céu ou paraíso. O PURGATÓRIO A doutrina católica afirma que o Purgatótio não é um lugar como o paraíso ou inferno. É simplesmente uma situação particular em que se encontram as almas dos fiéis que morreram sem pecados 307 graves e, portanto, no amor e na graça de Deus: não estão em condições de entrar na glória do céu por estarem maculadas de culpas leves, ou por terem ainda que satisfazer a Deus as penalidades de pecados graves já perdoados. Isso, porque, para contemplar Deus face a face é necessário que a criatura humana não possua a mínima sombra de impureza. (DIOCESE DE BRAGANÇA- PA, 1991, p. 62) Ao término do Rosário pelos defuntos, há a Missa do 7º dia ou – caso a família não consiga fazer a missa – à noite, orações e a ladainha em casa. A MISSA DO SÉTIMO DIA Honrar um familiar falecido com um luto rigoroso de sete dias é uma tradição milenária, da qual nos falam também as páginas Bíblicas do Antigo Testamento. Assim no livro Gênesis (capítulo 50, versículo 10), encontramos que quando morreu o patriarca Jacó ―fizeram uma solene lamentação. E José celebrou em honra de seu pai Jacó um luto de sete dias‖. Também quando, na guerra, morreu o rei Saul, nos diz a Bíblia, ―recolham os seus ossos e os enterrem debaixo duma tamareira, e jejuaram durante sete dias‖ (1Sm 31, 13). E o livro do Eclesiástico (capítulo 22, versículo 13), nos transmite claramente o costume dos judeus dizendo: ―O luto por um morto dura sete dias‖. Isso explica porque ainda hoje o nosso povo respeita esta antiguíssima tradição do luto rigoroso de sete dias após a morte de um familiar. E explica também porque entre os cristãos formou-se esta outra tradição de encerrar o luto com a celebração da S. Missa em sufrágio daquele falecido. Trata-se, pois, de um costume profundamente cristão que deve ser preservado com muita felicidade. (DIOCESE DE BRAGANÇAPA, 1991, p. 61) A Morte é definida por Dona Erotíldes como ―a passagem de uma vida humana para uma vida eterna‖ e quem tem uma vida plena religiosa não teme a morte. Os sete dias de orações são para que Deus escute as preces e que aquela alma, que está no Purgatório, se salve, mas claro que de acordo com o que ele fez na terra. É o período em que a família tem um conforto espiritual, que não fique naquela amargura, desespero, paixão ―como se cada noite fosse a gota do bálsamo que entrasse na tua vida, estar alí na companhia dos amigos, cada um que chega e chora também, e que te abraça, te conforta‖. 308 FIGURA 1: Dona Erotíldes Saraiva (de branco) rezando durante uma vigília no velório do ex-vereador Oscar Araújo. São João do Abade-Curuçá/PA. 22.01.2013. Foto: Valéria Fernanda S. Sales. No capítulo VIII de Ritos de Passagem, Arnold Van Gennep, discorre sobre os ritos funerários, que são muitos em decorrência de diferentes povos, idade, sexo... e que esses ritos mesmo sendo somente de um povo contém diferenças e também se misturam. Ritos de separação, margem e agregação estão presentes. Contudo, acredita-se que na maioria dos ritos funerários os mais importantes são os ritos de separação, deixando os ritos de margem (que possuem duração e complexidade maiores) e os de agregação (que são mais elaborados por agregarem o morto ao mundo dos mortos) de lado. Quando no capítulo se fala do luto – parte do ritual fúnebre que está sendo discutido aqui –, discorrese sobre o rito de margem: O luto... Na realidade, é um estado de margem para os sobreviventes, no qual entram mediante ritos de reintegração na sociedade geral (ritos de suspensão do luto). Em alguns casos este período de margem dos vivos é a contrapartida de período de margem do morto. A terminação do primeiro coincide às vezes com a terminação do segundo, isto é, com a agregação do morto ao mundo dos mortos... (GENNEP, 2011, p.129) A agregação do morto ao mundo dos mortos, seguindo o ritual fúnebre em Abade, é de sete dias, pois o morto primeiro está na margem, não é mais vivo e nem chegou ao céu, está no Purgatório esperando o julgamento para ser salvo, e as orações feitas no 309 Rosário pelos mortos, o ajudarão a sair deste estado de limen. Consequentemente, a família também pode sair da margem e será reintegrada à sociedade, perante a suspensão do luto. Durante o luto os vivos e os mortos constituem uma sociedade especial, situada entre o mundo dos vivos, de um lado, e o mundo dos mortos, de outro, da qual os vivos saem mais ou menos rapidamente conforme fossem mais estreitamente aparentados do morto. Por isso, as estipulações do luto dependem de grau de parentesco... É como deve ser para o viúvo ou a viúva que pertencem durante maior tempo a este mundo especial... (GENNEP, 2011, p.129) Nos seus estudos sobre Liminaridade e ―Communitas‖, Victor Turner escreve sobre as fases dos Ritos de Passagem: ... A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer por um ponto fixo anterior na estrutura social, quer no conjunto de condições culturais (um ―estado‖), ou ainda de ambos. Durante o período ―limiar‖ intermediário, as características do sujeito ritual (o ―transitante‖) são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem... (TURNER, 1974, p. 116) Dona Erotíldes descreve os ritos que permeiam os velórios de São João do Abade, e para uma maior compreensão sobre os Ritos, vê-se a definição dada por Aldo Natale Terrin: ... o rito é, principalmente e de maneira prioritária, um ato de adoração, um momento de expressão de um ―Todo‖ no nível comunitário, um ato de culto que tem a sua direção intencional metaempírica e, como tal, é capaz de unificar de maneira profunda a experiência do real. É direta ou indiretamente um ―voltar-se para o outro‖ ou, pelo menos, um sentir, através do estar e do fazer juntos, ―que o sentido do mundo está fora do mundo‖... (TERRIN, 2004, p. 35-36) 1.2- O FRETE Quando a Ana Lúcia Farias da Silva, 42 anos, agente de saúde do município, começou a se envolver com o ritual fúnebre de São João do Abade, não gostava do nome enterro, achava pesado. Pensando que a família do defunto esteja fretando-os para levá-lo, 310 começou a chamar de Frete e pegou – os mais velhos gostaram. Levam o defunto nas mãos e a família não precisa pagar, eles não deixam levar o caixão no carro, falam até com o dono da funerária. Para ter um bom Frete, o morto tem que ter tido um bom relacionamento na comunidade. Para quem não teve, fica difícil até de arrumar quem o carregue, pois a Ana Lúcia sai convidando de casa em casa e não consegue reunir mais de 50 pessoas para acompanhar. Não é que tenham que ir em todos os Fretes ou visitar todos os doentes, mas que ―façam uma presença‖, de vez em quando. Tem pessoas que até reclamam, quando recebem o convite e, a essas pessoas chamam de Mirico – referem-se a um homem chamado Maçarico que não foi nem no Frete da própria filha. Dizem que quando ele morrer não vai ter quem o leve, há pessoas que proíbem a dona do Frete de organizar, quando chegar o dele, ―que ele vá de carro, pra aprender‖. Contudo, ela afirma que como os filhos dele acompanham, há a possibilidade de sair o Frete. É costume dizer para quem vai pela primeira vez ―Olha a forra que o Mirico deu!‖. Já aconteceu de não ter quem carregasse o caixão e o morto ir de carro, faltou amizade pela comunidade. A dona do Frete, já faltou a dois, pois viu que as pessoas não tinham nada a ver com ela. FIGURA 2: O Frete – Curuçá/PA – 2012. Foto : Valéria Fernanda S. Sales Há três anos, com o falecimento da mãe, a Ana Lúcia decidiu não dar só café para quem chegava ao velório, então à noite serviu carne e frango, mingau de milho e de arroz, vatapá, arroz com galinha. Durante os sete dias, foram servidos: salgados, arroz com galinha, vatapá e refrigerante. Passados uns dias, morreu alguém e ela perguntou para a 311 família se iam servir só café, alguém respondeu ―Não. Vamos fazer igual ao da tua mãe.‖, e assim foi feito. Não que tenha começado aí, as comidas no velório, mas não lembra de antes ser assim. O Frete é feito de doações, os ingredientes são trazidos e as comidas são feitas. São três perguntas: De quem é o Frete? Quem pode ajudar? Com o quê? A equipe do Frete é organizada assim: Quem toma conta da cozinha – Dona Laura, Nazaré, Renata, Alice, Ângela, Rica, mãe da Ângela, Jura, Cris e a Ruth. Quem carrega o morto – Relembrado, Salomão, Raimundo (marido da Dora), Tourinho (irmão da Jura), Wilson, Cristiano, Mariano e o irmão dele. Quem toma conta dos jogos (baralho e dominó) – o Bi. As comidas são servidas e os jogos feitos para que as pessoas fiquem na vigília do morto, para a família não ficar só, na tristeza. Em outubro de 2012, algumas pessoas que estavam em um velório foram expulsas porque estavam rindo alto e a madrasta do morto – que não é da comunidade – achou um absurdo tanta alegria, ela exigia respeito. A Ana Lúcia diz que apesar dos pulos, gritos e risos, há sentimentos, que podem fazer tudo, mas o morto não voltará ―já morreu, só outro de porcelana‖. Que o morto era feliz, gostava e acompanhava os Fretes pulando, gritando, bebendo e carregando os amigos. Ser dona do Frete é exercer um papel social. No início, só tomava conta do velório e do cortejo, hoje também, dá o banho e aplica o formol. Parece que é uma obrigação na comunidade, que só termina, quando volta para casa e diz à família ―estão entregues!‖, terminou o contrato. O maior desejo, da dona do Frete, é agregar as religiões. Já consegue que pessoas de outras religiões fiquem no momento das orações católicas – mas não participam –, antes quando começava a reza iam para outros lugares da casa. Ela quer que mais pessoas fiquem para a vigília, que por amizade façam um revezamento, pois a família está cansada e para a tristeza não predominar no ambiente. O que chama a atenção dela, é ver que o cortejo segue com muita festa, que as pessoas vão gritando, bebendo, correndo, mas na porta do cemitério acaba tudo, é a vez da família se despedir ―parece que a pessoa morreu naquela hora‖. Não entra bebida no cemitério, é regra do Frete, se não, vira bagunça. O Frete começa com o anúncio da morte e termina na porta do cemitério. 312 FIGURA 3: O Frete termina na porta do cemitério. Curuçá/PA. 2012. Foto: Valéria Fernanda S. Sales. Algumas pessoas reclamam de tamanha alegria no Frete, que o apito durante o cortejo não é tradição, que beber e jogar no velório não faz parte do ritual, que é uma falta de respeito. Como o ritual fúnebre, geralmente, é comandado por católicos é possível verificar o porquê dos comentários sobre o que é ou não tradição, através de orientações de livros do catolicismo sobre o que pode ou não se fazer em velórios. Verifica-se o exemplo: VELÓRIO NA CASA DO DEFUNTO ORIENTAÇÕES - Coloca-se o esquife na sala da casa e, à cabeceira, um Crucifixo e duas velas. - Ao lado, um vaso com água benta. - Durante todo o tempo que o cadáver permanecer na casa, os familiares devem evitar de distribuir bebidas alcoólicas e, exigir que o tempo do velório não seja profanado com gritarias, jogos de baralho, damas, dominós e outros. - Durante a noite, após as vigílias comunitárias, organizem-se duplas de voluntários que se sucedam rezando, enquanto os outros descansam. (DIOCESE DE BRAGANÇA-PA, 1991, p. 86) O momento é de dor, de tristeza. A comunidade se organiza para que durante aquele momento, tudo ocorra bem, que o tempo do morto em casa, que o cortejo e os rituais que seguem, sejam com união e sendo de grande amizade. Unem-se em uma espécie de Communitas. A ―communitas‖ inrompe nos intertícios da estrutra, na linaridade; nas bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte a ―communitas‖ é considerada sagrada ou ―santificada‖, possivelmente porque 313 transgride ou anula as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhada por experiência de um poderio sem precedentes... (TURNER, 1974, p. 156) A respeito de servirem comidas e bebidas no velório, era comum, há descrições desses costumes na Bahia do século XIX, segundo ―A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX‖, de João José Reis. O defunto atravessava a noite na companhia de parentes e conhecidos, para os quais se providenciava comida e bebida... hábito, que herdamos de Portugal e da África, ainda comum em nosso meio rural... Cabia aos vivos zelar para que maus espíritos não se aproximassem neste momento decisivo; cabia-lhes fortalecer sua alma com rezas e outros gestos, tocava à família cuidar para que parentes, amigos e vizinhos não fraquejassem e enfrentassem a noite com espírito elevado, daí a distribuição de comes e bebes, inclusive bebida espirituosa... (REIS, 1991, p. 130) O Frete, evento que corta o cotidiano com toda a sua importância àqueles que souberam demonstar amizade durante a vida. Comunidade que se abraça e leva nos braços o seu tão querido amigo em sua última caminhada, seguindo os passos outrora vivos. A cada organização da casa, do cortejo e seguindo o roteiro pré-estabelecido, pensa-se em quem é que se leva nos braços. Demonstram com tanta festa, a felicidade que foi a vida daquela pessoa que se despede. BIBLIOGRAFIA DIOCESE DE BRAGANÇA-PA. Minha semana com Deus: dicionário para os diocesanos de Bragança. P. Carlos Verzeletti (coord.). Sétima edição, Bragança-PA, 1991. GENNEP, Arnald Van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc.; tradução Mariano Ferreira. 3. ed. Petrópolis, Vozes, 2011. KHAZNADAR, Chérif. Contribuição para uma definição do conceito de etnocenologia (trad. Sergio Guedes). In: Etnocenologia: textos selecionados/ Christiane Greiner e Armindo Bião (organizadores). São Paulo: Annablume, 1999. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios organizada por Zeca Ligiéro; (tradução Augusto Rodrigues da Silva) – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. 314 TERRIN, Aldo Natale. O rito: definição e classificação. In: _ O rito. Antropologia e Fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004. TURNER, Victor W. Liminaridade e ―Communitas‖. In:_O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Coleção Antropologia 7. Petrópolis: Vozes, 1974. 315 ―HORA DO CONTO‖ NA SALA DE AULA E ORALIDADE: UM ENCONTRO POSSÍVEL Valéria Santos da Silva1 Profª. Renata Junqueira de Souza 2 Resumo: Na trajetória humana, as sociedades continuamente procuraram um meio de se comunicar e se relacionar, a fim de que pudessem viver, equilibradamente, em comunidade. Sem dúvida, a tradição oral se constituía no principal veículo de comunicação entre os indivíduos, que nesse caso, se faziam significar por meio dela. Os contadores de histórias tradicionais auxiliavam nesse processo, sendo esses receptores e transmissores dos contos orais. Entretanto, o homem contemporâneo se encontra imerso num contexto históricosocial totalmente adverso das sociedades de tradição oral, o que contribuiu, para que com o passar do tempo, ocorresse uma desvalorização dos processos orais em detrimento dos escritos. Embora sejam inúmeras as possibilidades ofertadas por uma sociedade pósmoderna, grafocêntrica, o homem ainda possui a necessidade de manter viva a oralidade, de entrar em contato com sua própria história, com aquilo que o torna humano. No Brasil, nos últimos anos, alguns estudiosos com Alves, Espíndola e Massuia (2011) evidenciaram um acréscimo de atividades escolares que envolvam oralidade, como a ―Hora do Conto‖, pois acredita-se que ela seja um valioso instrumento na formação dos leitores. Em nossa sociedade atual, o ato de contar histórias, ainda está excessivamente ligado ao código escrito, sendo comum o professor ler as histórias em voz alta com o auxílio do livro, reduzindo o texto a simples leitura, esquecendo-se que sua essência faz parte de longa tradição oral. No entanto contar histórias poderia estimular a oralidade estabelecendo um vínculo entre docente e ouvinte. Considerando que a temática levantada possui grande importância no cenário atual, nos centraremos em refletir sobre a prática da ―Hora do Conto‖ em sala de aula e como esta pode contribuir para o resgate da oralidade. Palavras-chave: Hora do Conto; Oralidade; Sala de Aula. Abstract: In human history, societies continually sought a means to communicate and relate to, so that they could live, evenly in the community. Undoubtedly, oral tradition constituted the main vehicle of communication between individuals, in which case, if they did mean by it. The traditional storytellers helped in this process, and these receivers and transmitters of oral tales. However, modern man is immersed in a socio-historical context of societies totally adverse to oral tradition, which contributed to that with the passage of time, occurred a devaluation of the oral proceedings to the detriment of the writings. Although numerous possibilities offered by a post-modern society, the man still has the 1 Mestranda em Educação na Faculdade de Ciências e Tecnologia – FCT/Unesp, campus Presidente Prudente. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 2 Professora do Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia – FCT/Unesp, campus Presidente Prudente. E-mail: [email protected] 316 need to keep alive the oral tradition of contact with their own story, with what makes you human. In Brazil, in recent years, some scholars like Alves, Espíndola and Massuia (2011) showed an increase in school activities involving orality, such as "Story Time" because we believe it to be a valuable tool in educating readers . In our current society, the storytelling is still too attached to the written code, with the common teacher just read the stories aloud with the help of the book, reducing the text to simple reading, forgetting that its essence is part of a long oral tradition. However storytelling could stimulate orality by linking teacher and listener. Whereas the issue raised is of great importance in the current scenario, we will focus on reflecting on the practice of "Story Time" in the classroom and how this can contribute to the rescue of orality. Keywords: Story Time; Orality; Classroom. 1. Introdução Atualmente, muito se tem falado sobre a oralidade e os aspectos que a envolvem, dentre eles, as formas de ensino, a aquisição e a metodologia utilizada no ensino/aprendizagem em contexto escolar. Por mais que seja notável um acréscimo de estudos e materiais teóricos deste teor, as pesquisas mais densas sobre o tema, ainda são muito recentes. Os dados históricos pertinentes evidenciam que tal aumento se deu a partir da década de 70, década esta caracterizada pela tomada da palavra popular, o que é justificado segundo Patrinni (2005) ―pelo movimento de renovação do conto oral‖, ou seja, pela emergência de uma prática oral e o retorno dos contadores de histórias que haviam diminuído desde a revolução industrial. Originalmente, o movimento aconteceu em Paris, os universitários saíam às ruas francesas para reivindicar os seus direitos e denunciar as atrocidades realizadas pelo governo. Tal movimento iniciado nos anos 60 se disseminou por toda a França e, posteriormente, atingiu uma escala mundial, no qual vários países se juntaram à manifestação, refletindo uma crise mundial. Foi considerada uma revolta da juventude, e posteriormente da população, que ansiava por se expressar, pelo direito à voz, o que estava imerso em cada um vinha à superfície. A emergência de uma prática oral, que mais tarde influenciou uma nova prática dos contadores de histórias, desde o período mencionado anteriormente, parece ter recuperado suas forças, retornando com todo vigor. Embora o avanço seja considerável, e alguns educadores manifestem a necessidade de se trabalhar com a oralidade em sala de aula, a forma com que a mesma aparece em contexto escolar, ainda não é muito significativa, sendo considerada por muitos, como 317 superficial e falha. O ensino da língua falada vem perdendo o seu espaço e o seu prestígio. Há uma supervalorização da leitura e da escrita em detrimento dos processos orais. Como salientam Lima e Beserra (2012, p.57), Por diversas razões, o estudo sistemático da língua falada não foi, durante muito tempo, preocupação da escola e, por isso, esteve ausente das salas de aula e das atividades de língua portuguesa. No geral, professores e educadores acreditavam que, se o aluno já sabia falar, ele estava pronto para executar eficazmente qualquer tarefa que envolvesse a modalidade falada da língua. Nesta perspectiva, trazer para a sala de aula atividades que objetivassem o desenvolvimento da expressão oral dos alunos significava total perda de tempo. E concluem: Além disso, era também generalizada a crença de que a fala, diferentemente da escrita, era desprovida de regras e, por isso mesmo, simples demais para ser ensinada. Assim, por muito tempo e por motivos diversos, a supervalorização conferida à escrita acabou por menosprezar a fala, como objeto de ensino. É fato e, de acordo com Ong (1998), que o advento da escrita, proporcionou à humanidade registrar suas manifestações para serem repassadas a gerações posteriores. Tornou-se possível aos indivíduos, pensarem sobre sua cultura e a de outros povos, mudando profundamente a forma de pensar do ser humano. Antes da invenção da escrita, as sociedades de tradição oral, por meio da oralidade, repassavam seus costumes, valores, organização social às gerações posteriores, perpetuando assim sua memória coletiva. Neste processo, os contadores de histórias tradicionais atuavam como receptores e transmissores dos contos orais. O texto da tradição oral, obviamente, está imerso em uma cultura e em uma ideologia que lhe conferem a maioria de suas características. E essas características, por sua vez, relacionam-se diretamente com a história. (CALVET, 2011, p.111) Entretanto, a contemporaneidade faz com que o homem se encontre imerso num contexto histórico-social totalmente adverso das sociedades de tradição oral. A pósmodernidade traz consigo, o avanço das mídias, das tecnologias e do entretenimento, contribuindo para que a oralidade se perca. As sociedades se organizam agora, de forma a acompanhar as novas mudanças e, fatores como vida agitada, bombardeamento cotidiano de informações e inutilidades que entorpecem os sentidos, o espaço do livro perdendo 318 espaço para a televisão, a internet nos tornando solitários e individualistas, são características dessa nova ordem social. Porém alguns pesquisadores como Patrini (2005), vêem essa nova ordem social com bons olhos, pois acredita-se que com o aumento dos meios de comunicação em massa, essa oralidade possa ser mais difundida e principalmente, possa recuperar a humanidade dos indivíduos. Segundo a autora, A oralidade existe desde os primórdios e persiste até hoje, sendo ampliada pelos recursos dos meios de comunicação de massa. Há, sem dúvida, uma recuperação com a atualização, daí a historicidade do fenômeno que o mantém vivo até hoje. No mundo contemporâneo, em nossa era tecnológica em que as pessoas se isolam atrás das máquinas, a oralidade volta para reunir as pessoas e recuperar o clima de aconchego. Neste sentido, a prática social de contar é uma via que possibilita este encontro. Se observarmos transformações, evoluções e momentos de ruptura, o essencial é que no ato de transmissão oral do conto o fundo narrativo continua a fazer parte integrante da vida do homem. (p.27) Este texto introduz e incita o debate sobre os questionamentos que abrangem a oralidade, em especial os relacionados ao contexto escolar. Constitui-se como problema deste estudo refletir sobre como fazer uso do oral, discutindo a forma como se apresenta em sala de aula, no intuito de contemplar a aquisição plena dos processos orais pelos sujeitos, visando sua humanização. Nesse caso, a contação de histórias pode ser o primeiro passo para o resgate da tradição oral e estímulo à oralidade. 2. Hora do Conto na sala de aula e oralidade No Brasil, nos últimos anos, alguns estudiosos com Alves, Espíndola e Massuia (2011) evidenciaram um acréscimo de atividades escolares que envolvam oralidade, como a ―Hora do Conto‖, pois acredita-se que ela também seja um valioso instrumento na formação dos leitores. Tal assertiva evidencia que embora sejam inúmeras as possibilidades ofertadas por uma sociedade pós-moderna, grafocêntrica, o homem ainda possui a necessidade de manter viva a oralidade, de entrar em contato com sua própria história, com aquilo que o torna humano. O conto na escola para muitos educadores, ainda é visto como uma solução imediata para certos problemas de aprendizagem, enquanto que para outros, há certa desconfiança, ou seja, o vêem apenas como um ―modismo‖ da contemporaneidade que dá 319 mais trabalho. É fato que nas últimas décadas, a compreensão da maioria das instituições escolares a respeito da prática de ouvir e contar histórias, está limitada ao código escrito, à leitura em voz alta que o professor faz em sala de aula de livros de literatura, o que muitas vezes impede o vínculo entre docente e ouvinte, pois tal leitura vem associada por uma falta de objetivos específicos e planejamento anterior. O contar propriamente dito, que envolve o gestual, a performance, a entonação, o ritmo, herança de longa tradição oral, é colocado em segundo plano. Infelizmente, escola não compreende que o ato de contar histórias, possa ser significativo para os indivíduos, para a cultura, para o exercício da cidadania e para o resgate da oralidade. É verdade que as práticas da escrita transformaram os sistemas de percepção do mundo e as relações sociais e hierárquicas entre os homens. Elas permitiram a constituição de um saber separado da prática. Então, caberia à oralidade, através de suas vozes, possibilitar uma presença no mundo da escrita solitária, resgatando um repertório cultural quase esquecido. Por outro lado, a presença do contador de histórias pode manter vivos na instituição escolar outros repertórios conhecidos das crianças e dos professores. Além disso, esta presença valorizaria as solicitações para escrever, já recebidas pelos alunos fora da instituição escolar e o domínio da língua oral. (PATRINI, 2005, p.24) O tom com que o oral é tratado na instituição escolar, ainda é muito pejorativo, não se dá a devida importância, há uma compreensão equivocada das práticas orais e a sua presença na escola. A escola parece não acreditar que a oralidade e suas práticas tenham um valor verdadeiro. Para não receber críticas ou ser chamada de conservadora, a instituição escolar acolhe a oralidade no seu cotidiano, mas como algo que é ou pode ser descartado a qualquer instante, e para que isto aconteça basta que haja uma reunião inesperada ou ausência de um professor. O motivo pode variar do super importante até o mais insignificante. Uma atividade de língua oral pode sempre ficar para um outro dia. Na escola ela sempre cede passagem, ela sempre pode ser remanejada. (PATRINI, 2005, p.30) Alguns educadores sentem a necessidade de um trabalho sistemático sobre a língua falada em sala de aula, muitos salientam que o ensino, baseado somente na escrita, não contempla o desenvolvimento total da competência lingüística do aluno, e como conseqüência disso, os resultados não são satisfatórios. O oral, no contexto escolar ainda é visto, embora muitas vezes nem isto, como coadjuvante, uma espécie de trampolim para a escrita, que desde o seu nascimento vem ganhando prestígio. 320 A escola privilegia a escrita e avalia a capacidade do aluno para produzir uma narrativa escrita. Devemos nos perguntar por que a escola continua a ignorar as capacidades para desenvolver uma narrativa oral de alunos de um país como o Brasil, cuja oralidade é ainda viva e fortemente dominante em certas regiões. (PATRINI, 2005, p.20) Olson, em seu livro O mundo no papel (1997), explica que não há uma valorização da herança oral e sim uma crença de que a escrita é superior a fala, pois esta última é entendida como pouco convencional e desleixada. Não há uma preocupação em se entender os processos que envolvem o dizer, o como é dito e com que intenção é dada a elocução. Escrever é apenas transcrever a fala. Acredita-se que a escrita seja responsável pelo progresso social e avanço cultural, uma vez que contribui para o desenvolvimento econômico e para o pensamento filosófico e científico. No ambiente escolar, a ênfase é dada ao ler e escrever, a sociedade acredita que se constituem de habilidades fundamentais para que os indivíduos vivam equilibradamente em sociedade. Embora a leitura e a escrita, sejam importantes, e não queremos tirar aqui o seu mérito, é preciso refletir sobre quais as competências e habilidades imprescindíveis ao cidadão que queremos formar. Será que a leitura e a escrita suprem todas as necessidades do ser humano, visto que, como mencionado anteriormente as relações humanas são todas baseadas na interação dialogal, ou seja, na comunicação? O dizer não se caracteriza como competência relevante à formação dos sujeitos? Não convém aqui, aprofundar a questão, não se especifica como objeto central de tal reflexão, mas é primordial entender, compreender de fato que o oral é extremamente essencial à formação dos indivíduos enquanto sujeitos históricos e sociais, em vias de formação. Tão importante quanto o ler e o escrever, é o dizer, sendo este o que mais nos aproxima daquilo que nos torna humanos. Neste sentido a contação de histórias pode auxiliar neste processo, sendo considerada como um recurso a mais para o resgate da oralidade. 3. Oral e escrito: irmãos que se completam Gregários por natureza, os seres humanos necessitam dos outros para se constituírem enquanto sujeitos, podendo assim, ser considerados como releituras da palavra do outro. Assim, nossas relações diárias são todas construídas nesta interação dialogal, o que acaba por definir a conduta e o pensar. 321 O que é dito, e como é dito, vai muito além do que a mera colocação de palavras, a consciência entre o dizer e como dizer, possibilita ao indivíduo além da fala, transformar o que foi dito, ampliando a competência discursiva. Quanto maior a consciência sobre o processo discursivo, maior a excelência, a qualidade do texto, o grau de consciência têm-se a partir de práticas discursivas, ou seja, vivenciando. A compreensão, que constrói o repertório, põe-se como atividade dialógica que se dá na relação com o outro e com o mundo. Por vivermos em uma sociedade predominantemente grafocêntrica, ou seja, que possui a organização e o desenvolvimento centrado na escrita, o modo de dizer de forma escrita, é muito diferente do modo oral. Este tipo de modalidade depende exclusivamente de recursos lingüísticos, obrigando-a a uma maior explicitude verbal, diferenciando-a das modalidades de tradição oral que se baseiam em outros recursos, ou seja, recursos extralingüísticos, como entonação da voz, gestos, expressão. Na oralidade, uma série de sentidos, dentre eles, os mencionados anteriormente, auxiliam o outro na interpretação, já na escrita isso não é possível, pois a mesma não dispõe de outros elementos que não sejam os lingüísticos. Produzimos um texto oral, com influência e com base no texto escrito, pois a escola valoriza a escrita em detrimento da oralidade. Deste modo, quando pensamos em uma atividade oral, visualizamos as palavras. A escrita diferentemente da oralidade, caracteriza-se como uma atividade reflexiva de modo pleno e constante, pressupondo ações de planejar, analisar, revisar, elaborar estratégias, reescrever. A escrita disciplina o pensamento e ao reescrevê-lo, o organiza. Falar faz parte do cotidiano, mas nem por isso se torna tarefa fácil. A oralidade se constrói e se semantiza com base no contexto imediato, ela é condensada, sintética. A ação reflexiva centrada no dizer, ou seja, o que e como se faz, também possibilita ao indivíduo refletir, não somente relatar. A palavra, por sua vez, é fluída. Não se pode, ao mesmo tempo, aprender o fluxo presente e aquilo que ainda vai se desenrolar. Já que as palavras se apresentam em sucessão, deslocamentos de sentido são possibilitados por variações lingüísticas frequentemente até imperceptíveis. Inversamente ao olhar, o ouvido não pode perceber concomitantemente dois ou mais termos. A escrita ao se apresentar em sua totalidade, permite comparar os diversos usos de um mesmo elemento revelando suas variações. A capacidade do leitor de manter duas proposições sob o mesmo olhar, possibilita-lhe trata-las simultaneamente e, a partir delas, deduzir logicamente uma terceira. O silogismo, assim como a lógica e a filosofia, nasce da escrita. (BAJARD, 2001, p.18) 322 Dialógica só faz sentido na compreensão, que é determinada por um contexto sócio-histórico. A construção do conceito, da significação, não é meramente lingüística ela vem carregada dos significados que lhe atribuem o social, o cultural e o histórico. O repertório que o indivíduo adquire ao longo de sua experiência faz com que a elaboração de idéias ao se produzir um texto seja mais refinado, tornando possível ao indivíduo, contribuir com um pouco de si e ser sujeito do seu texto. A esse respeito, as observações de Marcuschi (2001 a, p.17), demonstram-se pertinentes Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes; ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. As limitações e os alcances de cada uma estão dados pelo potencial do meio básico de sua realização: som de um lado e grafia de outro, embora não se limitem a som e grafia. Silva (2004) enfatiza que muito embora estejamos em uma sociedade predominantemente grafocêntrica, a palavra oral ainda permanece viva, pois o texto escrito possui relação direta com o som. Antes de ser alfabetizada, a criança no seu dia-a-dia mantém contato com o oral, sendo este, requisito fundamental ao seu desenvolvimento. Na concepção da autora, a escrita ao ser lida converte-se, mesmo que mentalmente, em som, portanto é coerente afirmar que a língua escrita é dependente da língua falada, ou seja, da oralidade. Assim, a autora defende o ensino pautado nos processos orais. Os sujeitos para adquirirem conhecimento, precisam da fala, saber o que sabem. O significar pela escrita é diferente do significar pela oralidade, pois esta, assim como a escrita permite organizar e transformar o pensamento. 4. Considerações finais Constituiu-se como problema deste texto incitar o debate sobre assuntos que abrangem a oralidade, principalmente refletir sobre como fazer uso do oral, discutindo a forma como se apresenta em contexto escolar, no intuito de contemplar a aquisição plena dos processos orais pelos sujeitos, visando sua humanização. Diante de tais pressupostos, há que se pensar em uma proximidade, não vertical, com base em uma hierarquia, ou seja, este ou aquele é melhor e sim horizontal, que vá de 323 encontro, no qual escrita e oralidade caminhem juntas, se auxiliando mutuamente. A oralidade tem necessidade de uma proximidade, de um olhar e de um ambiente convivial. Entretanto, a escola, assim como a sociedade, supervalorizam os processos escritos e não consideram a necessidade da criança pela aprendizagem pautada no oral. É através do uso da oralidade que a criança irá absorver os meios e configurações da linguagem escrita, pois é a partir da linguagem oral que o indivíduo construirá suas hipóteses sobre a escrita. Neste caso, a contação de histórias pode ser utilizada como uma importante ferramenta disseminadora da tradição oral e da oralidade aos sujeitos em vias de formação. De acordo com essas premissas, o resgate da oralidade, possibilita o contato dos indivíduos com a sua própria história, com o que os torna humanos. O ensino do oral pode ser reinventado a cada aula. REFERÊNCIAS: BAJARD, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. 3ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2001. CALVET, Louis-Jean. Tradição oral & Tradição escrita. Trad. Waldemar Ferreira Netto, Maressa de Freitas Vieira. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. FEBA, B. L. T., (Org.), SOUZA, R. J., (Org.). Leitura Literária na Escola: reflexões e propostas na perspectiva do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2011. LEAL, Telma F.; GOIS, Siane. (Orgs). A oralidade na escola: a investigação do trabalho docente como foco de reflexão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Coleção Língua Portuguesa na escola, 3. MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. OLSON, David R.; TORRANCE, Nancy. (Orgs). Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1997. OLSON, David. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: ática, 1997. ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1998. PATRINI, Maria de L. A renovação do conto: emergência de uma prática oral. São Paulo: Cortez, 2005. 324 SILVA, Cristiane Rocha da. A oralidade da linguagem. In: FERREIRA, Ana Flávia Inácio, et. al. (org.) Oralidade no Ensino: Sugestões de Atividades. Belo Horizonte, MG: FALE:UFMG, 2004. SILVA, Marinês Jesus da. VA LIENGO, Amanda .O desenvolvimento da oralidade na educação infantil. REVISTA INTERFACES, Ano 2, Nº 2, Out. 2010, p.21 – 24. 325 O MENINO QUE BRINCAVA DE SER: LITERATURA, DIVERSIDADE SEXUAL E FORMAÇÃO DE LEITORES Vanessa Rita de Jesus Cruz3 Flávio Pereira Camargo4 RESUMO: Este estudo consiste em analisar como o texto literário, ao possibilitar a formação de leitores críticos, representa o outro, verificando, a partir dos conceitos de letramento e letramento literário, qual a contribuição desses textos representativos de determinadas identidades para a formação do leitor, que ao entrar em contato com a alteridade defronta-se com valores sociais, culturais e históricos de uma sociedade; valores esses que podem ser questionados ou não na tessitura do texto. Pretende, também, conceituar letramento e letramento literário, analisando como esses conceitos abarcam a formação do leitor crítico; observar como os documentos oficiais (PCNs) apresentam a diversidade sexual e analisar a narrativa infanto-juvenil O menino que brincava de ser, de Georgina da Costa Martins, verificando como se dá a representação do outro. A referida narrativa possibilita ao leitor questionar padrões vigentes de modelos fixos de identidade e abre espaço para que o leitor, de forma crítica, perceba as ideologias e o envolvimento do social, do histórico e do cultural na elaboração do sentido e dos valores criados e transmitidos pelos personagens do texto. Pretende-se que esses tópicos dialoguem com alguns aspectos referentes à diversidade sexual, para que possamos compreender melhor como se dá a formação do leitor crítico literário de textos que abordam a temática da diversidade sexual. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Letramento Literário; Diversidade Sexual. ABSTRACT: The objective of this study is to examine how the literary text, to enable the formation of critical readers, represents the other, checking, based on the concepts of literacy and literary literacy, the contribution of these texts representative of certain identities for the formation of the reader, who on contact with otherness is facing social, cultural and historical society, values that can not be questioned or in the fabric of the text. It also intends to conceptualize literacy and literary literacy, examining how these concepts encompass the formation of the critical reader; observe how official documents (PCNs) have sexual diversity and analyze the narrative juvenile ―O menino que brincava de ser‖ in the Georgina Costa Martins, checking how is the representation of the other. The narrative that allows the reader to question current standards for fixed models of identity and leaves room for the reader, critically, perceive the ideologies and the involvement of the social, historical and cultural elaboration on the meaning and values created and transmitted by characters of text. It is intended that these topics dialogue with some aspects related to sexual diversity, so that we can better understand how is the formation of the critical reader of literary texts that address the issue of sexual diversity. KEY-WORDS: Literature; Literacy Literacy; Sexual Diversity. 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] 4 Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] 326 Considerações iniciais Em nossa sociedade, muitas vezes a carência de leitura é vista e compreendida como um problema social, à medida que o sujeito que não dispõe de uma competência para ler e escrever vive à margem da sociedade, pois ele não tem acesso aos bens simbólicos e culturais, justamente porque são sujeitos que não passaram por um efetivo processo de letramento. De acordo com Magda Soares, há certa dificuldade para definirmos o conceito de letramento, pois este ―cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais‖ (2002, p. 66), ou seja, esse conceito envolve campos complexos, difíceis de serem abarcados apenas em uma definição. Portanto, optamos por adotar, neste trabalho, a concepção de letramento que contempla a sua dimensão social, compreendido, pois, como um ―conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais‖ (SOARES, 2002, p. 74-75). Esta dimensão social do conceito de letramento também pode ser estendida à concepção de letramento literário, considerandose a função social que estamos atribuindo à leitura literária como uma das práticas de letramento. A partir dessa definição de letramento, podemos pensar nas práticas sociais de letramento literário, que vão além da simples leitura de um texto literário, ou seja, elas devem possibilitar a emancipação, a autonomia, a reflexão e a humanização do leitor (COSSON, 2011). O ato de ler um texto literário funciona como um mediador entre o ―eu‖ e o ―mundo‖, entre o ―eu‖ e o ―outro‖, pois ―somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente‖ (TODOROV, 2010, p. 23-24). O texto literário lança ao leitor o desafio de desvendar o mundo que existe condensado em sua tessitura, em que, não raras vezes, se vê obrigado a travar embates com suas próprias crenças, valores e preconceitos etc. 327 Assim, o ensino de literatura pode proporcionar o desenvolvimento humano, a autonomia intelectual e o pensamento crítico. É elemento essencial para a humanização, pois a ―literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante‖ (CANDIDO, 2004, p. 180). Daí o papel social da literatura, pois ela nos possibilita um diálogo com o outro e com o mundo que nos cerca. Ao ler, travamos e transformamos relações humanas, uma vez que o texto literário é carregado de conhecimentos ―sobre o homem e o mundo‖ e ―na leitura e escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos‖ (COSSON, 2011, p. 17). Por isso, defendemos que há uma necessidade de formação de leitores de literatura que seja capaz de propiciar aos alunos o maior contato possível com uma multiplicidade de textos literários, por meio dos quais esses sujeitos possam apreender o outro em diferentes textualizações de nossa cultura. Trata-se, portanto, de uma reflexão sobre a formação de leitores que não se restringe apenas a uma constatação de ―uma crise de leitura‖ (ZILBERMAN, 1988, p. 20), pois o ato de ler deve levar em conta suas funções e suas necessidades em diferentes contextos de interação social e cultural. Fazem-se necessárias práticas eficazes de letramento literário para que os alunos consigam transpor o estado passivo em que se encontram, para que eles participem, efetivamente, da leitura do texto literário de modo ativo e crítico, levando o leitor a ampliar os seus horizontes de expectativas e, sobretudo, estabelecer rupturas com certas ideologias cristalizadas em nossa sociedade, principalmente aquelas referentes à diversidade sexual, um tema que ainda é considerado por alguns professores como tabu, embora já esteja previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN) a sua abordagem. Os PCN para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1997), por exemplo, trazem os chamados ―Temas Transversais‖, entre os quais temos a Orientação sexual. Na apresentação deste tema transversal nos deparamos com uma ―verdade‖ sobre a sexualidade: ―algo inerente à vida e à saúde, que se expressa desde cedo no ser humano. Engloba o papel social do homem e da mulher, o respeito por si e pelo outro, as discriminações e os estereótipos atribuídos e vivenciados em seus relacionamentos‖ (BRASIL, 1997, p. 73). Como vemos, a sexualidade é inerente ao ser humano, está presente na escola, nos corpos de nossos alunos e de nossas alunas. Portanto, não deveria ser silenciada e omitida pelos professores em suas práticas pedagógicas. Podemos dizer que a inclusão dessa temática nos PCN representa um avanço para o campo educacional, sobretudo por se tratar de um documento que rege a educação no 328 país. Porém, essa inclusão não garante efetivamente que a referida temática seja trabalhada no espaço escolar, o que nos leva ao seguinte questionamento: se o que está no papel, de fato, tem sido cumprido pelas escolas, e se as orientações e os discursos presentes em tais documentos têm se efetivado no ambiente escolar. O fato de essa temática ser incluída em um documento oficial não quer dizer que ela esteja sendo trabalhada na escola. Os motivos dessa ausência de abordagem em sala de aula vão desde a falta de formação adequada dos professores até a indiferença ou o silenciamento da diversidade sexual no espaço escolar. Essa invisibilidade contribui, de certo modo, para a consolidação do preconceito, da discriminação e do desrespeito à diversidade sexual na escola, que, em tese, deveria ser um lugar propício para o debate e a reflexão acerca de todas as diversidades culturais. Os PCN para o Ensino Fundamental apresentam uma abordagem interessante para o trabalho com a diversidade sexual, uma vez que eles preveem uma discussão sobre o preconceito, os tabus, as crenças e os valores singulares das identidades culturais, assim como possibilita uma abertura para o esclarecimento de dúvidas, para a expressão de diferentes crenças e valores ligados à pluralidade de sexualidades, prevendo o diálogo, a reflexão e o respeito por si e pelo outro como meios para o aluno ―transformar e/ou reafirmar concepções e princípios‖ (BRASIL, 1997, p. 87). Por sua vez, os PCN para o Ensino Médio (BRASIL, 2000) não trazem em sua redação a temática da diversidade sexual. Se esta temática, quando incluída em um documento oficial, não é trabalhada devidamente, como no caso dos PCN para o Ensino Fundamental, mais difícil ainda se torna quando não há nenhuma referência a ela. Por isso, julgamos relevante no processo de formação de leitores que a diversidade sexual também seja abordada no Ensino Médio e no Ensino Superior, principalmente nos cursos destinados à formação de professores, para que haja uma efetiva discussão, reflexão e transformação acerca das práticas que geram o preconceito e a exclusão no espaço escolar. Portanto, acreditamos que se trata de uma temática que merece o devido respaldo dos professores em sala de aula, uma vez que eles são os mediadores, na maioria das vezes, entre o texto e o leitor, cabendo-lhes, desse modo, mediar as reflexões e suscitar questionamentos que provoquem nos nossos jovens alunos, leitores em processo de formação, uma ruptura com alguns dos paradigmas tradicionais de nossa sociedade, como, por exemplo, a matriz heterossexual. O texto literário não somente permite ao leitor esse encontro com a alteridade, como também é capaz de levá-lo a uma compreensão dos valores sociais, culturais e 329 históricos que estão intimamente relacionados à constituição de outras identidades culturais, como vemos, por exemplo, na narrativa infanto-juvenil O menino que brincava de ser, que passamos a analisar. Breves apontamentos sobre a diversidade sexual em O menino que brincava de ser, de Georgina da Costa Martins Como vimos anteriormente, a literatura, como forma de expressão humana, ―manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos‖ (CANDIDO, 2004, p. 176). Ela ajuda o homem a organizar suas opiniões e seus sentimentos. Crentes nesse poder da literatura, acreditamos que o texto literário pode proporcionar ao leitor uma formação que o ajude a compreender (ou identificar-se com) as mazelas, o sofrimento e as angústias do outro, como ocorre com a narrativa infanto-juvenil O menino que brincava de ser, de Georgina da Costa Martins. Esta narrativa aborda, em seu enredo, o processo de constituição da identidade sexual e de gênero de um garoto, Dudu, além de evidenciar o comportamento do protagonista em relação a sua sexualidade e aos dilemas vivenciados por ele, sobretudo aqueles que dizem respeito à sua família. Dudu é um garoto ―sensível e criativo‖, que brinca de ser – ora menino ora menina – e por isso sofre as consequências, desde a sua infância, de uma sociedade em que a heterossexualidade é tida como norma de conduta a ser seguida rigidamente. Esse texto, ao abordar a temática da diversidade sexual e de gênero, proporciona ao leitor um encontro com a experiência do outro, assim como pode levá-lo a se identificar com ela. Trata-se, pois, de possibilidades de leitura oferecidas pelo texto literário, como demonstra Cosson (2011). O meio social da narrativa representa sistemas de significação que buscam reprimir certas identidades, pois parte de seus familiares e alguns colegas da escola tratam a brincadeira dele como uma anomalia, uma doença, uma vez que ela transgride as normas de uma sociedade heterossexual e de uma família com princípios tradicionais. É nítida a preocupação da mãe em relação a Dudu querer representar papeis femininos, por exemplo. Apreensão que aumenta quando Dudu confessa a ela seu desejo de ser menina, ―brincar de ser de verdade‖: — Mãe, eu queria ser uma menina! — Que é isso, meu filho? Você tá maluco? 330 — Não, mãe, é verdade, eu queria mesmo. — Seu pai nem pode saber de uma coisa dessas, viu? — Mas, mãe, por que eu não posso ser menina? Você não é? — Mas eu nasci assim; você não, você nasceu como o seu pai. (MARTINS, 2000, p. 06 e 08). A mãe explica a Dudu que ele não pode ser menina, porque nasceu menino, como o pai. Vemos, no discurso da mãe, a identidade de gênero e sexual sendo tratada a partir de uma visão essencialista, que concebe a heterossexualidade como uma norma fixa, imutável, natural, associada a uma categoria biológica do sexo (WOODWARD, 2000). Transtornada, a mãe liga para uma amiga que lhe sugere levar Dudu ao doutor Psicólogo: ―— Vamos, Dudu, você precisa de um médico‖ (MARTINS, 2000, p. 08). Dudu é tratado como um doente, com uma patologia que precisa ser curada, justamente em decorrência de a sua sexualidade ser considerada por seus pais como transgressora, portanto, patológica, o que nos remete ao discurso da medicina do século XIX que prometia curar essas sexualidades ―anormais‖. No entanto, o doutor Psicólogo diz que não há nada de errado com Dudu. A mãe, inconformada com o diagnóstico, liga para outra amiga que a aconselha que leve Dudu ao doutor Psiquiatra, que constata o mesmo diagnóstico que o médico anterior. Há, pois, na atitude da mãe, um discurso que reforça a necessidade de Dudu se adequar a uma normalidade, de modo que a sua identidade corresponda ao que a sociedade espera de um garoto do sexo masculino, ou seja, que haja uma correspondência e uma relação de continuidade entre o sexo, o gênero, o desejo e as práticas sexuais. A subjetividade do sujeito que foge ao padrão preestabelecido fica a mercê de julgamentos, é tida como estranha ou desviante. Aqueles que não obedecem às normas são questionados, apontados e excluídos. Na apresentação do tema transversal Orientação Sexual, os PCN informam que a sexualidade envolve também ―o respeito por si e pelo outro‖ (BRASIL, 1997, p. 73), porém, o que percebemos é uma dificuldade nas escolas em aceitar aqueles que não se assemelham ao que a norma dita como correto; por isso, o leitor, ao se deparar com a alteridade presente no texto literário, pode romper ou perpetuar estereótipos já fixados em nossa sociedade. Dudu transgride explicitamente as normas de disciplinamento dos corpos. Ele não materializa a norma tida como correta. O pai do garoto chega a chamá-lo de ―mulherzinha‖, quando o vê vestido com roupa de sua mãe, pois está inserido em uma sociedade para a qual o sujeito do sexo masculino deve ter ou desempenhar uma 331 performance masculina e ao sexo feminino deveria corresponder uma performance feminina. Essa atitude do pai faz com que Dudu chore, pois se vê desamparado, ridicularizado e humilhado pelo pai. A mãe explica que já o levou aos médicos e que eles disseram que Dudu é normal. O pai dele diz que não é normal, que já teve essa idade e o seu pai, avô de Dudu, nem deixava que ele se aproximasse de bonecas, o que nos remete à afirmação de Jurandir Freire Costa, de que, geralmente, nossas condutas morais obedecem a esse tipo de ordenação. Aqueles que se assemelham a nós, ou que se aproximam dos ideais morais aos quais aspiramos, merecem nosso respeito e têm suas condutas aprovadas, ou seja, apresentadas como modelos a serem seguidos. Em contrapartida os que se afastam dos modelos são reprovados e apontados como transgressores, anormais ou criminosos, conforme a infração cometida (1992, p. 17). A identidade que foge ao padrão, que não está próxima da desejada, é reprovada, questionada e não é tratada com respeito, uma vez que essa identidade é apontada como anormal e por isso precisa ser moldada e disciplinada. Por isso, o pai resolve matricular Dudu em uma escolinha de futebol, um espaço e um jogo essencialmente masculinos, remetendo o leitor ao seu desejo de disciplinar a identidade de gênero e sexual do filho, mesmo ele tendo afirmado que não gostava de futebol. Os pais procuram afastar Dudu dos comportamentos e das práticas consideradas femininas. Pretende-se, com isso, moldar a identidade de Dudu dentro dos padrões de masculinidade aceitos pela sociedade. Os avós paternos de Dudu, ao fazerem uma visita a sua casa, o veem com o vestido da mãe. E ao saberem do desejo do garoto de se tornar uma menina, eles também o reprimem severamente. O espaço familiar, no decorrer da narrativa, é marcado pela opressão, pela rejeição à identidade que não corresponde ao que é desejado e esperado de Dudu. A família é a instituição responsável pela formação inicial da criança, e esta formação de Dudu já conta com um padrão heterossexual que lhe é imposto cotidianamente, de modo que a identidade diferente gera um conflito, uma tensão entre as expectativas e as normas sociais que não são materializadas pelo corpo de Dudu: — Meu Deus! Que é isso, Dudu? — falou a avó. — Meu filho, vá tirar essa roupa! — falou a mãe. 332 — Meu Deus! Meu único neto! — disse o avô. — Mulherzinha! — gritou o pai. O pai pegou-o pelo braço e disse: — Vai ficar duas semanas de castigo! A avó falou: — Se fosse meu filho, eu dava uma surra bem dada (MARTINS, 2000, p. 38-40). Os pais de Dudu e os avós paternos o levam ao doutor Endocrinologista na esperança que ele fosse diagnosticar a ―doença‖ de Dudu e indicar o tratamento adequado para curá-la. Felizmente, o médico constata que o garoto não tem nenhum problema e a família, mais uma vez, fica decepcionada com o laudo médico. Tanto o discurso da família quanto o dos colegas da escola revela um olhar preconceituoso em relação às diferentes identidades culturais, o que nos remete àqueles discursos que retomam e levam adiante os estereótipos de masculinidade que alijam aqueles sujeitos cuja performance não condiz com aquela que se espera deles. Nesse sentido, o outro é representado como estranho, menor, o que precisa ser tratado, diagnosticado e curado para ser aceito pela sociedade ao se encaixar dentro das normas estabelecidas. Dudu é vítima de preconceito porque não faz parte de sua identidade o gosto por certas práticas heterossexuais. São vários os discursos presentes na narrativa que tentam moldar a identidade dele segundo uma matriz heterossexual. Na escola, por exemplo, alguns colegas dizem que menino não pode desempenhar papeis femininos: ―— Mas, Dudu, homens não podem ser bruxas! Você pode ser um mago...‖ (MARTINS, 2000, p. 04). Em casa, a mãe diz que ele tem que ser menino porque nasceu assim. Já os avós paternos menosprezam a vontade de Dudu de ser menina e o pai, por sua vez, o matricula em uma escolinha de futebol. Ambas as instituições sociais, a escola e a família, procuram estratégias para que a identidade de Dudu se encaixe dentro da norma heterossexual, em uma perspectiva essencialista. Dudu só era compreendido mesmo pela avó materna. Ele conta a ela que queria ser uma menina e que se ele passasse debaixo de um arco-íris ele poderia realizar o seu desejo. Por isso, ele pergunta se a avó pode levá-lo até o arco-íris, e ela diz a ele que irá descobrir onde tem um para levá-lo. Dudu fica muito feliz, porque a avó se propôs a ajudá-lo e assim ele se libertará, por exemplo, das agressões do pai: — Vó, meu pai vai ver só, depois que eu virar menina ele não vai poder fazer nada. Vai parar de ficar me atormentando pra jogar futebol, nunca mais vai dizer pra eu não trazer desaforos pra casa, vai parar de implicar com os meus brinquedos... Vai até comprar 333 aquela boneca de que eu gostei. E, depois, acho que ele nem vai mais me bater com tanta força, porque ele sempre diz que em mulher não se bate (MARTINS, 2000, p. 48). A avó de Dudu o leva ao teatro, outro espaço essencial na narrativa, onde eles irão encontrar uma amiga de sua avó, que sabe a história do arco-íris. Ela leva Dudu ao camarim, onde ele vê homens e mulheres se fantasiando e se maquiando, criando outras identidades, brincando de ser, assim como ele. Inclusive Dudu descobre que, no teatro, os homens podem desempenhar papeis femininos, e as mulheres os masculinos, sem nenhum problema, o que faz com que Dudu fique muito pensativo e, ao mesmo tempo, fascinado com o mundo do teatro. Ao saírem do teatro, a avó o acompanha até o arco-íris: ―—Dudu, é aqui. É só passar três vezes embaixo dele e desejar ser menina‖ (MARTINS, 2000, p. 70). Como resposta, Dudu afirma: ―— Vó, você perguntou a ela se eu posso virar menino outra vez se eu quiser?‖ (MARTINS, 2000, p. 70). Dudu desiste, pois, de passar debaixo do arco-íris, ele abre mão do seu desejo de se transformar em menina, pois ele percebe que a identidade que quer assumir não é aceita pela família, pedindo à avó que o ajude a conversar com o seu pai: — E aí? Tá com medo de ser menina? Dudu ficou pensando, pensando, pensando... — Vó, você me ajuda a falar com o meu pai? — Que você virou menina? — Não, vó. Você me ajuda a falar com ele pra ele gostar de mim assim do jeito que eu sou? Pra ele deixar eu brincar de ser todas as vezes que eu quiser? Pra ele deixar eu não gostar de futebol? E pra ele não me bater mais com muita força? (MARTINS, 2000, p. 72). Talvez, Dudu nem quisesse ser menina de verdade, mas apenas ter a liberdade de poder brincar como as meninas, sem prescrição de normas ou regras a serem seguidas rigidamente: ―— Vó, acho que eu quero continuar sendo eu. Não quero mais virar menina para sempre.‖ / ―— Vó, já sei, eu quero é ser ator de teatro!‖ (MARTINS, 2000, p. 76). Ao final da narrativa, vemos que a mudança de identidade ou a liberdade almejada por Dudu, em nossa sociedade, só é permitida no espaço do teatro, que lhe permite ―brincar de ser‖ sem julgamentos ou questionamentos. Na vida real, ela se constitui como uma transgressão que ofende os ―bons costumes‖, por romper com estruturas tradicionais referentes à identidade de gênero e sexual. 334 Como vimos anteriormente, o letramento literário, como uma prática social de leitura, possibilita a reflexão e a humanização do leitor, proporcionando o diálogo com o outro presente na tessitura da obra, permitindo que o leitor tenha contato com outras identidades culturais, ampliando seus conhecimentos de mundo, de si e acerca do outro. Portanto, o possível choque de valores do leitor com a alteridade presente no texto literário pode contribuir para que ele seja capaz de rever, questionar e, talvez, romper com os valores, as ideologias e os discursos institucionalizados acerca da diversidade sexual. Considerações finais Como procuramos demonstrar, o texto literário permite ao leitor o contato com a alteridade e, por conseguinte, com os valores sociais, culturais e históricos de uma sociedade que podem ser questionados ou não na tessitura do texto. Assim, o texto literário, rico em plurissignificação e em construção de sentidos, ao abordar determinadas temáticas, como, por exemplo, a diversidade sexual e de gênero, pode ajudar a desconstruir certos preconceitos arraigados em vários discursos de nossa sociedade balizada por uma matriz heterossexual, que exclui as identidades de gênero e sexuais que não se encaixam nas normas preestabelecidas. A representação que o texto literário faz do outro pode auxiliar na desconstrução ou perpetuação do preconceito e das definições já enraizadas na sociedade. A narrativa infanto-juvenil que analisamos, por exemplo, permite-nos questionar padrões vigentes de modelos fixos de identidade, abrindo espaço para que o leitor, de forma crítica, perceba as ideologias e o envolvimento do social, do histórico e do cultural na elaboração do sentido e dos valores criados e transmitidos pelos personagens do texto. É evidente que, para que o leitor se posicione criticamente diante do que lê, não basta a simples leitura/decodificação das palavras, é necessário que ele se aproprie da leitura e faça dela instrumento de (trans)formação. Assim, poderemos falar em letramento literário, em uma efetiva formação de leitor crítico. Para que esta formação se efetive, julgamos importante a participação do professor como mediador de questões que ainda são consideradas difíceis de serem abordadas, mesmo constando em documentos oficiais, como os PCN. Se os PCN tratam da temática da diversidade sexual como tema transversal, se o texto literário permite uma abordagem interdisciplinar, acreditamos que é possível, sim, a formação do leitor crítico para a diversidade, desde que a ele sejam dados os meios de 335 dialogar com o texto literário e com esse outro representado no discurso literário. Infelizmente, as obras que tratam dessa temática não têm chegado à escola e às salas de aula, de modo que elas não têm sido trabalhadas nas escolas, ou por falta de preparo dos docentes ou porque essas questões são vistas com ―maus olhos‖ e, portanto, seriam desnecessárias à formação dos alunos. Quando o professor discute com seus alunos uma narrativa literária que aborda questões não somente heterossexuais – na maioria das vezes privilegiando o homem, branco, heterossexual e cristão – ele abre espaço para a diversidade, para o diálogo com outras identidades, permitindo que os sujeitos leitores conheçam, questionem e reflitam a respeito do outro. Os discursos constituídos historicamente subsidiam a negação de determinadas identidades. É claro que não podemos negar, como pontuam os PCN para o Ensino Fundamental, que cada sociedade possui regras que regem o comportamento sexual, mas isso não deve significar a supervalorização de uma identidade em detrimento de outras, uma vez que vivemos em uma sociedade plural e apontar uma ou outra identidade como ―verdadeira‖ e ―correta‖ faz com que diversas identidades sejam excluídas e reprimidas. A literatura, como forma de conhecimento, é um meio de se adquirir ―noções, emoções, sugestões, inculcamentos‖ (CANDIDO, 2004, p. 179), porém é também um meio de contestar ―verdades‖ e discursos proferidos por quem detém o poder. Para concluir, gostaríamos de ressaltar que mesmo enfatizando, neste trabalho, a literatura como capaz de humanizar, ela deve ser compreendida em sua função primeira, isto é, propiciar o prazer estético, a fruição, o que não impedirá, posteriormente, que o leitor veja a obra na sua função social. Portanto, no texto literário não deveríamos considerar apenas o conteúdo – é comum obras literárias em que o autor assume uma causa social e/ou política – e os valores éticos, mas também a elaboração estética, o fazer poético. A humanização que se pretende envolve todo um conjunto de ações, uma vez que se trata de um processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor (CANDIDO, 2004, p. 180). Portanto, a literatura tem várias funções. Ela age de diferentes modos na vida do homem, possibilitando-lhe uma maior compreensão do outro e do próprio meio social, 336 cultural e histórico no qual se encontra inserido. A literatura é alimento para a alma e também para o corpo, permitindo-nos ver com outros olhos a nossa sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Parâmetros MEC/SEF, 1997. Curriculares Nacionais: Ensino Fundamental. Brasília: BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 2000. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 169-192. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2011. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. MARTINS, Georgina da Costa. O menino que brincava de ser. São Paulo: DCL, 2000. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 7-72. ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1988. 337 PREFÁCIOS CAMILIANOS: EM BUSCA DO LEITOR Vanessa Suzane Gonçalves dos Santos 5 Profa. Dra. Germana Sales (Orientadora ) 6 Influente escritor português, Camilo Castelo Branco (1825-1890) ganhou notoriedade também no Brasil. Na biblioteca do Grêmio Literário Português, localizado no estado do Pará, as obras do autor lusitano formam um dos mais significativos acervos da instituição com a coleção das Camilianas, no qual o romance é o gênero que aparece com maior expressividade. Nesses romances, é possível identificar uma presença marcante de prefácios, textos introdutórios que antecedem o texto ficcional propriamente dito. Como escritor profissional que foi, Camilo Castelo Branco dependia da venda de seus escritos, e, para conquistar o público, utilizava-se do espaço do prefácio para dialogar com seus prováveis leitores. Por meio de algumas estratégias discursivas, buscava atraí-los se dirigindo, por diversas vezes, a um público leitor específico, ao qual a obra era direcionada. O discurso do romancista, nesses prólogos, pode revelar as imagens do possível leitor ou leitora, pretendido ou projetado pelo escritor e que recepcionaria a sua obra, independente de ser o leitor real. Assim, a partir da análise dos prefácios escritos por Camilo Castelo Branco e publicados na década de 1860, pretendemos, neste trabalho, identificar o perfil de leitor construído pelo autor lusitano nos textos intróitos aos seus romances. Palavras-chave: Camilo Castelo Branco; Prefácios; Leitor. LES PRÉFACES DE CAMILO CASTELO BRANCO: À LA RECHERCHE DU LECTEUR Influent écrivain portugais, Camilo Castelo Branco (1825-1890) a également gagné notoriété au Brésil. Dans la bibliothèque du Grêmio Literário Português (Guilde Littéraire Portugaise), situé dans l'état du Pará, les œuvres de l'auteur lusitanicien forment l'une des plus importantes recueil d'ouvrages de l'institution avec la collection des « Camilianas », dans laquelle le roman est le genre qui apparaît avec une grande expressivité. Dans ces romans, il est possible d'identifier une forte présence de préfaces, textes introductifs avant le texte de fiction en effet. Comme un écrivain professionnel qui était, Camilo Castelo Branco dépendait de la vendre de ses écrits. À fin de remporter le public, il a utilisé l'espace des préfaces pour dialoguer avec les probables lecteurs. Au moyen des stratégies discursives, il cherchait les attirer et pour cela il se dirigait, à plusieurs reprises, à un lectorat spécifique, à laquelle le travail a été destiné. Le discours du romancier, dans ces prologues, peut révéler les images d‘un possible lecteur ou lectrice, conçue ou prévue par l'écrivain. Ces lecteurs accueilleraient son travail, indépendant de être le lecteur réel. Ainsi, à partir de l'analyse des préfaces écrites par Camilo Castelo Branco et publiés dans les années 1860, nous avons Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 6 Professora de graduação e pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de produtividade CNPq. E-mail: [email protected] 5 338 comme but dans ce travail identifier le profil du lecteur construit par l'auteur lusitanicien dans les prologues de ses romans. Mots-clés: Camilo Castelo Branco, préfaces; lecteur. Dono de uma extensa obra literária, Camilo Castelo Branco (1825-1890) conquistou leitores além das fronteiras portuguesas. No Brasil, suas produções compõem os acervos de diversas bibliotecas e gabinetes de leitura, que, em grande parte, conservam as primeiras edições, vindas diretamente de Portugal, a exemplo da biblioteca do Grêmio Literário Português, fundada em 1867, no Pará, no qual o acervo das Camilianas é um dos mais volumosos presentes na instituição, e ainda hoje disponível para consulta. Dentre os diversos gêneros que compõem o acervo das Camilianas, frutos da diversidade de escrita do autor lusitano, o romance é o gênero que aparece com maior expressividade 7 , sendo marcante, nesses textos, a presença de prefácios, textos introdutórios que antecedem e apresentam o texto ficcional propriamente dito. Atento aos gostos e reações de seu público leitor, Camilo Castelo Branco não hesitava em moldar-se aos diversos gostos de leitura aos quais deveria atender para vender seus livros. Nos prefácios dos seus romances, o escritor português procurava dialogar com seus possíveis leitores e atraí-los por meio de estratégias discursivas, as quais podem revelar as imagens desse provável leitor ou leitora, pretendido ou construído pelo autor nos intróitos dos seus romances. A atenção e a dedicação dadas pelos autores aos seus leitores, principalmente nos prefácios de suas obras, tornaram-se práticas mais evidentes a partir do momento em que o leitor começou a aparecer como o principal acolhedor da obra, por conta do desaparecimento da necessidade do mecenas para mediar e patrocinar a publicação da obra. A partir de então, livres do compromisso para com o agente financiador, que autorizava a publicação do livro, os escritores, percebendo a possibilidade de alcançar sua independência financeira, aventuraram-se por temas diversos, visando agradar ao numeroso público consumidor pretendido. Assim, os escritores revelavam diferentes imagens do público para quem eram escritos os seus romances, e o prefácio é um espaço possível de observar essas projeções. Considerado um lugar que abarca textos ensaísticos, que expressam reflexões e debates, o O acervo das Camilianas foi objeto de estudo dos Trabalhos de Conclusão de Curso de Vanessa Suzane G. dos Santos, sob o título As Camilianas: uma história do livro no Grêmio Literário Português, e de Jôice Assunção Pimentel, com o título Camilianas: uma trajetória de dramas, poesias, polêmicas, ensaios e escritos religiosos no Grêmio Literário Português. 7 339 prefácio procurava persuadir o leitor, seduzi-lo e encaminhá-lo para a leitura do texto ficcional que o seguia. No Brasil, os estudos de Germana Sales (2003) acerca das imagens de leitura impressas nos prefácios de romancistas brasileiros do século XIX revelam o perfil do leitor idealizado pelos escritores, partindo do princípio de que a leitura configura um conhecimento compartilhado em que convivem autor, leitor e texto para uma relação de conhecimento e de prazer. Para a autora A representação do leitor nos textos prefatórios reflete a imagem de um público imaginado pelo autor e que podem caracterizar os leitores pretendidos pelo autor. Para tanto, o prefácio desempenha, dentre outras, a função de estabelecer uma cumplicidade entre autor e leitor, definida em distintas maneiras de tratamento. As diversas formas de tratamento estabelecidas pelo autor para com o leitor são uma forma estratégica de alcançar um público vário, com gostos e preferências diversas. (SALES, 2003, p. 54) Assim, a autora afirma que nos prefácios dos escritores brasileiros do século XIX é possível identificar categorias distintas de leitura, que classificam o leitor em diversas maneiras, a saber: o público feminino, o público generoso e benevolente, o leitor erudito e sábio e, por fim, o leitor que lê por entretenimento e distração. A figura feminina é recorrentemente evidenciada nesses prefácios, nos quais a interlocução é feita por meio de aparatos de bajulação e lisonjas intencionais. Já o segundo grupo de leitores é aquele que acolherá a obra com indulgência, categoria que também engloba os leitores qualificados como ingênuos e sentimentais, com os quais o autor dialoga por meio de cortesias, confidências e cumplicidade. O grupo dos leitores eruditos e sábios diz respeito àqueles que são capazes de combinar leitura e instrução, donos de um olhar judicioso e crítico. A quarta e última categoria é classificada nos prefácios como aquela que busca na leitura o entretenimento, a diversão e o deleite (SALES, 2003). Essas categorias não ficam restritas aos textos introdutórios dos romances brasileiros oitocentistas, mas podem ser comprovadas também na leitura dos prefácios escritos por Camilo Castelo Branco, as quais buscaremos apresentar neste trabalho, a partir da análise dos prefácios escritos aos romances Amor de Perdição (1862), Estrelas Funestas (1862), Anos de Prosa (1863), Amor de Salvação (1864), Luta de Gigantes (1865) e Mistérios de Fafe (1868), todos com primeira publicação na década de 1860, época em que Camilo 340 tornou-se reconhecido como romancista e que registra um ritmo frenético de produção desse escritor lusitano. 8 Entre as categorias elencadas, chamamos à cena primeiramente a projeção da imagem da figura feminina como leitora dos romances camilianos. Para tanto, observamos que no Amor de Perdição (1862), o ―Prefácio‖, que nas demais edições virá sob a forma de ―Introdução‖, traz um discurso carregado de sentimentalismo e pronto a esmorecer o coração da leitora: Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó. [...] O leitor de certo se compungia; e a leitora se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria! Amou perdeu-se, e morreu amando. É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria liberdade, irmãs, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?! (BRANCO, 1862) O romancista se reporta tanto ao público leitor masculino quanto ao feminino, mas é nítida a diferença de tratamento dada a ambos, e o destaque concedido à leitora. Ao leitor caberá a sensibilidade e uma certa aflição diante da história que será narrada , mas à leitora, à carinhosa amiga, a qual ele bajula e lisonjeia, cabe o choro e a piedade, intencionalmente caracterizados como próprios do caráter e do coração feminino. A tentativa é de sensibilizar o leitor, e, especificamente, a leitora, movida pelo sentimento, e atraí-la para uma possível história de amor e desgraça que compõe o texto ficcional que seguirá ao prefácio. Ainda visando a leitura feminina, é interessante observamos que no prefácio feito ao romance Anos de Prosa (1863), intitulado ―Discurso Proemial‖, o escritor não se dirige diretamente a ela, mas, para alcançá-la, fala aos pais de família: Grande mal é o identificar-se o espírito às visualidades do romance. Quando a leitora se ri das crendices da sua infância e dos absurdos princípios que lhe apoucaram o imaginar e o voar do espírito, vem-lhe os enfados, o escutar as mentiras do coração que se emancipa, o crer que a A escolha pela década de 1860 se justifica por ser esse o período que registra o maior número de publicações de obras de Camilo Castelo Branco. Esse grande número de publicações, no entanto, nos impede de analisar, neste trabalho, os prefácios de todos os romances que se enquadram nesse recorte, por isso, optamos por abordar aqui somente os prefácios que evidenciam com maior satisfação os aspectos selecionados para análise. 8 341 vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e que o viver da alma assim, será como o do arbusto bravio que dá flores sem aroma e frutos sem sabores. [...] Comecem os pais de família, por circunvalerem suas casas de um cordão sanitário contra a peste do romance, que não se abonar com a prometida pudicícia deste, e de outros com que o autor, coração aberto de todas as quimeras, e de entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronco carcomido da humanidade toda a casta de virtude. (BRANCO, 1863) O autor oferece aos pais de família, para que eles autorizassem suas filhas e esposas a lerem, um romance que auxiliaria na formação da moral e dos bons costumes, conforme os limites estabelecidos por esses mediadores da leitura feminina. O escritor demonstra acreditar que os romances, que não obedecessem à moral, são capazes de perverter as moças de família, oferecendo-lhes maus exemplos. O seu romance, no entanto, assim como todos os demais que ele escreveu, conforme explicita, foi feito para despreocupar os pais de família quanto à vigilância da leitura das filhas e esposas, pois a intenção seria justamente proclamar a virtude.9 Ao considerar a existência de dois tipos de romance, aquele que corrompe e aquele que instrui, Camilo entra em uma discussão ainda corrente no século XIX a respeito da função do romance, pois, desde sua ascensão, o gênero enfrentou embates que envolviam seus defensores e seus detratores. Era comum os mediadores das leituras femininas, como os pais de família, os maridos e a Igreja, associarem o comportamento das mulheres às leituras de romances feitas por elas, por isso a preocupação em vigiar a leitura, até mesmo porque acreditava-se que uma mulher que soubesse ler e escrever poderia representar um malefício para a sociedade. Suas leituras, portanto, deveriam ser amenas e não deveriam provocar reflexão. Ao se classificar romancista virtuoso, Camilo Castelo Branco procura conquistar um público necessário para mediar a chegada e a autorização da leitura dos seus livros a figuras femininas, pois as mulheres passavam a constituir um grupo de leitores efetivo. A postura do autor nesse prefácio, no entanto, não deve ser levada a cabo, como opinião formada e realmente defendida pelo escritor, pois os seus discursos em cada prefácio e a forma com que ele se dirige a cada categoria de leitores estão diretamente ligados a sua intenção de atrair e persuadir o público a consumir a sua obra. No prefácio ―A quem ler‖ do romance Estrelas Funestas (1862), o leitor projetado é o benevolente, diante do qual o escritor finge modéstia e se diminui enquanto criador: A leitura de romances foi considerada um perigo, principalmente se realizada por mulheres. Márcia Abreu apresenta as discussões sobre o tema em Caminhos dos Livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. 9 342 Venho já declarar que me desgosta o título deste meu romance; mas não é esta a primeira vez que meus atos, invenções e palavras me desgostam, embora estranhos aplaudam uns e outros. [...] Sendo numa dessas paragens é que eu conto esta história às pessoas que quiserem ouvir por complacência com a minha velhice, e porque eu lhe assevero que este e todos os meus romances olham a prevenir o leitor contra os infortúnios procedentes da mentira do coração. (BRANCO, 1862) Utilizando-se de falsa modéstia o autor dirige-se ao leitor complacente sem deixar, entretanto, de destacar os aplausos recebidos. Jogando com o leitor, qualifica a si mesmo negativamente, ao mesmo tempo em que enaltece a figura do leitor ao pedir-lhe benevolência, almejando obter solidariedade do mesmo para com a leitura da sua obra, evitando, assim, críticas maledicentes. Mas o autor não deixa de assegurar, mesmo se dizendo insatisfeito ou desgostoso com alguns aspectos da obra, que ela apresenta uma finalidade útil, demonstrando que esse leitor projetado, além de bondoso, é também exigente e dono de gostos específicos. Efetivamente dono de sua vontade é o leitor sábio ou crítico, a quem é dado o direito de comentar, julgar, elogiar ou apontar possíveis faltas ou defeitos na obra. Sua imagem é projetada nos prefácios a partir de pressuposições e justificativas do autor perante um provável julgamento feito pelo imaginado leitor crítico à obra: O leitor folheia duzentas páginas deste livro, e o amor de felicidade e bom exemplo não se lhe depara, ou vagamente lhe produz. Três partes do romance narram desventuras de amor de desgraça e mau exemplo. A crítica, superintendente em matéria de títulos de obras, querendo abatese e esquadrinhar a legitimidade do título desta, pode embicar e ponderar – que o amor puro, o amor de salvação vem tarde para desvanecer as impressões do amor impuro, do amor infesto. Respondo humildemente: Amor de salvação, em muitos casos obscuros, é o amor que excrucia e desonra. Então é que o senso íntimo amostra ao coração a sua ignomínia e miséria. A consciência regenera-se, e o coração, reabilitado, avigora-se para o amor impoluto e honroso. Assim é que as enseadas serenas estão para além das vagas montuosas, que lá cospem o náufrago aferrado a sua tábua. Sem o impulso de tormenta, o náufrago pereceria no mar alto. Foi a tempestade que o salvou. (BRANCO, 1864) Nesse prefácio, intitulado ―Observação‖ e escrito ao romance Amor de Salvação (1864), observamos que autor procura se explicar diante de uma possível crítica dirigida ao romance, quando de sua publicação, por seus leitores e também pelos críticos 343 especializados que, assim como os mediadores das leituras femininas, igualmente exerciam (ainda que nem sempre) papel importante para o sucesso ou para o fracasso da obra. Por meio das pressuposições do autor conhecemos os possíveis comentários do leitor crítico ao romance, aquele que perceberá uma suposta incompatibilidade entre o título e o texto narrativo ao qual ele pertence, percepção esta legitimada pela crítica especializada. Apontados os defeitos, o autor, de antemão, busca justificar título e enredo, pois considera que esse leitor não absorverá benevolente nem passivamente o que lê. Conforme afirma Aníbal Pinto de Castro (1991), Camilo, que sempre viveu do que escrevia, prestava constante e cuidadosa atenção às reações que as suas obras suscitavam, não apenas nos leitores, mas também naqueles que poderiam julgar e ecoar seus julgamentos, como os críticos especializados, cujas avaliações poderiam pesar nos rendimentos do autor. É interessante destacar que, outras vezes, esse autor preocupado em justificar possíveis falhas e senões de sua obra para os leitores, se mostra despreocupado e explicitamente irônico, fazendo questão de dirigir críticas diretas ao gosto de seus leitores e à crítica especializada, por vezes impiedosa com sua produção ficcional. O ―Aviso às pessoas incautas‖, dos Mistérios de Fafe (1868), evidencia tal afirmação: Esta novela contém adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais. Almas em flor de inocência e candura, não leiam isto que trescala podridão e gafaria, em que forçadamente a leitora, afeita ao ar puro das regiões vizinhas do céu, há de sentir nausear-se-lhe a alma. (BRANCO, 1868) Elencando uma série de julgamentos, numa espécie de antecipação jocosa ao que a crítica lhe imputaria, Camilo aparenta denunciar os ―defeitos‖ que o seu próprio romance poderia apresentar. É evidente o tom irônico da declaração, inclusive em relação aos seus possíveis leitores, pois, ―confessar‖ o caráter folhetinesco da narrativa, demonstrando os principais temas que serão abordados, é uma forma de, ao mesmo tempo, criticar e atrair os leitores, afeitos a esses modelos ficcionais. 10 Esse leitor, no entanto, seria mais bem Sabemos que Camilo Castelo Branco se lançou na vida literária se apoiando em modelos franceses como os das narrativas folhetinescas, sendo, por isso, censurado por críticos como António José Saraiva e Óscar Lopes (1982) e Jacinto do Prado Coelho (1960), que entendem que tais produções não passam de meras cópias, carentes de originalidade, fazendo parte da chamada ―fase de aprendizado‖ do escritor português. José Édil Alves (1990), entretanto, propõe um novo olhar sobre as produções de cunho folhetinesco de Camilo Castelo Branco, afirmando que o escritor de Anátema não era mero copiador de modelos importados da França, mas agia perante esses modelos de forma crítica, utilizando-se da paródia para fazer frente àquela espécie de narrativa que já adquiria popularidade entre os leitores. Para o crítico, o escritor lusitano utilizavase das técnicas, mas não assumia as posições teóricas, mantendo, assim, uma atitude crítica subtil ou 10 344 qualificado como leitor ingênuo, também dentro da categoria dos leitores benevolentes, que agora aparecem como alvos de críticas por parte do autor, que não perde a oportunidade de ironizar o seu gosto, ainda que tente agradá-lo para consumir o livro. Outra categoria projetada nos discursos dos prefácios camilianos é o leitor que busca distração e entretenimento, com o qual o autor dialoga de maneira mais descontraída e próxima. No ―Prólogo‖ do romance Luta de Gigantes (1865) evidenciamos a presença desse perfil de leitor: LEITOR! Eu não lhe chamo pio, porque diz frei Lucas de Santa Catarina, romancista, pregador e historiador do século passado, que ―bom é não chamar ao leitor de pio, porque pode ser testemunho‖. Chamar-lhe-ei antes curioso de velharias, que muito recreiam e aligeiram o tempo, quando as novidades não prestam. (BRANCO, 1865) O tom de descontração com que o autor apresenta e dialoga com esse imaginado leitor é evidente. Qualificado como curioso esse leitor quer histórias que possam distraí-lo para passar o tempo, pois demonstra ser uma figura ociosa. A associação da leitura do romance com a distração e a recreação era uma questão corrente no século XIX, pois muitos o consideravam o oposto da literatura instrutiva, pois exigia pouco do leitor, tendo, assim, como única finalidade divertir as pessoas que dispunham de tempo ocioso ou aquelas muito ocupadas, que buscavam, em algum momento, o lazer. A análise dos prefácios camilianos, no entanto, independentemente do aspecto a ser abordado, não deve desconsiderar a ironia como elemento recorrente em seus textos. Adepto da ―ironia romântica‖, definida por Jacinto do Prado Coelho (1982) como emergente da ambiguidade das relações dialéticas entre vida e ficção, homem-autor e autorinventor de histórias, vocação ou missão do escritor e negócio do livro, por meio da qual a literatura desmascara-se, denuncia o seu próprio estatuto ficcional, autodestrói-se à medida que se constrói, Camilo Castelo Branco proclama, irônico, a veracidade da ficção, como se de escrupulosa História se tratasse; alude aos cordelinhos do novelista; traz à tona os seus problemas de artífice, o modo como o ―real‖ da ficção deriva da escrita, as suas preocupações com um público de que depende o seu sustento, donde, por exemplo, os remoques aos leitores que lêem seus livros por empréstimo; não esconde também certas exigências dos editores a que será prudente conformar-se. (COELHO, 1982, p. 286) declarada. O romance Mistérios de Fafe (1868) estaria, então, dentre essas narrativas folhetinescas de cunho paródico escritas pelo autor lusitano. 345 A referência aos possíveis leitores nos prefácios de seus romances, portanto, não escapam ao jogo irônico proposto por Camilo Castelo Branco, um ilustre fingidor que sabe moldar sua pena para atender a um público vário, do qual ele precisava para vender seus livros, mas que também era alvo de críticas por parte do escritor. Esse moldar da pena para atender ao gosto diversificado dos leitores, no entanto, é visto, por críticos como Teófilo Braga (1872), como ponto negativo na produção camilina. Paulo Motta Oliveira (2007), no entanto, adotando uma perspectiva contemporânea, procura dar uma nova interpretação para o aspecto diverso e múltiplo que caracteriza a produção literária do escritor português. Considerando que Camilo foi um escritor profissional e que, por isso, necessitou vender seu trabalho aos mais diferentes interesses, o autor afirma que Se foi, e é, bem sucedido nessa venda, como o seu percurso editorial já com mais de 150 anos só vem a confirmar, foi porque teve plena consciência das correntes literárias de seu tempo e soube – e começo aqui uma provocação – se outrar. Se escrevia para várias casas editoriais – cada uma com o seu nicho de mercado e o seu público específico – é porque tinha consciência do que cada uma desejava e sabia moldar-se a várias e diversas necessidades. Ou seja, estaríamos diante de um escritor ―mais imaginativo que sentimental‖, capaz de fingir-se moralista, romancista histórico, o que necessário fosse. (OLIVEIRA, 2007, p. 109110) Para Paulo Motta Oliveira, portanto, o fato de Camilo escrever de várias formas para vários públicos, o que caracteriza a sua obra múltipla, não constitui um ponto negativo, mas sim evidencia a sua capacidade de satisfazer aos mais diferentes apetites. Os perfis de leitores projetados por Camilo Castelo Branco nos prefácios dos seus romances, aqui analisados sob o ponto de vista de quatro categorias distintas e representativas, dentre as muitas presentes em sua extensa obra, revelam a atenção e a astúcia de um assíduo escritor para com o seu público leitor, o qual necessitava atrair, conquistar e persuadir para vender sua pena, conquistar maior notabilidade e continuar vivendo do labor da escrita. Assim, de acordo com o público almejado, variavam-se as histórias narradas e também os discursos dos prefácios que, direcionados para determinados públicos, evidenciavam a imagem do leitor construída, projetada e pretendida pelo autor. A semelhança entre os perfis de leitores apontados em prefácios de romancistas brasileiros do século XIX, de acordo com os estudos de Germana Sales (2003), e os projetados nos prefácios dos romances de Camilo Castelo Branco, conforme procuramos 346 abordar neste trabalho, evidencia uma similaridade entre o público leitor de romances brasileiro e o público leitor de romances português dos anos oitocentos: um público vário e com gostos diversificados, para o qual os romancistas dirigiam sua atenção e adequavam sua escrita, visando o reconhecimento, a leitura e, por conseqüência, o consumo da obra. Essa atenção para com um diversificado público leitor, com características semelhantes tanto no Brasil quanto em Portugal, talvez explique o sucesso dos escritos de Camilo Castelo Branco também entre os brasileiros e a constituição de acervos de vastas Camilianas, como o disponível no Grêmio Literário Português, no estado Pará. Referências Bibliográficas ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. ALVES, Édil de Lima. A paródia em novelas-folhetins camilianas. Lisboa: ICALP, 1990. BRAGA, Teófilo. As modernas idéias da literatura portuguesa. Porto: Chardron, 1892. BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. Porto: Em Casa de N. Moré, 1862. BRANCO, Camilo Castelo. Estrelas Funestas. Porto: Em Casa da Viuva Moré, 1862. BRANCO, Camilo Castelo. Anos de Prosa. Porto: Editor António José da Silva Teixeira, 1863. BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Salvação. Porto: Em Casa de Viuva Moré, 1864. BRANCO, Camilo Castelo Branco. Luta de Gigantes. Lisboa: Livraria de Campos Junior, 1865. BRANCO, Camilo Castelo. Mysterios de Fafe. Lisboa: Livraria de Campos Júnior – Editor, 1868. CASTRO, Aníbal Pinto de. Para uma teoria camiliana da ficção narrativa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. In: Arquivos do Centro Cultural Português, p. 53-70. COELHO, Jacinto do Prado. Raízes e sentido da obra camiliana. In: BRANCO, Camilo Castelo. Obra seleta. Rio de Janeiro: Aguilar,1960. COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao estudo da novela camiliana. Lisboa: IN/CM, 1982. 2v. OLIVEIRA, Paulo Motta. À esquina do cânone: olhares dissimulados, leituras oblíquas. In: Literatura Portuguesa: história, memória e perspectivas. BUENO, Aparecida de Fátima et al. São Paulo: Alameda, 2007. 347 PIMENTEL, Jôice Assunção. Camilianas: uma trajetória de dramas, poesias, polêmicas, ensaios e escritos religiosos no Grêmio Literário Português. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Pará, 2011. SALES, Germana M. A. Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (18261881). Campinas – UNICAMP, 2003. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, 2003. SANTOS, Vanessa S. G. As camilianas: uma história do livro no Grêmio Literário Português. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Letras) - Universidade Federal do Pará, 2010. SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1982. 348 RESSONÂNCIAS DA MELANCOLIA NO ROMANCE CINZAS DO NORTE, DE MILTON HATOUM Veridiana Valente Pinheiro11 Tânia Sarmento-Pantoja12 Resumo: O presente trabalho é fruto da pesquisa que vem sendo desenvolvida na dissertação de Mestrado ―‗Para falar do corpo morto é preciso ficar no cinza‘: Ressonâncias da melancolia em Cinzas do Norte, de Milton Hatoum‖. Consiste em examinar as relações entre arte, trauma e melancolia no romance Cinzas do Norte (2005), observando de que forma o protagonista Mundo se constitui como um personagem melancólico, incluso em um universo social e histórico marcado por várias formas de violência, mas ao reelaborar esse universo agônico como arte, provoca na narrativa de Cinzas do Norte pelo menos dois grandes movimentos de reação, quais sejam: a produção das obras de arte por parte de Mundo e a elaboração da memória testemunhal realizada por Lavo. A história de Mundo é cinzenta e triste, representada por um percurso melancólico que se configura em uma vida fraturada e fracassada pelas imposições tiranas do Pai e pelo seu movimento de reação a esta tirania. Palavras – chave: Literatura, trauma, melancolia. Resumen: Este trabajo es el resultado de la investigación se está desarrollando en la tesis de maestría ―‗Para falar do corpo morto é preciso ficar no cinza‘: Ressonâncias da melancolia em Cinzas do Norte, de Milton Hatoum‖. Consiste en examinar las relaciones entre el arte, el trauma y la melancolía en el romance Cinzas do Norte (2005), observando cómo el Mundo se constituye como protagonista a un personaje melancólico, incluida en un universo marcado por las formas sociales e históricas de la violencia, pero el volver a dibujar esta agonía universo como el arte, hace que la narración Cinzas do Norte. Por lo menos dos grandes movimientos de reacción, a saber: la producción de obras de arte de mundo y la preparación de la memoria de los testigos realizadas por Lavo. La historia del mundo es gris y triste, melancólico representado por una ruta que se ha configurado en una vida fracturada y no imposiciones tiránicas por el Padre y su reacción a este movimiento tiranía. Palabras - clave: Literatura, trauma, melancolía. Considerações iniciais 1.Apresentação da narrativa Cinzas do Norte, publicado em 2005, pelo escritor Milton Hatoum, se passa na Manaus das décadas de sessenta e setenta; outras cidades e países também representam os espaços e os lugares onde Mundo, personagem principal da narrativa, morou. No Brasil, por exemplo, além de Manaus, ele também residiu no Rio de Janeiro. Fora do Brasil, a personagem viveu um longo tempo de sua vida em Berlim e Londres. Tal percurso se dá pela trajetória que Mundo faz em sua carreira como artista. Lavo, o narrador do romance é amigo desde a infância de Mundo. A amizade entre eles se estendeu através dos anos, indo além-morte. O romance narra a história de Mundo Universidade Federal do Pará – UFPA, mestranda na área de Estudos Literários e bolsista CAPES. E-mail: [email protected].. 12 Universidade Federal do Pará – UFPA, Doutora em Estudos Literários, professora da graduação e pósgraduação. E-mail: [email protected]. 11 349 desde a infância até sua morte, relatando as atrocidades e angústias que a personagem sofreu durante sua vida; devido a não aceitação de seu pai pela arte, que Mundo tanto lutou para desenvolver. A história da personagem é cinzenta e triste, representada por um percurso melancólico, que vai se construindo no decorrer da narrativa, em uma vida fraturada e fracassada, consequência das imposições tiranas do Pai. Além disso, sua vida também defina devido seu movimento de reação permanente contra a tirania de Trajano Matoso (Jano, seu pai). Lavo é um personagem pobre e órfão, que com empenho e a ajuda de Ramira, a tia, e de Trajano, consegue formar-se em direito. Ele é criado tanto por Ramira, quanto por Ranulfo, o tio que é amante de Alícia, mãe de Mundo e esposa de Jano. A família de Mundo é rica, eles são donos da Vila Amazônia, colônia japonesa construída para plantação e cultivo da Juta por volta de 1930. Os personagens da narrativa representam uma vida cinzenta e triste, por constituírem projetos de vidas fracassadas; os personagens também estão ligados por um grande segredo, que se revela ao final da obra, embora o tempo da narrativa comece narrando a vida da personagem Mundo, a partir de sua morte, a obra tematiza: o amor e a lealdade, traição e ciúme, a construção da cidade, obsessões e desvarios, melancolia e apatia. São as décadas de sessenta e oitenta, que marcam historicamente a obra, pois esses anos são compreendidos pela história da política brasileira, como os anos chumbo, período do Governo Militar, presença marcante na narrativa, representadas pelos espaços descritos no romance; tais espaços aludem um grande movimento de reação literária tendo em vista três aspectos de imposições: os sociais, os culturais e os políticos, ocorridos na Amazônia, no período da Ditadura Militar. Este rápido percurso pela descrição de aspectos singularizadores da narrativa é necessário para a definição da hipótese de trabalho, que consiste em examinar as relações entre arte, trauma e melancolia no romance Cinzas do Norte, observando de que forma o protagonista Mundo se constitui como um personagem melancólico, incluso em um universo social e histórico, marcado por várias formas de violência, mas ao reelaborar esse universo agônico como arte, provoca na narrativa de Cinzas do Norte pelo menos dois grandes movimentos de reação, quais sejam: a produção das obras de arte por parte de Mundo e a elaboração da memória testemunhal realizada por Lavo. 2. Discussões sobre arte, trauma e melancolia. 2.1. Arte Com base na hipótese apresentada anteriormente, vamos apresentar algumas definições de arte segundo Viktor Chklovski, que servirá de suporte quanto a compreensão 350 da arte produzida por Mundo. A partir disso, construir reflexão sobre trauma e melancolia dentro do campo teórico literário, dialogando a partir desses conceitos com as obras de arte, presentes na narrativa. Um dos questionamentos feito com relação ao romance Cinzas do Norte, foi relacionado a definição de arte e de ―como entender a arte a partir da própria arte?‖. Para Viktor Chklovski, 1917, "A arte é pensar por imagens". Segundo o autor a arte é pensada como procedimento metodológico de análise. Na visão do autor, tal ideia surge com formalistas russos, que tinham como propósito estudar e descobrir como é o funcionamento da literatura, enquanto procedimento de análise. Ainda segundo Chklovski, a literatura deveria ter como objeto de estudo não apenas o texto literário mas os elementos que o compõem, seja ele em prosa ou em verso, ou mesmo a própria imagem, que o encaixam na categoria do que é definido como literário. Nesse sentido, Chklovski, afirma que na arte o que prevalece é o metafórico, o obscuro, aspecto estes que incrementam, significativamente, a dificuldade de percepção de leitura em obras de arte. Segundo o autor, o que dificulta a compreensão da linguagem artística, é o seu próprio estranhamento inerente a própria obra de arte e seu leitor. Milton Hatoum, autor que estamos estudando, causou, no contato inicial com sua obra, objeto de nossa pesquisa, uma sensação de estranhamento proveniente da arte utilizada como ferramenta estrutural e metafórica de composição da narrativa. Cinzas do Norte sendo um romance criado a partir do recurso da linguagem artística refletida sobre a própria linguagem, causa grande estranhamento no leitor que a pesquisa, devido a sua metarreflexibilidade. Assim a narrativa compõe o próprio procedimento metodológico de análise ao reelaborar a memória traumática do mundo tirânico que a personagem Mundo viveu e representa em sua arte. A partir das pinturas da personagem é possível viajar nas entrelinhas de uma linguagem que usa a arte para desenhar a vida. No romance Cinzas do Norte, que é objeto de estudo deste trabalho, a descrição das pinturas de Mundo por Lavo é uma maneira particular de conjeturar um pensamento formado por imagens e ideias, criadas pela própria imaginação de quem as lê. Lavo ao presenciar Mundo sendo agredido por seu pai Jano diz: ―Isso é um absurdo‖ ―Absurdo? Não foi a primeira vez que meu pai me acertou. Na Vila Amazônia, ele chego por trás me deu uns solavancos e me chamou de fresco na frente dos filhos dos empregados. Só porque me rindo e brincando com os meninos Okayama Ken.‖ (HATOUM, 2010, p. 92). 351 Com isso é possível pensar que a arte não pode ser entendida apenas do ponto de vista das imagens, ou seja, não é a imagem em si que serve de vínculo para unir todas as formas de arte, mas o pensamento de quem as observa. Portanto, a imagem não é a representação apenas do traço principal da poesia; de forma que não deve ser esquecido que a imagem criada pela poesia apenas indica um determinado pensamento; na medida em que a imagem poética torna-se um dos meios de criar uma impressão máxima e a imagem prosaica é utilizada como veículo de abstração. Segundo o Chklovski, a arte restabelece a percepção de vida, quando sentimos e experimentamos os objetos. O objetivo dela é dar uma ideia do objeto como visão e o seu procedimento é o da singularização dos objetos. A obra de arte se estende da visão ao reconhecimento. No decorrer do texto, o autor exemplifica, com trechos de obras de L. Tostoi, o procedimento da singularização, pois, para Chklovski, Tostoi descreve os objetos do jeito que realmente são, sem deformidade, mostrando uma imagem real daquilo que dizem. Assim, concluiu o autor que ―o objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento [...] É a arte erótica que nos permite uma observação melhor das funções da imagem.‖ (Chklovski, 1917. p.50). Na narrativa de Cinzas do Norte, não prevalece o viés da arte erótica, mas sim o da arte grotesca, que se inicia com a pintura, fundindo-se na linguagem. Chklovski, ao finalizar o seu texto, procura dar ênfase ao discurso, que a ―linguagem poética busca enquanto caráter estético [que] se revela sempre pelos mesmos signos [...] Em certos casos particulares, a língua da poesia se aproxima da língua da prosa [...]‖ (Chklovski, 1917. p.54). Dessa forma, a língua da prosa, ainda que seja a mesma da poesia, se difere principalmente quanto a estética, pois a primeira pode representar o usual e a segunda o estranhamento. Na visão do autor a arte é, antes de mais nada, um procedimento e deve ser interpretada como tal. A partir desse procedimento vamos, agora, ao entendimento do trauma reelaborado por Mundo em suas pinturas. 2.2. A memória traumática. Um grande estudioso deste assunto é o professor Márcio Seligmann-Silva, que a partir de seu texto Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas, diz que ―a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade‖. 352 Com isso ―Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer‖, (SELIGMANN-SILVA, 2008 p. 66). Esse desejo de renascer foi expresso anteriormente segundo a visão apresentada sobre arte. Bruna Ferraz (2012. p. 56), em seu texto Narrar a resistência: a memória do trauma em a trilha dos ninhos de aranha e “Lembrança de uma batalha”, de Italo Calvino. Afirma que a ―Lembrança de uma batalha‖ [e] a chave narrativa será justamente o próprio relato de um evento traumático para Calvino, já que ele se defrontará com suas memórias de modo a buscar relembrar, o mais fielmente possível, a Batalha de Baiardo. É justamente diante do confronto de que fala Ferraz, que Mundo, ao pintar suas memórias, procura trazer a código o evento traumático, mesmo que este ―trazer‖ seja impossível, uma vez que a arte de Mundo é apenas uma forma de ―reviver‖ seu trauma, ou até mesmo reelaborá-lo. Voltando a visão de Seligmann-Silva, a ―tarefa de narrar o trauma adquire mais uma série de determinantes que não podem ser desprezados mesmo quando nos interessamos em primeiro plano pelas vítimas individuais‖ (SELIGMANN-SILVA, 2008 p. 67). É diante deste ponto de confronto que reside nossa análise sobre a obra de arte da personagem Mundo. Nas descrições feitas pelo narrador Lavo, das obras de arte produzidas por Mundo, observamos um ponto determinante para entendimento do fator que causou o trauma na personagem, este fator é ocasionado pela excessiva exposição de violência tanto familiar, quanto política. É a partir do fator traumático presente na vida de Mundo, que a melancolia emerge através da reelaboração da memória pela arte. Corpos caídos foi a primeira sequência que ele deixou sobre sua carteira em uma manhã em que foi a cantina. Vimos nossos corpos tombados, nossos rostos fazendo carretas medonhas: o Minotauro, meio monstruoso e o único sem cabeça, o Delmo com cara de gafanhoto, e o professor, no centro da quadra, um arlequim atarracado, a cabeça separada do corpo. (HATOUM, 2010, p. 13). 2.3. Melancolia na literatura. Para fins deste trabalho a melancolia é compreendida como resultado de um trauma sofrido em qualquer circunstância da vida de um sujeito. Nesse sentido, além da conceituação de trauma apresentado anteriormente, entendemos também o conceito como um conjunto de perturbações causado por um choque emocional. 353 O pesquisador Moacyr Scliar, ao tratar do conceito de melancolia chama atenção para um processo de renascimento desta categoria no Brasil, na medida em que afirma que a melancolia é diferente da mania e da depressão. Segundo o autor a mania é compreendida como ―uma atividade febril, pelo movimento incessante‖ (SCLIAR, 2003. p. 61). Ou seja, um sujeito, que sofre de mania apresenta características como: hiperatividade, uma energia aparentemente inesgotável; dorme pouco, fala sem cessar, tem projetos grandiosos e pouco realistas; é irritável, não raro agressiva‖ (SCLIAR, 2003. p.57). Ainda segundo o autor a depressão vem ser a: ―manifestação por tristeza permanente, não combinada com ansiedade, sentimento de desesperança e desvalia, perda de interesse pelo trabalho,pela diversão, pelo sexo, cansaço, dificuldade de concentração, sonolência ou, ao contrário,insônia,perda de apetite, ou ao contrário, necessidade comer pensamentos de morte de suicídio‖. (SCLIAR. 2003. p.57). Diferente da depressão o conceito de melancolia é pautado na ―a perda do amor pela vida, uma situação em que a pessoa aspira à morte como se fosse uma benção‖. Notamos também que o autor quando categoriza a melancolia, faz alusão a acédia enquanto sentido de indiferença, apatia. Jaime Ginzburg (2001), em texto intitulado Conceito de melancolia, realiza uma descrição das concepções clássica, romântica e moderna do termo em questão. De acordo com o autor, o conceito clássico de melancolia é atribuído a Hipócrates, estudioso grego considerado o ―pai da medicina‖, que desenvolveu a teoria dos quatro humores corporais: sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra. Esta última seria a responsável pelos estados melancólicos do ser humano. Já nessa época, a melancolia é entendida como uma doença, caracterizada, segundo Hipócrates (apud GINZBURG, 2001, p. 103), por um estado de ―tristeza e medo‖. Segundo Ginzburg (2001, p. 105), ―[p]ara o pensamento clássico antigo, a condição melancólica se caracterizaria por uma alteração comportamental, marcada pelo medo, pela misantropia e pelo abatimento profundo‖. Na concepção romântica, a melancolia é descrita como uma categoria do sublime, em que duas naturezas antagônicas seriam passíveis de coexistir no espírito humano. Segundo Schiller (apud GINZBURG, 2001, p. 107), o sublime consiste num ―sentimento misto. Compõe-se do estar-dorido, que, no seu máximo grau, se exterioriza como um estremecimento, e do estar-alegre, que pode elevar-se até o encanto‖. Essa dualidade do espírito caracterizaria o comportamento melancólico do homem romântico que, embora sofra, é capaz de enfrentar e superar seus limites. 354 Modernamente, a concepção de melancolia tem sido fundamentada na chave da psicanálise freudiana. Em seu texto Luto e melancolia (1976), Freud apresenta alguns fatores que estão na base dos surgimentos dos estados de luto e melancolia. Ele sustenta a tese de que o luto não representa uma disposição patológica na pessoa enlutada e que, por isso, é superado com o passar do tempo. Quanto à melancolia, esta deve ser compreendida, argumenta o autor, como uma disposição patológica que necessita de cuidados médicos. Para Freud, ―os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, [...], a perda da capacidade de amar, [...] [a] diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar a expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição‖ (FREUD, 1976, v. XVII). Na base das precondições dos estados melancólicos estariam, segundo o autor, três fatores: a ―perda do objeto‖, a ―ambivalência‖ e a ―regressão da libido ao ego‖ (FREUD, 1976, v. XVII). Pautado na visão freudiana, Jaime Ginzburg, diz que a literatura, ao apresentar a melancolia, pode provocar a reflexão sobre processos históricos, estéticos e epistemológicos. A partir do estudo da melancolia, em narrativas de resistência, é possível se ter uma maior compreensão de como, culturalmente, o período histórico da Ditadura Militar provoca uma série de dimensões éticas relacionadas à resistência política contrária ao regime, que foram compreendidas pelo campo literário. 3. Considerações finais Diante do exposto, observamos que a personagem Mundo é quem decide ir em busca de seus ideais, utilizando a arte como meio de reação. Este movimento de reação é ocasionado pela violência e opressão exercida por seu Pai, diante da recusa em não aceitar o filho artista. Isto provoca em Mundo o movimento de reação através da arte, que serve de veículo para reelaboração do trauma causado pela tirania de Jano. As pinturas e as instalações, descritas por Lavo na narrativa funcionam como uma espécie de catarse para Mundo, pois, no processo de criação de sua arte, a matéria prima utilizada é a memória fissurada e fragmentada de sua vida. Dessa forma sua arte é pensada, primeiro como procedimento de reação, depois como princípio de resistência e reelaboração da memória traumática como processo de sobrevivência. Mundo vive em meio a um estado ditatorial, instaurado por seu pai que se comporta como ditador, pois Jano, ao fazer uso de sua autoridade impõe as regras do caminho que o filho deve seguir, mesmo depois de adulto. Assim, o mundo de Mundo é mergulhado em um universo de imposição, dor e tristeza que culmina em uma vida vazada 355 de melancolia, que mesmo sendo uma melancolia criativa não consegue resistir a tirania e morre, quando a personagem diz: ―Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de pontacabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre...Sinto no corpo o suor e agonia‖, é o que lê pouco antes do fim. Na margem da última página, estas palavras: ―meia-noite e pouco‖ (HATOUM, 2010, p. 7). Com isso são poucas as vozes que se levantam e reagem, na narrativa, sendo que a voz de Mundo metaforizada pela arte é uma delas. Outra é a de Lavo, que ao tomar a voz do discurso como narrador também reage ao decidir manter viva a memória do amigo. Ranulfo mesmo sendo um vagabundo assumido, também reage ao narrar e descrever as cartas escritas por alguns personagens da narrativa, entre elas as cartas deixadas por Mundo. A personagem Ranulfo é a representação do típico malandro brasileiro que mesmo não trabalhando e vivendo das paixões, justifica sua posição política. E assim a vida das personagens vai passando, totalmente sem esperança, alguns reagindo, seja por apatia ou melancolia, outros dando seus últimos suspiros de coragem, fazendo uso do que lhes resta, ou apenas se colocando em posição de resignação e aceitação. Alguns personagens tomaram o norte como direção dos sonhos de suas vidas; o que não se concretiza pois, desde o título da narrativa, a vida das personagens é metaforizada pelas cinzas, que ao serem pintadas por Mundo representam projetos de vidas estilhaçadas pelos regimes de imposição, ilustradas em cada obra de arte descrita por Lavo. Assim, a narrativa Cinzas do Norte provoca dois movimentos de reação: a produção das obras de arte que metaforizam a resistência e a elaboração da memória testemunhal realizada por Lavo. 4. Referências Bibliográficas CHKLOVSKI, Viktor. "A Arte como Procedimento"; 1917. Disponível em: http://ufba2011.com/arte.russos.pdf. Acesso em: 08/02/2013. FERRAZ, Bruna Fontes. Narrar a resistência: a memória do trauma em a trilha dos ninhos de aranha e ―lembrança de uma batalha‖, de Italo Calvino. http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie06/RevLitAut_art04.pdf. Disponível em: Acesso em: 10/02/2013. GINZBURG, Jaime. Conceito de melancolia. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. nº. 20. Julho de 2001, p. 102. HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. Ed. Companhia da Letras. São Paulo, 2010. 356 SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 2003. 357 O SUJEITO FEMININO NA SEARA LITERÁRIA Virgínia Silva de Carvalho13 Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes (Orientadora)14 Resumo: Num mundo marcado pelo domínio masculino, a experiência de vida feminina aparece profundamente determinada pela influência deste, já que os costumes e os hábitos cotidianos são reflexos de uma sociedade formada sob a lógica do poder androcêntrico. Sendo assim, a literatura feita por mulheres se confunde com a própria vivência feminina, visto que ela carrega as marcas das normas e das convenções sociais dessa sociedade, cujo predomínio esteve e ainda permanece nas mãos do dito sexo forte. Desse modo, esta comunicação tem como objetivo discutir a literatura feminina como a escrita responsável por desvelar e romper a imagem de mulher signo presente na literatura canônica. O presente trabalho está dividido em três partes: um breve relato do percurso histórico das mulheres ao longo dos tempos e do ingresso feminino na seara literária, fazendo uma interface entre a literatura escrita por mulheres e, finalmente, a contribuição desta para a sua emancipação; já que isto possibilitou a inversão e o questionamento da figura da mulher objeto, focalizada pelas lentes do olhar masculino; além de promover a ascensão do sujeito feminino à categoria não só de produtora, mas também de teórica e crítica de suas próprias obras; com isso, subvertendo os valores tradicionais vigentes. Para este estudo, a análise se realiza com base no aporte teórico de Perrot (2007), Mendes (2011), Showalter (1994), dentre outros. Palavras-chave: Literatura feminina; Crítica literária; Ascensão. Abstract: In a world marked for male domain, the feminine life experience appears deeply determined by the influence of it, since the customs and daily habits are reflection of a society formed by the logic of male power. Like this, the literature made by women confuses itself with their own life, since it carries the marks of rules and social conventions of this society, whose control was and still remains in the hands of the so-called strong sex. Thereby, this communication has the goal to discuss the feminine literature like the writing responsible for unveiling and breaking with woman sign image in the canonical literature. The present paper is divided into three parts: a brief narrative about historic route of women through time and feminine admission in the literature, doing an interface between the literature written by women and, finally, its contribution for their emancipation; since it made possible the inversion and questioning of the figure of object woman focused by the lens of male look; besides to promote the ascent of the feminine subject not only to 1 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialista em História do Brasil. Graduada em Letras-Inglês e em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí. Graduada em Letras – UESPI, Mestre em Letras – UFPE, e Doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de PósGraduação em Letras da PUCRS, no Rio Grande do Sul. Doutorado sanduíche em Coimbra – Portugal. Desenvolve pesquisa na área de literatura feminina sobre escritoras. Professora adjunta da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. 358 producer, but also to theoretical and critic of their own works; with this, changing current traditional values. For this study, the analysis is done based on the theory of Perrot (2007), Mendes (2011), Showalter (1994), and others. Keywords: Feminine literature; Literary criticism; Ascent. Na cena literária, observa-se um intenso diálogo entre a literatura e as experiências de vida das mulheres. Isto de certo modo, possibilitou que se firmasse de maneira efetiva a produção literária feminina. É nesse espaço que a mulher escritora aborda as alegrias e os dramas do mundo que a rodeia; em seus repertórios o leitor se depara com os dilemas pessoais e familiares pelos quais passam a grande maioria das mulheres. Os manuscritos de cunho feminino expressam em tom de protesto e denúncia a realidade na qual elas viveram e ainda convivem, como se pode constatar nos temas em grande parte de suas obras publicadas. Nesse sentido, a presente comunicação visa discutir a literatura feminina como a escrita responsável por desvelar e romper a imagem de mulher signo presente na literatura canônica. O presente trabalho está dividido em três partes: um breve relato do percurso histórico das mulheres ao longo dos tempos e do ingresso feminino na seara literária, fazendo uma interface entre a literatura escrita por mulheres e, finalmente, a contribuição desta para a sua emancipação. Assim como, à título de ilustração, analisar-se-á o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, à luz da teoria de Elaine Showalter. Tratar da escrita feminina é abordar o percurso histórico das mulheres. Conforme Perrot (2007), na história da humanidade, os referenciais criados para representar as mulheres eram diminutos, símbolos de fragilidade e delicadeza no discurso patriarcal; certamente uma visão unilateral sobre o seu ser. Esse discurso empregou quase todas as áreas do conhecimento humano, tais como: a religião, a medicina, os discursos filosóficos, dentre outros; e o fez a fim de submetê-las ao domínio dos homens. A isto se deve acrescentar que as mulheres eram retratadas como dependentes e incapazes de regerem suas próprias vidas, necessitando da tutela masculina para protegê-las dos perigos e das aflições do mundo, sob a justificativa de preservá-las desse ambiente e situá-las na esfera doméstica, na qual elas estariam a salvo das maquinações terrenas. Entretanto, elas, confinadas no lar, sofriam com a opressão paterna, e, posteriormente, com as tiranias do marido. Mais do que isso, seus corpos não lhes pertenciam, elas eram objeto do desejo masculino e da própria dominação do regime patriarcal. Por estes motivos, tudo, que estava relacionado às mulheres, estava sob o crivo do pai, do marido e da sociedade. Por isso mesmo, a aparência, a linguagem, os pensamentos e os mínimos desejos femininos eram vigiados e reprimidos. Em outros termos, a trajetória feminina é marcada pela repressão e pelo silenciamento de sua voz. A submissão feminina não implicava que inexistissem vozes discordantes, exemplo claro disto é a obra A Vindication of the Rights of Women, da novelista e teórica Mary 359 Wollstonecraft, publicada na Inglaterra, no século XVIII. Fomentou-se aí as primeiras discussões sobre a condição da mulher na sociedade inglesa e que influenciou a geração seguinte de mulheres nos Estados Unidos. Posteriormente, somaram-se as lutas pelo sufrágio universal, o acesso ao sistema escolar, a criação do movimento feminista, o ingresso feminino no mundo do trabalho e a entrada na zona proibida da política, conquistas de suma importância no percurso histórico das mulheres. Nesse sentido, o cenário literário também é um dos espaços de luta pela emancipação da mulher. Nele os textos de autoria feminina receberam comentários e censuras de críticos literários que os avaliaram, considerando-os de pouco ou quase nenhum valor literário. Ao lado desse dado, cabe-nos dizer que o terreno das letras era considerado um território até bem pouco tempo atrás um reduto masculino. O Cânone literário tradicional elencava obras e autores segundo os critérios e os valores estéticos da literatura. De acordo com Zolin (2005, p. 275), não eram somente os critérios estéticos que entravam em jogo para classificar uma obra, visto que, este ―é constituído pelo homem ocidental, branco, de classe média/alta‖. A teia inquebrantável do Cânone Ocidental sofreu as primeiras rupturas com o surgimento da historiografia literária feminina e pelo desenvolvimento do movimento feminista. Segundo Zolin (2005), na década de 1970, a crítica feminista erigiu a tradição literária feminina pautada nos moldes do feminismo, sob a influência desse contexto os historiadores literários começam a resgatar e reinterpretar a produção destas. Mais ainda, o fator decisivo foi à entrada feminina no exclusivo território da crítica e da teoria literária, sinalizando que as escritoras estavam aptas a serem críticas e teóricas de seus textos, removendo séculos de dependência ao modelo literário androcêntrico15 e, ao mesmo tempo, denunciando o pensamento elitizado e segregacionista do cânone literário tradicional. Anteriormente, víamos que seus textos eram rotulados. Dentre as inúmeras apreciações feitas, citaremos a do crítico brasileiro, Olívio Montenegro, em 1938: Vamos ser positivos: a literatura de ficção, de autoria feminina, entre nós, tem sido quase sempre de um calete fraco. Sentimental e pueril e quando aparecer com uns enternecimentos maiores de emoção, no fundo é histericismo [...] são autoras mais fiéis ao sexo que à literatura. Entretanto não é a literatura o melhor derivativo para o sexo, nem o mais são. Seria a maternidade bem compreendida e bem aproveitada. (MONTENEGRO apud MOREIRA, 2003, p. 273) 3 Segundo Bonnici, os termos "androcentricidade" (subst.) e "androcêntrico" (adj.) (gr. aner, andros, homem; lat. centrum, centrado), ou "centralizado no homem", foram introduzidos por feministas para descrever a ideologia e a atitude baseadas numa perspectiva masculina e que ignora os interesses e a perspectiva feminina. Seus antônimos são "ginocentricidade" e "ginocêntrico" (gr. guné, mulher). Portanto, a ginocentricidade em literatura pretende reeducar escritores e leitores a se posicionar na experiencia feminina e olhar os acontecimentos a partir de uma perspectiva feminina. pag. 19. 360 A declaração de Montenegro corroborava com as opiniões masculinas vigentes da época, que procuravam desqualificar a literatura feminina, classificando-a como pueril ou até mesmo uma produção de tom histérico. Visto assim, o ingresso das mulheres nessa arena é marcado pela depreciação dos seus textos. Tal concepção coaduna com as teorias científicas do século XIX que, baseadas em argumentos analógicos, afirmavam que ―as mulheres e as raças inferiores eram consideradas impulsivas por natureza, emocionais, mais imitadoras que originais e incapazes do raciocínio abstrato e profundo igual ao do homem branco‖ (SPENCER apud STEPAN, 1994, p.74). Entretanto, tais posicionamentos refletiram sobre o logos feminino que chegou a aceitá-los por muito tempo. Observamos isso no discurso da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis: Mesquinho e humilde é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou à lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a convenção dos homens ilustrados, que aconselham; que discutem e que corrigem, com uma ilustração misérrima, apenas conhecendo a língua de seu país, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. Então porque o publicas? Perguntará o leitor. Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor materno, que não tem limite, que tudo desculpa – os defeitos, os achaques, as deformidades do filho – e gosta de enfeitá-lo e aparecer com ele em toda parte, mostrá-lo a todos os conhecidos e vê-lo minado e acariciado. Nosso romance gerou-o a imaginação, e não n‘o soube colorir, nem aformosear... (REIS, 2011, p. 13-14) A voz da mulher escritora traz à tona o peso da crítica literária vigente, seu texto por mais que preenchesse os requisitos estéticos necessários para ser considerado como obra de valor artístico, a priori, ele era taxado como um texto de cunho feminino. Certamente, esta designação visava situar as obras das escritoras brasileiras num patamar inferior. Outra razão para o desprestígio e apagamento das escritoras no Cânone tradicional é abordado no artigo Exclusão e Inclusão de Vozes Femininas na História da Literatura Brasileira, de Algemira de Macêdo Mendes. Nele, a pesquisadora rastreia a inclusão e exclusão dos nomes das autoras femininas nos registros historiográficos brasileiros. Contudo, ela observa que à medida que despontava um percentual de escritores no cenário brasileiro, gradualmente diminuíam-se as citações de escritoras, marcando o início da exclusão dos nomes femininos na seara literária. Lê-se esta diminuição como uma forma de controlar socialmente a participação da mulher na esfera pública. Diante disso, a mulher escritora 361 percorria o caminho de volta ao espaço público do qual foi excluída. Seu retorno não foi festejado, já que isto implicava a quebra dos papéis de mãe e esposa. Os pontos acima arrolados nos fazem pensar a escrita feminina como uma produção marcada pelo rompimento com a perspectiva masculina. Nela a mulher ocupava a posição de objeto da percepção androcêntrica. A inversão ocorre justamente porque a mulher escritora torna-se sujeito reflexivo, capaz de projetar em seus escritos o ponto de vista feminino, subvertendo os valores da sociedade patriarcal que a focalizava como objeto. Ainda assim, a escrita feminina é perpassada pelos valores sociais que ela refuta. Assim, na dicotomia sujeito versus objeto, a mulher escritora percebe os mecanismos sociais que a transformaram no signo-mulher: mãe, esposa, doce, frágil, meiga, dentre outros (SHOWALTER, 1994, p.26). Não obstante, a literatura produzida por mulheres permite o descentramento da ótica masculina hegemônica para a perspectiva feminina. No entanto, é preciso que se diga que os manuscritos de autoria masculina serviram para mascarar os valores do patriarcalismo, tornando-se fiel defensora do modelo literário dominante. Portanto, mantenedora do edifício social coeso com a lógica predominante. Outro quesito relevante é saber: quais são os pontos convergentes que singularizam esta escrita? Nela participam sujeitos de classes sociais e faixas etárias distintas. Então, do que tratam os escritos femininos? Eles abordam as experiências das mulheres, enquanto indivíduos que estiveram um degrau abaixo da escada social. Dessa forma, a literatura produzida pelas mulheres promove uma ruptura com o milenar ponto de vista androcêntrico. Elas empregam o espaço literário para falar de seu cotidiano doméstico, de hábitos e modos de vida. Além disso, é correto afirmar que esta escrita é também engajada à causa social das mulheres, servindo de testemunho histórico das opressões da sociedade patriarcal, ao mesmo tempo, ela fala de suas alegrias, sonhos e expectativas. Lê-la é entrar numa área censurada e proibida. Nesse contexto, tal produção requereu um novo modelo de interpretação que empregasse o ponto de vista feminino. A teórica norte-americana Elaine Showalter propôs um modelo interpretativo baseado na tradição literária feminina no romance inglês. De acordo com (SHOWALTER apud ZOLIN, 2005, p. 277), existe dentro de uma cultura uma subcultura produzida pelas mulheres escritoras, ou seja, as autoras construíram uma tradição literária dentro dos limites da sociedade em que se inserem. Paralelamente, Showalter (2005) expande essa teoria para outras subculturas literárias femininas. E assim o faz, a fim de conectá-las no percurso de três fases: a fase feminina, na qual a escritora imita e internaliza os padrões sociais vigentes; a fase feminista, de protesto contra tais padrões e valores difundidos pela sociedade; e por último, a fase fêmea, marcada pela busca da identidade própria. Tomemos como ilustração dessas fases a breve análise do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Apesar do texto de Reis ser considerado um romance romântico, a autora contempla a condição da mulher e do negro no Brasil Novecentista: 362 Não sei por quê, mas nunca pude dedicar a meu pai o amor filial que revitalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis porquê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: o meu pai era tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio e resignava-se em sublime brandura. (REIS, p. 59-60) Ao empregar um personagem masculino para denunciar a opressão e submissão pela qual as esposas passavam, o narrador reiseano expõe toda a rigidez do regime patriarcal no qual as mulheres estavam submetidas. Dessa forma, não cabia a elas revoltarse esse poder instituído, mas somente silenciar-se numa atitude de aceitação e resignação. Além disso, Reis (2011) confere voz aos personagens escravos permitindo que eles falem, discutam e denunciem as injustiças cometidas pela escravidão: O comendador P... foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto dos meus irmãos ... os tratos, porque passaram, doeram-me até o fundo do coração! O comendador P ... derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma breve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumpri-da, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes, com a mais cruel in-justiça. (REIS, 2011, p. 118) No fragmento acima, a escrava africana denúncia os maus tratos impostos aos seus irmãos de cor, revelando a dinâmica do sistema escravista que concedia poderes absolutos aos donos de escravos, o que lhes assegurava o direito de usufruir da mão-de-obra dos negros cativos, aplicar-lhes castigos corporais e decidir sobre a vida e a morte destes. Em Úrsula, podemos observar que a romancista maranhense reproduz a opressão rotineira pela qual conviviam as mulheres do século XIX e, ao mesmo tempo, essa obra converte-se num documento de manifesto contra os valores da sociedade escravocrata brasileira. Em síntese, o romance Úrsula apresenta as fases feminina e feminista da teoria proposta por Showalter (2005). Embora, a obra supracitada esteja enquadrada na fase feminina por Zolin (2005, p.335). Não obstante, a análise demonstra que Úrsula não é marcada por um ciclo específico, mas que ela contém, concomitantemente, os dois estágios. Há ainda um leque variado de textos de caráter feminino e feminista que podem ser citados, dentre eles: A falência (1902) e A intrusa (1908) de Júlia Lopes de Almeida; A sucessora (1934), de Carolina Nabuco, representantes da fase feminista. Já nas obras feministas, temos Perto do coração selvagem (1943) de Clarice Lispector; As parceiras (1980), de Lya Luft, entre outras. Por outro lado, na fase fêmea aparecem outras produções como: ―A república dos sonhos (1984), de Nélida Pinõn; O homem da mão seca (1994), de Adélia Prado; A 363 sentinela (1994) e O ponto cego (1999), de Lya Luft; romances de Patrícia Melo, tais como O matador (1995), Inferno (2000), Valsa negra (2003)‖ (ZOLIN, 2005, p. 335). No Brasil, o resgate e mapeamento da produção de autoria feminina são feitos através de pesquisas acadêmicas que recolhem e reúnem os escritos relegados pela historiografia literária canônica, viabilizando a formação de uma tradição literária de escritoras brasileiras. Um exemplo disso é a antologia Escritoras brasileiras do século XIX, organizado por Zahidé Lupinacci Muzart, em 1999; assim como o segundo volume, lançado em 2003. Desse modo, sob a pena da escrita feminina, a literatura converte-se num discurso engajado à causa das mulheres, promovendo aquilo que Moreira (2003) denomina de irmandade entre os sujeitos femininos: a leitora e a escritora. Juntas, elas congregariam um único propósito que é de valorizar a imagem da mulher sujeito e agente de sua própria história, bem como desconstruir o discurso hegemônico que provocou a fragmentação da identidade feminina, vista como mulher-signo na reprodução mimética, já que através de seus próprios romances, contos e poemas, elas se tornaram sujeitos da fala, capazes de contar e (re)contar as experiências vividas, a partir do ponto vista pessoal. Portanto, a literatura escrita por mulheres projeta no cenário literário um modo de ver, pensar e sentir do logos feminino, enriquecendo esse meio com seus temas e motivos. Ademais, essa produção não é um produto de cunho separatista, mas sim uma criação de valor estético que reivindica o direito de focalizar temáticas que sejam de seu interesse, sem que sejam consideradas pueris. Sob o slogan ―o pessoal é político‖, a mulher escritora mostra que falar de suas experiências pessoais é uma forma de posicionar-se no mundo, fazer-se ouvir, manifestar suas opiniões, sem receio de ser censurada. REFERÊNCIAS BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007. MENDES, Algemira de Macêdo. Exclusão e inclusão de vozes femininas na história da literatura brasileira. In: Letras em Revista: Curso de Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Piauí. v. 2, n. 2. Teresina, 2011, p. 74-91. MOREIRA, Nazilda Martins de Barros. Escrita, crítica, gênero: uma trajetória feminina, feminista. In: A condição feminina revisitada: Júlia Lopes de Almeida e Kate Chopin. João Pessoa: Editora Universitária, 2003, p. 29-73. REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2009. 364 SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. Trad. Deise Amaral. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57. STEPAN, Nancy Leys. Raça e gênero: O papel da analogia na ciência. Trad. Claúdio Oscar. In: HOLANDA, Heloísa de (org.). Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.72-96 ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005. p. 275-283. 365 IMPRENSA E LITERATURA: PONTOS E CONTRAPONTOS NA OPINIÃO DE MACHADO DE ASSIS Virna Lúcia Cunha de Farias16 Prof. Drª Socorro Pacífico Barbosa17 Resumo: No século XIX, a imprensa no Brasil contribuiu para a criação de um público leitor e para a consolidação das nossas letras, visto que foi nos jornais e periódicos da época em que primeiro circularam as principais obras que constituem o nosso cânone. Sendo assim, os jornais se tornaram uma porta de entrada para o homem de letras tentar viver de sua pena. No entanto, essa presença de autores constante em jornais fez surgir a dicotomia arte pura X arte mercadoria (Bourdieu, 2010) que desencadeou tensões, já que colocava os autores entre o drama de escrever o que queriam ou escrever o que os jornais pediam. A partir de reflexões de estudiosos que tratam da circulação do escrito, como Socorro Barbosa, Pierre Bourdieu etc, buscaremos, nas crônicas e na crítica de Machado de Assis,que colaborou durante 54 anos para a imprensa carioca, encontrar a sua opinião sobre a relação entre imprensa e literatura, fato importante para um melhor entendimento do contexto de produção da obra de Machado de Assis. Palavras-chave: Literatura – imprensa – Machado de Assis Abstract: In the 19th century, the press in Brazil contributed to the creation of a reading public and to the consolidation of our letters, since it was in the newspapers and periodicals of that time that first circulated the main works that constitute our canon. Thus, the newspapers became a gateway to the literary man try to live by his pen. However, this constant presence of authors in newspapers gave rise to the dichotomy pure art X art goods (Bourdieu, 2010), which unleashed tensions, since it placed the authors between the drama to write what they wanted or what the newspapers asked. From reflections of scholars about the circulation of writings such as Socorro Barbosa, Pierri Bourdieu etc. We will seek in chronicles and critics of Machado de Assis, who collaborated for 54 years in Rio de Janeiro‘s press, to find his opinion about the relationship between press and literature, an important fact for a better understanding of the context of production of Machado de Assis‘ work. Keywords: literature – press – Machado de Assis Introdução No século XIX, a imprensa se configurou como principal meio de divulgação e circulação da literatura em nosso país. Para Martins e De Luca (2008), fatores como o baixo poder aquisitivo e a falta de instrução levaram à consolidação do jornal como principal suporte de divulgação da cultura no Oitocentos. Dada a força dos periódicos na disseminação da cultura no período, logo as suas páginas se tornaram uma espécie de vitrine para os postulantes à posição de escritor (Costa, 2005). Assim, em um país cuja população era, a grande maioria, analfabeta, a profissionalização dos autores através da venda de livros se tornou quase impossível, restando a eles consegui-la por meio da imprensa. Assim sendo, a divulgação de gêneros como o romance-folhetim se tornou uma fonte de renda para os jornais e para os autores (Barbosa, 2007). 16 Doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Instituto Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte. 17 Professora do programa de Pós- graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba – (UFPB). 366 Costa (2005) considera que se, por um lado, a presença maciça dos autores nos jornais provocou uma estagnação literária em termos estéticos, por outro propiciou condições sociais para a profissionalização do trabalho intelectual aqui. Mesmo sendo, reforça a autora, por via diferente daquela sonhada pelos homens de letras, já que a profissionalização veio por intermédio do jornalismo, a indústria, e não por meio da arte, a literatura. Escrever para jornais e periódicos propiciou então o surgimento da dicotomia arte pura X arte mercadoria (Bourdieu, 2010). Sendo assim, era a imprensa a única forma dos autores conseguirem reconhecimento, entretanto, submeter-se a ela, era, no dizer de Bilac, prostituir a pena (Do Rio, 2008). Esse impasse entre arte X indústria suscitou muitas discussões entre aqueles que queriam viver de sua pena e não viam perspectiva longe dos jornais. Nesse artigo, buscaremos apresentar o que pensava Machado de Assis sobre esse tema que tanto empolgou aqueles que transitavam nas duas áreas da atividade intelectual do século XIX: o jornalismo e a literatura. Machado de Assis colaborou durante 54 anos para os principais jornais e periódicos do Rio de Janeiro, de 1854 a 1808, ano de sua morte. Na imprensa ele fez de tudo: revisão, tradução, crítica literária, crônicas, contos, poesias, romance-folhetim, romance seriado, propaganda etc. Buscamos, nas crônicas e crítica literária de Machado de Assis, o posicionamento dele acerca desse tema tão controverso no período em que o autor produziu sua extensa obra. Certamente, esses percalços que cercavam o ambiente literário nesse período não escapavam à pena do principal nome das nossas letras. Homem de imprensa e de letras, Machado colaborou durante 54 anos, quase que ininterruptos, para os principais jornais e periódicos da Corte no século XIX. 2. Imprensa e literatura na opinião de Machado de Assis: pontos e contrapontos As primeiras opiniões de Machado de Assis sobre o valor do jornal como suporte de fácil acesso à leitura vieram logo nos primeiros anos de sua pena. Ainda bastante jovem, publicou um artigo chamado O jornal e o livro, no Correio Mercantil, dos dias 10 e 12 de janeiro de 1859. Nele, com todo entusiasmo adolescente, o autor assim comenta: O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; por que ele diz ao talento: Trabalha! Vive pela idéia e cumpres a lei da criação! Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?Não! Graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o 367 trabalho, é a civilização. Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?(Assis, 1997, p.943). Para o autor, assim como a Revolução Francesa introduziu na Europa uma época de regenerações e foi o grande passo da humanidade para se entrar no século XIX, iniciando para ela uma nova fase, o jornal é o símbolo dessa regeneração e dessa nova fase. Sobre a importância deste suporte para a literatura, Machado indaga: ―A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático como ele‖ (1997). Aqui, o autor estabelecia comparação entre os impressos jornal e livro, sempre questionando se aquele mataria este ou vice-versa. Para ele, nos moldes conhecidos, ou seja, no formato livro, a literatura não teria o alcance que tinha no jornal. Ele então considerava o jornalismo como uma forma de divulgação para as obras e como fonte de renda para os autores, que não precisariam mais trocar uma refeição por um soneto (Assis, 1997). Mais adiante, em sua defesa do suporte jornal, agora como meio de democratizar a leitura, o autor comenta: O livro era o progresso; preenchia as condições do espírito humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa, não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, parecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro do sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal.O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções (Assis, 1997, p.945). Com base nos trechos desse artigo, escrito nos primeiros anos de carreira do autor, podemos perceber dois aspectos positivos citados por ele, sobre o jornal e a sua relação com a literatura. Primeiro, ele aponta que é proveitoso para o autor, pois lhe garante uma posição, devido a sua vastidão e alcance; e para o leitor é democrático, popularizando assim a leitura, comparando com o livro, privilégio ainda de poucos. Em outro artigo publicado em O Espelho, em outubro do mesmo ano, Machado mais uma vez apresenta seu entusiasmo em relação ao caráter inovador e revolucionário do suporte jornal. Desta vez, além de considerá-lo uma arma para a luta contra as classes de prestígio, ele reafirma o alcance que o jornal tem e a capacidade de estar nas mãos de todos os membros do corpo social: A primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social. Assim, o operário que se retira do lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia social 368 da comunhão pública. A propaganda é assim fácil; a discussão do jornal reproduz-se também naquele espírito rude, com a diferença que vai lá achar o terreno preparado (O Espelho, 23 de outubro de 1859). Usando para se referir ao jornal metáforas que remetem ao Sagrado, o autor apresenta quase que uma devoção em relação ao que ele considera a grande revolução do século, a mesa posta para todos: é o pão eucarístico, a hóstia social da opinião pública. Essas expressões mostram o entusiasmo do jovem escritor pela primeira revolução que, segundo ele, o jornal causou: mudou as formas de leitura e de circulação do impresso no país, pois propiciou às classes mais humildes a apropriação do texto impresso, já que a maioria não tinha ainda acesso ao livro. O jornal, segundo o autor, além de ser encontrado em locais mais acessíveis, ao lado do pão do corpo, pode atingir os espíritos mais rudes. Na opinião do jovem escritor, o jornal enquanto suporte propiciava uma troca entre os autores colaboradores e o leitor: para o homem comum, o jornal diário significava o pão do espírito, para o homem de letras, além do pão do espírito, era também o pão do corpo, já que significava para eles viver de sua pena. No entanto, o autor de Quincas Borba, em uma série de quatro artigos publicados também em O Espelho18, com o título de Aquarelas, mas cada um apresentando subtítulo próprio, apresentou uma visão bastante crítica sobre os autores que tentavam viver de sua pena sem ter inspiração, buscando nela apenas uma forma de ter notoriedade e dinheiro. Reforça o jovem autor que, para isso, o jornal contribuía para a divulgação também desses nomes sem talento. No primeiro artigo da série, Os fanqueiros literários, Machado comenta sobre escrever simplesmente por dinheiro, sem ter talento. Assim, os escritores que assim procedem precisariam apenas de um homem de negócio, como um banqueiro, que subscrevesse seu livro. A esse tipo comum na imprensa de qualquer época, o romancista dá o nome de fanqueiros literários. Usar esse termo para se referir a esse tipo torna-se bastante pejorativa, já que fanqueiro era um comerciante de tecidos. Assim, a relação que ele faz entre o fanqueiro literário e o outro fanqueiro encaminha o fazer dessa espécie de escritores para uma atividade comercial que em nada difere da atividade desenvolvida por aquele que vende tecidos aos seus fregueses: A fancaria literária é a pior de todas as fancarias. É a obra grossa, por vezes mofada, que se acomoda a ondulação das espáduas do paciente freguês. Há de tudo nessa loja manufatora de talento – apesar da raridade da tela fina; e as vaidades sociais mais exigentes podem vazar-se, segundo as suas aspirações, em uma ode ou discurso parvamente retumbantes.A fancaria literária poderá perder pela elegância 18 Os artigos foram publicados em 11 e 18 de setembro e 16 e 30 de outubro. Os subtítulos dos ensaios são: Os fanqueiros literários, O parasita, O empregado público aposentado e O Folhetinista. 369 suspeita da roupa feita, mas nunca pela exigüidade dos gêneros. ( O Espelho, outubro de 1859). Machado acrescenta ainda que o fanqueiro literário justifica o verso de um poeta não pela arma do louvor, mas pela arma do dinheiro. Para ele, esse tipo mede o entusiasmo de uma ode pelas possibilidades econômicas de quem vai ser o elogiado nela. Para o autor de Crisálidas, os banqueiros seriam então os arquétipos da virtude sobre a terra, já que podem custear os livros dos fanqueiros. Continua o romancista descrevendo o modo de ser dessa espécie: Querendo imitar os espíritos sérios, lembra-se ele de colecionar os seus disparates, e ei-lo que vai de carrinho e de almanaques na mão – em busca de notabilidades sociais. Ninguém se nega a um homem que lhe sobe as escadas convenientemente vestido, e discurso na ponta dos lábios. Chovem-lhe assim as assinaturas. O livrinho é prontificado e sai a lume. A teoria do embarcamento dos tolos é então posta em execução, os nomes das vítimas subscritoras vêm sempre em ar de escárnio no pelourinho de uma lista – epílogo. É sobre queda, coice.Mas tudo isso é causado pela falta sensível de uma inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias!(idem). Devido ao desenvolvimento da imprensa, o autor considera o fanqueiro literário um mal da modernidade. No final do artigo, ele reitera a noção de falta de talento dessa espécie de autores que fabricam obras grossas apenas em busca de resultados pecuniários, sem nenhum pudor. Os termos usados pelo autor ao se referir ao fazer do fanqueiro sempre levam para a noção de indústria e de mercado: loja manufatora de talentos, fábrica de Manchester, máquina de obra grossa entre outros: O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência (idem). O segundo artigo, que dá prosseguimento a série, chama-se O Parasita. Divide-se em duas partes: uma dedicada ao parasita de mesa, a outra ao parasita literário. Na primeira, o autor descreve o parasita da mesa para depois fazer analogia com o outro tipo. Na primeira parte, apesar de não fazer referência diretamente à literatura, o autor de Quincas Borba traça o perfil psicológico dessa espécie a quem ele chama de animal perigoso, tipo bem presente em suas narrativas, que se caracteriza por chegar sempre às casas nas horas das refeições a fim de servir-se sempre à custa dos amigos. Assim é descrita a espécie: É curioso vê-lo na mesa, mas não menos curioso é vê–lo nas horas que precedem as seções gastronômicas. Entra em uma casa ou por costume ou per accidens, o que aqui quer dizer intenção formada com 370 todas as circunstâncias agravantes da premeditação, e superioridade das armas. Mas suponhamos que vá a uma casa por costume.Ei–lo que entra, riso nos lábios, chapéu na mão, o vácuo no estômago. O dono da casa, a quem já fatiga aquela visita diária, saúda-o constrangido com um sorriso amarelo (idem). Na segunda parte, a que mais interessa à nossa reflexão, o autor inicia estabelecendo a relação que há entre o parasita da mesa, o fanqueiro literário e o outro tipo de parasita, o literário. Assim o crítico inicia a citada parte do artigo: O parasita literário tem os mesmos traços psicológicos do outro parasita, mas não deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro literário. A única diferença está nos fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura mais casto e não tem mira no resultado pecuniário, - que, parece, inspirou o fanqueiro. Justiça seja feita (idem). Segundo o autor, a imprensa é a mesa do parasita literário que se senta a ela sem cerimônia e começa a distribuir pratos a sangue frio. Acrescenta ele que esse tipo, também fruto da modernidade, é um cortesão das letras e, mesmo sem alcançar o menor favor das musas, cerca-as de cuidados e segue-as por toda parte, mas sem poder tocá-las. Além do parasita não tocar as musas, também não consegue subir ao Monte Sagrado, excursão considerada pelo autor difícil, só possível a quem tem pés de ferro e vontades sérias. Assim, ele não tem nem inspiração e, como consequência de não ter o favor das musas, não chega ao topo, ou melhor, ao Monte Sagrado da consagração. Machado dá também pistas de onde encontrar o parasita literário, para ele, nos jornais há filas desse tipo: Entre nós o parasita literário é uma individualidade que se encontra a cada canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que vedes de mais saliente? Uma fila de parasitas que deitam sobre aquela mesa intelectual um chuveiro de prosa e verso, sem dizer – água vai!Verificai – o! O jornal aqui não é propriedade, nem da redação nem do público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais fácil de contê-los ( idem). O autor lembra ainda que o parasita literário pode até ter o seu próprio jornal e quem sabe também publicar livros. Quanto ao primeiro, apesar de ainda muito jovem e estar dando apenas seus primeiros passos na imprensa, Machado já colaborava em pelo menos quatro jornais neste período: A Marmota Fluminense, O Paraíba, O Correio Mercantil e O Espelho. Sabia ele muito bem da facilidade de se fundar um jornal no período, como também na dificuldade em mantê-lo circulando. Ele era sabedor do caráter artesanal de alguns jornais de pequena tiragem, como também das condições de edição de alguns livros que, na maioria das vezes, eram lançados na tipografia dos próprios jornais. Assim, ele descreve o jornal e o livro supostamente lançados pelo parasita: 371 Ele pode parodiar o dito histórico l‟état c‟est moi! Porque na verdade as quatro ou seis páginas são todas dele (...). Tem, pois o jornal, próprio ou não próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o jornal tem ainda o livro. O livro! Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação simples, e o parasita, por conseguinte. Abrir esse livro e compulsá-lo, é que é heróico e digno de pasmo. (idem). No entanto, conforme visto no trecho transcrito, a preocupação do autor não era apenas com a qualidade da impressão, não se ligava apenas ao simples fato de o jornal ter apenas quatro páginas ou o livro dispor só de poucas páginas encadernadas e enumeradas. A preocupação gira em torno da qualidade das obras que eram escritas por esse tipo, como afirma o autor, ―abrir o livro e compulsá-lo é digno de pasmo‖ (idem). A forma que o autor foi passo a passo descrevendo o parasita literário e o fanqueiro literário lembra o medalhão, figura comum no Segundo Reinado, que veio a ser também caracterizada por Machado em um dos seus contos mais célebres, Teoria do Medalhão, narrativa com que Machado estreou em A Gazeta de Notícias, em dezembro de 1881. Pelo menos em dois dos ensaios de crítica que compõem Aquarelas, O fanqueiro literário e o Parasita literário, Machado apresenta traços desta espécie de medalhão, medalhão das letras, comum em sua época. Indiscutivelmente, são esses tipos fruto da época, da expansão pela qual a imprensa passava, tornando-se omprincipal veiculo de divulgação da cultura e do pensamento no período. Assim como a imprensa contribuiu para a divulgação das obras dos principais autores do século XIX e os ajudou a pelo menos tentar sobreviver de suas próprias penas, também se tornou um terreno propício para aqueles considerados sem talento tentar aparecer. A presença desses tipos seria outro traço negativo apontado por Machado para a relação imprensa/literatura. Em um ensaio chamado Propósito, publicado em A Semana Literária, seção de literatura pertencente ao Diário do Rio de Janeiro, o autor de Ressurreição reclama da raridade com que aparecem livros dignos de comentários na imprensa. O crítico atribui o estado em que se encontravam as letras brasileiras ao número exíguo de leitores e ao alto preço do livro. Quando esse ensaio foi publicado, Machado de Assis estava com apenas 26 anos de idade, doze anos de colaboração para a imprensa, e ainda não havia publicado sua produção romanesca e nem os contos. No entanto, ele já conhecia o ambiente literário que o esperava. Parte da desilusão apresentada pelo autor no citado ensaio se dá pela pouca atenção com que foi recebido o romance Iracema, de José de Alencar. Nele, o autor revela outro papel primordial que tinha o jornal naquele período: 372 Um exemplo: apareceu há alguns meses um livro primoroso, uma obra selada por um verdadeiro talento, alias, conhecido e celebrado. Iracema foi lida, foi apreciada mas não encontrou o agasalho que uma obra daquelas merecia. Se alguma vez se falou na imprensa a respeito dela, mais detidamente, foi para deprimi-la; e isso na própria província que o poeta escolhe para teatro do seu romance. Houve na Corte, quem se ocupasse igualmente com o livro, mas a apreciação do escritor, reduzida a uma opinião isolada, não foi suficiente para encaminhar a opinião e promover as palmas a que o autor tinha incontestável direito. Ora, se depois desta prova, o Sr. Conselheiro José de Alencar atirasse a pena a um canto, e se limitasse a servir ao país no cargo público que ocupa, é triste dizê-lo, mas nós cremos que a sua abstenção estava justificada. ( ASSIS, 1997, p.842). As palavras de Machado, neste trecho, mostram a importância que o jornal tinha para a literatura não apenas como lugar de divulgação, mas também como instância legitimadora. Além de praticamente fazer surgir, consolidar, divulgar e contribuir para o sustento dos autores, aparece agora o papel de legitimar uma obra e torná-la canônica. Sem a aprovação da crítica expressa nas páginas dos jornais, ficava difícil o sucesso de uma obra, mesmo o autor já sendo um nome consagrado, como era na época José de Alencar. Não bastava também a opinião de um crítico de forma isolada para que a obra lograsse êxito, se tornasse célebre e bem recebida pelo público. Sobre o papel da crítica na consolidação de uma obra e do nome de um autor, Lajolo e Zilbermam (1998) consideram que, na época, ser estudado pela crítica não representava pouca coisa, uma vez que ela – a crítica – constituía – se a primeira etapa da canonização de um escritor. As autoras, estudando a relação imprensa – literatura – mercado, na época, apresentam várias correspondências entre Machado de Assis e Magalhães de Azeredo, diplomata brasileiro que vivia no exterior, pedindo a Machado ajuda junto a editores para publicar um volume de poesias. As palavras do diplomata revelam que o ambiente propício e favorável ao sucesso de um livro era criado primeiro nas páginas dos jornais, o que torna a dependência dos autores ainda maior em relação á imprensa, pois mesmo a obra indo sair diretamente em livro, dependia do jornal para fazer sua divulgação e torná-lo bem aceito diante da opinião pública. Com base na correspondência entre Machado e Azeredo, para que um escrito publicado diretamente no formato livro obtivesse sucesso eram necessários os seguintes passos: notas publicitárias em jornais sobre o livro lançado e a colaboração do autor em periódicos para colocar o nome já em evidencia; um prólogo feito por um autor já consagrado, no caso, ele pede a Machado para fazer o prólogo do seu livro, e ter a atenção da crítica. Eis os trechos das cartas de Azeredo: Creio que continuando eu a colaborar por algum tempo na Gazeta, adquirindo assim o meu nome certa publicidade aí, o livro será 373 procurado – tanto mais que terá no prólogo de V. Excia, a melhor apresentação para o público Eu lhe peço também que se esforce por que o volume seja lido, muito lido no Brasil; se encontrar ocasião, anime e favoreça o aparecimento de algum estudo crítico sobre ele, pois isso é o que eu desejo – notícias de jornais não me bastam. O José Veríssimo prometeu-me que escreveria ele próprio sobre as Procelárias; lembre-lhe isso, e consiga que o faça breve. O Araripe também pode escrever alguma cousa. Não cuide que eu ande a cata de elogios; longe de mim tal ideia! O que eu quero – e que todo o escritor sério tem o direito e quase a obrigação de querer – é ser estudado com atenção, sobre o juízo sincero dos competentes, mesmo que eles sejam um pouco severos (2/6/ 1889, apud, Lajolo e Zilbermam, 1998). O pretendente a escritor de sucesso, principalmente a sucesso em publicação em livro, não podia de forma alguma prescindir do jornal, pois dele dependia para evidenciar o nome e divulgar a obra, através da opinião especializada da crítica. O pedido inicial que Azeredo faz a Machado para que o livro fosse lido, muito lido no Brasil, perpassa a leitura simplesmente do leitor comum, indo até a leitura especializada. É tanto que o poeta pede para que o autor de Ressurreição, usando a sua influência, anime e favoreça para que os especialistas comentem a sua obra, já que ser passível da crítica de um grande nome da imprensa e das letras era um passo importante para a consagração de uma obra. Apesar de constantemente ter a incumbência de divulgar, atendendo solicitações de amigos, obras de jovens autores na imprensa, Machado reclamava da função a que a crítica havia se entregado nos últimos tempos. No ensaio, O ideal do crítico, publicado no Diário do Rio de Janeiro, em 8 de outubro de 1865, Machado lamenta a forma com que tem se portado a crítica e da falta de talento e de honestidade de alguns que escrevia crítica nos jornais: Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa a mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes. (Assis, 1997, p.799). No mesmo ensaio, o autor ainda comenta sobre o intervalo longo que se passa sem que apareça uma obra de qualidade. Para ele, caso se deseje mudar a situação, é necessário que se estabeleça uma crítica fecunda e não uma estéril. Segundo Machado, essa segunda espécie de crítica além de matar e aborrecer os homens de letras, não reflete nem discute, visto que não há critérios artísticos em sua análise, apenas levanta por capricho ou abate por vaidade (1997). Defende o romancista que o ódio, a camaradagem e a indiferença, que segundo ele, são as três chagas da crítica, sejam substituídos pela sinceridade, a solicitude e a justiça. 374 Das três chagas, que segundo o autor, acometiam a crítica da época, duas estavam diretamente relacionadas ao papel do crítico na imprensa. Eram elas a camaradagem, que consistia na falta de honestidade e de justiça do crítico e, o seu inverso, a indiferença, que era o descaso dos especialistas com aquelas obras consideradas de valor, como foi o caso do tratamento que a crítica deu a Iracema, já mencionado anteriormente. Mesmo os posicionamentos de Machado de Assis apresentados aqui sendo do início de suas atividades literárias e jornalísticas, acreditamos que elas representam o pensamento do autor até o fim de suas atividades intelectuais, pois Machado nunca apresentou posicionamentos diferentes depois de já maduro e consagrado. Encontram-se também nos seus contos personagens que ainda representam tipos como o fanqueiro literário e o parasita literários que, não obstante ser ficção, expressam um ponto de vista construído desde os primeiros anos de pena do autor no que diz respeito à ligação imprensa e literatura. Contos de décadas diferentes, como O país das quimeras, de dezembro de 1862, Teoria do Medalhão, já da década de 80, ou até mesmo personagens como Camacho, de Quincas Borba e muito outros que desfilam em sua obra apresentam as mesmas características do parasita e do fanqueiro literários. Referências: ASSIS, Machado. Obras Completas - vols.III. Rio de Janeiro : Nova Aguillar, 1997. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre : Editora Nova Prova, 2007. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. 2. Ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2010. COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. São Paulo : Companhia da Letras, 2005. DO RIO, João. O momento literário. Curitiba : Criar edições, 2006. GLEDSON, John. & GRANJA, Lúcia(org). Notas semanais. Campinas : Editora da Unicamp, 2008. MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo: 2008. O Espelho. Rio de Janeiro : 1859 – 1860. 375 PRODUÇÃO MUSICAL: UMA QUESTÃO LITERÁRIA AOS ESTUDOS CULTURAIS. Vivianne da Cruz VULCÃO19 RESUMO: O presente trabalho fundamenta-se na análise interpretativa de um dos sambas de cacete mais conhecidos e veiculados na cidade de Cametá no período carnavalesco. Intitulado ―Fazer Mundé‖ – provavelmente por remeter ao refrão – devemos considerar sua autoria como desconhecida diante da falta de informação, desde aqueles que o interpretam quanto àqueles que o reproduzem em gravações caseiras para venda. Os comentários aqui apresentados partem inicialmente de uma relação proximal tanto de familiaridade quanto de identidade em relação ao momento carnavalesco observado e vivido; uma vez que durante o período de carnaval, a cidade recebe brincantes de diversos lugares do Pará; motivo que despertou o interesse deste estudo pela produção musical dos artistas, mas também pelas expressões dialetais, assim como pelas histórias baseadas em fatos do cotidiano. Nesse sentido, consideremos a produção musical aqui analisada como ponto de convergência entre literatura e os estudos culturais; sob a ótica dos novos ritmos inseridos no contexto cultural; das possíveis adaptações que essa produção ganha diante da inserção de um novo instrumento musical, ou até mesmo diante de uma interpretação performática. Diante de tais considerações, o referencial teórico selecionado para fins de análise interpretativa da letra do referido samba está fundamentado no livro O local da cultura, de Homi Bhaba, nas considerações de Paulo Jebaili e de autores locais como o Senhor Alberto Mocbel e Doriedson Rodrigues. PALAVRAS- CHAVE: Cametá. Carnaval. Produção Musical. Estudos Culturais. 1 - INTRODUÇÃO O artigo produzido é o resultado de um estudo sobre o uso de expressões características do vocabulário cametaense demonstradas em músicas carnavalescas cantadas por brincantes que participam do carnaval de Cametá; um dos mais concorridos no estado do Pará, com objetivo de enfatizar a visão geral dos Estudos Literários, em relação a esse tipo de manifestação cultural, em consonância com a disciplina Estudos Cultural, ministrada no Mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPA. O trabalho aqui apresentado é uma tentativa de adequação da leitura e da exposição geral dos textos trabalhados em classe, os quais construíram, a partir dos comentários e interações verbais, 19 Possui graduação em Letras, especialização em linguagem e educação, mestranda em Estudos Literários – UFPA. E-mail: [email protected] 376 uma dinâmica participativa que marcou o desenvolvimentodas aulas da disciplina do início ao fim. O autor Doriedson Rodrigues (2003), no livro ―Marcadores Conversacionais” ao tratar de alguns fatos linguísticos e históricos, nos fala entre as páginas vinte um e vinte dois, que Cametá é uma cidade considerada patrimônio histórico, fundada oficialmente a 24 de dezembro de 1635; contudo, a presença de colonizadores portugueses data de 1617. No século XVII, durante a catequese dos indígenas que habitavam as terras do Grão Pará, Frei Cristóvão de São José entrou em contato com os índios que habitavam a região Tocantina – Os Camutás, tribo vinculada aos Tupinambás e que possuíam tal nome por morarem em casas construídas no topo das árvores. Para fins de informação, caá significa mato, floresta, bosque, erva; mutá significa degrau, armação construída no mato para a espera de caça. As configurações históricas descritas, diante das ressonâncias indígenas mostram o quanto elas contribuíram para o processo de colonização da Cidade de Cametá e fazem parte do universo histórico e cultural de sua população. Dessa relação é interessante percebermos o quanto a extensão territorial do município abrange vilas, distritos e ilhas que se interligam até hoje, seja através das relações familiares; de compadrio; religiosas; políticas ou econômicas. Nesse sentido, o autor enfatiza ainda, que para o navegador que desejar conhecer a cidade de Cametá, a mesma situa-se na margem esquerda do Rio Tocantins, a 146 km, aproximadamente, em linha reta, da capital do Estado do Pará: Belém. Segundo as pesquisas feitas pelo autor, historicamente a cidade recebeu influência de diversas etnias, formando uma população que tipifica de forma peculiar o caboclo amazônida, não só pelas comidas típicas, como também pelo jeito de ser. Outra questão a ser destacada é que para fins de análise interpretativa da letra do samba de cacete, faz-se necessário um enfoque, baseado nas considerações de outro escritor local, o Senhor Alberto Mocbel (1988, p,.11), que no livro ―Recordações e Saudades ”nos diz que― o samba de cacete era exclusividade dos negros e de pessoas absolutamente humildes. Funcionava apenas no subúrbio ou lá para o meio das matas‖. Em outro parágrafo, com certo saudosismo, o autor enfatiza que os tempos passaram e a abertura definitiva da possível extensão do Samba de Cacete se deve ao Senhor Manoel Joaquim Pinheiro dos Santos (1988, p.11), um coletor federal que por muitos anos viveu na cidade de Cametá. A respeito desse Senhor, e de sua possível influência quanto à ―popularização‖ do samba de cacete, o autor faz à seguinte consideração: ―ele costumava contratar a turma do samba de cacete para fazer apresentações de primeira, ao tempo do carnaval. Para a abertura foi apenas um passo‖ 377 Diante desses comentários, o autor nos permite entender que o Samba de Cacete possui relação de longa data com as festas realizadas no município, principalmente em relação ao período carnavalesco; pois tomando como base o ano de publicação de seu livro, 1988 percebemos o quanto esse ritmo já era marcante e até hoje tem sua presença garantida nas principais manifestações culturais da cidade, sobretudo no carnaval cametaense. Adiscussão teórica aqui abordada, fundamentada mais especificamente nos estudos de Homi Bhabha (2010, p.21), sob o princípio de que ―o reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencontrar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.‖. Assim, ao serem repetidas, as cantigas atravessam o tempo e se tornam tradicionais. Diante desses direcionamentos de leitura realizada, e de tudo o que fundamenta essa introdução, havemos de considerar, que este autor em particular, trata dos estudos de literatura com um olhar que acompanha o processo histórico no qual são formadas as tradições. Em análises e consideração na óptica comparatista é notória sua busca em estabelecer um liame entre: esfera do além, fronteiras do presente e momento de trânsito, o que nos permite relacionar ao objeto aqui analisado e comentado. Bhabha levanta e nos apresenta questões fundamentais acerca dos estudos culturais, no sentido de mostrar-nos que a questão fundante da cultura, está tanto entre a temporalidade, quanto entre o limite. E essas considerações enfatizam o modo como as artes literárias produzidas no presente, ainda que diante de uma simultaneidade e instantaneidade, resultam desse sistema, ou melhor, dessa condição. Muitas outras questões são abordadas pelo autor, porque fundem o que ele mesmo define como autoconsciência histórica do presente. As relações entre a literatura e outras modalidades de arte acabam por caracterizar uma espécie de fronteira do presente que se estabelecerá a partir da análise interpretativa descrita adiante e nos possibilitará fazer uma remissão ao passado, mesmo vivendo o momento presente; é como se vivêssemos sempre no limiar, num ponto de passagem entre o limite da temporalidade e de todos os lugares ao mesmo tempo. 2 - PERÍODO CARNAVALESCO A Cidade de Cametá expressa no período de carnaval algumas das características bem típicas de um ―carnaval do interior‖, pela forma de mobilização dos cidadãos, foliões e turistas que desfilam nas escolas de samba e nos diversos fofós – várias pessoas reunidas que geralmente se sujam e se fantasiam para percorrer as ruas da cidade bebendo e dançando – percebemos o quanto o carnaval cametaense representa a alegria e 378 espontaneidade do povo em brincar um ―verdadeiro carnaval‖. Tal manifestação popular, desperta o saudosismo em muitos, pois conta-se que antigamente, a disputa entre as escolas de samba era bem mais acirrada; era possível participar inteiramente de graça aos domingos, no horário das 10 às 13 horas, dos matinais destinados às crianças, e dos vesperais destinados ao público jovem e adulto, no horário que variava entre 13 e 14 horas, mas chegava ao máximo até às 17 horas. O mais interessante é que as músicas que abrilhantavam os matinais e vesperais, eram de compositores e intérpretes locais. Os fofós sempre expressaram a espontaneidade que as pessoas tinham em se prepararem para saírem pelas ruas da cidade mesmo que para isso fossem pintadas de preto, como no ―Fofó dos Pretinhos‖ ou pintados de vermelho, como no ―Fofó do Vermelhinho‖. No primeiro, as pessoas iam até a chaminé das padarias e se passavam ―tisna‖ que nada mais é do que fuligem. No segundo, era necessário ―aguar‖ tinta xadrez, anilina e urucum. Depois do desfile todos iam se lavar na ―Escada de Pedra‖ (antiga construção feita por escravos) que existiu na frente da cidade, mas que desmoronou há mais ou menos 30 anos, e para retirar toda a ―tisna‖ e tinta do corpo era necessário muito sabão de cacau. Hoje a realidade é outra. Podemos considerar que essa ―nostalgia‖ ganha um sentido mais específico na idéia do autor Homi Bhabha (2010, p. 27), quando nos fala de tradução cultural da pós-modernidade, na qual ―o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‗o novo‘ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural‖. Atualmente vivemos uma espécie de descaracterização da nossa alegria, da brincadeira de uns com os outros e até mesmo da nossa subjetividade frente ao que nos é imposto, haja vista que a midiatização tem originado nesses últimos anos, a criação desenfreada de blocos com a participação de artistas, bandas e trios elétricos que acabam por banalizar um pouco daquilo que muitos consideravam ser tradicional. Muitas outras questões são abordadas pelo autor, porque fundem o que ele mesmo define como autoconsciência histórica do presente. De onde se estabelecerá a fronteira do presente que vai além de um pós. Um pós, que não é depois, mas o qual se efetiva como uma maneira do presente. Nesse pós, temos uma remissão ao passado, porque vivemos o momento presente como se vivêssemos sempre no limiar; num ponto de passagem entre o limite da temporalidade e de todos os lugares ao mesmo tempo. Outro elemento simbólico e bem característico acerca de tais questões são os abadás que aos poucos substituem as cores que eram expostas no corpo dos brincantes; o 379 ―in door‖ fechou a porta das sedes que promoviam matinais e vesperais; o cortezano (vinho) virou cerveja e ice; os comerciantes que eram ―padrinhos‖ por que arrumavam as tintas e o vinho foram substituídos por ―mega empresários‖ e são denominados ―donos de bloco‖.E o que temos de novidade? A novidade está na luta do resgate do carnaval e da cultura cametaense. Hommi Bhabha (2010, p.19), também atribui a algumas palavras como, por exemplo, além; fronteira; presente; sujeito e outras, um significado que ultrapassa a carga semântica própria de cada uma delas. Talvez ele as trate dessa forma, com o intuito de dar vazão a um pensamento que estabelecemos durante a leitura, de uma espécie de trânsito, de um ir e vir constantes. Reforçado no pensamento de que ―o além não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado‖. 3 - MUSICALIDADE: RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E ARTE Ao falarmos de musicalidade e suas relações entre literatura e outras artes, devemos procurar entender o olhar aqui lançado; pois o mesmo abrangerá questões de produção e análise da letra do samba de cacete em questão. Além do carnaval, estão inseridas nesse contexto, as festas religiosas as quais não deixam passar despercebidas diante das relações manifestadas a musicalidade e a alegria espontânea que não só caracterizam, como também são marcas registradas do cametaense. Tais manifestações acontecem tanto na cidade quanto no interior e criam laços intensos de afetividade; pois o reencontro nesses períodos evidencia toda a hospitalidade e o tratamento carinhoso de nos chamarmos uns aos outros de ―parente‖. E se fizermos uma pesquisa em nossa árvore genealógica, é bem provável que sejamos de fato, parentes! Ao tratar de um tema semelhante ao objeto aqui analisado, Paulo Jebaili (2006, p.55), autor de ―Para cantar de cor” nos diz que ―a marcha é uma das primeiras manifestações de pessoas que se reuniram para cantar a vida de forma lúdica.‖ A essa manifestação, ou motivo que move a reunião de pessoas, é necessário sabermos quea cidade de Cametá é sem dúvida alguma, o ponto de encontro de todas as pessoas que vêm das vilas, da zona rural, ribeirinhos e de todos os ―filhos‖ que retornam nas épocas de festas e de outras manifestações de grande expressão, que acontecem no município, e todas as manifestações culturais que não só alegram, mas motivam o povo a ―cantar a vida‖ no sentido mais literal possível da palavra. Desde os tempos mais remotos das manifestações literárias e da própria definição do que seria arte, a oralidade e o gestual prevaleceram no complexo processo que envolve a 380 comunicação humana. Nossa voz, entonação e nossas inúmeras expressões faciais tornam visíveis nossas mais variadas emoções e sensações. Talvez nossas relações ―mais intimas com a arte‖ partam de uma simples palavra falada ou cantada, diante de um momento de tristeza ou de alegria. Bhabha (2010, p.27), nos diz que sujeitos, são formados nos entre-lugares, espaços de caracterização de um hibridismo cultural que marca toda uma formação histórica, que se constrói de longa data, e ―o ‗passado-presente‘ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver‖. Tanto é que provavelmente, a identidade original ou tradição recebida também sejam fatores indissociáveis para percebermos o quanto a diferença cultural, associada ao multiculturalismo, recria identidades de diferenças a partir de dualidades, como por exemplo, negro/branco, eu/outro, superior/inferior e outros. Outra questão que não pode nem deve passar despercebida, refere-se ao dialeto local; uma vez que ele reflete muito das questões de identidade eestá inteiramente associado à linguagem e seu funcionamento como um todo. Constituída de uma representação simbólica, ele se faz presente em nossas conversas, diálogos do dia-a-dia, permitindo-nos identificar e nos afeiçoar a determinado grupo social, e nesse caso, a reconhecer cametaenses. Doriedson Rodrigues (2003, p.37), nos fala diante de seus estudos sobre Marcadores Conversacionaisque: [...] o não conhecer das variedades linguísticas de um povo, de uma região, pode se dar, geralmente por dois motivos: primeiro por uma forte resistência em aceitar aquilo que seja diferente; segundo, por mera falta de informação [...]. Assim, percebemos que as considerações do autor se voltam para omodo como um fato não exclui o outro, já que a resistência em aceitar as diferenças dialetais implica, também, um não buscar de novos conhecimentos, um não se especializar, geralmente utilizada como um reproduzir cômodo. 5 - ANÁLISE DA LETRA DO SAMBA DE CACETE Música: ―Fazer Mundé‖. Autoria: Desconhecida. Fonte: CD Musical: Frevo – Banda Caferana e Banda Halley. ―Mamãe cadê papai? Foi pro Mato fazer mundé ―Mamãe cadê papai? Foi pro Mato fazer mundé Fazer mundé na beira do Igarapé Pra pegar mucura pra comprar café 381 Fazer mundé na beira do Igarapé Pra pegar mucura pra comprar café‖ Comentário: Os primeiros versos caracterizam o contato próximo entre mãe e filha, com diálogo que é uma mostra do dia-a-dia da família que reside nas ilhas ou numa zona de mata, propícia à caça de animais, em especial, da mucura. Ao ir ―iscar o *mundé‖ (preparar uma armadilha) fica subentendido que o homem da casa acordou cedo para providenciar tanto a captura quanto a venda da mesma, para comprar um gênero fundamental para o consumo da família: o café. ―Mamãe, mamãe, Minha filha o que é? Me dei dinheiro para eu ir no carrossel Mamãe, mamãe, Minha filha o que é? Me dei dinheiro para eu ir no carrossel No carrossel, no carrossel, Lá só vai homem, lá não vai mulher No carrossel, no carrossel, Lá só vai homem, lá não vai mulher‖ Comentário: A filha ao chamar insistentemente a mãe, perguntando, pedindo e aperreando-a, vai aos poucos revelando certa comicidade e mesmo que essa postura aparentemente ingênua não se consolide diante dos versos que seguem a justificativa da mãe tanto pela falta de dinheiro, quanto pela aparente separação de ―coisa de homem‖ e ―coisa mulher‖, provocam o riso. ―Mamãe, mamãe meu namorado já chegou Não tem café com açúcar para eu dar pro meu amor Mamãe, mamãe meu namorado já chegou Não tem café com açúcar para eu dar pro meu amor Amarra a rede e manda ele deitar Não tem Café com açúcar deixa a barriga roncar Amarra a rede e manda ele deitar Não tem Café com açúcar deixa a barriga roncar‖ 382 Comentário: Insistentemente a mãe é invocada em todos os sentidos, para auxiliar mais um problema, ou satisfazer a vontade da filha. Nesses versos, podemos perceber certos hábitos costumeiros do interior que é servir o café, mas na falta desse, a preocupação é com o bem estar da visita, por isso o agrado. ―O meu amigo pra querer se empavular, Vendeu o banjo pra comprar enxoval O meu amigo pra querer se empavular, Vendeu o banjo pra comprar enxoval Vendeu o banjo, vendeu a bandurra Vendeu a namorada e ainda apanhou uma surra Vendeu o banjo, vendeu a bandurra Vendeu a namorada e ainda apanhou uma surra‖. Comentário: Nesses versos temos outro relato; a história de um amigo que sem condições financeiras e por um objetivo que é comprar seu enxoval, acaba se atrapalhando todo. Endividado ele acaba perdendo seus instrumentos musicais e a namorada também. A comicidade está no relato dos prejuízos que ele teve e da ênfase a surra que levou. ―Olha que eu ia passando e a moça me disse assim Meu bem tu tem dinheiro vai comprar doce pra mim Olha que eu ia passando e a moça me disse assim Meu bem tu tens dinheiro vai comprar doce pra mim Dinheiro eu tenho mais não é para gastar Só Deus quem sabe o que eu passei para arrumar Dinheiro eu tenho mais não é para gastar Só Deus quem sabe o que eu passei para arrumar.‖ Comentário: Os últimos versos enfocam uma terceira história; a possível paquera em que a moça quer um agrado da parte do rapaz, mas ele, que de ―besta não tem nada‖, justifica não poder comprar o doce, dizendo que até tem dinheiro, mas que não pode gastar com qualquer bobagem. Ao utilizar o vocativo Deus, ele também o utiliza como testemunha do seu ―sacrifício‖ do que passou para conseguir e Deus melhor do que ninguém sabe disso. 383 6 - POSSÍVEIS SIGNIFICADOS *mundé: é uma armadilha feita por ribeirinhos e agricultores. Tem como finalidade capturar a mucura, uma espécie de roedor que habita nossa região de matas. O mundé é constituído por uma vara pequena e pesada que deve ser acoplada na raíz de uma planta ou árvore que imite uma parede. A mira da vara atinge o pescoço, o meio do corpo ou a cabeça do roedor e a isca geralmente é abacaxi, maracujá, cacau ou qualquer outra fruta forte. Daí deriva a expressão ―iscar mundé‖. *mucura: é um roedor, mamífero, caça entre outros. *banjo: é um instrumento musical oriundo de Portugal. Instrumento de corda, geralmente utilizado nas festas religiosas, era utilizado para celebrar o divino. Pelo fato de ser um instrumento redondo, surgiu também a epressão ―cara de banjo‖. *bandurra: é um instrumento musical oriundo de Portugal. Instrumento de corda, que se difere do banjo apenas pelo formato, ou seja, ela é oval. 7 - CONCLUSÃO O artigo apresentou questões de análise bem simplificadas, com o intuito de mostrar que a produção local integra significativamente questões musicais, literatura e arte com enfoque aos estudos culturais. Nesse sentido, percebemos ainda o quanto as questões dialetais, históricas e os fatos do dia-a-dia exprimem e expressam a realidade de um grupo. Com ênfase nas questões culturais do município de Cametá e diante de tudo o que foi comentado e discutido, fica evidente uma das propostas dos estudos culturais, de que é a partir de um fato, ou dado de realidade, devemos confrontá-lo com as questões que nos rodeiam. Essas considerações finais por assim dizer, nos remetem a Bhaba (2010); no sentido de tratarmos questões de base histórica, sobre literatura diante de um discurso contundente e emblemático, o qual contribui significativamente para considerarmos a história – seja a nossa ou a dos outros – não como mais uma das versões a que ouvimos, mas que se edifica através de outros pontos de vista que nos são apresentados. Nesse sentido, precisaremos entender que não encontraremos um sujeito específico, nem um sujeito de personalidade fixa. Teremos outras vozes, outros discursos, outros sujeitos que produzem, projetam e lançam seu discurso sob uma nova proposta. Pois, o sujeito a partir de então, passa a assumir uma imagem que deve lhe permitir considerar sua identidade não apenas voltada para objetos, mas para o mundo ao seu redor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 384 BHABA, Homi. ―Locais da Cultura‖. In: O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010. Pág. 19-42. JEBAILI, Paulo. Para cantar de cor. Língua Portuguesa: Especial Futebol e Linguagem, Ano I, p.55, abr. 2006. Lei Orgânica do Município de Cametá. Revisada e Atualizada pela Câmara Municipal de Cametá. Dezembro, 2006. MOCBEL, Moia Alberto. Lembranças e Esperanças. Cametá – Estado do Pará – Brasil,1984. MOCBEL, Moia Alberto. Ecos Cametaenses. Cametá- Estado do Pará- Brasil, 1985. MOCBEL, Moia Alberto. Recordações e Saudades. Cametá- Estado do Pará- Brasil, 1988. RODRIGUES, Doriedson do Socorro. Marcadores Conversacionais: Um Estudo sobre os Marcadores ―Parente‖ e ―Que tá? – Tá bom‖ no município de Cametá/Pa. Coleção Novo Tempo Cabano – Vol II, Cametá – Pará, 2003. REFERÊNCIAS MUSICAIS CD Musical: Frevo – Banda Caferana e Banda Halley. 385 IRACEMA RODRIGUES E AS RELAÇÕES ENTRE UM SABER PRÁTICO E UM SABER ESPIRITUAL Wanna Célli da Silva Sousa20 Prof. Dr. Ipojucan Dias Campos (Orientador) 21 Resumo: A palavra médium tem origem no latim e significa ―medianeiro‖, em outras palavras, a pessoa que serve de instrumento de comunicação entre os espíritos desencarnados e os vivos, servindo assim, de elo entre o mundo visível e o invisível. Na antiguidade, estas pessoas consideradas médiuns eram afastadas da convivência com os membros da comunidade. Ainda jovens permaneciam em lugares considerados sagrados, lugares estes em que recebiam ensinamentos e orientações de um mestre quanto ao desenvolvimento de sua mediunidade. Hoje, na maioria das vezes, é impossível desenvolver a mediunidade dessa forma. Ela é desenvolvida em meio às atribulações do convívio no dia-a-dia com a família e com outras pessoas. Estas são algumas características de Iracema Rodrigues, médium e parteira do município de Bragança-PA. Dito isto, este trabalho visa compreender a relação entre um saber prático (o ofício de parteira e a cura por meio de remédios) e um saber espiritual (oriundo do desenvolvimento da mediunidade que a curadora possui), por meio do estudo das narrativas (principal instrumento para o conhecimento de saberes envolvidos nesta prática), obtidas durante a pesquisa de campo realizada junto à médium Iracema Rodrigues. Palavras-chave: médium; narrativa; cura; Abstract: The word medium comes from the Latin and means "mediator", in other words, the person who serves as a communication tool between the disembodied spirits and the living, serving thus as a link between the visible and the invisible. In ancient times, people considered mediums were removed from living with members of the community. Still young remained in places considered sacred, where they were they received, from a master, knowledge and guidance for the development of his mediumship. Today, in most cases, is impossible to develop mediumship this way. It is developed amid the tribulations of living on a day-to-day with the family and with other people. These are some characteristics of Iracema Rodrigues, medium and midwife of the city of Bragança-PA. That said, this study aims to understand the relationship between a practical knowledge (the midwifery and healing through medicine) and a spiritual knowledge (coming from the development of mediumship that the curator has), through the study of narratives (main instrument to understanding of knowledge involved in this practice), obtained during field research conducted around the medium Iracema Rodrigues. Keywords: medium; narrative; cure 20 Mestranda em Linguagens e Saberes da Amazônia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 21 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras/ Linguagens e Saberes da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 386 1. Introdução Este artigo tem como base a narrativa realizada em 25 de maio de 2012 na residência da senhora Iracema Rodrigues da Silva no bairro Alto Paraíso, localizado na cidade de Bragança-PA (Nordeste do estado do Pará). Os primeiros contatos com essa curandeira ocorreram através das conversas com meu avô, pois durante alguns diálogos, era comum o mesmo fazer referência a uma senhora que realizava curas em sua residência. Segundo ele, dona Irá (como é conhecida popularmente) possuía o dom de curar as pessoas mediante conversas e orações. Após uma destes diálogos com meu avô, decidir visitar aquela senhora. Na companhia de meu avô, desloquei-me para o bairro Alto Paraíso. Como ele não lembrava da localização da casa de Iracema decidimos nos informar juntos aos moradores do bairro. As reações eram diversas. Alguns, desconfiados com as perguntas, diziam não ter informações sobre aquela curandeira. Outros, que nunca ouvira falar no nome dela. Além daqueles, raros moradores que afirmavam que ―coisas‖ como curandeiros, pajés e feiticeiros não existiam por ali. Continuamos nos informando, deslocando-se para pontos mais afastados do bairro. Mais adiante, uma senhora nos informou da existência de uma curandeira que realizava tal trabalho e que, além de dona Irá, existiam outras no bairro que realizam trabalhos de cura. A respeito da curandeira que procurávamos, a mesma indicou um caminho de rua de piçarra, lugar com bastante árvore e de aparente tranquilidade. Aos pouco, meu avô, fora se lembrando da casa que havia visitado há algum tempo atrás. Depois de algumas horas de procura, chegamos à residência da senhora Iracema. Fomos recebidos gentilmente por ela, mandando-nos aguardar em um banquinho de espera na sua cozinha. Ali, naquele banco, eu tinha uma visão privilegiada, pois de um ângulo conseguia perceber a rotina da casa, dos familiares e pacientes de Iracema, enquanto de outro, observava a curandeira realizando a consulta de uma jovem, ao fundo de sua casa. Não era somente eu quem observava aquele lugar e os símbolos que aquele cenário possibilitava. Iracema Rodrigues, também lançava seu olhar de curiosidade para mim. Naquele momento, iniciava um processo de construção de conhecimento a partir dos modos de vida daquela curandeira. 387 Para a realização desta entrevista utilizei-me de um gravador digital e de uma câmera fotográfica, pois a narradora autorizou a divulgação do material. É importante mencionar aqui também que este trabalho tem como método de pesquisa à história oral, tendo assim como dívida as seguintes leituras: Fernando Fischman (2007), Agner Heller (1993), Paul Thompson (1992), Alessandro Portelli (2001), Fernando Frochtengarten (2005), e outras leituras referentes a narrativa como, Roland Barthes (1973) e Walter Benjamin (1994), todavia, é importante esclarecer que as interpretações que aqui foram construídas surgem não dos textos teóricos e sim do conhecimento empírico, estabelecidos mediante os saberes construídos a partir das experiências e os modos de vida em sociedade de Iracema Rodrigues da Silva. 1. Considerações sobre o ato de narrar. (...) caracterizo al arte verbal com um tipo de prática social que se manifesta em forma expresivas com componentes linguísticos e paralinguisticos, em contextos comunicativos reconocibles culturalmente em distinto grado, em uma multiplicidade de situaciones que puden abarcar tanto audiências pequeñas como numerosas. (FISCHMAN, 2007, p.42) Ao realizar a leitura do trecho acima, percebe-se que o ator de narrar vai além da atividade banal de relatar um fato onde estão contidos lugares e personagens. Segundo Fernando Fischman essa ação é entendida enquanto uma prática social, o que isso representa? A resposta está em entender que relatar, contar uma história passa também pela construção de narrativas de vida. Histórias construídas na memória e na mente de homens e mulheres que as elaboram ao mesmo tempo em que realizam suas tarefas do dia-a-dia, enquanto constroem seus modos próprios de vida e relações com a sociedade. Deste modo, o homem, ao narrar revela um sabedoria que emana das fontes da experiência construídas nas relações entre ele e a natureza, das atividades simples que envolvem o trabalho, a criação dos filhos e de outras relações da vida cotidiana. A autora Agner Heller, ao querer ouvir e escutar as vozes do outro, afirma a respeito do inexplicável, ou seja, dar sentido a história ―significa mover os fenômenos, as experiências e similares, para dentro de nosso mundo; transformar o desconhecido em conhecido, o inexplicável em explicável, bem como reforçar ou alterar o mundo por ações significativas de diferentes proveniências.‖ (HELLER, 1993, p.85) Assim, o ato de contar histórias vai muito além da simples vocalidade, aquela capacidade do narrador em contar uma história, mas também passa pela performance, em 388 que o narrador mobiliza diversos recursos que permitem à construção de uma narrativa que permaneça na memória de quem as ouviu, dando um sentido a narrativa. Recursos como: o gesto, as expressões do rosto que revelam o silêncio, franzir da testa, risos, olhares e outros. Por meio de sua própria história e de suas narrativas, as pessoas comum procuram compreender os processos de mudanças e revoluções que giram em torno de suas vidas: guerras, transformações sociais, atitudes tomadas na juventude, migração para uma nova comunidade e outros. Um exemplo disso é que ―a história da família pode dar ao indivíduo um forte sentimento de uma duração muito maior de vida pessoal, que pode até mesmo ir além de sua própria morte.‖ (THOMPSON, 1992, p.21). Tendo em vista estas reflexões, quanto ao ato de narrar, segue-se aqui as interpretações que foram pensadas a partir do diálogo com a curandeira. 2. Relação entre um saber prático e um saber espiritual na narrativa de Iracema Rodrigues. Em qualquer tempo e lugar, a narrativa sempre esteve presente na vida do homem. Isso ocorreu porque ela, segundo Roland Barthes, pode ser ―(...) sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita. Pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou a mistura ordenada de todas estas substâncias‖. (BARTTHES, 1993, p. 19). Do mesmo modo que Barthes afirma sobre a presença da narrativa na história da humanidade, também podemos entender que elas versam sobre os mais diversos assuntos, uma vez que, a história da humanidade e suas culturas são heterogêneas, atribuindo também essa característica, as narrativas. A entrevista que será aqui analisada se constitui como um depoimento de história de vida, sendo assim, a narrativa não é construída tendo como base uma temática única, mas sim, várias temáticas, pois, no momento da entrevista teve-se a intenção de que o diálogo com a narradora fosse estabelecido segundo um objetivo principal: conhecer os trabalhos de cura realizados por dona Irá. O objetivo foi mantido, todavia, durante o desenrolar da entrevista, a narradora percorreu por diversos momentos importantes de sua trajetória de vida, caracterizando assim, uma entrevista heterogênea. Devido a este caráter heterogêneo e muitas vezes, não linear, no momento de análise, destacamos os trechos da narrativa segundo a temática e não, necessariamente, obedecendo a uma ordem cronológica dos fatos. A respeito disso, Fernando Frochtengarten afirma que o passado não é lembrado de forma linear, ou seja, a narração avança e recua sobre a linha do tempo, transbordando os acontecimentos vividos. Assim 389 ―as lembranças abrem as portas para o que veio antes e depois. Uma recordação chama outra, compondo uma teia de rememorações mais ou menos singular, cuja textura se alinhava pela maneira como cada memorialista recolhe e amarra as imagens pregressas e busca sua significação.‖ (FROCHTENGARTEN, 2005, p. 6) Apesar das diversas perspectivas que pode ser analisada esta narrativa, este artigo, centraliza esforços em compreender a relação entre um saber prático (a cura por meio de remédios) e um saber espiritual (oriundo do desenvolvimento da mediunidade que a curadora possui), por meio do estudo das narrativas (principal instrumento para o conhecimento dos saberes envolvido nesta prática), obtidas durante a pesquisa de campo realizada junto à médium Iracema Rodrigues. Os trechos, a seguir, justificam a escolha da temática. ―[32: 37] As vezes eu to aqui despreocupada, aí eu olho ta ali sentado embaixo da rede, aí eu vou, mando comprar bombom, aí eu deixo nisso por aqui, assim, quando não, eu vou deixar lá. É assim, aqueles videntes, sabe? É tipo assim, eu sou média e sou evidente, eu sou as duas coisas. [33:08 ]‖22 ―[36:23] Pois é, vai depender da pessoa chegar com o problema, né? Aí eu dou o remédio dela, que pode ser um banho pra limpar o corpo, vai depender do sofrimento que ela ta sentindo. Vai depender do meu ver nele e passar o remédio certo.[37:35]‖23 A narradora, no primeiro trecho destacado, realiza uma tentativa de classificar seus trabalhos de cura, chegando a definir seus trabalhos como de uma ―médiun‖ e ―evidente”. Utiliza tais termos para destacar uma característica principal de seu dom: ela possui a capacidade de sentir a presença de espíritos. Tais espíritos mantêm constante comunicação com ela e possibilita um diálogo com a mesma, no momento de consulta. Em troca de tais comunicações, a mesma, em alguns momentos, os retribui com oferendas (bombons). Este é o saber espiritual de Iracema Rodrigues que destaco aqui. Todavia, atrelado a este saber espiritual, existe um saber prático. O que isso significa? Não podemos pensar aqui em dois saberes distintos, mas de saberes que se completam. Assim, além do espiritual, dona Irá possui um saber prático, evidenciado no conhecimento de ervas, banhos e orações. Ambos saberes estão em constante diálogo e surgiram a partir do saber espiritual que a mesma recebeu através de dom da mediunidade. 24 Entrevista gravada com o senhora Iracema Rodrigues da Silva, curandeira e moradora de Bragança, às 17:00 hs do dia 25 de Maio de 2012, no bairro do Alto Paraíso. 23 Idem. 24 Médium: ―Todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium. Essa faculdade é inerente ao homem; não constitui, portanto, um privilégio exclusivo. Por isso mesmo, raras 22 390 A atribuição do dom é relatada pela narradora como uma dádiva de Deus, uma missão de ajudar as pessoas em troca do saber da cura. A médium narra este fato que ocorrerá na beira de um igarapé quando ainda criança. ―[30:13] Olha, é muito triste você ver uma pessoa do jeito que você ver e não ter força. É muito ruim você ver uma pessoa sofrendo e você não puder ajudar, é. Tudo isso eu pensava, sabe? Até que eu não queria aceitar, isso veio acho que eu tinha uns 8 anos, era uma sete da noite, ninguém tinha dormido em casa, eu escutei a voz, aquela coisa me levou pra beira do igarapé, entendeu? Eu não tava com medo de nada, eu lembro, ele falou eu tava zitinha, bem pequena, desse tamanho, eu me lembro de toda minha infância. [ 32:14]‖25 A protagonista da narrativa, a partir do dom adquirido passa a realizar seus trabalhos de cura, a princípio, de maneira muito reservada, pois não possuía muita convicção de seus dons e processos de cura. Com o tempo, suas habilidades foram ficando mais reais e suas experiências fora aumentando, passando a ter mais convicção de seu dom. Hoje, Iracema realiza suas consultas mediante uma observação do paciente, utilizando-se do auxílio dos espíritos para receber um sinal de cura. No trecho da narrativa, a protagonista, ao ser indagada sobre a maneira que ocorrem suas consultas, diz ―[00:15] eu já trabalho, acho que eu tinha uns 10 anos, né? Quando eu tinha os meus 10 anos, né? Comecei, tipo assim, eu to te vendo, né? No que nós tamu conversando. É o caso assim, tu chega com uma doença. Chega aqui comigo, assim, dona Irá, eu queria uma ajuda sua, aí eu vou te dizer se eu posso. Aí alguém aparece rapidinho e diz, você pode cuidar. Aí eu vou fazer, eu sei qual o remédio, eu sei qual é o poblema aí eu vou passar o remédio para você, entendeu como é? [01:12 ]‖26 Iracema Rodrigues, em diversos momentos da narrativa, distinguiu algumas doenças que pertencem aos médicos e doenças que ela pode curar, mediante um sinal dos espíritos. Esse saber que torna possível distinguir algumas doenças é exercido mediante a são as pessoas que dela não possuam alguns rudimentos. Pode, pois, dizer-se que todos são, mais ou menos, médiuns. Todavia, usualmente, assim só se qualificam aqueles em quem a faculdade mediúnica se mostra bem caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de certa intensidade, o que então depende de uma organização mais ou menos sensitiva. E de notar-se, além disso, que essa faculdade não se revela, da mesma maneira, em todos. Geralmente, os médiuns têm uma aptidão especial para os fenômenos desta, ou daquela ordem, donde resulta que formam tantas variedades, quantas são as espécies de manifestações. As principais são: a dos médiuns de efeitos físicos; a dos médiuns sensitivos, ou impressionáveis; a dos audientes; a dos videntes; a dos sonambúlicos; a dos curadores; a dos pneumatógrafos; a dos escreventes, ou psicógrafos‖. In: KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns, item 159. Rio de Janeiro: 1859, FEB. 25 Entrevista gravada com o senhora Iracema Rodrigues da Silva, curandeira e moradora de Bragança, às 17:00 hs do dia 25 de Maio de 2012, no bairro do Alto Paraíso. 26 Idem. 391 experiência da narradora com os trabalhos de cura. Durante o trecho ela conta um episódio. ―[04:36] a doença era tratada com remédio, mato mesmo, mato assim de tirar o sumo, ai eu peguei. Bati todinho o remédio que era preciso, que eu vi que era preciso, tirei aquele sumo ai ensopei numa fralda aquele remédio e coloquei em cima do pé dela. No outro dia amanheceu seco, ai acordei ela, dei um banho nela, aí no outro dia amanheceu sequinho, seguinho e daí pronto, daí em diante já foi ficando boa e ficou boa, eu vou te mostrar amanhã não, sábado, eu vou lá na aldeia, na casa da minha irmã, pra você ver como é as coisas. [05:22 ]‖27 Iracema Rodrigues executa um ofício que, segundo ela, são explicados pelos dons que recebeu de Deus, seus saberes e experiências que emergem e se legitimam no cotidiano, quando necessitam socorrer parentes, amigos e vizinhos. Todas essas experiências ela compartilha através de construções de modos de vida que realiza ao narrar. Por conta disso que, Walter Benjamin afirma que ―comum a todos os grandes narradores é a facilidade que se movem pra cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada.‖ (BENJAMIN, 1994, item 16). 3. Considerações finais Durante a análise da narrativa procurou-se relacionar os saberes espirituais presentes nos trabalhos de cura de dona Irá e sua relação com um saber prático, ou seja, uma experiência com preparo de ervas e banhos. As memórias desta curandeira são, portanto, experiências historicamente construídas e constantemente modificadas que fazem da trajetória de vida dela, uma construção do passado que dialoga com a constituição do presente. Pensando nisso, procurou-se relacionar aqui a memória e experiência, pontos fundamentais para discutir as múltiplas práticas culturais que envolvem os vários saberes de curandeiros e pajés, por meio do estudo das narrativas. Desse modo, compartilho aqui da ideia de que, a memória oral é condição que promove o enraizamento do ser humano. Direito de narrar, assim, deveria ser um direito estendido a todos. Permitindo que ninguém parta sem ter o heroísmo de sua biografia reconhecido para um ouvinte, deixando a impressão de ter morrido duas vezes, a vida real e a vida narrada e assim permite que a arte de recontar as histórias continue. Para isso, é preciso que o pesquisador se permita realizar a tarefa de escutar o outro. A respeito disso, 27 Idem. 392 compartilho aqui com o leitor, um trecho das reflexões de Walter Benjamin sobre o ator de contar histórias. ―O tédio é o pássaro de sonho que choca o ovo da experiência. O restolhar nas folhagens afugenta-o. Os seus ninhos - aquelas actividades intimamente ligadas ao tédio - já desapareceram nas cidades, na província desmoronam-se também. Deste modo se perde o dom de escutar, e se vai extinguindo a comunidade dos que escutam. Contar histórias é sempre a arte de as contar de novo, que se vai perdendo quando as histórias já não são retidas.( BENJAMIN, 1994, item viii) 4. Entrevista Wanna: O meu trabalho é com essas pessoas que curam, que fazem remédios, eu vim mais perguntar se tu trabalhar a muito tempo já com isso? Dona Iracema: É, eu já trabalho, acho que eu tinha o que, uns 10 anos, 10 anos de idade, né? Quando eu tinha os meus 10 anos, né? Comecei, tipo assim, eu to te vendo né? No que nós tamu conversando. É o caso assim, tu chega com uma doença, né? Chega aqui comigo, assim, dona Ira, eu queria uma ajuda sua, aí eu vou te dizer se eu posso ou não posso. Aí alguém aparece rapidinho e diz, você pode cuidar. Aí eu vou fazer, eu sei qual o remédio, eu sei qual é o poblema aí eu vou passar o remédio para você, entendeu como é? Wanna: Sim, é tipo um sinal, dona Iracema, para saber se você pode curar aquela pessoa. Dona Iracema: Sim, entendeu? Se for do meu alcance, eu faço o remédio, se não for eu despacho do mesmo jeito. Olha, porque sempre me ligam do hospital, tem gente que me conhece, né? Se eu posso ir lá e tal. Eu disse, olha mana, impossível. Ai então me dá o só o nome. Aí eles pegam e me dão o nome. Aí eu pego e vou ver, se pertencer ao hospital eu digo, fica. Se não pertencer ao hospital eu digo, sai do hospital e venha aqui, que seu remédio pode ta aqui. Wanna: Ah, entendi. Porque tem coisas que o pessoal cura lá, mas não cura aqui e tem cura aqui que não cura lá. Dona Iracema: Isso. Olha, porque eu não tenho a foto aqui, mas eu vou, quem sabe um dia desses, tu pode vim aqui, que eu vou te amostrar a foto, né? Mas, assim, ai um dia, um galo beliscou ela bem aqui assim, ó 28 e nêga esse galo foi, com três dias ela não andava mais e ai trouxeram ela pro hospital. Lá o médico aonde tava inflamado o médico raspou, fez 28 faz um gesto apontando para o local do ferimento. 393 a raspagem, mas quanto mais o médico raspava, mas a ferida crescia. Tipo assim uma doença feia, doença câncer né ? Aí o médico, tem médico também que ele é experiente, ai ele disse, moça, pra mãe dela, senhora, tira sua filha daqui que eu acho que a doença dela não é pra cá pra gente não, porque já tinham feito exame, não tinham atestado nem câncer e nem outras doenças, né? Ai nós com medo. Eu sei que quando ela chegou aqui, isso do pé dela aqui ó 29 já tinha cumido tudo. Porque eu num tenho a foto dela, mas eu vou pegar, quem sabe eu num mando pra ti ver, quem sabe da outra vez tu não vem aqui né? Pois é, a foto ta lá na casa da minha irmã, lá na aldeia, mas quem sabe eu não pego em outra hora, segunda feira em diante, você vem aqui. Eu vou te mostrar! Tá, ela chegou, sim, ai me ligaram, aí eu fui lá no hospital, minha subrinha né? Rapaz, quando eu cheguei lá, fiquei assim, tipo bêbado, num vai e nem vem. Aí eu disse, a única palavra que eu disse: o dose! Essa foi pra ti perder a perna. Ela começou a chorar, novinha ela. Aí ela disse: tia me ajuda. Aí meu coração começou a chorar por dentro né? Eu disse pra ela: Só que o que adianta eu te ajudar, que nem tu, nem teu marido não acredita nas coisas e de tudo ficou. Aí com tudo tudo ela saiu do hospital e assussegou aqui. Ela tava medonha de inchada, porque o remédio do hospital tava fazendo mal pra doença, que a doença não era pra hospital, entendeu? A doença era tratada com remédio, mato mesmo, mato assim de tirar o sumo, ai eu peguei né? Bati todinho o remédio que era preciso, que eu vi que era preciso, tirei aquele sumo ai ensopei num fralda aquele remédio e coloquei em cima do pé dela. No outro dia amanheceu seco, ai acordei ela, dei um banho nela, aí no outro dia amanheceu sequinho, sequinho e daí pronto, daí em diante já foi ficando boa e ficou boa, eu vou te amostrar amanhã, amanhã não, sábado, eu vou lá na aldeia, na casa da minha irmã aí eu vou trazer a foto e quando você vim aqui a foto já ta aqui, pra você ver como é as coisas , porque, olha, tipo assim, eu sou só de olhar. Olha, eu já curei câncer. Com a graça de Deus e com o meu remédio, eu já salvei muita gente, já. Tenho uma irmã. Aí tem um dizer assim: que o santo não voga muito pro de casa, sempre eu vejo os velho dizer, o santo não voga muito pro de casa, porque diz que o santo da casa não faz milagre. A minha irmã veio de Belém, ela veio do Barro Barreto 30, já veio de tudo quanto foi hospital, o papai gastou o que não tinha, quase que o papai vende tudinho os gados. Ela já veio despachada do Barro Barreto. O negócio dela era de baixo da pá, aqui ó 31, debaixo de um ossinho. Aquilo inchava, ficava alto. Ai quando foi um dia, eu tava, o meu consultório é ali 32. É simples, única coisa que eu não gosto é desse negócio de tambor, isso não me pertence não. Eu sou a luz que Deus me deixou. Ai eu peguei, eu tava deitada, ai veio um rapaz33 e disse: Você vai deixar acontecer a moça morrer? Ai eu pedi pro meu marido ir no sítio pegar uma blusa dela e traze pra mim, porque o remédio que ela tava tomando era só pra controlar a dor e nem tava dando mais jeito, você entende? Ai ele pegou a blusa e eu vi aquele negoção de baixo da pá dela. Fiz o remédio e mandei meu velho34 levar a camisa dela de volta pra ela vestir a camisa. Quando ela veio em casa, ela não tava mais sentindo. Idem. Hospital localizado em Belém-Pará. 31 Faz sinal indicando a parte da costa. 32 Faz um sinal indicando um quarto pequeno nos fundos da casa, local onde atende seus pacientes. 33 Neste trecho a narradora se refere à um espírito. 34 Referindo-se ao marido. 29 30 394 Hoje, pra mim estar com essa luz aqui, eu to onde eu estou, eu conversei com Deus, ninguém acredita, mas Deus falou comigo no meu sonho, só não quero que você faça mal pra ninguém. Olha, ele falou comigo umas três vezes, a última vez que ele falou comigo eu tava, eu já tinha casado com ele35. Quando eu tava criança ainda, quando eu tava com o pai dos meninos, ele tornou a falar comigo, ele me disse que aquele homem não ia ser meu marido, mais era o seguinte, ele tava nas nuvens e eu na terra, lá em cima. Mas nós tava bem do ladinho dele. Ele me dizia que nós ia virar um serva de Deus, pra defender sabe? Olha, é muito triste você ver uma pessoa do jeito que você ver e não ter aquela força. É muito ruim você ver uma pessoa sofrendo e você não puder ajudar, é. Tudo isso eu pensava, sabe? Até que eu não queria aceitar, isso veio acho que eu tinha uns 8 anos, eu tava na beira do Igarapé quando eu escutei a voz, era uma sete da noite. Ninguém tinha dormido em casa, aquela coisa me levou pra beira de um igarapé, entendeu? Eu não tava com medo de nada, eu lembro, eu tinha de 8 à uns 9 anos, por aí assim, não to bem lembrada, pois sim, aí falou pra mim, desde eu zitinha, bem pequena, desse tamanho eu me lembro de toda minha infância, eu tenho espírito assim, ó.36 As vezes eu to aqui despreocupada, aí eu olho ta ali sentado embaixo da rede, aí eu vou , mando comprar bombom, aí eu deixo nisso por aqui, assim, quando não, eu vou deixar lá37. É assim, aqueles videntes, sabe? É tipo assim, eu sou média e sou evidente, eu sou as duas coisas. Mais é assim, eu não acredito em certas coisas. Eu acredito no que eu sei, agora na que os outros sabe eu não acredito, sabe? Porque é assim, vem gente do Maranhão, vem gente de Belém, vem gente de lá, daqui da 10 da Montenegro, né? Eu fui em tal canto e sempre eu digo pro meus pacientes: gente, eu não sou resto, se vocês sabem que tem uma pessoa boa e que sabe, pois vai naquela pessoa. Aí tinha gente, poxa.. já gastei o que não tinha e nada de ficar boa, porque vocês gostam só de tambor, né? Eu digo assim, vocês gostam de tambor, mas é onde vocês estão enganados. Tambor faz parte a bicho, tambor não faz parte a Deus. Faz parte Deus, a luz. Que nem esse rapaz38. Já chegou gente amarrado aqui de espírito. Que nem o seu Antoninho, ele tá sentado aqui na mesa dele e quando você chega lá, olha, é assim, assim assim, ele já vai direto no seu remedo, as vezes o remédio da certo, as vezes o remédio não da certo. Porque olha, eu fiz o remédio pra ela 39 , ela botou a bola, mas quase ela morre. Então eu digo assim que aquilo era um tumor, eu tenho pra mim que era um tumor. Que o médico disse que era um tumor, mas no começo eu não fiquei acreditando. Ai eu fazia remédio, fazia massagem. Aí ela botou, assim baldiando. Olha tem um remédio que você não dá muito valor, mas ele mata mesmo, é o tal de seu Raimundo pra câncer, ele mata mesmo, seja lá ferida, seja lá uma úcera, uma gastrite, você pode tomar, 9 vez, meia copadinha desse copo médio em jejum, só em jejum, você pode tomar, depois você me diz. Esses dias agora, veio uma senhora aqui, né? Chegou apavorada aí de dor de estomago. Eu disse, teu remédio ta facinho. Ai eu mandei ela fazer. Ai ela disse: Ai dona Ira, eu agradeço muito a senhora, mas só que Dona Irá, mas sabe que com esse remédio eu deixei de tomar até minha cervejinha.40. Pois é, vai depender da pessoa chegar com problema, né? Ai eu dou o remédio dela, que pode ser um banho pra limpar o Referindo-se ao marido. Faz sinal indicando o tamanho de uma criança. 37 Faz sinal indicando uma casinha no fundo da casa, local onde atende seus pacientes. 38 Lembrando de um paciente que ela curou. 39 Referindo-se a irmã. 40 Risos. 35 36 395 corpo, vai depender do sofrimento que ela ta sentindo. Vai depender do meu ver nele e passar o remédio certo. E tem esse negócio de separação, eu ajeito também, as vezes é inveja também, ai casa com aquela pessoa, né? O caso é que aquelas duas pessoas não consegue mais chegar perto, por causa de que? Olho grande, você entendeu? A senhora já ouviu falar naquela, rede vida? Que passa aqueles pastor, que chegam lá no comércio do caboco, ficam admirando, rapidinho aquilo se acaba, né? Pois é, tem gente com um olho muito mal, moça. Que mais você quer saber, moça? REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. ―O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov‖. In. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Extraído de http://pt.scribd.com/doc/41903716/O-narrador-Walter-Benjamin. FISCHMAN, Fernando. HARTMANN, Luciana (Org). Donos da Palavra: Autoria, Performace e Experiência em Narrativa Orais na América do Sul. UFSM, Santa Maria: 2007. FROCHTENGARTEN, Fernando. A memória oral no mundo contemporâneo. Estudos Avançados 19 (55), 2005. Extraído de http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n55/26.pdf HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Tradução Dilson Bento de Faria Ferreira Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns, item 159. Rio de Janeiro: 1859, FEB. PORTELLI, Alessandro. ―História Oral como Gênero‖. In: Revista Projeto História. Programa de Estudos Pós Graduados em História. nº 22, jun.2001. São Paulo: PUC-SP. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 396 TEMA, FORMA E ESTILO EM POEMAS DE AGE DE CARVALHO E MAX MARTINS Prof. Me. Wenceslau Otero Alonso Junior¹ RESUMO Os poetas paraenses Age de Carvalho e Max Martins utilizaram em alguns de seus poemas, a partir de elementos constitutivos da linguagem escrita, algumas soluções visuais que, no caso de Max Martins, estão associadas ao assunto específico dos poemas, tendo aí a sua gênese, e, no caso de Age de Carvalho, estão associadas a um dos temas centrais de sua poesia, tendo portanto outro fundamento. No caso específico de Max Martins, é possível estabelecer pontos de contato entre estas soluções visuais e as propostas do concretismo. Em qualquer dos casos, entretanto, é bastante clara a tentativa de superar o caráter instrumental, ou por outras palavras, prático da linguagem, transformando-a em objeto de contemplação, ou de fruição estética. O texto da comunicação pretende demonstrar a gênese diversa dos recursos poético-visuais dos dois autores, apresentando-os como soluções estéticas diferentes presentes na construção de seus estilos. Palavras-Chave: Autores Paraenses; Estilística; Tematismo; Estruturalismo; Formalismo RESUMÉN Los poetas paraenses Age de Carvalho e Max Martins hicieran uso en algunos de sus poemas, basados en elementos constitutivos de la lenguaje escrita, de algunas soluciones visuales que, en el caso de Max Martins, están asociadas al asunto específico de los poemas, derivando de esto su origen, y, en el caso de Age de Carvalho, están asociadas a uno de los temas centrales de su poesía, originándose, así, en otro fundamento. En lo caso específico de Max Martins, es posible establecer relaciones evidentes entre las soluciones visuales e las proposiciones de lo concretismo. En cualquier de los casos, todavía, es mucho clara la tentativa de superación de lo carácter instrumental, o por otras palabras, practico, de la lenguaje, transformándola en objeto de contemplación, o dicho de otro modo, de fruición estética. Este artículo visa demonstrar la génesis diversa de los recursos visuales en los dos autores, presentándolos como soluciones diferentes en la construcción de sus estilos. Palavras Principales: Autores Paraenses; Estilística; Tematicismo; Estructuralismo; Formalismo Analisar a literatura a partir dos componentes da obra em que incide mais especificamente o trabalho do escritor é uma forma de compreendê-la que ganhou algum destaque na França do final do século XIX com os poetas simbolistas, interessando mesmo aos prosadores, do que é suficiente testemunho a correspondência de Gustave Flaubert. ______________________________________________________________________ 1. Professor Titular do Curso de Letras da Universidade do Estado do Pará (UEPA). 397 Mas a preocupação em dizer como se constitui o poético – o artístico - em um texto literário, ou onde reside sua literariedade, somente é nomeada no campo da análise literária na primeira metade no século XX, com os formalistas russos, com os estruturalistas e com os estilistas, como o diz Avalle, citado por Cesare Segre: ―A principal exigência a que o Estruturalismo parece poder satisfazer (e neste sentido ele acaba colocando-se ao lado da Estilística) é a de ‗engajar a crítica sobre o texto para além de suas qualificações contingentes‘, obrigando-a ‗a responder a algumas questões muito simples, por exemplo, como é feita, e de que modo funciona, e principalmente onde está a poesia.‘‖. (SEGRE: 1974) Pois bem, a análise que se vai ler a seguir, situa-se mais apropriadamente nesta vertente do estruturalismo – como o vê Segre, ao citar Avalle -, na estilística e no formalismo, de vez que entende os recursos usados pelos poetas Max Martins e Age de Carvalho como tentativas de intensificar o nível de fruição estética de seus poemas, setor mais propriamente específico de atuação do artista que usa como instrumento, ou meio de criação, a linguagem humana, preocupando-se, acima de tudo em identificar-lhes a origem. ooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo No caso de Max Martins, o que parece ser a fonte de algumas de suas experiências formais em que é possível identificar a matriz propriamente concretista é a noção da poesia centrada no ícone, ou mais apropriadamente, em se tratando de um objeto construído com a escrita da fala humana, no ideograma, ou seja, na representação gráfica de um conteúdo, em que o próprio referente simula visualmente a coisa referida. Este uso do ideograma como suporte do poético foi objeto de diversas e diversificadas explicações por parte dos integrantes do núcleo duro do concretismo – os irmãos Haroldo, Augusto de Campos e Décio Pignatari – e dos poetas que se interessaram pelas propostas dos concretistas mais epidermicamente, como Cassiano Ricardo, por exemplo. Vejamos pelo menos duas delas: ―O ideograma – assim como diversas outras línguas com código escrito e muitas outras sem código escrito – não possui o verbo ser. Nessas línguas, procura-se mostrar a coisa e não dizer o que ela é. Mostrar um sentimento e não dizer o que ele é – isto é poesia. (PIGNATARI:1977) ―Feito este levantamento crítico, será fácil compreender qual a importância que, para a poesia, possui o sistema chinês de escrita – o ideograma, afirmação que não deve ser tomada como um desejo de substituir simplesmente uma ordem linguística por outra, mas que parte da consideração do instrumento ideográfico como o processo de organização mental do poema em exata consonância com uma comunicação mais rápida, direta e econômica que 398 caracteriza o espírito contemporâneo, antidiscursivo e objetivo por excelência. Por isso chamamos o poema que concebemos como uma unidade totalmente estruturada de maneira sintéticoideogrâmica (todos os elementos sonoros, visuais, semânticos – verbivocovisuais - em jogo) de poema concreto. (CAMPOS:1987) Pelo que se lê nos textos acima - considerando a noção de que o uso não instrumental da língua, mais exatamente da escrita, produz o estranhamento, o desvio, atuando como causa, ou na base daquilo que produz o objeto essencialmente artístico, se pensarmos com os formalistas, com os estilistas e estruturalistas – confirma-se que os concretistas entendem o ideograma, - certamente em seu uso não instrumental, caso contrário ele não seria produtor de estranhamento e, por conseguinte, de fruição propriamente estética, - como paradigma apropriado para a realização do elemento gerador do fato poético, afora, é claro, outras razões, pelo que se lê, também, como a de adequar a linguagem do poema, às exigências do espírito contemporâneo, a exigir objetividade e síntese da literatura. A recepção histórica destas ideias, isto é, de os princípios gráficos de uma língua sintética – neste aspecto - tal a chinesa, serem alçados à categoria de mecanismos prioritários na produção de poesia pelos concretistas, por serem mais adequados que outros já envelhecidos, foram severamente criticados – quase sempre a partir de uma ótica sociológica equivocada - por estudiosos da poesia como Eduardo Portela, ou poetas, como Ferreira Gullar, mas este é um problema datado e produto daquela visão estreita que acomete as vanguardas – entendendo o concretismo como uma delas – em relação às experiências do passado e da crítica oposta a elas, o que não desmerece, nem invalida esta concepção do ideograma como paradigma para a construção e geração de poesia, e nem sequer abala de leve a noção de poesia anterior, centrada no caráter analítico da escrita de nossa língua, que poetas como Max Martins sabiamente continuaram usando em que pesasse sua admiração por poetas como Bashô, por exemplo, e o uso que fez da proposta ideogramática. Demonstremos agora o concretismo em poemas de Max Martins, mas antes, advirta-se que o número de poemas assim realizados por ele é ínfimo em relação ao conjunto de sua obra, tal como aconteceu com as experiências levadas a efeito por Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira, justificando-se o seu estudo aqui, sobretudo, para demonstrar como o aspecto estético visual da escrita tem fundamentação diferente quando usado por ele e quando usado por Age de Carvalho. Advirta-se também que este uso é deduzido dos próprios poemas, de vez que Max Martins, diferentemente de vários outros 399 poetas, como Eliot, Pound e até mesmo João Cabral de Melo Neto, que nos deixou poucas, mas interessantes páginas de reflexão estética, não produziu nenhuma discussão mais estruturada sobre o assunto. Estes poemas estão concentrados basicamente na obra Caminho de Marahu, publicada em Belém do Pará no ano de 1981, e dentre eles escolherei para registro e explicação apenas três, todavia o que se disser sobre eles, guardadas as diferenças de conteúdo, poderá ser aplicado aos outros. um olho novo vê o ovo OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOVOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOO Um dos modos de entender este poema pode ser construído a partir do título, caso em que o poema torna-se em parte sua exemplificação visual. O fato que imediatamente ganha relevo é que tanto o ícone – ideograma - formado com o signo ovo e o fonema /o/ repetido situa-os na esfera do artístico, já que o instrumento do artista, a linguagem, passa a ter um uso novo, fazendo-nos interagir com ela como algo em si mesmo, de sorte que passamos a percebê-la como fenômeno não mais instrumental, o que é intensificado por um processo metafórico com o ovo que passamos a ver, a partir do poema, de um modo novo também, isto é, como um centro de irradiação nuclear, vital. Desenvolvendo a explicação, podemos dizer que o fonema /o/ pelo modo como vem distribuído no poema – como se estivesse em um engradado, naquele tipo de forma em que os ovos são vendidos – passa a ser ele mesmo, sinteticamente, em sua visualidade, o próprio ovo. Este ovo, com o que ganha pela magia de sua visualização, de vez que não é o suporte da frase que lhe confere um sentido inusitado, mas o suporte gráfico, ultrapassa seu sentido prático de alimento ou de reprodutor de alimento pela própria centralidade em que a palavra ovo é colocada no esquema constitutivo do poema, de sorte que se passa a ver nesta centralidade, com a qual a palavra ovo deixa de ser o que é, ou o que a acomodação cultural fez dela, um núcleo irradiador vital do universo. A técnica sintética para chegar a isso, registre-se, é visual, mas o objetivo da linguagem, no poema, continua a 400 ser a produção daquele estranhamento construído também com aquela outra forma analítica de usá-la, forma em que a velha metáfora sempre permitiu aos poetas, natos e falecidos antes de se dar ênfase às construções literárias ideogramáticas, realizar a poesia, o que registro não para marcar uma preferência passadista, mas para deixar claro que o princípio gerador da poesia não foi alterado pelo concretismo, mas ampliado. Pode-se ainda agregar à explicação do ideograma, a ideia de que ele comporta na circularidade do fonema /o/ uma sugestão do olho que vê a centralidade – no sentido filosófico de ver o ovo como núcleo vital da existência, pois este é o modo novo de o olho vê-lo – do ovo a partir de sua inscrição no centro do poema. Transcreverei agora, sem explicar, por desnecessário, o poema Mútuo contínuo, que bem revela o contato de Max Martins com a cultura oriental. Mútuo contínuo samsara é nirvana nirvana é samsara nirvanasamsar anivarnasamsar ranirvanasamsa aranirvanasams saranirvanasam msaranirvanasa amsaranirvanas samsaranirvana Vejamos agora, aquele que me parece ser o mais bem realizado dos três, por conjugar outras notações da escrita que não somente os fonemas e construir com eles um objeto de palavras que se impõe realmente pela visualidade, prescindindo mesmo do título, constituindo-se uma fusão do analítico (palavra feita de fonemas em série) com o sintético (a figura do pênis em posição de coito) ou, me parece melhor dito, no uso sintético do analítico, que é enfim, o desafio do poeta concreto ao transpor as construções de uma língua analítica para uma sintética, por ver no ideograma a chave essencial do poético. 401 Ode De Anaiz Arcanjo de Laarcen ao seu poeta mete ! ooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo O caso de Age de Carvalho é diferente porque o seu interesse pela visualidade da linguagem não deriva, como no caso de Max Martins, de um apelo externo, de uma proposta inovadora que o poeta experimenta por considerar válida e sim, caso se aceite a premissa comprovável, que já será enunciada, de uma necessidade interna imposta por um dos temas centrais de sua produção poética. Adianto que o reconhecimento, ou a proposição, deste fato não implica nenhuma intenção valorativa da minha parte. Os resultados de Max devem ser valorados em confronto com a produção dos concretistas e da poesia em geral. Os resultados de Age me parecem mais um fato formal – e, portanto, estético – a ser aclarado por uma hermenêutica mais complexa, e aí compreendido, para contribuir na fruição mais adequada dos versos, e não propriamente julgados a partir de parâmetros como o da originalidade, por exemplo, de vez que não depende da aplicação de um princípio, de uma paradigma estético a um poema, mas emerge de uma necessidade do conjunto de sua obra e, portanto, tem uma simbologia fundada no tema que surge da leitura de muitos de seus poemas, sendo importante entendê-la, repito, para intensificar o exercício da experiência estética. Não haverá espaço aqui para aprofundar como me foi possível chegar a um dos temas da obra de Age de Carvalho, mas penso que a leitura dos poemas que transcreverei abaixo será suficiente para comprová-lo, o leitor que desejar entendê-lo, entretanto, com mais detalhes, poderá recorrer ao posfácio que escrevi para a Seleta, publicada pela editora Pakatatu, em 2006. Lá está demonstrado, a partir de um modelo analítico denominado Análise Temática, que este tema é o do embate do ser com o tempo, resultando muitas vezes na variante da tentativa do ser em deter o fluxo o tempo, ou de cristalizar o tempo como se faz quando se tira uma fotografia, do que decorre serem muitos dos poemas de Age de Carvalho coleções de fragmentos de vida, de experiências de vida, emoldurados pelas referências temporais, que nem sempre remetem ao calendário, ao relógio, mas a nomes de pessoas, animais, ou cenas do cotidiano da vida familiar, da relação com os outros, que persistem na memória, retornando no poema como instantes que se esvaíram sem que fosse possível retê-los, de tal sorte que talvez por isso possamos falar aqui até 402 mesmo de uma outra variante da relação ser x tempo, que é a do tempo como um fenômeno que transforma a vida numa experiência frustrante por reduzi-la a um fluxo permanente, mas que o poema pode tentar, de algum modo, superar, ou dito de outro modo, deter. Pois bem, é vendo deste modo o conteúdo estruturante da poesia de Age de Carvalho que talvez se possa ler, ou melhor dizendo, ver, o uso reiterado da grafia do fonema /o/ em frases que o destacam sem que ele cumpra aí as funções morfossintáticas que a gramática da língua lhe reserva: artigo, pronome, interjeição, como um procedimento que oferece visualmente a tentativa de o poeta se opor a ação do tempo já referida. Cabe agora explicar porque o fonema /o/ teria este sentido e assim esclarecer o motivo que leva o poeta a usá-lo da forma que o faz. Antes de tentar a explicação, é conveniente reforçar o caráter estético deste mecanismo a partir da noção de estranhamento na esfera da linguagem, deslocando-a de sua função prática ou instrumental, que constitui a literariedade, ou o poético, pois nos versos de Age em que isso ocorre a função do /o/ não é instrumental. Antes, ele faz o leitor ver o signo em sua materialidade, força-o a contemplá-lo, e através dele nada mesmo vê, até porque o que há para ver é uma transformação operada por um procedimento metafórico, conotativo, que é o de transferir para a grafia do fonema /o/ a noção de que a circularidade é um dado geométrico, que pode nos remeter à simbolização do tempo como um eterno retorno, de vez que no círculo o fim do trajeto da linha que o representa está no começo. O /o/ possivelmente cumpre aí nos versos do poeta uma tentativa de controle do tempo, de impedir seu caráter desagregador, ou sua capacidade de impossibilitar nossa fruição permanente dos eventos. Ou se preferirmos, poderemos dizer que o uso do desta grafia não instrumental do fonema /o/ está conectada com o tema da relação ser x tempo por sua circularidade e da circularidade com aquela compreensão do tempo como eterno retorno, caso em que seria a expressão, pelo menos, de um desejo de controlar o tempo. Vejamos três exemplos, o primeiro e o terceiro retirados da obra Seleta, e o segundo da obra Caveira 41. MARÇO 22, três anos depois. 403 Círculo branco calcinado na pedra – ó, ainda aqui vives, fora do nome, todo, ósseo. Guia Oés-a-esmo, de esmolar caminho, seguindo a estrela aviã, via de reis sob o troar de latas – Ave, o Talvez É chegado, traz o presente do avenir, blindado tempo de cegos: esse um todo Cravejado Se de certezas. IRMANAMENTE ilumina o leão do fósforo uma boca, restos de conversa, Saturno (guarda o anel que não tivemos, guardao, sombra, por nós), aceso o tabaco da remissão. E se corrompe, ó em círculos, dragões no ar, tempo, fumaça. 404 Nos três poemas é fácil localizar a presença do tempo. No primeiro deles, o todo ósseo que vive fora do nome e o círculo branco na pedra calcinada, remetem ao morto, à morte, e a algo que supera este evento. No segundo, O Guia, isto é, O és, - que os reis magos saudaram após seguir a estrela, traz, talvez, o presente do futuro, do avenir, do que virá - é saudado inseguramente, pois não é seguro que tenha resolvido o drama do tempo, de vez que nada prova que tenha superado a morte, ou o fim do tempo que o ser pode sentir. No ultimo poema, a fumaça que se esgarça e some em círculos é o símbolo do próprio tempo e de sua ação. Em todos eles o /o/ se destaca, ou por que utilizado fora de suas funções gramaticais, ou por que usado em função inusitada como antes do advérbio talvez, ou por que posto no verso seguinte ao do verbo guardar, que o antecede. Há que registrar em dois dos poemas o uso da palavra círculo, referida nominalmente e sugerida no anel de Saturno. Tudo isso, que se constitui um procedimento repetido ao longo de diversos poemas e de diversos livros do poeta, parece sugerir algo como a representação visual de um desejo que a forma do círculo simbolicamente resolve: a solução para a dissolução operada pelo tempo, sugestão que somente pode ser acatada se considerarmos a base temática ser x tempo da poesia de Age de Carvalho que, enfim, os três poemas parecem confirmar. As soluções visuais de Age de Carvalho e Max Martins, como tentei demonstrar, têm bases diferentes, mas igualam-se por serem recursos artísticos naquele sentido da produção do estranhamento com a linguagem. Elas têm, afora o mérito de sua esteticidade intrínseca, o de nos fazer ver que o artista da literatura não é artista por que discute problemas éticos, morais, culturais, religiosos, políticos, ou algo a isso assemelhado, mas porque procura e encontra soluções formais para oferecê-las ao leitor, que o crítico de formação na área de Letras tem por obrigação explicar, caso contrário converter-se-á em um antropólogo, em um sociólogo, em um cientista político, ou em um teólogo. 405 REFERÊNCIAS 1. CAMPOS, Augusto e Haroldo e PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. Brasiliense. São Paulo:1987. 2. CARVALHO, Age. Seleta. Pakatatu. Belém-Pará:2003 3. _____________. Caveira 41. Cosac & Naif. São Paulo:2003 4. MARTINS, Max. Não Para Consolar. Cejup. Belém Pará: 1992. 5. PIGNATARI. Comunicação Poética. São Paulo: 1977. 6. SEGRE, Cesare. Os signos e a crítica. São Paulo: Perspectiva:1974. 406 LEITURA E ESCRITA: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A PARTIR DO PIBID Prof. Dnd. Yvonélio Nery Ferreira 41 Resumo: O Pibid − Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência − financiado pela Capes − Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − é uma iniciativa para o aperfeiçoamento e a valorização da formação de professores para a educação básica. O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência, desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com escolas de educação básica da rede pública de ensino. Os projetos devem promover a inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas, desde o início da sua formação acadêmica, para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas sob orientação de um docente da licenciatura e de um professor da escola. Foi pensando em tal programa que apresentei um projeto à Capes a partir do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul. O projeto aceito, e em desenvolvimento, abarca pilares básicos para o desenvolvimento humano, a leitura crítica, a leitura literária e a escrita. Os discentes do Curso de Letras Português selecionados para bolsista de iniciação à docência, abordam a leitura em seus amplos aspectos, demonstrando como os alunos do ensino básico devem conhecer, interpretar, decifrar e analisar textos, no fito de utilizá-los como fonte de novas ideias e do saber, mediante os processos de busca, assimilação, retenção, crítica, comparação, verificação e integração do conhecimento, para então chegarem à escrita consistente. É com base em tal fato, que pretendo nesta comunicação demonstrar como o Pibid em desenvolvimento contribui significativamente para a articulação e a construção de práticas pedagógicas necessárias à formação dos discentes. Além disso, pretendo ainda observar como essas ações elaboradas e desenvolvidas e os mecanismos de incentivo à leitura e escrita contribuem para o desenvolvimento intelectual dos alunos do ensino básico. Palavras-chave: Leitura; Pibid; Práticas pedagógicas. Abstract: The Institutional Program of Scholarships for Teaching Initiation – Pibid supported by Higher Education Brazilian Development Coordination – Capes – it is a initiative related to the enhancing and valuation of teaching training to basic education. The program offers scholarships to sophomore students of teaching training initiation projects developed by Higher Level Education Institutions with partnership of public schools from basic education. The projects stimulate the inclusion of graduate students into public schools setting since their initial teaching training in order to develop didactic and pedagogical activities advised by a graduate professor and a teacher from the school. Thinking about this program, I presented a project to Capes throughout Portuguese Graduate Course from Federal University of Acre – Campus of Cruzeiro do Sul. The project approved is based on the human basic education pillars to the development of Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus Floresta, Centro de Educação e Letras – CEL –, Cruzeiro do Sul – Acre. Bolsita CAPES e Coordenador do subprojeto Pibid – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – do Curso de Licenciatura em Letras Português. Doutorando em Literatura – UFSC. E-mail: [email protected] 41 407 critical reading, literary reading and writing. The graduate students selected work with reading literacy in its widen aspects, moreover they show how pupils basic education ought to know, understand, read and analyze texts in order to use as a resource of new ideas and awareness, as well a process of searching, assimilation, retention, critic, comparison, verification and integration of knowledge to a conscious writing. It is based on this factual points I will present on this communication how Pibid in process contribute to the articulation and construction of pedagogical practices to the teacher training. Besides, I intend to observe how these applied and developed actions, also the mechanisms of reading and writing stimulus enhance to the intellectual development of students from basic education. Keywords: Reading; Pibid; Pedagogical Practices. 1. Introdução A formação docente é um conjunto de ações que exige ampla inserção, compreensão e posicionamento, tanto de quem forma quanto de quem é formado, ante as múltiplas realidades por ele exigidas. Caminho árduo, também na contemporaneidade, é o dos cursos de licenciatura, que continuam sofrendo as mazelas do desinteresse por parte de discentes que neles ingressam. Muitas vezes, ocorre de serem estudantes que procuram, por motivos diversos, mais a conquista de um diploma, em detrimento do desejo de se tornarem futuros professores. Com isso, pensar as razões do desestímulo tanto de licenciandos quanto de professores já em atuação nos leva à concretude de fatos como, muitos alunos não conseguirem manter o sustento ao longo da graduação, a certeza de que a futura profissão reserva uma remuneração não compatível com a prática a ser exercida, as más condições de trabalho, as jornadas excessivas, entre tantas outras questões. Segundo Ildeu M. Coelho (2009, p. 14), a formação docente se concretiza ao passo que "formar o professor é ensiná-lo a introduzir os alunos numa provocante aventura intelectual e humana, na busca sempre retomada da verdade, num prudente e saudável cultivo da dúvida, da contestação, do trabalho da razão, sem jamais se dar por satisfeito". Pensando em tal fato, há uma via de mão dupla, onde quem forma futuros docentes tem o papel fulcral de mostrar aos discentes as nuances e os meandros do processo em questão; e quem é formado, também deve assumir postura tal que o torne indivíduo preocupado com a posterior atividade a ser desempenhada, uma vez que ela exigirá grande sensibilidade em entender que a prática docente é condicional para o desenvolvimento cultural, político e econômico da sociedade. Ao atentar para as questões acima, nota-se que o PIBID − Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência − financiado pela Capes − Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − é uma iniciativa que contribui 408 significativamente para o aperfeiçoamento e a valorização da formação de professores para a educação básica. O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência, desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com escolas de educação básica da rede pública de ensino. Os projetos devem promover a inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas, desde o início da sua formação acadêmica, para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas sob orientação de um docente da licenciatura − coordenador do subprojeto − e de um professor da escola − supervisor. Foi pensando em tal programa que apresentei um projeto à Capes a partir do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul. O projeto aceito, e em desenvolvimento, abarca pilares básicos para o desenvolvimento humano, a leitura crítica, a leitura literária e a escrita. Os discentes do Curso de Letras Português selecionados para bolsista de iniciação à docência, abordam a leitura em seus amplos aspectos, demonstrando como os alunos do ensino básico devem conhecer, interpretar, decifrar e analisar textos, no fito de utilizá-los como fonte de novas ideias e do saber, mediante os processos de busca, assimilação, retenção, crítica, comparação, verificação e integração do conhecimento, para então chegarem à escrita consistente. É com base em tal fato, que pretendo nesta comunicação demonstrar como o Pibid em desenvolvimento contribui significativamente para a articulação e a construção de práticas pedagógicas necessárias à formação dos discentes. Além disso, pretendo ainda observar como essas ações elaboradas e desenvolvidas, bem como os mecanismos de incentivo à leitura e escrita contribuem para o desenvolvimento intelectual dos alunos do ensino básico. 2. Literatura, leitura e escrita: relações possíveis Entre tantas questões imprescindíveis e inerentes ao ser humano, capazes de satisfazer as condições materiais e as morais da vida, há uma que se manifesta em vários momentos do cotidiano: a entrada no mundo da ficção e da fantasia. No ensaio intitulado "O direito à Literatura", Antonio Candido (1995, p. 174), após chamar de literatura "[...] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os níveis de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações" [...], afirma que [...] "vista desse modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que 409 possa viver sem ela, isto é, sem possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação". Observada por essa perspectiva, a literatura é um bem fundamental ao indivíduo e à sociedade. Ainda nesse ensaio, a partir de dizeres do sociólogo francês Louis-Joseph Lebret, Candido estabelece uma relação entre "bens compressíveis" − supérfluos − e "bens incompressíveis" − "os que não podem ser negados a ninguém": [...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão, etc; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura (CANDIDO, 1995, p. 174). Colocar a literatura e a arte no patamar de bens necessários ao ser humano é confirmar a ideia de que eles não deveriam ser negados a nenhum indivíduo. É afirmar que todos têm direito de entrar em contato com essas linguagens, algo que ocorre por vezes de forma insuficiente, quando se pensa em obras de elaboração mais complexa. Para pensar esse direito que não atinge a todos, faz-se necessário refletir acerca do ensino de literatura no Brasil. Segundo Joaquim Brasil Fontes (1999), o modelo implantado pelas primeiras escolas jesuíticas no Brasil teve como base o Ratio Studiorum, método pedagógico dos jesuítas com organização e plano de estudos vinculados à Companhia de Jesus, pautado na busca de uniformidade dos discentes dos colégios da Ordem Jesuítica espalhados pelo mundo. A partir de perspectivas apontadas pela estudiosa da História da Leitura e da Literatura, Socorro Barbosa (2005), tem-se que havia a supervalorização dos autores antigos em detrimento dos modernos no âmbito literário − que não eram trabalhados. O ensino estava vinculado a fundamentos praticamente imutáveis, com verdades solidificadas em uma metodologia calcada no universo da Retórica e da Poética. No que tange à escrita, os textos clássicos eram modelos a serem seguidos, mas não de forma ampla, uma vez que muito se adaptou e se excluiu para que tais textos se adequassem às conveniências da Companhia de Jesus. A expulsão dos jesuítas em 1759 pelo Marquês de Pombal, foi atitude crucial para o fim desse método, tentando introduzir no Brasil uma educação laica. Pombal acreditava que a instauração da Monarquia portuguesa só ocorreria com a associação das armas e das letras. 410 No que tange ao Ensino Superior no Brasil, a implantação das primeiras escolas só ocorreu três séculos após a chegada dos portugueses. Em 1808 instituiu-se o curso para formação de médicos no Hospital Militar do Rio de Janeiro; logo em seguida, no mesmo ano, os cursos de engenharia na Academia Real Militar. Segundo Denise da Silva Fialho e Lara Lopes Fideles (2011), "[...] Embora o país não tivesse formalmente uma universidade, para todos os efeitos ela existiu com os colégios dos padres jesuítas e os estudos menores das Letras Humanas (gramática, retórica, poesia), Latim, Grego e Hebraico, com predominância do Latim como língua da cultura intelectual". Já o curso de Letras no Brasil tem seu primeiro bacharelado inaugurado no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1837. Na primeira metade do século XX o referido curso é implantado na Universidade de São Paulo (1934), na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; em 1935, na Universidade do Distrito Federal (RJ); em 1938, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná; em 1946, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; entre outras que se seguiram. Importante salientar, com base nos apontamentos de Fialho e Fideles (2008), que [...] os cursos de Letras foram estabelecidos com a finalidade de preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica; preparar candidatos ao magistério do ensino secundário, normal e superior; e realizar pesquisas nos vários domínios da língua-cultura que constituem objeto de seu ensino. Na segunda metade do século XX, gradativamente o curso de Letras se espalha para outras universidades brasileiras e os campos relativos às suas diversas áreas evoluem. Em meio aos estudos literários figura a Teoria Literária, a Crítica Literária, a Historiografia Literária, a Leitura, a Metodologia de Ensino de Literatura, entre outros. Ainda hoje, no tocante à Metodologia de Ensino de Literatura e à Leitura, mesmo com o aumento de pesquisas e pesquisadores, essas áreas devem merecer cada vez mais atenção de seus estudiosos, uma vez que tratam de questões fundamentais como o incentivo e o interesse pela literatura/leitura/literatura e outras questões relativas a esses campos de atividade. Ao falar em leitura e literatura, é fato que há certa dificuldade de implementação de métodos que favoreçam o interesse dos alunos por textos literários de diversos períodos da história literária. Em nenhum momento afirmo que os jovens de hoje não leem, muito pelo contrário, pois vários livros se tornam best sellers impulsionados pelas vendas a esse público, sem falar nas leituras feitas em redes sociais e sites na internet. Apesar disso, algumas 411 perguntas são fundamentais: por que o desinteresse da maioria dos jovens e das crianças por textos literários pedidos nas escolas, os intitulados "clássicos"? Quais os motivos que fazem a literatura e a leitura no Brasil serem pouco valorizadas? Por que, muitas vezes, a aplicação de planos de desenvolvimento e incentivo à leitura não é satisfatória? Esses são questionamentos que também merecem destaque no desenvolvimento desse projeto. Por se imbricarem mutuamente e serem dependentes uma da outra, leitura e literatura não podem ser vistas dissociadamente. A despeito de tal percepção, é nítido que literatura, enquanto disciplina, assume maior especificidade no Ensino Médio, mas vinculada a outra matéria na maioria das escolas brasileiras, uma vez que na esfera pública, a disciplina chamada Língua Portuguesa converge o ensino de vertentes diferentes, a gramática, a redação, interpretação textual e a literatura, levando os professores a privilegiarem o ensino da gramática e da compreensão textual, pois a carga horária semanal não possibilita que essas áreas sejam ensinadas e apreendidas de forma justa e igualitária. Geralmente voltado para a interpretação textual e para exemplos gramaticais, o texto literário figura como mero instrumento de exemplificação, perdendo suas funções, uma vez que parcos são os contatos dos discentes com obras literárias completas. Tem-se, ainda, que nos raros momentos os quais a literatura é ministrada como disciplina, as metodologias utilizadas em seu ensino não são suficientes para despertar na maioria dos alunos o interesse pelos textos literários, vistos como enfadonhos e de difícil acesso. Quanto à esfera privada, o quadro relativo ao ensino de literatura modifica um pouco, visto que tal matéria é lecionada separadamente da Língua Portuguesa e da Produção textual. Mesmo com essa diferença, o interesse dos alunos pela disciplina e pela leitura das obras apresentadas pelos professores continua baixo, pois, novamente, as metodologias de ensino que a maioria dos docentes aplicam às suas aulas não são suficientes para estimular o interesse dos discentes. O texto literário, geralmente, não estará vinculado ao prazer da leitura, ele é, na maioria das vezes, acompanhado por fichas de leituras ultrapassadas, por avaliações mal estruturadas e pela obrigação de leitura imposta pelos vestibulares. Tais procedimentos de trabalho também se estendem às escolas públicas quando obras são trabalhadas. É fato que o interesse pela literatura/leitura/literatura tende a diminuir à medida que os alunos saem da infância e adentram na adolescência e na fase adulta. A leitura por prazer se tornará leitura por obrigação e o texto literário aos poucos perderá seus encantos. A essência lúdica infantil vai sendo tolhida pela necessidade de organização racional do 412 pensamento e a literatura será vista como mero texto sem função em meio às outras disciplinas e ao cotidiano dos alunos. No processo de relação social e de desenvolvimento humano e intelectual de qualquer indivíduo, a leitura crítica, o pensamento sensato, a leitura literária, bem como uma escrita coerente e adequada às múltiplas situações, são cruciais em um mundo que valoriza a massificação do indivíduo. Ao atentar para esses fatores, nota-se que eles caminham em consonância, sendo praticamente impossível desvencilhá-los, uma vez que para se atingir uma das práticas citadas se faz mister o desenvolvimento de outra. A leitura, literária ou não, é fator decisivo de estudo, pois viabiliza a ampliação de conhecimentos, a obtenção de informações básicas ou específicas, a abertura de novos horizontes para a mente, a sistematização do pensamento, o enriquecimento de vocabulário, o entendimento do conteúdo das obras literárias e textos variados, além de outros fatores. Pensando nisso, é inevitável a urgente conquista da leitura para uma participação significativa na sociedade. Aprender a ler é, antes de tudo, aprender a ler o mundo e o seu contexto. Ler criticamente um texto significa perceber as relações entre ele e o contexto em que está inserido. A leitura crítica de um texto faz o sujeito pensar, investigar e questionar. O leitor crítico sempre se faz ouvir, ou seja, mediante sua compreensão do texto, o indivíduo é levado a posicionar-se frente aos problemas. Em um ambiente escolar, ter postura crítica é saber discutir sobre diversos assuntos do cotidiano, desde os conteúdos apresentados em sala de aula, passando por filmes, músicas, notícias de jornal, textos literários, entre outros. A atitude crítica se configura enquanto ato necessário não apenas nas discussões diárias, mas, também, no ato da escrita, tão insuficiente por fatores diversos, desde os sociais aos modos de alfabetização. É fundamental despertar nos alunos posicionamentos lúcidos, tanto no que tange à discussão, quanto no que se refere à escrita, para que haja melhor desempenho desses alunos em suas mais diversas relações cotidianas. É observando a falta de senso crítico da maioria dos alunos dos Ensinos Fundamental e Médio - e mesmo a de alguns discentes das Instituições de Ensino Superior no Brasil - que se faz necessário aguçar, nos mesmos, o gosto pela discussão crítica no dia-a-dia e pela leitura. É a partir de tal perspectiva que o PIBID do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul pretende, a prática de atividades que despertem nos alunos das escolas onde o projeto é desenvolvido, o gosto pela leitura − literária ou não − e pela escrita, para que os mesmos possam se tornar 413 cidadãos conscientes enquanto seres sociais. Além disso, o projeto procura atingir um objetivo fundamental: despertar nos discentes bolsistas o gosto pela prática docente. Esses são alguns aspectos que passo a relatar agora, a partir das atividades desenvolvidas ao longo deste quase um ano de projeto. 3. Algumas práticas pedagógicas do PIBID do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul O projeto PIBID do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul, como já exposto, tem por objetivo o desenvolvimento de práticas pedagógicas que incentivem nos alunos das escolas públicas de ensino básico o gosto pela leitura − em suas mais diversas formas − e pela escrita; além de incentivar nos alunos bolsistas o interesse pela docência. O projeto envolve vinte e cinco alunos bolsistas e cinco supervisores, distribuídos em duas escolas, sendo três grupos, cada um com cinco alunos, na Escola Estadual de Ensino Médio Dom Henrique Ruth, cada grupo supervisionado por um professor da escola, selecionado para esta finalidade −; e dois grupos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Anselmo Maia de Carvalho − cada grupo também com cinco alunos cada um, supervisionado por um professor da escola selecionado para esta finalidade −, nesta escola há um grupo que trabalha com o Ensino Fundamental II e um grupo que desenvolve atividades no Ensino Médio. Para o bom andamento das atividades, a comunicação entre coordenador do subprojeto, dos supervisores e dos alunos bolsistas é fundamental, uma vez que é a partir desta inter-relação que as atividades a serem desenvolvidas são elaboradas, vistas e revistas, para que cheguem nos alunos participantes das escolas públicas como práticas pedagógicas diferenciadas, acrescentando algo além do já visto em sala de aula e propiciando um estímulo à sua postura dentro da escola. Para o PIBID subcoordenado por mim, apresentamos semanalmente oficinas temáticas que envolvem a prática da leitura e da escrita. Porém, para se chegar à aplicação dessas oficinas, são realizadas reuniões com os professores supervisores que sugerem temas a serem elaborados e aplicados. A partir de tal sugestão, cada grupo de alunos se reúne para a elaboração do plano de atividades, traçando metas e objetivos, confeccionando material e procurando formas inovadoras de apresentação do conteúdo sugerido. Depois de elaboradas as atividades, os alunos se reúnem novamente com o professor supervisor, que analisará se as oficinas elaboradas estão de acordo com o que pediram. Obtendo o aval, as mesmas são aplicadas a alunos que se inscreveram 414 voluntariamente para participarem das oficinas, que ocorrem no contraturno das aulas. O professor supervisor ainda acompanha todas as atividades presenciais dos bolsistas de iniciação à docência. Além disso, o coordenador do subprojeto também acompanha e orienta a atuação dos bolsistas, além de realizar o acompanhamento técnico-pedagógico do subprojeto sob sua coordenação. Até o presente momento, no que tange aos grupos que trabalham com o Ensino Médio − quatro grupos − foram elaboradas e aplicadas oficinas que envolviam Literatura e Música; Literatura e Artes Plásticas; Literatura e Cinema; leitura de charges; Linguagem literária e não literária; habilidades de leitura; estrutura de textos dissertativos e argumentativos; entre outras atividades. Quanto ao grupo responsável pelas oficinas do Ensino Fundamental II, algumas atividades até então desenvolvidas estão relacionadas à prática da contação de histórias; técnicas teatrais; leitura de imagens; leitura de poemas; escritura de poemas e outros textos; entre outras práticas. 4. Considerações finais Até o presente momento, o que se percebe é que o subprojeto PIBID do Curso de Letras Português da Universidade Federal do Acre − Campus de Cruzeiro do Sul vem alcançando seus objetivos. Segundo relatos dos supervisores e da diretoria, os alunos participantes das oficinas melhoraram consideravelmente seu desempenho, tanto em sala de aula quanto em avaliações dentro e fora da escola. O interesse pelas oficinas oferecidas tem aumentado significativamente, sendo necessária a seleção de alunos para a participação nas mesmas. Quanto aos alunos bolsistas de iniciação à docência, pode-se dizer que as dificuldades encontradas relacionam-se à adaptação inicial ao ritmo das atividades, tanto de preparação quanto de execução, assim como o estranhamento causado pelo ritmo das escolas. Porém, como era de se esperar, tais dificuldades foram devidamente sanadas, à medida que os bolsitas começaram a execução das oficinas e o planejamento foi sendo executado. Além disso, é notório o fato de o objetivo do Pibid estar se cumprindo, uma vez que é fato o gosto dos "pibidianos" pela prática docente a cada atividade desenvolvida. Portanto, é de suma importância salientar que o PIBID vem se constituindo enquanto espaço para proposição e reflexão de práticas pedagógicas de caráter inovador, sempre levando em consideração a realidade escolar. Nesse âmbito, está se buscando o desenvolvimento de atividades com características diferentes daquelas apresentadas em sala de aula, com o objetivo de desvendar outras possibilidades que façam da relação ensino- 415 aprendizagem algo atrativo e eficaz. À medida que as práticas pedagógicas planejadas são colocadas em prática, o principal intuito do PIBID é gradativamente atingido, o processo formativo, em seus mais diversos aspectos: discentes bolsistas, coordenador de área, professor supervisor, outros sujeitos tanto da comunidade escolar quanto fora dela. REFERÊNCIAS: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9.ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. ______. Vários escritos. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995. COELHO, Ildeu M. (org.) Educação, cultura e formação: o olhar da filosofia. Goiânia: Editora PUC Goiás, 2009. FONTES, Joaquim Brasil. As obrigatórias metáforas - Apontamentos sobre literatura e ensino. São Paulo: Iluminuras, 1999. FIALHO, Denise da Silva e FIDELES, Lara Lopes. As primeiras faculdades de Letras no Brasil. In: Revista de História do Ensino de Línguas no Brasil, do Programa de PósGraduação da Universidade de Brasília. Ano 2, nº 2 - 1/2008. Disponível em http://www.helb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=106:asprimeiras-faculdades-de-letras-no-brasil&catid=1080:ano-2-no-02-12008&Itemid=11. Acesso em: 11 nov, 2011. 416 CIBERMISTÉRIOS NAS PÁGINAS DO LEITOR CONTEMPORÂNEO Zíla Letícia Goulart Pereira Rêgo42 Resumo: O presente trabalho se propõe a discutir a representação do medo em obras da literatura infantil e juvenil brasileira voltadas ao mistério e ao horror, em especial as que enfocam temas ligados ao universo virtual. Herdeiro de uma longa tradição, o gênero terror se renova para o público juvenil a partir do advento da internet, investindo em questões como vulnerabilidade, insegurança e fim da privacidade sugeridas pelas diversificadas e dinâmicas formas de produção e circulação de informações na rede. O medo se reedita em sujeitos que tem, no uso da tecnologia e nas formas virtuais, um jeito de ser, estar e se relacionar no mundo contemporâneo. A psicologia do medo passa a se constituir a partir da sensação de ampla conexão e total descontrole, aspectos que os estudos de Jean Delumeau ajudam a elucidar quando atestam a passagem, na história ocidental, do medo da Natureza para o do próprio homem. No desenvolvimento desse estudo, enfocamos a obra Cibermistérios e outros horrores, de Laura Bergallo, sem deixar de aludir a uma produção já consistente do gênero. A questão central que nos guia é o fato de que, mais do que um simples recurso temático, a aproximação do terror à tecnologia nessas obras representa uma das formas com que os sujeitos contemporâneos testam seus limites e levam ao extremo a experiência humana Palavras-chave: medo; tecnologia; literatura infantil e juvenil Abstract: This paper aims to discuss the representation of fear in works of children's literature focused on the Brazilian mystery and horror, especially those that focus on topics related to the virtual universe. Heir to a long tradition, the horror genre is renewed for a young audience from the advent of the internet, investing in issues like vulnerability, insecurity and end of privacy suggested by the diverse and dynamic forms of production and circulation of information in the network. Fear reissues in subjects who have, in the use of technology and virtual forms, a way of being, living and relating in the contemporary world. The psychology of fear happens to be from the broad sense of connection and the total lack of control, aspects that studies of Jean Delumeau help elucidate whether attest to the passage, in Western history, fear of nature to the man himself. In developing this study, we focused on the work Cibermistérios and other horrors, Laura Bergallo, while alluding to a consistent production since the genre. The central question that guides us is the fact that more than a simple feature thematic approach of terror with technology in these works is one of the ways in which contemporary subjects test their limits and lead to extreme human experience. Keywords: fear; children's literature; technology 1. Introdução O sentimento do medo acompanha o homem desde sempre, seja para impor limites cobrando prudência e observação, seja para exercitar a coragem de superá-lo. Materializadas em seres sobrenaturais ou em situações de suspense e perigo, as causas do medo e do assombro se diversificam de cultura para cultura, de tempos em tempos, conforme a sociedade se desenvolve e se especificam os riscos. Lovrecraft, em O horror sobrenatural na literatura eleva o medo ao sentimento mais antigo do mundo e aponta um 42 Professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: zila. [email protected] 417 tipo específico, justamente aquele que mobilizaria a humanidade através dos tempos: o medo do desconhecido. É nesse sentido que, impulsionado pela curiosidade, o indivíduo se vê, simultaneamente, temeroso pelas conseqüências, mas irresistivelmente seduzido pela incógnita. O presente trabalho se propõe a discutir a representação do medo em obras infantis e juvenis brasileiras voltadas ao mistério e ao horror, em especial as que enfocam temas ligados ao universo virtual. Herdeiro de uma longa tradição, o gênero terror se renova para o público juvenil a partir do advento da internet, investindo em questões como vulnerabilidade, insegurança e fim da privacidade sugeridas pelas diversificadas e dinâmicas formas de produção e circulação de informações na rede. O medo se reedita em sujeitos que tem, no uso da tecnologia e nas formas virtuais, um jeito de ser, estar e se relacionar no mundo contemporâneo. 2. O medo do homem Em tempos de acentuado desenvolvimento tecnológico como os que vivemos e de uso da comunicação virtual como uma das formas mais freqüentes de contato entre os sujeitos, a psicologia do medo passa a se constituir a partir da sensação de ampla conexão e total descontrole, aspectos que os estudos de Jean Delumeau ajudam a elucidar quando atestam a passagem, na história ocidental, do medo da Natureza para o do próprio homem. Movidos pelo vazio de contato físico que a tecnologia suscita, os sujeitos vem-se envolvidos na possibilidade de terem a privacidade conhecida, acompanhada, invadida, mas sem ter real acesso a esse outro, ou de vê-lo concretizado em uma forma identificável. Enquanto extensão do humano, os recursos tecnológicos simulam sua presença, encurtam distâncias e alimentam a ilusão de fundir presente, passado e futuro. Gumbrecht, em seus ensaios da Modernização dos sentidos, menciona o fim, na contemporaneidade, dos limites entre espaço e tempo, entre corpo e consciência. A instalação e os efeitos das inovações e dispositivos técnicos no cotidiano gerou essa sensação de unidade. O corpo pode estar presente em diferentes lugares e épocas, é possível experimentar a sensação física de vivenciá-la sem sair do próprio lugar. Além disso, fundem-se os tempos: reproduz-se o passado, antecipa-se o futuro numa aprimorada técnica e amalgama-se tudo num eterno presente, num aqui e agora. Essa sensação de proximidade mediada que a tecnologia em suas diferentes configurações nos proporciona gera um misto de atração e medo, um jogo entre recuar e ceder aos apelos tecnológicos, com todos os predicados que se nos apresenta. Tanto poder e agilidade seduz e assusta, uma experiência que se coloca bem ao gosto da infância e da 418 adolescência, naturalmente propensas a testar seus próprios limites quando da engenhosa tarefa de constituição de suas identidades. Então, como a literatura dirijida a esse público reproduz e alimenta esse interesse? Como sabemos, os mitos, em suas variadas configurações, são produtos da busca pelo preenchimento do vazio que a incógnita revela, uma tentativa de explicar, justificar, narrar, enfim, o desconhecido, atribuindo-lhe existência e uma certa lógica. Pelo verbo, o homem tenta reproduzir e dominar a natureza. As obras destinadas a crianças e jovens sempre beberam nessa fonte e os contos de fadas, fundadores do gênero, exemplificam essa tentativa pela sua natureza espiritual / ética / existencial. Originados entre os celtas, apresentavam heróis e heroínas cujas aventuras estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida e visavam à realização interior do ser humano. Daí a presença da fada, cujo nome vem do latim ―fatum‖, quer seja, ―destino‖. As fadas sempre atraíram os homens, pois, pertencendo à área dos mitos (das tentativas de explicação do desconhecido), elas encarnam a possível realização dos sonhos ou ideais inerentes à condição humana. Tais narrativas surgem no estágio em que o pensamento mágico dominava a humanidade, mas sabemos que, a par de todo avanço de nossa civilização, esse pensamento ainda acompanha o homem numa faculdade que lhe permite imaginar mundos, projetar realidades e, pela tecnologia, reproduzi-los. É justamente essa tradição dos mitos de lidar com o imponderável que as narrativas contemporâneas voltadas ao suspense e ao terror retomam. Heloísa Buarque de Holanda, em seu artigo ―Quem tem medo da tecnologia?‖, destaca o fato de que uma das características da cultura moderna, o apelo pelo novo, é substituída hoje pela tendência de retomar e tratar a tradição num jogo de ―refuncionalização‖. Essa alteração no trato com a tradição permite, na produção para jovens leitores, que reencontremos motivos e técnicas reelaborados em outras roupagens. É o caso dos já clássicos Contos de enganar a morte, de Ricardo Azevedo e Sete histórias para sacudir o esqueleto, de Angela Lago, por exemplo, que retomam narrativas brasileiras de cunho folclórico jogando com referenciais que, se não estão assimilados pelo leitor, funcionam justamente para acirrar a curiosidade e reforçar o estranhamento. Mudando de cenário, mas ainda investindo no suspense, contos e lendas urbanas aparecem nas páginas de Rotas fantásticas, de Heloísa Prieto, e Pente de Vênus, de Heloísa Seixas, por exemplo, deixando o leitor em sobressalto, tendo em vista que o insólito irrompe no cotidiano das cidades, espreitando nas situações mais banais, transformando os sujeitos mais comuns em vítimas ou algozes em potencial, dependendo do ângulo que se observa. 419 Tratam-se, nesses exemplos, de narrativas que provocam, nos leitores jovens, a possibilidade de pensar e sentir criticamente as coisas da vida e da morte, que permitem conhecer questões relativas ao mundo, à existência contemporânea, em suas tantas e tão diversas lutas. Uma delas, talvez das mais presentes no cotidiano de jovens urbanos, são os riscos que encobrem o uso da rede. Com acesso ilimitado a todo tipo de informação, eles se entregam aos riscos, muitas vezes, sem dimensioná-los. Para Steinberg e Kincheloe, em Cultura infantil. A construção corporativa da infância, uma das marcas do apelo que filmes do tipo ―Halloween‖ tem sobre crianças e jovens é o fato de que eles traduzem a face latente da infância e da adolescência pós-moderna: o medo do isolamento (dos pais e de um espírito comunitário). Para as autoras, a crise da infância contemporânea pode significar, de várias formas, tudo que envolva, de algum modo, o horror de enfrentar sozinho o perigo. E onde ele está? Por todos os lados, imbricada no cotidiano de jovens urbanos que tem, na rede e nas mais diversas mídias, a liberdade, o despreendimento e a autonomia que a realidade lhes nega. Cibermistérios e outros horrores, de Laura Bergallo é uma reunião de sete contos cujo mote central são as conseqüências mais ou menos nefastas do uso de diferentes tecnologias. É uma de suas obras que tem o universo das mídias como ambiente central, como molas propulsoras de riscos insondáveis. Em Uma pose para a posteridade, a máquina fotográfica rouba, a cada foto tirada, a chama de vida do protagonista, cujo espectro já se anuncia em meio às cenas fotografadas e se confirma no último clic: desaparecido o corpo, resta na imagem transferida para a tela do computador, a cara da morte. O mesmo encontro sinistro com a dama de preto é narrado em O sinal, quando uma solitária viúva se rende à sedução de um inusitado convite para participar do ―Bingo do século‖ enviado em seguidas madrugadas pelo aparelho de fax.. Após dias e dias de espera, a vulnerável senhora é buscada em casa, com pompa e circunstância, pela estranha dama e nunca mais é vista. O apelo consumista que a inovação tecnológica suscita é a razão da desgraça que se abate sobre os protagonistas dos contos 42°52‟32‟‟N, 1°49‟57‟‟L e Fofuras Tales. No primeiro, um avançado aparelho de GPS é adquirido, com sacrifício, por um jovem casal em lua de mel pela Europa e este lhes presenteia com uma orientação cujo ponto de chegada é a morte num desfiladeiro. Em Fofuras Tales, um falso game dirigido a meninas meigas e ingênuas leva dois casais de adolescentes a experiências trágicas em acidentes que reproduzem, na vida real, cenas de violência e satanismo. Amigos para sempre e Paranóia tematizam as infinitas possibilidades de contato e comunicação que as redes sociais propiciam, em especial o Facebook e o Twitter, 420 respectivamente, esses ambientes virtuais onde as vidas se cruzam, os amigos se reencontram e a privacidade torna-se inevitavelmente exposta. Márcia, a protagonista de Amigos para sempre, ao criar seu perfil acaba reencontrando a antiga turma de escola, transfigurada, agora, em zumbis, um destino do qual ela mesma não conseguirá escapar. Já a paranóia do sujeito que protagoniza o outro conto é desencadeada pelos recados postados em seu twitter pelo homem que ele mesmo matou, um rosário de ameaças eternas que o transtornam a ponto de levá-lo à confissão do crime à polícia. Ironicamente, o conto que se diferencia dos demais trata, justamente, do advento do e-reader e da substituição da materialidade do livro em nossa cultura pelos suportes digitais. Ambientado num futuro próximo, cerca de 2040, o enredo gira em torno do hobby de Antonino Mendes de colecionar antigos e-readers. Num deles, encontra a história de um amor adolescente interrompido pela morte e é, com espanto, que vê emergir da liquidez da tela, a fantasmagórica figura da jovem a rogar-lhe auxílio para interromper uma busca que se perpetua através da eternidade. Vistos em conjunto, os contos não trazem novidades, considerando-se que investem em alguns estereótipos do gênero suspense, do tipo ―o amor que vence a morte‖ ou ― a vingança da vítima que vem do além túmulo para assombrar seu algoz‖. O que pretendemos destacar é o fato de que todo o assombro invade o cotidiano das protagonistas via tecnologia, o que desloca o motivo do medo para suportes que, a princípio, vieram para proporcionar conforto, segurança, eficiência...Além disso, Lovrecraft destaca que um dos ingredientes fundamentais que sustentam as narrativas de horror é o clima, a atmosfera que se cria em torno do desenrolar dos fatos. Tal característica pode ser observada em maior ou menor grau nos contos em questão, mas chama atenção que essa atmosfera de suspense não é a responsável pelo medo, uma vez que se tratam de narrativas cujo espanto advém justamente da surpresa, da inserção do inesperado no cotidiano dessas personagens, sem que nenhum indício substancioso apontasse para qualquer risco. De uma certa forma, é como se o perigo residisse nas escolhas mais banais e nos movimentos mais automáticos de nosso dia-a-dia, onde a tecnologia já se tornou uma extensão de nossas habilidades e possibilidades. Há um intervalo entre o impulso da curiosidade ou do desejo e a desgraça das personagens, numa alusão transversal à idéia de que ―o perigo mora ao lado‖ ou, ―num clic‖. Por outro lado, as protagonistas compõem um grupo tão heterogêneo quanto as mídias pelas quais sucumbem: tratam-se de adolescentes, jovens, adultos e idosos, o que reforça a sensação de que se trata de um incômodo e de uma desconfiança que é 421 experimentada por toda a sociedade.A homogeinização das personagens centrais se dá pelas conseqüências que sofrem, e não pela faixa etária em que se inserem.Elas se encontram mais ou menos ligadas à tecnologia, mas se vem inevitavelmente enredados nela e por ela, engolidos por sua inserção definitiva no cotidiano humano. Logo, o que motiva os enredos de suspense em Cibermistérios e outros horrores é o sujeito que se observa, sendo observador: ninguém está imune à sedução das mídias que nos faz promessas de eliminar distâncias, aproximar tempos, romper, enfim, com a dicotomia vida e morte. Com enredos simples, lineares, os textos se apresentam ao leitor através de uma linguagem bastante coloquial e de narradores que instauram, sendo protagonistas ou não, um bate papo e até um confessar-se. Suas atitudes reforçam a sensação de presentificação e de ênfase no instante vivido, assim como um certo tom de casualidade. Abre cada um dos contos epígrafes oriundas de provérbios ( ―uma imagem vale mais que mil palavras‖) ou de exertos ( que vão da shakespeareana ―Oh! Que formosa aparência tem a falsidade‖ ao verso ―você vai me seguir aonde quer que eu vá‖, da canção de Chico Buarque),todos eles prenunciando os perigos que se avizinham. E são os desfechos que definitivamente chocam, pois remetem a um apagão, ao desencadear de uma ação cujas conseqüências são imponderáveis mas definitivas. Como se deletássemos, sem querer, a informação, o texto, a imagem, o conteúdo, a vida, sem chances de recuperá-los. Sendo assim, parece-nos que obras como Cibermistérios e outros horrores se especificam não pela mera inclusão de uma temática ao gosto do público usuário das mídias, em especial, o jovem, mas porque reproduzem os riscos que essa pode acarretar, ainda que em tons fantásticos. Além disso, chama a atenção o fato, já mencionado, de que se tratam de sujeitos que se põem à prova diante das mídias e que nelas sucumbem. É ainda o homem com medo de si mesmo , das suas escolhas, dos seus desejos, da irreversibilidade da morte, mas agora, tudo isso se cristaliza numa tecnologia que tanto salva como desgraça. Finalmente, a questão central que nos guia é o fato de que, mais do que um simples recurso temático, a aproximação do terror à tecnologia nessas obras representa uma das formas com que os sujeitos contemporâneos testam seus limites e levam ao extremo a experiência humana. Para encerrar, o pequeno poema Mensagens perdidas, de Sergio Capparreli, incluído em 33 ciberpoemas e uma fábula virtual, que ilustra esse permanente medo da morte que acompanha o homem desde sempre. Nele, o sujeito liricamente se despede das mensagens que se perdem, do muito ou pouco de si que se esvai pelos clics cibernéticos. Diz o poeta: 422 Tenho pena dessas mensagens que se perdem pelo caminho e nunca chegam ao destino. Por causa de um engano, por causa de um comando malsucedido. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Ricardo. Contos de enganar a morte. São Paulo: Ática, 2003 DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GUNBRECHT. Hans. Modernização dos sentidos. São Paulo:Ed.34, 1998 BERGALLO, Laura. Cibermistérios e outros horrores. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 LAGO, Angela. Sete historias de sacudir o esqueleto.São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002 LOVECRAFT, Howard. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978 PRIETO, Heloísa. Rotas fantásticas. São Paulo: FTD, 2003 SEIXAS, Heloisa. Pente de Vênus. Porto Alegre: Sulina,1995 CAPPARELLI, Sergio. 33 ciberpoemas e uma fábula virtual. Porto Alegre: L&PM, 2002