1 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br TEMA EM DEBATE
A Chamada “Primavera Árabe”
Por Editoria *
A revista Commentaire,
fundada em março de 1978 pelo
eminente pensador liberal Raymond
Aron (1905/1983) --que completou
30 anos em 2008, conforme tivemos
oportunidade de registrar (Ano I; n.
1; julho/setembro, 2008)-- costuma
reunir pontos de vista diversos sobre
temas candentes. Acha-se neste caso
o que tem sido batizado de
“primavera árabe” --que teve início
em fevereiro, no Egito, cuja movimentação acarretou a derrubada da ditadura de
Mubarak, alastrando-se a outros países muçulmanos. É objeto do confronto de opiniões
no número 134, correspondente ao verão europeu deste ano.
Esperançosos de mudanças
Refletindo a visão que seria majoritária no Corpo Docente da famosa École de
Sciences Politiques (geralmente citada pela sigla em francês: Sciences Po), abre o
debate o prof. Pierre Buhler.
Mobiliza exemplos para corroborar a sua convicção de que a difusão da
informação e sobretudo a INTERNET teriam conseguido superar o bloqueio que os
regimes ditatoriais, em geral, conseguiram estabelecer no que se refere à circulação de
valores caros ao Ocidente. As manifestações de que se trata seriam uma demonstração
de adesão a tais valores.
Escreve: “Ali onde os meios de comunicação encontram-se sob controle das
autoridades, os blogs tornaram-se o espaço público onde podem exprimir-se a oposição,
a dissidência”. Cita a Malásia onde, “sendo forte a coalizão das mídias com o governo, a
campanha das eleições de 2008 desenvolveu-se amplamente pela Internet”. E este outro
exemplo: “foi graças à Internet que o dissidente Liu Xiabo, na China, conseguiu
recolher em 24 horas as primeiras dez mil assinaturas na sua Carta 08.”
2 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br O texto integral da conclusão segue-se a este subtítulo: um novo paradigma? e
consiste no seguinte: “A revolução das tecnologias da informação e da comunicação
consistem simplesmente em novos instrumentos, novas técnicas, novos métodos? Ou
traz em si o germe de uma transformação mais profunda, como a invenção da imprensa
ou a Revolução industrial, que em seu tempo corroeram a organização existente e
redefiniram todos os termos da equação política e social, a que se seguiram
a
democracia até a urbanização, passando pela alfabetização ou o sindicalismo? Com
atraso, o mais frequente, mas com repercussões fundadoras de novo paradigma. Em
curso há mais de três decênios --uma eternidade na “era da velocidade”-- esta revolução
não produziu, --e está longe disto--, todos seus efeitos e falta-nos distância para medir a
sua importância. Mas afeta a distribuição do poder e da influência entre os estados, os
indivíduos, as organizações, por uma multidão de canais e de caminhos, em proporções
insuspeitadas em sua origem”.
Outro docente da Sciences Po, Jean-Pierre Filiu, segue a mesma linha, desta vez
recorrendo ao argumento de que a população jovem constitui a maioria da população
dos países árabes (60% tem menos de 25 anos, crescendo a taxas mais altas que os mais
idosos), vivendo numa situação que classifica como de humilhação e rebaixamento.
Tem em vista o comportamento dos órgãos de segurança, notabilizados pelo seu caráter
repressor. Mas também a situação de desemprego e a ausência de perspectiva quanto à
possibilidade de melhoria de tal quadro.
Sem excluir as diferenças existentes entre as zonas mais urbanizadas e aquelas
interioranas, menos densamente povoadas, afirma que “do Oceano ao Golfo, isto é,
desde a Argélia, cerca de cem milhões de jovens árabes participam da mesma
frustração. São melhor educados e mais exigentes que seus pais, acham-se mais
expostos ao mundo globalizado, a seus fluxos de informação e a seus desafios
mediatizados. Cresceram sob os golpes de um mesmo regime, mais das vezes do mesmo
dirigente. Contrariamente à experiência da geração precedente, não há guerra pela
independência nem combate nacionalista capazes de justificar essa permanência. E
quando o líder envelhece ou desaparece “o pai da nação”, um de seus filhos é escolhido
e preparado para substituí-los no trono”. Conclui: “é impossível reduzir a estatísticas a
intensidade da desilusão desses jovens.” Está convencido de que presencia-se o que
chama de “transição da frustração à revolta”.
Artigo de Bassma Kodmani --apresentado como dirigente do Centro Árabe de
uma instituição européia que se intitula European Eminent Persons for Peace in Midle
East-- é ainda mais peremptório como se pode ver do resumo (contido na publicação) e
que tem o seguinte teor : “As revoltas árabes representam uma revanche das sociedades
sobre os poderes, da gente simples sobre os corruptos, dos invisíveis da periferia sobre o
centro, da alma do povo sobre a cultura Dubai. Proporcionaram uma primavera para os
tunisianos e os egípcios e têm pela frente um tunel obscuro para os outros povos, os do
Iemen, da Síria, de Bahrein mas também da Argélia, da Arábia, de Oman e do Kuwait
que ingressaram todos na rebelião. O fenômeno é ao mesmo tempo de cenário variado
em função da resposta do poder e dos meios de que dispõe a sociedade. Este processo
3 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br não se deterá, estender-se-á por vários anos. Acarretará por fim uma transformação da
paisagem política, social, econômica e estratégica da região.”
Redução das expectativas
A essas manifestações que, para o observador ocidental comum, parecerão
refletir sobretudo “desejo de que dê certo”, do que propriamente uma análise
convincente, o número considerado de Commentaire insere manifestações mais
ponderadas devidas a Ayyam Sureau e Denis Bachelot.
Ayyam Sureau é apresentado como criador de uma organização que presta
assistência a refugiados e a pessoas que pretendam asilar-se na França. Autor de textos
de natureza filosófica.
Seu ensaio está dedicado à “Revolução egípcia” e, sem pretender, como se diz
“jogar água na fervura”, apresenta certas ponderações quanto às dificuldades de que se
chegue tranquilamente a regime de natureza democrática.
A principal advertência acha-se contida na tese de que o acesso à INTERNET e
a vitalidade das redes sociais, se permitem a livre circulação de idéias e informações,
“não são suficientes para estruturar um projeto democrático.” Essa circunstância é tanto
mais verdadeira quando lidamos com país no qual toda forma de debate político acha-se
interditado. Neste, recorrendo-se a pseudônimo ou computador de cybercafé fica-se
livre das ameaças da polícia política. Isto ainda não é a democracia, acrescenta, mas
contribui para dar nascedouro ao desejo de construir um futuro em conformidade com
os novos ideais.
No caso do Egito, reconhece, ainda é difícil identificar em que consiste
precisamente esses ideais. Escreve: “Ausência de programa político, ausência de líder
constituem a força e a fraqueza da revolução egípcia”. É certo que estão unidos pela
aspiração de “limpar” o regime, isto é, eliminar a corrupção e a repressão. É menos
seguro que se deseja “regime laico e civil, aspiração de muitos”.
Entende que, para grande número de egípcios, laicismo corresponde a uma
forma de ateísmo. O mesmo ocorre com relação à igualdade de direitos. Afirma: “não é
raro perceber, ao término de uma conversação perfeitamente civilizada com pessoas que
participam de suas idéias, que para eles, em se tratando do futuro do Egito, o advento da
democracia resume-se a assunto dos homens, muçulmanos, bem entendidos.”
Ayyan Sureau destaca que são difíceis de identificar as aspirações de um povo
que viveu tão longamente doutrinado e manipulado sob uma verdadeira ditadura
Prossegue: “A união do povo com o Exército seria um dos slogans preferidos da
Praça Tahrir e todos podem recordar-se de soldados em armas nos braços dos
4 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br insurrectos ou das moças que subiam nos carros de combate para oferecer-lhes flores.”
Enquanto a polícia é detestada, insiste em que o Exército é respeitado.
Destaca que os interesses financeiros dos militares, embora desconhecidos do
povo, são reais e expressivos. Afirma textualmente: “a instituição militar era sem
dúvida o único mas também o pior aliado possível do povo egípcio em seu desejo de
reforma”. Sua adesão ao movimento resolveu um problema de difícil solução: a
sucessão de Mubarak, arquivando em definitivo o propósito de fazê-lo através da
“eleição” do filho. Contudo, embora não se possa excluir a hipótese de vir a estabelecerse um regime laico, se chegarem a emergir partidos e novas lideranças democráticas,
sob o regime de transição, a cargo dos militares, não enxerga tal possibilidade.
Para o autor que vimos seguindo, pode-se falar em desaparecimento de uma
época, se não tivermos presente apenas o mundo árabe. A novidade não somente diz
respeito a estes mas “ à relação entre o mundo livre e as ditaduras amigas. Mais
informadas sobre o mundo árabe, as sociedades civis sem dúvida têm condições de ditar
a seus governos uma conduta mais conforme a honra e o interesse.”
Outro autor que recomenda prudência nas esperanças de desfecho democrático é
Denis Bachelot, jornalista e ensaísta, autor de livro sobre o Islã.
Bachelot considera que, se bem as revoltas árabes hajam apanhado de surpresa o
Ocidente, eram previsíveis. Recorda que no livro que dedicou ao Islã, de 2009, chamava
a atenção para a instabilidade política daqueles países, sendo legítimo esperar que “o
sub-desenvolvimento econômico e a degradação social, combinados com a bomba
demográfica”, devia exacerbar os conflitos, sendo admissível que emergisse “uma
verdadeira contra-reação laica face à explosão da reação religiosa em curso.” Essa
análise prospectiva, ora lembrada, merece a seu ver duas observações.
Primeira: “contexto de crise social aguda, evidentemente, acabaria por suscitar a
aspiração a superar o monolitismo vigente. Contudo, essa reação “laica” parecia-me
devesse surgir em época distante. Escreve “até prova em contrário, mantenho essa
convicção”.
Prossegue; apesar da evidência de que os islamitas não controlam os
movimentos atuais, considera uma ingenuidade neles enxergar a capacidade de escapar
à influência dos religiosos e evoluir na direção de democracias abertas. Segue-se a
argumentação que passamos a resumir.
Pesquisa do Pew Research Center, levada a cabo no Egito em abril indica que
89% dos egípcios estimam que as leis devem seguir os princípios do Alcorão (62% de
seguir estritamente e 27% de seguir os valores), ao tempo em que respondem
afirmativamente, na proporção de 60%, à proposição de que “a democracia é uma forma
de exercício do poder superior a todas as outras”. Contudo, como tem sido enfatizado,
inexiste projeto democrático adequadamente configurado.
5 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br Pesquisa do mesmo instituto, no ano passado, constatou que 81% julgavam
normal lapidar as pessoas culpadas de adultério e 84% a pena de morte para apostatas.
Lembra que os ataques recorrentes contra os coptas (habitantes do país que preservam
caracteres e hábitos dos ocupantes primitivos do país) advertem quanto à dificuldade de
introduzir no país os princípios da tolerância, essenciais à convivência democrática.
A segunda observação diz respeito às razões de sua expectativa quanto à duração
histórica. A ruptura que havia previsto em seu livro --isto é, emergência de uma
contraposição à exclusividade dos aspectos religiosos nessas manifestações--, a seu ver,
resultaria da experimentação vivida ao menos por uma geração (vinte a trinta anos).
Parecia-lhe inevitável que a atração exercida pela religião vigoraria nos primeiros
tempos. A evolução subsequente resultaria da incapacidade dos recursos religiosos de
dar conta dos desafios econômicos e sociais favorecendo os partidários de uma
modernidade aberta. Sabemos hoje, acrescenta, que existem os partidários da abertura,
com capacidade de mobilização. Ainda assim, acredita que deve-se ter a expectativa de
fluxos e refluxos violentos, de certa duração.
Cito: “Mantenho o cenário de uma recuperação religiosa da revolta (tanto
melhor se esteja enganado) na ausência de um corpo ideológico claramente definido.
Um islamismo não necessariamente “revolucionário” à moda da Al-Queda, mas ultraconservador e autoritário. O Ocidente não pode servir de referência a um universo que
se define essencialmente por uma identidade religiosa cujos valores são o oposto das
representações da modernidade ocidental”.
Suas convicções provêm do fato de que o conservantismo rigoroso das massas -em matéria sexual, sobretudo-- acha-se demasiado arraigado. Estudo do instituto antes
referido registra que os muçulmanos consideram os ocidentais como “egoístas, cúpidos,
desonestos, arrogantes e imorais”. Os ocidentais, por sua vez, os consideram “fanáticos,
intolerantes, violentos e desrespeitoso das mulheres”. Assim, boa parte da rejeição da
personalidade cultural de ambas as partes dizem respeito à condição feminina, “à
representação do corpo e, pois, à sexualidade”.
Por fim, o número 134 de Commentaire insere ainda outros ensaios
relacionados ao Oriente Médio mas que não se reportam especificamente à chamada
“primavera árabe”. Têm como objeto a Israel, ao Líbano e à sobrevivência de diversas
confissões religiosas católicas. O rumo que venha a ser seguido pelo movimento em
curso nos países árabes certamente podem afetar a segurança de Israel, facilitar ou
dificultar a unidade do Líbano ou a perseguição ou tolerância dos católicos, mas não
contribuem para o seu desfecho, aspecto considerado nestas despretenciosas notas.
A guisa de conclusão
6 Revista LIBERDADE e CIDADANIA – Ano IV – n. 14 – outubro/dezembro, 2011 – flc.org.br Quando ocorreu a queda do Muro de Berlim, Guy Sorman entrevistou
importantes lideranças tanto na Rússia como em satélites e, com base nessa
documentação, escreveu o livro Sair do Socialismo (1990). Entre os entrevistados
achava-se Lech Walesa, então líder da oposição e que conseguiu eleger-se presidente
em dezembro de 1990 (com mandato até 95, não tendo conseguido reeleger-se). Não
tinha a menor idéia da complexidade do governo representativo e afirmou a Sorman que
iria aproveitar o que tinham de bom os dois sistemas (capitalismo e comunismo).
Instado a esclarecer em que consistia as eventuais vantagens do sistema soviético,
limitou-se a dizer: “trabalha-se muito pouco”. Na sua escrivaninha exibia busto do
ditador polonês Jozef Psuldiski, que justificou por entender que simbolizava a
independência do país.
Sorman manifestou abertamente a sua descrença em que a rebelião então
iniciada iria consolidar regimes democráticos. Seu argumento básico consistia na
inexistência de lideranças liberais familiarizadas com o tema. São passados vinte anos e
nos ex-satélites soviéticos sobrevivem regimes de fachada democrática, é certo que sem
golpes de Estado e mantidas eleições periódicas, o que se atribui ao seu ingresso na
Comunidade Européia, que a tanto os obriga. Mas não se pode falar de sistemas onde se
reconhece a diversidade de interesses na sociedade e achem-se estruturadas as formas de
negociação entre esses interesses conflitantes, sem chegar-se a confrontos armados
(vigência do chamado “monopólio legal da violência” pelo Estado de Direito).
Com base nessa experiência, cabe levar em conta as ponderações antes
apresentadas quanto ao provável desfecho da “primavera”.
Como está em curso, cabe naturalmente à própria “primavera árabe” dizer a
última palavra.
Fonte
Revista LIBERDADE e CIDADANIA
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A Chamada “Primavera Árabe”