A ÉTICA DO SUBSOLO Sandra Rinco Dutra Aluna do Curso de Filosofia da UFJF. Membro do Núcleo de Estudos sobre Madame de Staël e o Romantismo, da UFJF. [email protected] RESUMO: O presente artigo tem por finalidade analisar a obra “Memórias do subsolo”, de Fiódor Dostoiévski, sob uma visão ética, para que, dessa forma, possamos compreender melhor o lugar em que se encaixa a figura complexa e peculiar encarnada pelo homem do subsolo dentro do pensamento do autor à esse respeito. Quando lemos o livro Memórias do subsolo1, somos tomados por um sentimento, por uma sensação de difícil de definição, tamanha é a complexidade, a contraditoriedade que permeia o personagem desconhecido. Trata-se de um ser humano que detém em si uma variada gama de defeitos, dos mais sórdidos e deploráveis possíveis, e que faz questão que percebamos e não tenhamos dúvidas de seus traços ignóbeis. É mentiroso, porque mente e engana os outros e à si mesmo; é contraditório, porque desdenha de várias coisas e situações e, logo depois, muda de idéia; é invejoso, porque acaba por desejar aquilo que nunca poderá ter; é egoísta, porque só pensa em si mesmo; é vaidoso, porque se acha mais intelectual que qualquer outro; é orgulhoso, porque deixa de viver coisas por não querer 1 Livro escrito no leito de morte de Maria, primeira esposa de Dostoiévski, numa situação de grande necessidade financeira do autor, em 1864. demonstrar sentimentos; é rancoroso, porque sente raiva de tudo e todos, por qualquer motivo, e até sem motivo algum ... ou seja, é a escória da humanidade, é um homem do subsolo. Pelo menos é o que obtemos à seu respeito na primeira parte do livro.2 A seguinte citação nos dá um exemplo de sua personalidade: “(...) Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. (...) Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; (...) Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. Eu apenas me divertia, quer com os solicitantes, quer com os oficiais, mas, na realidade, nunca pude tornar-me mau. A todo momento constatava em mim a existência de muitos e muitos elementos contrários a isso. Sentia que esses elementos contraditórios realmente fervilhavam em mim. Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam pra sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os deixava extravasar. (...) Não vos parece que eu, agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?... Estou certo de que é esta a vossa impressão... Pois asseguro-vos que me é 3 indiferente o fato de que assim vos pareça...“ Nesta breve citação retirada da obra, podemos perceber quase todos, senão todos, os aspectos característicos mencionados acima. Agora podemos partir para a análise da segunda parte do livro. Na minha concepção, é esta que vai nos elucidar aqueles que podem ser os motivos que contribuíram para a formação moral do homem do subsolo. Os fatos relatados por ele nos dão uma certa idéia do que foi sua vida. O genial escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881). O homem do subsolo nos conta que aos vinte e quatro anos sua vida já era desordenada e sombria, não se dava com ninguém. Quando nos narra o tempo em que 2 Na primeira parte do livro, o homem do subsolo se apresenta, expõe seus pontos de vista, suas expectativas nada positivas, quase que justificando o porquê dele se encontrar ali. Na segunda parte, ele vai nos contar algumas de suas memórias, que ele julga poderem nos elucidar pontos importantes de sua vida. 3 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. 5ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora 34, 2006. p.15-17. trabalhava na repartição, ele nos diz que evitava de olhar para os outros, pois teria notado que eles o olhavam com uma certa aversão. E, apesar de haver outros tipos muito piores, tanto no visual quanto no caráter, ele não achava que estes percebiam ou se incomodavam com isso. O problema era que ele detestava seu próprio rosto. Dessa forma, tentava passar uma feição independente, para que vissem uma expressão de nobreza e inteligência: “Pode ser um rosto feio, mas, em compensação, que seja nobre, expressivo e, sobretudo, inteligente ao extremo”. 4 Mas, sabia que não podia expressar tais virtudes no rosto. Por isso, ele odiava a todos, ao mesmo tempo que os temia. No momento de em que os olhos se cruzavam, os seus eram os primeiros a baixar. Assim, vivia na exclusão. No episódio em que o homem do subsolo tenta provocar uma briga com um oficial, mais uma vez só recebe desprezo e indiferença, uma vez que este o ignora completamente. O problema aqui é que ele fica tão incomodado com tal situação, que sua vontade de vingança começa a beirar a obsessão. Ele planeja meses como provocar o oficial, chega até mesmo a escrever uma carta, nunca entregue, convidando-o à um duelo. Porém, sempre que está na iminência de alguma ação, acaba paralisado por sua consciência, pela inércia que o toma à partir da racionalidade, e isso o faz se sentir muito pior. Quando consegue um esbarrão de ombros com tal cidadão, este se dá esmo, num dos poucos momentos que consegue agir por impulso; mas o oficial novamente o ignora e vai embora. “(...) Na noite anterior eu resolvera definitivamente desistir da execução do meu ato nefasto, deixar tudo como estava, e, com esse propósito, saí para a Avenida Niévski, simplesmente com a intenção de ver como ia deixar tudo sem alteração. De chofre, a três passos do meu inimigo, inesperadamente me decidi, franzi o sobrolho e... chocamo-nos com força, ombro a ombro! Não cedi nada e passei por ele, absolutamente de igual para igual! Ele não se voltou sequer e fingiu não ter visto nada (...)” 5 Contudo, o momento de maior humilhação, sem dúvida, se trata de um encontro do homem do subsolo com três colegas da época da escola. Nunca os teve como amigos, mas sentia verdadeira inveja da amizade dos trio. Então, no jantar, as velhas querelas voltaram à tona, e o homem do subsolo foi extremamente humilhado e ignorado por eles. Apesar de sentir-se mais inteligente, ele não conseguia sobressair-se. “Eu sorria com desdém e fiquei andando do outro lado da sala, ao longo da parede, bem enfrente ao divã (...). Queria mostrar com todas as minhas forças, que podia passar sem eles; no entanto, batia, de propósito, com as botas no chão, apoiando-me nos saltos. Mas tudo em vão. Eles não me dispensaram absolutamente qualquer atenção. (...) De quando em quando 4 Ibdem, p. 56. 5 Ibdem, p. 69. cravava-se em mim, com dor profunda, venenosa, um pensamento: passariam dez, vinte, quarenta anos, e eu, mesmo decorridos quarenta anos, haveria de lembrar com humilhação e repugnância estes momentos, os mais imundos, ridículos e terríveis de toda a minha vida. (...)” 6 Os três vão embora; logo o sentimento de amargura e vingança toma-o e ele tenta alcançá-los, em vão. Assim, acaba sua noite em um bordel, lançando toda sua raiva em uma pobre prostituta, de nome Liza. Faz com que esta se sinta o pior possível, com um discurso virtuoso e moralista acerca de sua vida “fácil”, que ele mesmo se espanta em ter dito palavras tão inspiradoras. “Eu pressentia, desde muito, que lhe transtornara a alma inteira e lhe rompera o coração, e, quanto mais eu me convencia disto, tanto mais queria atingir o objetivo o mais depressa e o mais intensamente possível. Fui levado pelo jogo; aliás, não era apenas jogo... (...) Mas, tendo alcançado o efeito desejado, assustei-me de repente. Não, nunca, nunca eu fora testemunha de tamanho desespero! (...)” 7 Antes de sair, o homem do subsolo dá à Liza seu endereço para que o procure caso resolva mudar de vida. Quando cai em si, é tomado pelo terror, e não pode conceber a idéia de que ela apareça em sua casa e o veja como ele realmente é. Então, um dia, ela aparece disposta à oferecer-lhe seu amor, e ele a destrói, pelo simples fato de que lhe é impossível uma atitude espontânea e altruísta. Ainda a humilha dando-lhe dinheiro, mas Liza o surpreende deixandoo sobre a mesa. Quando se dá conta, ele enche-se de remorso, pensa em rastejar à seus pés e pedir-lhe perdão, mas outra vez sua lógica racional o impede de tomar tal atitude. “(...) de repente, estremeci todo: bem diante de mim, sobre a mesa, vi... numa palavra, vi uma nota amassada, azul, de cinco rublos, aquela mesma que, minutos antes, eu fechara em sua mão. (...) Um instante depois, como um insano, corri a vestir-me, joguei sobre mim o que pude, às pressas, e corri velozmente em sua perseguição. (...) «Para onde terá ido? E por que estou correndo atrás dela? Para quê? Cair diante dela, chorar de arrependimento, beijar-lhe os pés, implorar perdão!» Eu até que desejava isso; meu peito dilacerava-se todo, e jamais, jamais poderei lembrar daquele momento com indiferença. «Mas, pra quê?», pensei. «Não irei eu odiá-la, amanhã mesmo talvez, justamente por ter-lhe beijado os pés? Irei eu dar-lhe 8 felicidade? (...) Não irei supliciá-la de uma vez?!»” Delineados os traços de sua personalidade, assim como os eventos que ele considera importantes em sua vida, partirei para a análise da questão fundamental deste trabalho: a ética na obra Memórias do Subsolo, de acordo com a ótica dostoievskiana. A ética, segundo Dostoiévski, se dá no campo do bem e do mal. O coração do homem 6 Ibdem, p. 94. 7 Ibdem, p. 119. 8 Ibdem, p. 144. é o campo de batalhas onde ambos se digladiam. Eles estão dentro deste na mesma intensidade, resta ao homem decidir para que lado está mais inclinado. Para o autor, a constatação da realidade do mal é uma experiência fundamental e decisiva. Em sua obra, o mal aparece sempre na sua crueza, pois ele está preocupado em mostrar o mal como mal. Ele nos explica que o mal não tem utilidade alguma e, ao contrário do que possa se pensar, ele não é um processo para se chegar a um bem maior. Assim, ele se coloca contra o otimismo idealista e positivista do século XIX, que pensava o mal apenas como um elemento dialético e passageiro para o progresso triunfal da humanidade. O mal nunca pode ser semente para o bem, uma vez que ele é uma realidade e não uma coisa abstrata: o mal e a dor, o pecado e o sofrimento, a culpa e a pena têm realidade efetiva e inelutável.9 Dessa forma, não se trata da simples ausência o bem. O mal é produto da vontade e da liberdade do homem que, conscientemente e deliberadamente, comete a ação má, chegando a sentir certo prazer na prática. É uma questão de instigação, de poder testar os próprios limites, os limites de sua liberdade. “(...) Digam-me o seguinte: por que me acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos - (...) em que eu era capaz de melhor apreciar todas as sutilezas do «belo e sublime», (...) - , por que me acontecia não apenas conceber, mas realizar atos tão feios, atos que... bem, numa palavra, atos como os que todos talvez cometam, mas que, como se fosse de propósito, me ocorriam exatamente nos momentos em que eu mais nitidamente percebia que de modo algum devia cometê-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que é «belo e sublime», tanto mais me afundava no meu lodo, e tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo. (...)”. 10 Capa da edição russa de Crime e Castigo, um dos principais escritos de Fiodor Dostoievski. E é isso que Dostoiévski tenta nos mostrar em Memórias do Subsolo; a figura do homem do subsolo é a maldade personificada. Tudo de ruim, vil, ignóbil, mesquinho foi entrelaçado em um único personagem, no intuito de se visualizar o que talvez na teoria não fosse possível 9 ARAÚJO, Paulo Afonso de. F.M.Dostoiévski. p. 62. (Trabalho ainda não publicado/apostila usada nas aulas ministradas sobre o assunto – 2º semestre/2006). 10 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. 5ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 19. compreender. O bem se dá com a autodestruição do mal,11 e esta já é o prenúncio do bem. O mal é testemunha do bem; por isso, Dostoiévski não nos fala do bem diretamente, uma vez que seu testemunho passa através do mal. O sentido de sua obra é a afirmação do bem, mas esta, paradoxalmente, se dá quase sempre na forma de denúncia do mal. Por conta disso, ele faz questão de nos mostrar com tanto vigor o mal, sendo bastante econômico em relação ao bem.12 Já a regeneração do homem se dá através do sofrimento do espírito. Para isso, é necessário que a própria culpa se transforma em tormento, e este se transforme em dor, pois “Deus está presente tanto no desespero, quanto no arrependimento, e o sinal de sua presença é o sofrimento.”13 Na minha concepção, ao terminar de ler a obra, ficou claro que, ao mesmo tempo que o autor teve clara intenção de nos mostrar a verdadeira face do mal, ele também tentou nos mostrar que o outro lado também existe, ou seja, que mesmo o homem do subsolo tem seu lado bom, não estando condenado à situação em que vive eternamente, pois Dostoiévski nos dá indícios de momentos de sensatez, de certo arrependimento, de impulsos emocionais, intercalados a um grande sofrimento físico e espiritual. O que isso quer dizer? Quer dizer que, se para o autor o bem se dá através da desintegração do mal e do sofrimento para a purificação da alma, podemos notar que o homem do subsolo tem alguns desses indícios. Dostoiévski deixa aberta esta porta, ele não elimina sua possibilidade de redenção. Para mim, essa foi a mensagem deixada por ele. Em se tratando de um homem que amava a vida, que via esta como uma dádiva, uma felicidade, não acredito que ele fosse pessimista quanto à possibilidade de mudança dos homens. Até porque se em seus corações o bem e o mal existem em igual intensidade, não há como pensar diferente. “Não há pessoa tão boa que não possua algum aspecto mal, assim como não há pessoa má que não possua algum raio de bem. Não há personagem que não seja de qualquer maneira tocado pelo mal, assim como não há personagem que não sinta o bem. 14 Sendo assim, dá pra chegar a conclusão que, devido às inúmeras humilhações sofridas por ele durante toda sua vida, o homem do subsolo acabou sendo jogado no mundo em que vive, constituindo um caráter dos piores que ele aprendeu a usar com defesa para tais 11 O mal primeiramente nega tudo aquilo que consegue destruir e depois destrói a si mesmo. Isso significa já aceitar a vitória do bem ou, pelo menos, que é o bem que deve vencer, que apenas o bem existe verdadeiramente, que apenas no bem há verdadeira realização. (ARAÚJO, op. cit, p. 73.) 12 Ibdem, p. 74. 13 Ibdem, p. 85. 14 Ibdem, p. 76. situações. Age sempre pessimamente para que dessa forma sejam evitadas surpresas. Se ele ataca primeiro, não há como ser surpreendido. Se ele vive recluso no subsolo, sabe o que pode esperar, se sente mais seguro. Porém, ele admite que não gosta do subsolo, que o melhor é algo diverso, algo que ele muito anseia. Mas sabe que no fim das contas, é possível que ele não encontre. Contudo, não deixa de ser uma esperança de melhora. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ● DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. 5ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora 34, 2006. ● ARAÚJO, Paulo Afonso de. F.M.Dostoiévski. (Trabalho ainda não publicado/ apostila usada nas aulas ministradas sobre o assunto – 2º semestre/2006).