ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS a história de uma vida num belo romance de amor ao próximo Ψ Silas Corrêa Leite 1 _______________________________________________________________ “Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles, conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza definida de outras espécies em leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu próprio arbítrio, entre as mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti mesmo. Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil escultor, descubra tua própria forma...” (Picco della Mirandola – Oratio de Homminis Dignitate) Para todos aqueles que crêem. (Os que não crêem, merecem-se.) Início pela primeira vez, fim de março de 1.998 – Término Junho de 2.000. 2 ELE está no meio de nós Introdução “É preciso descer muito fundo para encontrar forças e subir novamente” (Cântico Hassídico) Era para ser só mais uma simples noite em que Paulo de Tarso Trigueiro saía para jantar com a segunda mulher, a ex-amante e agora de papel passado - esposa oficial, a bela, morena, alta e garbosa Dagmar Marlene Zakir, corpo escultural, cabelos castanhos crespos e brilhantes, bem cuidados, busto farto num tubinho preto de seda japonesa, bem decotado, ancas grandes entre pernas bem torneadas, incisivos olhos azuis em formato de amêndoas, carnuda boca oval em alto relevo, canelas luzidias e pés de bailarina clássica, quinze anos mais nova que ele. Escolheram, como sempre, o “La France”, um bem freqüentado restaurante caro e famoso, fincado num enorme prédio estilo neoclássico ali no bairro rico do Itaim Bibi, onde o lugar, de preços caríssimos e com conhecido pianos-bar, ficava no terraço de ladrilhos azuis portugueses de uma cobertura bem iluminada, perímetro urbano nobre da primeira ponta da zona sul da cidade de São Paulo. Era o final de março de um ano qualquer, o tempo cismara ruim e se portara úmido o dia inteiro na maior cidade brasileira e uma das maiores e mais populosas do mundo, mas, por ser sexta-feira e penúltimo dia do mês ainda de outono com lua cheia, o engenheiro e empresário do ramo de construção deu-se outra vez ao luxo de mais uma repetida noite sósia regada a uísque importado da Escócia, um geladíssimo champanhe Dom Pérignon, de boa safra centenária e de alto preço, rosada lagosta californiana ao creme de patê de fígado de faisão belga, batata palha queijada ao molho de cidra com queijo Camebert e manjar de manga mais arroz ao tempero acridoce. Depois da sobremesa (sorvete de nácar de tâmara transgênica com licor de abricôt 3 grego) iriam, certamente, ganhar um discreto motel de luxo das imediações da Avenida JK, onde passariam mais uma noitade de amor e luxúria inesquecível. Dr Paulo de Tarso Trigueiro, branco, alto, magro, olhos verdes, negra barba cerrada tratadíssima, cabelos levemente grisalhos, engenheiro civil formado pela melhor universidade do Brasil, a USP, com doutorado em Edificações Modernas pela Sorbonne, França, estava viúvo do primeiro casamento (o primeiro amor de nossas vidas é para sempre?) a pouco menos de ano e meio, e então pudera, como prometera - mesmo que de certa forma sendo imperiosamente forçado pelas circunstâncias, diga-se de passagem - assumir socialmente a emergente socialite ex-amante de pouco mais de trinta e cinco anos anos, sua ex-secretária trilingüe de pernas fabulosas, agora oficialmente (e entojada) metida a falsa rainha do lar, mas que, ainda assim de forma teatralmente dissimulada o depenava não apenas e tão somente no jargão do sexo (e “suadouro” na peleja do côncavo e convexo dos seixos íntimos) selvagem e total, mas, financeiramente também. Era o estilo, o modus operandi de todo o sofrível percurso dela. Havia sido uma perigosa aventureira sexual, cheia de charme e volúpia explicita, oriunda do norte de Minas, família de descendente de ibéricos católicos conservadores até as tripas, e que, coitados, mal sabiam os estranhos degraus de ascensão que ela pisara como uma espécie de vampira ou fêmea fatale, ou em quantas camas se aliviara perigosamente e com quantos amantes fogosos desde a aldeia natal aprendera a ser poliglota para uso e consumo, ou mesmo adquirira graus boçais de etiquetas de ocasião, além de receptar certa bagagem de cultura inútil também, o que lhe valiam um jeito loquaz, sedutor, irresistível, pegajoso, quase grude. A faca e o queijo. Ele, um bem sucedido empresário algo liberal de ocasião, nascido humildemente pobre e paupérrimo, pois que era filho bastardo de rico empresário (que o renegara desde o ventre) só que criado em geográfico berço esplêndido da aldeia natal, a bucólica cidade de Itararé, sul do Estado de São Paulo, local histórico e famoso que adorava, e pelo qual era, como tantos boêmios & artistas locais, fanático de carteirinha. Afinal, a história do Brasil passava por Itararé de tantas revoluções que na verdade não revolucionaram nada, apenas deram verniz de viés novos a engodos históricos desde os primórdios da invasão colonizadora-exploradora de 1500. Para ela, sempre atiçada, seria mais uma noitada feliz de entrega total e prazerosa, a fazer sentirem-se numa sauna (e poder “depenar” o 4 marido pato de todos os jeitos e posições). Para ele, no entanto, estranhamente tudo aquilo era apenas mais uma mera fuga. Não passava de um deleite de ocasião, um desfrute que apenas somava no contexto lógico-sequencial que vivenciava. Nem era mais tão importante assim. Talvez uma mera e fisiológica trivial oxigenação de cadarços íntimos. Ultimamente e, sem fazer alarde, sendo discreto ao seu jeito, para não dar na vista; para não estimular acirramentos de ânimos ou pôr desconfianças em arranjos pecuniários de meio, estava com alguns problemas ainda não inteiramente decodificados numa sintonia fina de seu interior algo transido. Não problemas financeiros, pois tinha crédito internacional e outro montante em grandioso valor que arrancava do governo corrupto até as vísceras, por competente tráfico de influência de amigos e alta podridão que entrevava o executivo municipal sob a guarida da quadrilha de um turco ladrão e sua máfia neoliberal da Capital Paulista, tornando a cidade de tantos contrastes sociais um verdadeiro esgoto a céu aberto, com mais de dez mil mendigos e outros graves problemas de falta de sensibilidade administrativa estatal e noções primárias de humanismo cívico. Coisa de Terceiro Mundo mesmo. Tinha problemas era de foro pessoal, pois que vinha, escondido de se manifestar, se sentindo cansado de viver, cansado de tantas coisas. Lia muito como se quisesse fugir. Clássicos, teatro, gibis, jornais, revistas. Uma fuga para dentro de um isolamento feito ilha? - Cansado de viver? Sentia uma iniquidade da vida, talvez a depressão da acuada idade do lobo num labirinto, talvez algum ramo da consciência pesada pelo que fizera à primeira mulher amada, traindo-a por longo dez anos com a arrebatadora secretária posuda e insaciável, enquanto um horrendo câncer de pele consumia a gentil e prestativa patroa acadêmica, a cerzia epidermicamente como a tornála com pele de uma nós moscada ou uma pelica de maracujá murcho, escondendo clandestina e secretamente um tempestuoso romance explosivo, fugaz, possessivo e platônico. Arrebatador. Ele, sem o saber inteiramente e identificador de curtume íntimo, paulatinamente passara a ter um certo desprezo a este mundo, construído por um Deus sem que este estivesse preocupado com o bem-estar geral do ser humano. Era isso? Que absurdo era isso? Essa situação contraditória em si mesma, na verdade significava um ato independente e de afirmação da própria individualidade, misturando-se entre o vício e a virtude, a coragem e a covardia, a vida e a morte, com perspectiva dessa rebelião íntima levar ao risco de dissolução da própria existência com o suicídio de alguma maneira, paulatina ou radical. Era a fuga sensível para a interioridade, 5 criando uma espécie de impasse tragicômico. Era o Ser Humano entre o caos e o nada, quase que um simples Eco sem saída. Talvez, ainda assim, já sem o saber de explícito e com alguma aceitação tácita, buscando – ao procurar sarna pra se coçar com uma amante metida a amarrar homens incompletos - um verdadeiro sentido para a sua vida, tendo sempre martelando na cabeça uma frase de bela canção do cantor compositor Caetano Veloso que lhe implicava na mente abalada, no rol dos dias taciturnos, atribulados, rotineiros e tristes, e que se lhe vinham a cobrar sem harmonia, melodia e ritmo, a frase meio filosófica, curta e grossa que cobrava: ................... Existir a que será que se destina? Podia fugir, esnobar, montar fantasias, viajar, claro. Aliás, podia tudo. Tinha cacife e handicap para isso e muito mais. Tinha mansão de arquitetura estilo helênico no Condado de San Marino e suntuosa casa de veraneio projetada por Oscar Neymaier e decorada por Burle Marx na Republiqueta de Mônaco, na área chique da Europa; podia levar a temperamental esposa nova, cara e cheia de volúpia de nome Dagmar Marlene para fazerem um retiro velejando numa bela escuna azul de nome Corcovado pelas águas de ágata do mar Mediterrâneo, mas sabia que não era isso. Isso não importava, já tentara e não fizera sentido. Que caminhos há nos descaminhos? Portas e janelas não se abrem sozinhas. Sentimentos-chaves abrem válvulas de escape por dentro?. Compreenderia as várias tríades para se entender a vida: passado, presente e futuro; inconsciente, pré-consciente e consciente; emoção, ética e razão; id, ego e superego; real, imaginário e simbólico? O quê estava acontecendo no cárcere fechado de sua inquirição íntima? A viagem que tinha que fazer, que era necessário fazer, não tinha rumo certo e sabido; sequer prisma, condução ou trajeto próprio. Não identificava curso em si, como dizia a canção, sobre “uma estrada de tijolos amarelos” de um ídolo pop britânico. Precisava não de lastro social, financeiro ou que endossasse o ego algo doentio, mas de uma âncora na alma?. Tinha tudo: poder, riqueza, tesão. Mas era infeliz. Baixa auto-estima?. Avaliação de percursos. Cálices transbordando... Alguma coisa não cabia inteiro em si, como se uma cisma interior, rançosa. Era infeliz, apesar de achar que com a 6 morte da primeira mulher de sua vida, a Professora-Doutora Carolina Fé, sua primeira namorada desde a saída de sua aldeia nativa de Itararé – amor a primeira vista - seria livre e poderia alçar vôos maiores. Mas, afinal, que vôo é esse que nos leva para dentro de nós? Como o sol, a loucura tem sua própria órbita. A mente sensível que se abre para uma idéia, pois estranha que seja, jamais voltará ao seu tamanho originariamente crível. Era o caso dele. Mas ele mal sabia o que sabia. Não entendia porque estava assim. Caros especialistas de renome, seus amigos pessoais de jogos de pôquer ou bridge equestre que adorava, detectaram que era tédio de viver na mesmice de tudo correr bem, tudo dar certo, a grana fluir. Era uma “doença boçal de burguês, quase frescura”, caçoaram, enquanto bebiam, comiam, jogavam, apostavam entre firulas, levavam a vida no vai da valsa, pouco se danando para o resto do mundo. Fricote babaquara de membro da classe dominante que não sabe onde pôr a grana saindo pelo ladrão, brincaram. Só que ele sentia direito e completamente isso. Ele precisava achar-se. Ele tinha que se dar um jeito. Muita coisa não fazia sentido no eixo todo de sua vida. Era uma amargura, uma angústia, um desespero. Tudo sem rótulo, sem viés, sem remo, sem praia. Que importava a origem dos ventos, se os pedidos de socorro estavam abandonados numa areia qualquer, sem pegadas ou espaço indizível de sua inconstância? Que fuga perniciosa era aquela agora? Os filhos adorados, semeados fáceis na lida, todos ricos, bem encaminhados, cheios de si. Tinha uma dúzia de netos maravilhosos, de seus seis herdeiros todos varões, que lhe davam orgulho e retorno de carinho certo, mesmo com a estupefação geral em família por causa daquela madrasta intrusa que laçara o patriarca, e que sabiam ser pouco menos que uma piranha dando o golpe do baú, pois o velhote era mesmo da pá virada e bem assanhado por um belo par de pernas. Crime e castigo? Tivera já a fama caseira de fogoso. Mas, para quê era o cabide da existência, reinava ele? Punhal de groselha preta no peito transido. Por que estava sem chão? O medo da morte não era, pois que era determinado, cheio de si, e até um adepto costumaz de esportes radicais, adrenalina à mil. Praticava pesca submarina em Búzios, litoral carioca, exercícios de asa delta nos grandiosos canyons da região de Itararé, ou caras empreitava corajoso diversas viagens para alpinismo nos gélidos Alpes Suíços. Calibrar o medo era parte de seu curriculo vivencial. 7 Só compreendia, só entendia de saber que era um nó gótico no mais íntimo de si. Estava perdido e não sabia por quê. Era bom mas não sabia para quem. Era ser humano e não sabia exatamente o quê de exato e completo era Ser inteiramente isso. Ou o que fazer disso. Há males que vêm pra bem? Dagmar Marlene, obviamente, não compreendia nada daquilo, era vazia inteiramente nessas conjecturas e ponderações de tal quilate. Afinal, o quê ela compreendia? Só pensava em consumo fácil, em noitadas de deleite, em mostrar-se esposa (com anel de brilhantes, turmalinas e ouro branco mais os papéis que fizera correr depressinha em trâmites de proclamas do cartório de Itararé) cheia de vaidade e rendida em si, em sua limitada ética de vivência pessoal. Era interesseira e, topetuda. Desfilava com ele como se o tivesse sob relho, chave de cela ou como se o pobre maridão fosse um troféu de caça clandestina, um marionete ou um servil potro velho, não um engenheiroarquiteto e construtor de renome. Ela era dissimulada, vaidosa, egoísta, não era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, como diziam em sua terra, lados provincianos das Minas Gerais. Ele era secreto de si próprio, ensimesmado. Ela mostrava-o à sociedade como um passaporte da agonia para um céu de perspectivas novas, invadidas, um butim que amealhou por ser não uma expert, mas uma esperta no sentido ruim da palavra. E ele vegetava, ao seu modo, escondido de existir, apesar de dar à ela, física e pecuniáriamente, o melhor de si. Mas isso não era tudo. O quê é tudo? Ela era viajada de alcovas. Ele era prisioneiro de seu próprio limite. Ela era uma loba sexual e ele correspondia. Mas não, não era isso: nem sexo, droga, dinheiro, cultura ou status fazia seu mau estilo recémdescoberto. Não estava cabendo em si. Naquela noite comum e rala como tantas outras, jantou como se estivesse tranqüilo como de costume, comeu do bom e do melhor, bebeu a fartar-se, para não perder o estilo rotineiro, quase relaxou a aparência transida com a luva de pelica das aparências, da gula e do álcool. A química da pele da sensibilidade, é alterada quando escrevemos uma fuga por linhas tortas? O quê não fazemos estimulados pelo álcool entintado? Tudo começou a acontecer exatamente quando, saiu da cobertura cheia de lustres belgas do alto daquele prédio de destaque na arquitetura urbana, pensando em ir buscar o carro importado, doze andares abaixo, num elevador social privativo para isso, já tendo avisado pelo 8 interfone o conhecido e gentil paroara Adalberto, encarregado das chaves e dos préstimos costumeiros de rotina diária. Por uma coisa boba, passageira, quase infantil – aviso ou instinto? (a loucura tem lucidez que a própria essência do ser desconhece) – resolveu, quase que de forma incrivelmente pueril, ver a grande e violenta cidade superpopulosa e iluminada lá de cima, ainda algo longe dos camuflados contrastes sociais da abandonada periferia sociedade anônima escondida em morros ali pertinho. Chegou-se à murada de tijolinhos vermelho – o manobrista deveria estar nesse momento procurando o carro caríssimo e chique dele entre tantos outros de primeira linha e alta tecnologia – mas aquele homem rico de posses e pobre de espírito estava contemplando o curtume lá embaixo, enquanto a posuda esposa com o maitre conhecido tomava o elevador social para esperar na área de luxo da sobreloja do edifício. Foi quando ele viu. Poderia ter sido só um meio desmaio, um circunstancial estado onírico de momento (o jantar não fora um desfrute delicioso?) uma visão estimulada pela química da boa safra que a cara e destilada bebida rosé resultara, uma clarividência explicável que fosse coincidente, no favo da sensibilidade apurada. Mas ele VIU!. Sim, ele enxergou completo. E era como se esse estupendo e inusitado Ver imenso o ligasse à tomada extrasensorial de alguma coisa no muito além de si, num plano terreal, numa placentária gambiarra de luz, onde ele poderia afinal achar-se em serenidade e farta paz espiritual consigo mesmo. Os desígnios de Deus nem sempre são os nossos?. Lá embaixo, com a visão boa com que se descobrira tocado – a saúde era perfeita para a sua idade, disse o Dr. Israel Barbeiro, especialista em Geriatria pela Universidade de Nova York - viu o que não cabia inteiro no pleno e cabal em si, em tal suprema contemplação. Meu Deus! - O coração quebrou um cristal íntimo de ânfora que de presto enraizou de menta fina os arquivos neurológicos do privilegiado cérebro de vencedor. Pois, ao lado de uma mureta de um prédio velho em reformas, perto de uma marquise úmida que servia de teto para mais um bando de desiludidos cidadãos de rua, mendigos, menores e velhinhos abandonados mal cobertos com trapos de papelão e retalhos de lixos, ele viu. Quase não 9 acreditou. Então haviam os sensíveis que davam um pouco de si pelos desafortunados? Que lição e tanto! Por um momento chocou-se. Levou um susto com o que sentira do que vira! Não aceitou aquilo, no primeiro instante do tranco no cárcere de seu ser sensível. Mas o mais íntimo perenal de si creditou aquele imenso e maravilhoso Ver alavancado pela sensibilidade mordida de algum insight presencial. Ao lado de uma velha kombi branca queimando óleo, saíram os três e deixaram a marmita de comida para os abandonados sociais, quase duas horas da madrugada daquele dia que lhe fora difícil até para fechar o balancete do ano passado e preparar as glosas costumeiras (batendo com o Caixa Dois) do Imposto de Renda do Ano Fiscal anterior e sua ativa caixa preta de insanos lucros impunes. LÁ ESTAVAM ELES!. Só podia ser. E acreditou piamente nessa maravilhosa hipótese. Quase ralhou-se por um tomo de incredulidade da dúvida. A dúvida a reinar? Olhou mais para o lado, temeroso que fosse um desvario, e, na esquina, onde uns pobres meninos mambembes dormiam seus pesadelos sem o crivo seguro sequer de eventuais “pais de rua”, tantos OUTROS. (Servos na liberdade, pobres entre riquezas, mortos em vida porque traziam no próprio corpo os grilhões que os prendiam, no espírito o inferno que os oprimiam, na alma o erro existencial que os debilitavam, na mente abalada o letargo que os matavam pouco a pouco, dia-a-dia.) Algum escondido e inusitado sininho tocou em sua alma. Uma nuvem de luz invadiu seu coração que moveu placas de sentimentos revisitados. Sua mente aceitou um código não identificável. Era aquilo que ele buscava. Uma resposta, um legado? Sim, para isso valeria a pena viver. Chorou até ser surpreendido pelo Maitre Riovaldo que, na demora do retorno para a saída o fora flagrar aturdido olhando para um nada completo lá embaixo. Mas ele vira TUDO. Ele sempre tivera a percepção muito apurada desde guri em Itararé. Era chamado de pessoa fina, especial, terna, doce, sensibilidade à flor da pele, apesar de tudo o que a vida de ruim lhe dera como bagagem e destino cruel. Desviara isso para um necessário instinto de sobrevivência, para um tino comercial, para abrir caminhos. Manter-se vivo era uma coisa séria. 10 Depois variara momentos, caíra nas redes do mundo, nas entranhas pouco éticas do lucro fácil. E os desacertos do mundo não fazem bem à toda alma humana. Criam ranço e certos disparates em fluxos de inconsciências por traumas mal resolvidos. Quem é marcado pela fome, pelo abandono, pela injustiça, sabe o peso disso. O medo de se perder é eterno. E ele mudara muito. Mas não mudou tudo a ponto de secar inteiramente o Dom que possuía, no mais íntimo gomo de um favo de si. Se bem que ,de uns tempos à esta parte, era só um Ser Humano bem atrofiado pelo volume de negócios e grana alta. Luxo, riqueza, poder. Que mal isso pode fazer ao homem. Riquezas injustas? São Lucas falou disso nos Evangelhos. Riquezas impunes? O intelectual Millôr Fernandes tinha escrito algo a respeito. Falácias de intelectuais que gostavam de pobres?. O país era um caldeirão de descamisados. Nem só por isso, mas o buraco da agulha se tornara menor, e o camelo do esquecimento social cristão criara carcovas de irrazões e medos de limites racionais. Quase chamaram um médico importante do convênio internacional. Quase pediram um helicóptero ou uma ambulância. O prédio mesmo tinha um heliporto cinco estrelas. A segurança era perfeita. -O que está havendo, doutor? Qual é o problema dessa demora? -Eu estou bem, pode ter certeza disso, Riovaldo. Muito obrigado pelo préstimo da atenção. Você sempre tão gentil comigo. -Mas o sr. está verde, doutor? Quer que eu chame uma ambulância? Em minutos o sr. estará sendo bem avaliado. -Pode deixar, amigo velho. Hoje foi o dia mais importante da minha vida. Você nem pode imaginar... -Mas o sr. está chorando!. E tem muitas outras lágrimas nos olhos, prontas para o desmanche de um devir. Dá pra se perceber claramente isso. Riovaldo era pintor escondido nas horas vagas. E ler livros de auto-ajuda era seu hobby secreto. Cobrou preocupado e sensivelmente abalado com a cara do cliente antigo: -O que houve, doutor? Retornou o elo da questão. Estava preocupado, com medo, vestido de assombro. -Nunca me senti tão feliz. Nunca me senti tão Eu. Na verdade, nunca me senti tão inteiramente dentro de mim mesmo, respondeu Dr. Paulo. Emocionadíssimo. -O quê o sr. viu lá embaixo? Não dá pra distinguir nada. O sr. está passando bem? Quer que eu avise sua esposa? 11 -Vou descer. Até qualquer dia desses, meu bom rapaz. -O sr. virá tomar seu uísque amanhã, antes do almoço, como de praxe há mais de dez anos? -Nunca mais! Nunca mais! Boa Noite, Ariovaldo. Desculpe alguma coisa, por favor. Tenho que ir-me... O Dr. Paulo de Tarso Trigueiro já não era o mesmo. Tomou meio torto o elevador de serviços. Em minutos rendia-se com a com a esposa Dagmar Marlene que já estava preocupada com a demora e reclamava ostensivamente de alguma coisa, beiçuda, de tromba. Tomaram o carro, um jipe cheroquee preto, importado. O dr. Paulo deu dez reais ao manobrista. Ela, casca grossa, pediu de sopetão para dirigir, pois tinha bebido pouco e o queria inteiro e despreocupado na cama com colchão d’água e italiano espelho oval no teto. Ele entrou pelo lado direito no carro e só pensou em ir para casa. Sabia muito bem o que fazer agora. Sabia, finalmente, que rumo inicial e definitivo tomar. Um dia os nossos sentimentos despertam agonias e placas de emergências pedindo colo infinital. Sabia o que fazer de sua vida sedentária. Que Deus tivesse misericórdia de sua miserabilidade, pensou e guardou consigo essa toleima. Estava emocionado que não compunha palavras no seu tento de sensibilidade tocada. Parecia envernizado de lume terreal. Tinha visto uma luz no fim do túnel e tinha que se preparar para ir ao encontro dela. Era um “chamado”? Era a única saída. E a seguiria até os últimos dias de sua vida, que até então tinha sido entregue à mesmice trivial de coisas pífias, ignóbeis, vis, nulas. Coisas bobas, mediu-se,;que na verdade não tinham nada a ver com a sua verdadeira essência. -0- 12 UM “Deves criar o Bem a partir do Mal. É esse o único modo de o criar...” (Robert Penn Warren) __________________________________________ Dagmar Marlene caçou o batom carmim italiano da bolsa de couro de javali sul-africano que comprara na Butike Brasil em Mahatam, Nova York, Estados Unidos, num verão do ano passado; nas montadas “férias” que viajou com ele a título de segunda lua-de-mel, e, para não perder a pose e o estilo quizilento da fase pré TPM, reclamou da sisuda cara de azedo do marido que parecia ter visto, no entender dela, o próprio “cusarruim”. Ele percebeu: continuava vendo, sempre e sempre, não acreditando que, finalmente tinha aberto algum chip cerebral que lhe permitia tanto. Quantas vezes parara naquele mesmo farol, entre a Avenida Faria Lima e o princípio de uma travessa da Avenida Santo Amaro, e, tantas vezes, como outros milhares de motoristas ricos e apressados empresários, destilara veneno no olhar bravo e no gestual bronco – clicava rapidamente o botão do fecho do vidro automático, ligava o ventilador - quando aparecia um pedinte rueiro sujo, um inglório menor abandonado negro ou pardo, um esquelético velhote a querer tomar seu precioso tempo de empresário bem sucedido; tocar com mãos sujas de fuligens e nódoas seu potente carro, pedir a intrometida e inconveniente gentil caridade de mais um adjutório. Por que não iam arrumar o que fazer? Por que não voltavam para a Bahia que tanto cantavam em verso e prosa? São Paulo estava infestado de miseráveis. Quando não favelados, migrantes nordestinos ou sem tetos atirados na rua da amargura. São Paulo era uma pocilga, um mercado de pungas, pensava nessas ocasiões. São Paulo era um monte de barracos, no seu cinturão periférico. Como tinha sido mudado, no rol da desconstrução do eixo de si. Agora era outro. Pensava diferente. Condoía-se. Agora via tudo com olhares novos e limpos, puros, sadios. Sabia o que queria. E ai de uma mulher que queira impedir um homem de ser o que ele é, quando ele descobre algum segredo, algum mistério, alguma sagração de exposta grandeza sensorial íntima exacerbada. 13 Enquanto a esposa xucra para o seu nível cultural e de intelecto privilegiado, nervosamente ligava o rádio e caçava no controle remoto adjunto ao volante esportivo o dial de uma estação de FM com música brega-chique, ele continuava olhando as ruas úmidas e entregues à fauna mista, entre ratos humanos, baratas de lixões e toda sorte de gentinha, vultos imóveis entre sombras, a ralé. Os miseráveis. A noite ia ser longa. Ele perdera o tesão pelas coisas terrestres. Lá fora, aqui e ali, via tudo novamente. Sim, lá estavam ELES. Sob a cobertura de precária lona encardida talvez roubada de um rueiro carro de hot-dog, dormiam outras pessoas sem eira nem beira. Párias – a escória. Parecia mais uma família de migrantes, levas de fugidos do nordeste, por causa do modelo econômico agrário-exportador que facilitava o sucesso da região sudeste, principalmente São Paulo. E, reparou novamente, aturdido e ao mesmo tempo muito feliz: LÁ ESTAVAM ELES. Como nunca sentira isso antes? – matutou encabulado. Pois lá estavam e distribuíam silentes, zelosos e com compaixão, cobertores comuns e pães aos abandonados, aos coitados, aos zé-manés daquela cidade com tantos contrastes sociais, com tanto ouro mas com pouco pão. Era aquilo que queria. Era aquilo que buscava. Deus tinha lhe apontado o dedo, indicando um caminho. Fora tocado pela sorte de uma visão? Como um rio desgovernado, estava vendo seu leito raso para correr, sem as margens limites de uma obscuridade que o oprimia de repente. Tinha tudo e não tinha nada. Era rico mas a sua natureza espiritual pedia paz que não se encontra nos ditames sociais ou nos paradoxos do lucro insano, do lucro a qualquer preço, a qualquer custo. Do lucro que fundava a fome e a miséria absoluta. Do lucro que gerava emprego, modernizava (informatizava) e as ações da empresa injusta cresciam no mercado. Reparou que a esposa tinha acendido um cigarro de cravo indiano que pregava adorar. Ele continuou como se sabiamente rendido em si. Se assuntando. Medindo os sentimentos revisitados. O som de uma dançante música pop espanhola enchia o ambiente seguro do veículo. Perto do sujo Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, viu uns coitados dormindo em bancos de praças precárias, cobertos com jornais e por cima sacos preto de lixo disfarçando os rejeitos humanos sob a marota garoa paulistana. Segurou o ímpeto para não revelar-se, estragando tudo. Conteve-se para não acordar aqueles seres humanos – sim, seres humanos! – e levá-los para um hotel, pagar-lhes um mês de cama e comida e coragem, dar14 lhes identidade de serventia, abraça-los como irmãos. Por ele levaria até sua ostensivamente rica mansão no nobre bairro do Morumbi, ali pertinho. Olhou para a Dagmar Marlene e ela parecia feliz, cantarolando o refrão repetitivo da musiquinha chata, demodê, apesar de rotulada de tecno-pop. Viu novamente: Distribuíam comida para um catador de lixo de rua, que dormia com um cachorro sarnento sob seu carrinho de madeira cheio de lixo. Tinha achado seu farol norteador. Em minutos estavam em casa, uma mansão colonial com gordos cachorros de raça, truculentos seguranças paroaras, enormes grades elétricas, câmaras de controle e muitos empregados ganhando uma miséria mas que dariam a vida pelos patrões. Morava entre o estádio do Morumbi e o Palácio do Governo estadual, área mais rica da cidade. Dagmar Marlene estacionou o possante carro, resmungando, insatisfeita com a recusa explícita da peleja sexual que pretendia como fito primordial de sua vida a todo momento sequiosa e insaciável, atirou o toco de cigarro de cravo num vaso de orquídeas vermelhas viçadas e entrou em casa dando chute na sombra, depois de abrir a porta de aço com três chaves de segurança máxima com senha numérica e um cartão magnético com código pessoal intransferível. Iria tomar uma ducha na piscina quente, depois tentaria assistir um filme de terror na tevê a cabo. Não gostava quando seu maridão emburrava. Ele vinha tendo essas esquisitices agora. Teria outra? Chegou a pensar nessa hipótese. Mas ela era boa de cama e sugava-o de um jeito, que não sobraria nada para ninguém. E depois, também contava com a hipótese de que ele mal-e-mal duraria uns vinte anos se tanto – se precisasse ela mesma o envenenaria aos poucos - quando então ela ficaria livre com a fortuna que lhe caberia, e assim, poderia cair fora, ir morar em Londres, arrumar parceiro jovem, ser feliz. Mal sabia ela que nunca sairia do lugar que estava, e esse era o problema. Para qualquer lugar que fosse, drogas, viagens, aventuras sexuais, teria que se levar consigo. E sua vida desregulada era a sua própria cruz de exato tamanho. E ela era o problema, a infelicidade quizilenta em pessoa, que, por um desvio de relacionamento familiar que caíra no psico-somático, tendia para um aparato sexual todo até como fuga. No entanto, era muito nova, apesar de extremamente ousada. Tinha muito que aprender. Pior: teria que passar por várias vicissitudes, para SABER APRENDER, o que, naturalmente é mais difícil. 15 Paulo de Tarso estava aprendendo depressa a lição daquela noite especial. Não titubeou um só segundo. Tinha descoberto a cura da dor de sua existência, deduziu sonhador. Sabia o que queria agora. Dirigiu-se ao escritório central da casa, uma saleta de seis por seis, piso de lambris de peroba-brava, quatro metros de altura, com uma janela dando para a piscina em formato de losango, onde começou a formatar atendimentos jurídicos e formais de sua legitimidade adquirida naquela noite e começo de madrugada, quando deixaria resíduos de pertencimentos nos atos legais, peremptórios, preparando-se para deixar de ser, para sempre, o que até então fora, entre mitos boçais pelos quais até inutilmente lutara em vão, pois nada daquilo valia a pena, no apurado final de todo um viver medíocre. Seu balancete era que vivera em vão, usurpando do Caixa Dois da vida. Como não pudera compreender isso? Mas não era tarde demais. Quem somos? Existe uma natureza perversa no humano, ou também somos um produto histórico com capacidade de auto-regeneração? Nunca é tarde demais? Agora tinha um propósito único, íntimo, maravilhosamente pessoal e graciosamente verdadeiro e digno. Sabia o que fazia. Finalmente tomaria uma decisão que mudaria radicalmente o rumo de sua vida. Não provocaria adrenalina interior, como ver cardumes de peixe no fundo dos oceanos, nem quando via o mundo de cima ao subir montanhas altíssimas, nem quando voava em asa-delta perto das gordas nuvens crespas de Itararé, mas seu espírito na verdade não tinha uma casa ordeira de encanto e paz. Agora estava no interior completo de si. Era dono da situação? Agora achara um fito primordial para o compreender o âmago do melhor de si para si. Tomaria a decisão certa. Tinha tino para fechar ciclos, administrar novas etapas, ganhar novos espaços. Teimava agora a arquitetura de sua espiritualidade viçada. Assinou procurações, rascunhou os termos de um novo testamento, agendou alguns telefonemas para o próximo dia útil, principalmente o mais importante – valia a sustentação final do caule de sua vida sedentária – com a Dra. Cidú Lickson, quando, finalmente, largaria aquela vida de janota e entraria para uma outra irmandade. A confraria dos SERES HUMANOS. O clã de uma semente cósmica que vagava numa nave-terra pelo sideral espaço cosmonal do infinito... -016 DOIS “No matter what we dream/What we dream is true./No matter what doth seem/God doth it wiew/And therefore it is/Real as all this ...” Episode – The Mad Fiddler – Fernando Pessoa – 19l7 – Editores Londrinos Constable & Constable (*) Na segunda-feira seguinte, depois do matinal asseio apressado e nervosamente meio furtivo, ressabiado saiu bem cedo de casa sem dar muito na vista ou sequer fazer alarde, sem a frescura do ritual cotidiano de paparicações e um entojado breakfast oficialmente rotineiro e bobo, e foi até o escritório de sua empresa, sediado numa travessa perto da Paulistana com a Brigadeiro Luiz Antonio, na Rua Manoel da Nóbrega, e, acionando a antiga secretária Maria Teresa, pediu que ela cancelasse todos os compromissos do dia, e ainda alertou meio com medo e furtivamente preocupado, cismando a decisão tomada: -Se ligassem dissesse que não estava. Depois, instruiu, calmo como nunca houvera antes: -Se o contatassem, dissesse que estava viajando para um lugar qualquer. E completou: -Invente, chute. Arrume qualquer desculpa. Avise também aos demais funcionários. Não quero ser importunado até fazer o que vim fazer. -Mas o sr. não tinha reunião com aquele Vereador médico do Butantã e aquele Secretário de Finanças da Prefeitura, para entregar a propina do que eles exigem para dar o Habite-se do Condomínio 31 de Março? -Isso não tem importância agora, querida. Nada mais tem. Vou sair dos negócios para não mais voltar. Tudo acabado. Por favor, encaminhe também para o Escritório da Dra Ana Laura Cedrez e do Dr. Danúbio Spínola os papéis que estão nessa pasta rosa aí em cima de sua escrivaninha. A pasta verde mande pro Gerente de Pessoal. O arquivo encaminhe pro Mestre de Obras. 17 -O sr. viu passarinho verde, brincou a secretária, suspeitando que alguma coisa não ia bem – estava estranhando – Era uma velhota na casa dos cinqüenta anos, que fora chefe de pessoal por décadas na empresa e para ali fora deslocada para servi-lo de perto, até que por sugestão própria da nova esposa do dono, não querendo correr risco de ser substituída por igual cria. -Pareço diferente? – Perguntou o Doutor. Sorriu-se: mediu-se algo orgulhoso do que pensara fazer. Tinha minhocas na cabeça. Quem tem fé voa? -O sr. está com um sorriso de criança, um gestual desmontado de acirramento, parece até que viu passarinho verde... O que está acontecendo? O que houve? -Você não vai acreditar, Maria, mas eu vi muito mais do que isso. Vou largar tudo. Vou sair de circulação. Vou cair fora enquanto é tempo, enquanto posso. -O sr. está com alguma doença grave? Os negócios não vão bem? Algum problema com a CPI da Corrupção da Câmara Municipal atingindo seus negócios? A propina pra Policia Federal da Alfândega do Aeroporto de Cumbica foi pouca? – Ela sabia do que falava. Se ela abrisse o bico, por saber o que sabia, teria que pedir ajuda do Serviço de Proteção à Testemunha. Caçou de tentar ouvir a resposta, captar a justificativa. -Não é problema financeiro, querida. Imagine só. Onde já se viu? É muito mais grave do que isso. É questão muito mais importante. É questão Espiritual.... -Deus do céu. Se eu não o conhecesse por vinte anos, diria que o sr. ou está ficando louco, ou está para morrer... Quem sabe levou um choque total. -De tudo um pouco, querida. Ligue pro meu filho primogênito, o Celso Felipe. Trouxe uns papéis de casa. Você pode digitar pra mim? Ao lê-los você vai compreender um pouco mais a mudança que mexe com minhas estruturas. Não sou o mesmo de ontem. Mas sou eu mesmo em mim. Não seria mais o mesmo nunca. Não vou almoçar no La France desta vez. Cancele o ritual todo. Vou ficar despachando daqui. Daqui a uns dias você vai ficar livre de mim para sempre. -Credo – Deusolivre e guarde! Não fale assim, Paulinho!. Onde já se viu isso? 18 Quando queria ser gentil e mais íntima, quando via o patrão chateado ou com problemas, Maria Teresa com educada confiança respeitosa o chamava assim, propositalmente, de Paulinho. -Talvez eu mude de nome também, querida. Nunca se sabe... -Dr. Paulo o sr. está misterioso. O que é que, afinal, está acontecendo com o sr? Estou ficando preocupada... -Você nem pode imaginar meu bem – Dr. Paulo de Tarso a tratara de “meu bem” quando queria ser doce, polido e gentil, mais do que costumeiramente o era, em que pese nunca se deixasse fisgar por ser íntimo total de empregados. Depois fez um muxoxo, sorriu renovado, coçou disfarçadamente uma bereba imaginária na virilha direita, e entregou seis disquetes, três pastas de papéis, uma lista de nomes com telefones novos com dados informativos sobre o que ela teria que registrar, comunicar. Depois entrou no reservado adjunto ao seu escritório, sentou-se numa cadeira anatômica de sua preferência – lembrava uma cadeira de balanços que tinha na varanda de sua mansão estilo colonial no Bairro do Morto Chato em Itararé onde tinha criação de capivaras e uns colonos que produziam cera e mel de abelha-buri - surpreso olhou a sua foto de formatura na parede – como tinha sido um jovem tolo, janota e boçal, compreendeu finalmente – depois apagou as luzes do recinto arejado que era uma sala de reunião adjunta ao seu gabinete ricamente decorado e chorou, chorou muito, chorou impiedosamente. Chorou como uma criança escondida de si. Chorou por todos os órfãos, viúvas, pobres e renegados do mundo. Chorou como nunca chorara em sua vida. Tinha o coração aberto apesar de pisado; tinha a mente entrevada mas a se limpar, oxigenando-se: tinha a alma aberta mas com fissuras que buscavam consertos terminais. Aqueles eram os últimos dias de sua vida de insano, de bobo, de cidadão respeitável no entender frívolo e comum das etiquetas sociais. Pobre alta sociedade nula. Pobre de si, concluiu, de tromba. Tinha nojo do que representara maquiando um existir pleno e crível. Agora era um outro. Sentia que era. Tinha que o ser. Que o bom Deus o ajudasse. Nunca pensou tanto em Deus como nas últimas horas. Pensara mais em Deus naquele bendito final de semana com insônia acirrada do que a vida 19 toda de mais de meio século entregue ao nada, ao confinamento trivial do funesto, do hediondo, do ridículo. Tinha sido assim um depauperado, apesar das etiquetas, das aparências Quando a secretária Maria Teresa começou a ler os papéis, os arquivos dos disquetes, a compostura formal e inédita dos textos, das implicações formais, formatadas, das decisões sacrificiais, dos termos autorais de seu bem conhecido patrão, passou a temer pela própria vida, passou a sentir-se em risco. Estaria correndo perigo sabendo aquilo? Passou a não olhar com bons olhos o chefe tão próximo e agora ali encruado numa sala escura feito um monstro escondido. Ficou com medo. E com estranho medo de ter medo dele. Deus do céu! Será o impossível? -0- 20 TRÊS Foi uma reviravolta geral no cenário todo. Parecia que um circo existencial estava pegando fogo. Seu telefone estava grampeado de alguma maneira? As paredes têm ouvido? O Sindicato Patronal ligou atarantado. Um vereador médico, altamente corrupto e gagá ligado à Máfia das Regionais deixou vários recados nervosos. A Gazeta Mercantil do Banco Liberal deu uma nota jocosa na coluna de variedades quer mantinha num site online da Internet, uma emissora de rádio ligada à FIESP telefonou querendo informações urgentes a respeito de umas fofocas de colunáveis enturmadas no Clube Pinheiros, três amigos de faculdade aparecerem mas não foram atendidos como pensavam, um dos filhos ligou de Istambul porque recebera um telefonema de alerta que não compreendera inteiro, um diretor do Conselho de Engenharia por e-mail repetido com letras garrafais deixou um recado maroto pelo não cumprimento da agenda prevendo um almoço com importante cônsul árabe, uns parentes chegaram a pensar em entrar com ação para torná-lo desprovido dos bens todos, antes de vê-o imputável, insano, julgando-o louco varrido, de pá virada. Os telefones tocaram a tarde toda, até a entrada da noite fria de outono. Eram retornos de transtornos previsíveis. Tudo para ela era novo, ao mesmo tempo que previsível. Mas nunca ele estivera tão bem assim em toda vida. Nunca sabia tão bem o que queria e como conseguir dar o primeiro e importante passo decisivo. Estava tão resoluto, decidido e determinado – que sempre o fora, de certa forma – que até disse um baita palavrão cabeludo (aprendido nos jogos de tranca num clube rural de Itararé), quando a patroa chata ligara pedindo aumento do limite de crédito em um dos sete cartões, pois tinha que operar o cãozinho podlle de uma seqüela reumática no fêmur, oiis o pobre animalzinho de pedeigree caíra ao atacar rueiros gatos vadios no quintal florido da mansão. Ele mandou-a caçar o que fazer e desligou, depois de limpar-se da remela salgada e das bochechas com sal de lágrimas secas. Compreendeu que fazia 21 bem chorar. E iria chorar muito nos próximos dias. Iria sofrer muito, compreendeu, finalmente. Teria que enfrentar um mundo novo, ponderou. Saberia ser forte. Era exatamente isso o que mais queria. Para isso valeria a pena consumir seus dias terminais na tábua de carne da terra. Para isso valeria jogar tudo para o alto e dar um salto de qualidade de vida intima. Que Deus o ajudasse. Fez acertos. Mudou relatórios. Deletou arquivos. Impregnou-se de íntimo alumbramento e encheu-se de certa iluminura terçã. Tomou decisões radicais, antes que fosse tarde. Era o fechamento de um ciclo? Doou parte das ações da firma para todos os filhos, adiantou seguro-educação para os netos, deixou volumosa importância para a esposa, que poderia passar o resto da vida nadando em dinheiro, confiou alta soma aos melhores empregados – Maria Teresa datilografou essa parte chorando de solução, assustando colegas de sala, sem saber que ela chorava de felicidade, mesmo que encruando um certo medo de seu chefe com suas inusitadas decisões insanas, assim, sem mais nem menos. A maior bolada era a parte dela, sempre tão solícita, séria, honesta, pontual, despreendida. Ela estava rica. Podia largar aquele trabalho estressante, cuidar do problema mal resolvido da angina. Ma nem podia compreender direito e inteiro a bendita situação. Tudo aquilo dava-lhe nos nervos. Na verdade estava pisando em ovos. Parecia não caber em si. Seu espírito criara asas de contentamento imedido. Sentia que, de feliz, podia ter o risco de um ataque de felicidade arrebentando o elástico curto do coração doente, em polvorosa, quase arrebentando de impetuoso alumbramento. Ele avisou que iria sair – nunca fizera isso antes, nunca avisava de nada, não era obrigado e nem de costume – e inteirou-a de que talvez não voltasse o dia seguinte, nem na outra semana, como corresse as coisas talvez nunca mais voltasse. Ela quase correu atrás dele, ajoelhando-se aos seus pés, beijando-lhe as mãos branquelas, em pranto que enrolavam palavras de agradecimento. Ele não disse sim e nem não. Nem era de seu feitio. Guardou-se feliz. Saiu rapidinho pelo elevador de serviços mesmo, não sem antes dizer, meio alegre, meio esquisito, gesticulando diferente, para o coletivo em geral: -Sejam felizes! Sejam felizes? 22 Quase que o segurança Nestor Leonel, um verdadeiro guarda-roupa pardo e armado até os dentes, seguiu-o, com medo de que o seu chefe saísse sozinho assim sem mais nem menos, àquela hora, que estivesse sob ameaça velada de seqüestro ou vivesse algum problema, talvez um pagamento de resgate emergencial, talvez refém de alguma situação, um possível constrangimento da curriola insuportável do Partido Liberal querendo mais verbas para gasto eleitoreiro e as montadas arapucas para engodo de um drenado exercício democrático. Em Sampa, para muitos ricaços, a vida era uma espécie de cativeiro, enquanto para os pobres era um curral de estrume burguês. Mal ele sabia, pobre coitado, que o dr. Paulo de Tarso Trigueiro, como o próprio apóstolo no caminho de Damasco, estava cego. Mas era cego de TANTO VER. E que tinha sido precariamente resgatado do meio deles, pois, ao seu jeito, seu sentir, seu lado sensorial e sensitivo, quase escondido paranormal desde a militância da primeira infância; tão recalcado em cifras, estatísticas e números, entre tantos inócuos PHDeuses, tinha sido de novo escolhido e tirado do meio de lobos e lobys. Resgatado? Essa era a palavra perfeita Quando Dagmar Marlene, entojada e cheia de tédio numa mansão fria e sem barulho de atividades sociais ou coquetéis concorridos que adorava, bocejando de falta do que fazer, ligou para o escritório de seu doutor e escravo sexual, foi avisada que o patrão tinha saído á pé, tendo doado os três belos carros importados para uma obra de caridade que assistia crianças com síndrome de dow, e uns cheques de lambuja pra APAE de Itararé. Tudo fofoca de uma telefonista sem palpas na língua e sua olheira propositalmente colocada ali na firma. Não entendeu bulhufas. Pior foi quando veio um conhecido e posudo Corretor de Imóveis pessoalmente colocar uma enorme placa de Vende-se na porta da mansão. Assustou-se. Mas não pensou no seu arranjado maridinho. Pensou em si, claro. A vida tinha sido dura com ela. Seus pais, recalcados, reacionários e extremamente conservadores e beatos, a tinham substimado, depois de a cercearem nas suas escapadas rápidas em busca de aventuras noturnas com rapazes predatórios do bairro. Ela passara fome quando atirada fora do lar por ser perniciosa e tachada de “putinha rameira” em família, mas vencera e não ia agora aceitar ser rejeitada assim, sem mais nem menos. Tinha seus direitos. 23 Depois raciocinou, ensimesmada. O que estava acontecendo, afinal, pensou, depois que caiu a ficha do raciocínio. O mundo estava acabando? Não era muito de pensar quando estava segura de si, era dona de um homem poderoso. Só enxergava mais que um palmo adiante do nariz, quando vinhalhe a lembrança dos dias ruins, ocasião em que a sexualidade varria escrúpulos e então ela dava o mais de si, sem medir conseqüência, remorso ou atitude lícita. Naquela noite o Dr. Paulo de Tarso não voltou para casa. Aliás, nunca mais voltou. Sua casa era o lugar que fizesse ser. Sua casa era o planeta água inteiro pregado no varal do universo. Aliás, não voltou a ser o mesmo. Podia ser visto feito um missionário improvisado distribuindo comidas para pobres, cobertores para famílias de rua, afetos lânguidos, verdadeiros e demorados para crianças perdidas dos faróis poluídos. Ainda encaminhou algumas pessoas carentes, ouviu problemas incríveis, deu telefonemas a cobrar para seu escritório, recomendando receitas rápidas, internações urgentes, viagens necessárias, caixões de defuntos, ajudas caras e tudo mais. Estava começando a pegar no breu, pôr as mãos na massa, arregaçar as mangas e fazer sua parte como cidadão consciente, cristão, como Ser e como Humano No entanto, não apareceu mais em casa, nem no escritório, tampouco no Rotary Club onde era conselheiro, nem no Lions Club onde era membro do conselho fiscal, tampouco no Mackenzie onde era Assessor da Diretoria no Curso de Pós-Graduação. Aquilo para ele era passado, cheirava a naftalina, implicava em rendição de sua sensibilidade novamente agora atiácada e à flor da pele A roupa do corpo começou a ficar ruim, claro, começou a ficar mal cheirosa. Os sapatos de couro alemão logo revelaram-se gastos, a barba cerrada já branqueando por fazer, a falta de asseio básico. Eram passos sérios de apendizados primitivos, essenciais. Passou a dormir na rua, onde se encaixasse, onde lhe coubesse o destino de um humilde estar perene. Um vão, um pedaço de calçada, um cantinho pra chamar de seu. Depois de ter deixado todo mundo forrado em grana, depois de ter doado alta soma para a Santa Casa de Misericórdia de Itararé, depois de destinar bolsas de estudos para parentes pobres, depois de sair com a roupa do corpo e só com o dinheiro nas algibeiras (que logo gastou ou doou) para estar com os miseráveis, dormir com eles, viver com eles, ser do rol deles, pertencer-lhes de corpo e alma, de mente e coração, de espírito e dentro de uma esperança-andaime deles. 24 Compreendia que um defunto dominava a sociedade: o “defunto” do trabalho. Não era apenas uma crise social passageira. Entendia que a sociedade capitalista amoralmente especulativa-acumulativa e agiota dominada pelo trabalho tinha alcançado seu limite máximo, absoluto. Na sequência de um neoliberalismo globalizador e da revolução microeletrônica, a produção de riqueza se desvinculara cada vez mais da força humana e sua chamada mais valia. Quem, nessa sociedade não conseguisse mais vender sua força de trabalho – capacitação, idade, importações supérfluas, planos econômicos inumanos – era considerado um traste, um bagaço, um nada. E estaria sendo jogado no aterro sanitário social, onde sobreviviam os restos de seres, denominados de excluídos sociais, de descamisados, de “trecheiros”, segundo sociólogos. 25 QUATRO As tristes ruas de São Paulo, além de mau exemplo pela péssima administração municipal corrupta, amoral e inumana – a cidade abandonada social e urbanamente falando, era um verdadeiro esgoto a céu aberto – era mesmo uma assim espécie de filial do inferno. Além do seu sofrível cinturão periférico de miséria, com suas costumeiras chacinas de fins de semana (justiceiros anônimos e membros inidôneos da policia militar com máscaras de todos os tipos), suas centenas de favelas entre bueiros e lixões, seus abandonos sociais de toda a sorte, quando até os antigos cantões velhos dos centros mal cuidados eram lotados de camelôs, mendigos, velhos doentes, famílias de migrantes dormindo ao léu, traficantes de baixa categoria, crianças se prostituindo, policiais incompetentes quando não corruptos ou coniventes com todos os arranjos e melindres, mais vermes, doenças, bolsões de sujeira e miséria, monturos de ratos e baratas, entre quase restos humanos que a muito custo poderiam ser considerados gente. Ruas essas que, sem notar, sem fazer estatística de desumanidade (não interessam a eleitoreiros planos econômicos do FMI que só valorizam ocasionais compras de iogurtes e dentaduras e desprezam códigos éticos de civilidade urbana de nível sócial próximo do incrível e extraordinário), num daqueles dias frios de outono daquele abril qualquer, recebera mais um pobre coitado. Só que este, por incrível que possa parecer, fora por decisão própria, por livre e espontânea vontade, por interação íntima, se é que isso fosse possível, se todos fossem capaz de entender tamanho ato de entrega, de coragem-dínamo, de próprio punho incrivelmente humano. Mendigou, sim, pois já nada mais tinha de si, a não ser as mãos murchas e com nódoas de sobrevivência oferecendo-se em amparo e ajuda, quando era necessário. E sempre era útil, ao seu jeito cândido. Ajudar um leproso, comprar pão para uma criança seca, impedir que trombadinhas achacassem um velhote, ajudar um aleijado a atrevessar um perigo sinal quebrado no trânsito caótico, jurar mentiras, inventar o inexistente, parecer-se com os inválidos, os abandonados, os fracos e oprimidos, os bem-aventurados do Sermão da Montanha. Era pau pra toda obra. Tudo o que conquistara na vida louca e sem nexo, doara, ou para quem merecia, para centros de caridade, de sua aldeia natal inclusive, Itararé, ou para quem eventualmente era de direito imperioso e legal, tentando, também assim, reparar erros, desvios de percurso ou de 26 conduta, indenizando, valorando, crendo-se revestido de fé e pura idoneidade revisitada. O que lhe tinha rendido de seu, pertencia agora a muitos necessitados, de toda ordem. O resto, era só sua perenal entrega de vida. Aceitara estar com os fracos e oprimidos, ser da parte deles, viver até os últimos dias para eles. Era uma decisão que pertencia aos sábios ou aos deuses? Eram os pequeninos que recebiam um companheiro buscando calço para empreita de seara nova, feito mais um lírio no campo Nos descaminhos da rua da amargura sentiu a barra pesada da subsistência concorrida por baixo, ao viés do baixio chão. Do baixio chão se vê os outros com olhares tristes, desafiadores, pertos da marginalidade e do medo estimado sob viés de caça a ser predada de alguma forma, por alguma maneira. O Eu e as circunstâncias. Para pedir esmolas numa esquina concorrida, tinha que pagar caixinha a quadrilhas. Vendiam caro os núcelos de dezelos humanos. Haviam lugares com direito adquiridos na miserabilidade coletiva. Para dormir na rua e não ser queimado pelos filhinhos de papai, ou ser surrado por gangues racistas, quando não atacado por policiais ou seguranças, tinha que pagar sua parte de vigilância e manter-se com algum zelo mínimo de precário instinto de sobrevivência.Tinha que aprender a dormitar com um olho fechado e um olho aberto, caçando sempre a brasa pro seu lado instintal de manter-se vivo e ativo. Uma falha e era usado, furtado, posto à míngua da míngua. Tudo tinha um preço. Até sua caixa da papelão – para dormir nela com outros pobres coitados – teve que comprar. Era uma espécie de “trecheiro” de rua. Numa certa “Rua Fábia” (um código? uma senha?) uns tipos montavam doentes falsos (com feridas de velas ou isopor derretido) para viadutos e terminais. Eram os falsos necessitados. Uma perna sangrando era falsa, uma gangrena de bife seco era mentira, umas varizes em alto relevo eram estéticas perfeitas visando a piedade coletiva, alheia. Doenças de grosso calibre manifestas em percursos concorridos eram criadas com estilo e nojo latente. Só que Paulo queria caminhar com os mendigos, tomar de sopas de igrejas evangélicas, de centros espíritas de caridades, de catedrais com pastorais de diáconos sensíveis, de ajudas voluntárias bancadas com estima pelo Padre Lancelloti, um verdadeiro “pai de rua” dos pobres coitados. Queria receber o pão minguado de algumas almas caridosas, estar com a ralé do inumano e decrépito capitalismo selvagem brasileirinho. Daria testemunho de si. Queria encontrar Deus onde ele estava, no meio dos homens lazarentos, não nas alturas palaciais ou catedráticas de esnobismos pomposos por séculos ou insensibilidades generalizadas no vício da história de contrastes sociais do 27 país. E para isso teria que beber do amargo cálice da vida. Tudo um dia iria transbordar, e ele então morreria, seria recolhido. Mas não tinha medo da morte agora. Iria comer o pão que o diabo amassou? Para isso teria que descer ao mais baixinho chão, às profundezas do abismo social, até ser então escolhido pelo chamado, e assim habitar a grandiosidade divina para todo o sempre. Era esse o propósito de ser mais um na cruz da espécie. Não pensou em placa de igreja qualquer, em bíblia completa ou incompleta, em suspeitas caridade de carnês para aliviar consciências pesadas, nem em ser um bobo fanático religioso pelo engodo de meio ou de doping historico montado em cruzadas irracionais. Isso bastaria a um comum. Para ele os boçais podia continuar onde estavam, pagando o dízimo da consciência com máscara ou fazendo caridade promocionais como os fariseus, entre clubes de ocasiões e recatos idênticos. Ali, onde estava, seria mais servo de Deus. Ali, entre os fracos e oprimidos, seria verdadeiramente um servidor. E isso era tudo o que queria. Daria o melhor de si, pensou sereno e em paz como nunca dantes estivera no curso de sua terrível e dolorosa travessia de viver UM CORDEIRO DE DEUS. No começo, claro, sofreu muito, passou necessidades. Tudo era um aprendizado difícil Não estava acostumado a beber o cálice da miséria em tal estágio. Era compreensível. Seu corpo refugou a princípio. Furúnculos, gases, piolhos, cerotos, gastrites, hérnias. Mas sabia que isso era também uma maneira de purgar-se. Saberia pagar seu preço. Sempre soubera? Depois das necessidades de origem – passara fome na barriga da mãe; passara fome na primeira infância, depois lutara para melhorar - lutara feito um cão danado, feito um condenado a tomar sentido do plano da vida. E então vencera de forma sortida. Conhecera esse lado doce do sucesso, por sorte ou carta do destino, medindo depois tudo com o triste, o escabroso, o inócuo, o vazio. Tivera tudo na vida. Agora, de novo mas de uma maneira limpa e aceitadora, sem azedumes, sobrevivia no triste estágio de não ter nada e isso lhe bastava. Viveria cada minuto pelo minuto. E habitaria inteiramente cada segundo de sua existência sendo de pleno direito um Ser. O resto de seu tempo na habitação coletiva da terra, entregava nas mãos de Deus e sua infinita misericórdia. Seria um lírio no campo, esperando a guarida de quem, acima de si, na orquestra natural do meio, o ornasse de sustância primordial. 28 Tinha que ser assim. Era assim que queria encontrar o seu caminho, a sua lenda pessoal. O céu por testemunha. Daria documento inteiro de sua vida dessa maneira. Com uns pares de cadernos espirais, para rebocar o esboço do tempo demorado entre o tédio e a imperfeição de pares, começou graciosamente a escrever seu despojo, seu furtivo muro de lamentações (que era a existência). Conheceu cafetões, autoridades corruptas, fiscais dementes, prostitutas com rezas prontas, viciados pedindo Deus, doentes sem cura, traficantes com estrutura, contrabandistas informais, tudo no confeito do dezelo social de um estado privado com máscara de público para enganar a gregos e baianos. As ruas fediam. Urina antiga, sujeira brotando, marreteiros suspeitos, óleo diesel, asfalto podre, abandonos sociais de toda sorte. Esse era o cheiro horrendo de São Paulo em tempos de globalização neoliberal, que, antigamente, contemplando seu próprio umbigo, do alto de sua pirâmide de mediocridade jocosamente existencial, nunca notara com vezo de ocasional sensibilidade que fosse. Agora, ali, entre uns manés, uns borra-botas, enxergava-se em si. Era mais um deles. Media-se. E, às vezes, auditava-se muito menor que um pedinte com prótese. Quase que podia ler a sua própria miserabilidade no livro dos dias que eram seus pergaminhos da mais pura e primata existência de grande acervo divino, de grande lastro emocional. Estava em si e mal cabia em si. Tinha um sorriso sempre inteiro, um abraço de consolo, um ombro amigo, uma palavra doce, um entusiasmo vivo para um desesperado, um suicida em potencial, uma mãe solteira alcoólatra, uma prostituta soropositiva, uma criança procurando armas pesadas para se salvar . Mas também sabia reagir, preciso fosse. Principalmente da vez que foi atacado por um louco e o colocara no seu devido lugar, depois de uns necessários sopapos para se fazer respeitar e ser entendido. Queria ser, de própria escolha, um miserável entre comuns. Não um saco de pancadas. Lembrou-se, finalmente e em tão estranho e precário estar, que sempre fora atacado por loucos, a vida toda. Sempre fora procurado por pobres e aloprados pedintes, como se tivesse cara de salvador da pátria, salvador da arcaica lavoura da sobrevivência entrevada. Mesmo enquanto construia sua riqueza quase sem repouso e sono completo, poupando, se matando de trabalhar e estudar, com ajuda da namorada de adolescência e juventude, andando no meio de uma multidão sem contagem, era inexplicavelmente e de forma imperativa interpelado por pedintes e aloprados a lhe implorarem um zelo maior, a lhe cobrarem benesses, como se ele, num gesto, pudesse transformar a escória 29 social da terra em gente feliz, como se ele fosse um anjo semeando caridade por atacado, tivesse essa premissa no seu carma. E ele sempre ajudava mesmo no pouco que tinha, quando tinha. Era seu jeitinho. Já era seu mistér?. Parecia já ser um indicativo de sua missão que ali, finalmente, aceitara no mais íntimo de si. Como São Paulo, o apóstolo, ele serviria à Deus, pregaria o evangelho de Cristo com suas palavras de meio, mais, com o livro aberto de sua vida: a caridade. Viveria por aqueles seres. Em pouco tempo era mesmo fisicamente parecido com um deles. Em pouco tempo era respeitado e conhecido por eles como um igual. E o adoravam por não ter tristeza completa no servir-se., como se fosse um elo luzidio na corrente suja e fétida da escória rueira. Antes, era um farol, um lume. A rua sabe seu destino cruel, mas sabe seu território marginal de reconhecimento mútuo. Quando passava com carinho sua marmita de arroz e ovo frito para um menos afortunado. Quando prestativo tirava de um cobertor ganho de uma beata e dava à um novo rejeito social se entrincheirando entre pares. Quando, dos míseros trocados que recebia de adjutório, não comprava algo somente para si, mas o que desse um pouco para todos: bananas, bolachas, pães, balas, água pura, remédios. Tinha sido assediado por mendigas assanhadas, mas polidamente rejeitava. Não tinha interesse em prazeres da carne. Vivia um outro tempo agora. Seu existir tendia a criar tessitura interior. Abraçara seu novo mundo não como um desatinado em busca de respostas prontas, não um novo esotérico tantã em final de século a ler livros e livros sem ser nada na prática, mas aquele que ia à fonte do que era ser serviçal de Deus. Não levava imagem, cruz, cantoria, toga ou liturgia explícita. Levava só seus braços largos, sua força de estímulo e trabalho, seu empenho, seu conhecimento, suas orações positivas e emocionantes. Salvou pobretões de serem explorados por minorias sem escrúpulos, sorrateiramente anotou placas de carros de policiais violentos da Rota, aprontou denúncias com nome falso e endereço fictício visando indicar soluções, chegou a ser roubado no pouco que tinha por um teens drogados, certa feita apanhou de um outro irmão de rua por tomar-lhe o espaço como se houvesse um dono no dezelo do trato com as causas sociais, mas restringiu-se, comedido, aceitou tudo. Fazia parte do encontrar-se. Fazia parte daquele mundo cão e tentava sublimar-se com denodo e enlevo espiritual. 30 Sabia que se morresse ali, por uma boa causa, viveria melhor nos braços de Deus do que no altar social onde estivera se perdendo antes. Se morresse na rua, seria enterrado como indigente e isso lhe bastava para estar aceito aos olhos de Deus. Se Deus era dos fracos e oprimidos, queria estar perfeitamente entre eles, para assim ser finalmente selecionado, e ser escolhido, ser parte do rebanho de Deus, estar no redil celestial dele. Na rua ouvia todo tipo de conversa, mas não era um pagão ou um pervertido, tampouco um agnóstico ou um neocarismático de embuste. Era alguém que tinha tudo e não aceitara esse tudo que de nada lhe valera intimamente. Pois, aceitando não conter nada, estaria pronto, limpo e puro para ser o pote da verdadeira fé, estaria pertinho de Deus, pois Deus estava com cada ser humilde, e assim, poderia reconhecêLo, um dia; talvez um dia o encontrasse entre eles, pobres mortais, para então poder dizer de como o sentira dias, meses, anos antes, quando ao olhar de cima para baixo, vira o que vira. Mas, afinal, o que ele vira? Um sinal dos tempos. Uma presença que em si batera cartão e dissera: -Eu estou no meio de vós. Eis que presto venho. Volte para si mesmo e depois volte para mim antes que eu volte... De mãe zelosa católica, que se vangloriava de dizer-se “apostólica romana” – e isso para ele não significava nada de estímulo o serventia social - pois sabia que o rabi Jesus Cristo não viera para fundar religiões, templos com grades, dogmas abismais, rituais de venerações; nem para serem seus descendentes montados em império carregados com coroas de ouro em liteira vaidosa de pompa secular. O Mestre viera para os aleijados, para Madalena, para Lázaro, para cegos, loucos, leprosos, para as crianças que bendizia, para os coitados. Estando entre os escolhidos, por sua própria vontade e desejo de aceitação, seria escolhido um deles, e poderia, então, ver a face de Deus? Mas, compreendeu, já vira a face de Deus quando saíra para jantar numa madrugada e tinha sido fisgado pela contemplação. 31 CINCO “Pequena é a força do homem, vãos os seus cuidados:/Para ele, em vida curta, só exis te/Fadiga após fadiga/faça o que faça, pen de sobre ele/A morte inevitável/Que devem partilhar, da mesma forma/Os bons e os maus” (Pequena é a Força do Homem – Simônides de Ceos – 556/468 a C. ) Andou pelas ruas podres, enfeitadas de totens inúteis, de árvores queimadas pela poluição, de pássaros cegos tossindo o desajuste do meio ambiente desequilibrado. Os mendigos arrastavam-se, fazendo birras entre si, falando sozinhos, armados de pedras e butins de pães secos, avarentos, infortunados, entre idiotas, fantasmas, executivos, bêbados e risos zombeteiros. Sampa era um embrutecido cuorador de almas ressecadas. As noites eram portais de orgias soturnas, todos vegetavam no fermento do esgoto, entre ratos mortos, larvas, horrores e devaneios como prenúncios de mortes. Pois perambulou seu calvário, vadiou seu cálice como um debutante visitador, vagou ora feito um “trecheiro” (São Paulo tinha uns cem lugares onde mesmo de forma precária o assistiam), ora mais um pedinte, mais um rejeito, um pária, um roto e rasgado, mas sempre vivendo mal, comendo mal, caçando o que comer em lixões, ou, de vez em quando, quando a consciência apertava um cidadão passante, ou quando havia uma promessa religiosa a ser paga (Santo Expedido, Virgem Maria, São Judas Tadeu, etc) ele recebia um sanduíche, um marmitex conhecido na rua como quentinha, um olhar, um aceno, um lampejo de toque de civilizada enrustida no cabide da pose. Mas a maioria era um misto de nojo coletivo, reprimenda, desqualificação como ser. Compreendia finalmente que uma tecnologia que permitia viver a revolução da informação na sociedade do conhecimento, não era entendida de acordo com uma visão de cidadania e da consciência de que todos eram sujeitos e não apenas elos numa engrenagem. E era isso que o país precisava: ética nas relações de economia, de mercado, de oferta e procura, capital32 trabalho, para que fosse a médio e longo prazo permitido reconstruir a identidade nacional, para que, finalmente, fosse “descoberto” o Brasil, fundado um Brasil depois de 500 anos de exploração, de roubo, de predações de todo tipo. As instituições estavam fragmentadas. A sociedade reclamava que suas autoridades não eram santas, mas eram todos representativos de uma sociedade também não santa. Era preciso consciência histórica para fazer todos compreenderam que a unidade não podia anular a diversidade, impondo o pensamento único. Os filhos queridos de Paulo Trigueiro, no entanto, desesperados e não acreditando numa fuga como válvula de escape de tensão, stresse ou insanidade provocada por eventual baixa estima, tentaram desesperadamente e de todas as formas achá-lo. Paulo mesmo leu propagandas caras em jornais velhos catados em cestos ermos, viu colagens com sua imagem bonita no poste de um farol quebrado (estava muito diferente, notou-se, cheio de barbas, cabelos ralos e olhos inchados), viu sua foto e notícia a seu respeito num aparelho de tevê de uma loja de departamentos. Estavam caçando-no como se fosse um assaltante de banco, um perigoso fugitivo da sociedade, e da qual trazia manchas, tristices, paradoxos. Mas jamais o reconheceriam humilde entre humildes. Estava diferente. Era diferente. Era outra pessoa. Mudara-se radicalmente antes mesmo de se restar ali. Dormindo na rua, fazia parte de uma natureza sábia que os homens corromperam. Mas se tinha que ser assim, assim seria. Era propositalmente um excluído. Para ser aceito? De qualquer maneira, foi entrevistado certa feita, sem querer, de passagem por um viaduto, por um polêmico programa de tevê sensacionalista e inócuo. Mas falara muito pouco e rasteiro, para não dar na vista. Aleijara-se de Ser? Os dentes estava apodrecendo. Sentiu-uma fisgada feito cólica abaixo da barriga e supôs que estaria com alguma hérnia, quando não com uma virose incômoda. Porque uma diarréia já o assaltara, depois de uma acidez por causa de restos de alimentos vencidos, além de intoxicações de todo tipo, já revelada na epiderme virulenta. Mas aceitara aquilo também. Fazia parte da entrega. Viveria entre ratos, entre monturos de lixo, entre esgotos, encostado entre cortiços, ruelas, becos, guetos. Era um marginal agora, ora. Mas, de alguma forma, paradoxalmente instintiva, apurando os sentidos da própria sobrevivência, de alguma maneira sentiu-se de certa forma em perigo. Tinha aquele dom apurado de novo. O bendito instinto. Havia gente 33 perguntando. Será o impossível? Seria algum escritório de detetive a procurálo de todas as maneiras? Estava assustado, inseguro, medindo situações, consequências e limites espaciais, inclusive para fuga desesperada. Certa manhã deitara sob um mostrengo viaduto sujo chamado popularmente de Minhocão, lados do centro velho de São Paulo, sentido do Largo do Arouche, área de rapazes de programa e prostitutas da pior safra possível. Com sua sacola de restos de feira, jornais antigos, cobertores encardidos de cerotos velhos e uma moringa de plástico cheia de água que catara numa torneira externa de um consultório de dentista, certa feita caiu rendido de cansado para dormir, mas quando acordou estava estranhamente atado no leito de um hospital cheirando a pinho-sol, entubado de forma incômoda, amarrado à uma cama de ferro do que parecia de UTI e ainda sob sonda e soro. O que era aquilo? - O que estava fazendo ali. Pareceu-se sedado. A cabeça zumbia. O espirito parecia refrigerado. Ouviu choros baixos, conversas vindo do lado externo. Parecia que, ligado ao aparelho, ao mexer-se ou se denunciar tecnicamente acordado, recém desperto, chamara de alguma forma a atenção para si. Era a tecnologia cara de bem montado aparato hospitalar, ao contrário do que tinham os hospitais públicos e suas filas como se caminhos para matadouros. Era só um pesadelo. 34 SEIS “Amar o castigo imerecido/Não por fraqueza, mas por altivez/No tormento mais fundo o teu gemido/Trocar num grito de ódio a quem o fez/As delicias da carne e pensamento/Com que o instinto da espécie nos engana/Subpor ao generoso sentimento/De uma afeição mais simplesmente humana/Não tremer de esperança nem de espanto/Nada pedir nem desejar senão/A coragem de ser um novo santo/Sem fé num mundo além do mundo, e então/Morrer sem uma lágrima, que a vida/Não vale a pena a dor de ser vivida”(Soneto Inglês Número Dois – Manuel Bandeira, l886, l968) -Pai, o que o sr. fez de sua vida? O senhor quer nos matar de vergonha, é? Pelo amor de Deus! Eu não acredito! Ai meu deus do céu! -Pai, não é possível? O sr. está ficando louco? O quê está acontecendo? Onde já se viu isso agora? Isso não pode estar acontecendo com nossa família! -Vô, o que houve com o sr?. Por favor, fale conosco. Sonhei que o senhor tinha virado lunático de carteirinha. O pai está fulo por causa disso. -Pai, a imprensa inteira está lá fora. O psiquiatra ficou de vir hoje! O Dr. Israel foi acionado num Congresso da Geórgia, Estados Unidos. Ficou de fretar um bimotor e vir vê-lo. Está trazendo remédio testado num laboratório espacial da Nasa. 35 -Pai, o terapeuta recomendado pela Dra. Cidú ficou de passar aqui, junto com os Diretores Social do Rotary e do Lions Club. Ligaram do Clube de Pinheiros, da Gazeta Mercantil e da Rádio CBN Notícias. Um bando querendo saber como o sr. foi encontrado, se foi sequestro, como o sr. acabou um mendigo, se o sr. está de miolo mole ou se foi pagamento de promessa à Santa Edwiges ou Santo Expedito, como correram alguns boatos marotos a respeito, numa famosa revista de fofocas socais. -Que vergonha, papai. O quê foi que deu no sr? Quase morremos de preocupação. Tive que cancelar meu estágio em Haward. Será o impossível? Paulo de Tarso não disse uma só palavra. Não precisava. Não queria nunca falar mais com eles. Não queria estar do lado deles ou no meio deles. Tinha outra oferta de vida. Era outro para sempre. Podia sentir isso dentro de si. Vira, ouvira, descobrira - aceitara a rua da amargura para purgar-se e preparar-se para estar no reino dos céus. Aquilo tudo ali de luxo e confeito social era enfeite, vaidade, espetáculo, circo-horror-show, destempero, falta de senbilidade plural, comunitária. Não tinha nada mais a ver consigo. Era um estranho entre os seus descendentes de sangue? Depois de conhecer a triste rua da amargura, sentiu-se um estranho no ninho. O luxo, a riqueza, tinha um cheiro rançoso de mofo, de formol, de arrogância, de poses sem escrúpulos, de lucro fóssil, de arremedos de seres. Fantoches, era o que via. Era o que realmente todos eles eram. E tinha sido um por tempos, também. Pensou na primeira e legítima esposa. Esta sim uma dama de primeira grandeza. Tinha certeza de que ela aprovaria sua decisão; talvez o acompanhasse solícita e eficaz nessa empreita a caminho dos braços de um Deus-Criador. Teve urdida piedade de seu clã, um por um, como bem os mediu acostumados a enfeites, poses, espetáculos sociais jogos de cena, maracutaias, embustes financeiros, arapucas com verniz de parte atrelada de uma mídia tendenciosa. Teve muita pena. Quase arrependeu-se de os haver semeado na tábua de carne da vida. Era o legado genético de sua miséria íntima? Mas não podia fugir do lugar que estava. Pensou mas remediou-se. Sofreu perguntas, abraços, toques, gestos, injeções, recados, punções, inflitrações, pingos de suor, lágrima e sangue próprio. Sofreu transfusão, lavagem, curetagens. Mas era como se tudo aquilo ali não lhe dissesse respeito, como aquilo tudo não fosse com ele; como se fosse alheio às formalidades de ser um homem e sua circunstância. Compreendeu perfeitamente que para ele aquilo tudo era passageiro, reles, trivial. Logo estaria de volta para os seus verdadeiros irmãos. Era um estranho em sua própria familia. 36 Ficou dias rendido ali, nunca respondendo nada, mal-e-mal tomando uma sopa rica em vitamina e carbohidratos, fechado em si, como se caça e caçador de seu próprio rumo. Antena ligada. Sem pregar direito o olho viciado em cair fora, escapulir, sondar o devir para um anoitecer perto. Sondando. Desanuviando o espirito atribulado de refém do circo-horror-show que sua estadia provocara. Não atendeu telefonemas, emissoras de rádio, repórteres com perguntas tolas ou jonalistas de tevê querendo um furo de reportagem, mal grunhia um boanoitar inteiro, mal defecava quando imperiosamente inevitável, e só tomava remédio porque vinha com agulhas e não tinha como estapear, defender-se. Apenas grunhia, rompendo o silêncio de sua dor terminal. Mas não era um homem de aceitar jugo ou vara. Saberia a hora de sair-se de si. Avaliava o pulso crucial desse momento que montaria de forjar. Compreendia que não importava como fomos criados, o que determinava o modo de agir era a maneira como administrava sua vontade. Compreendia que era um ser e suas circunstâncias; que deveria ser a soma de todas as suas vontades, que assim regiria sua maneira de viver e de morrer. Compreendia finalmente que a vontade é um sentimento, um talento, algo que entusiasmava. A vontade era algo que se adquiria, nem que para isso levasse a vida inteira. E ele a adquirira com um susto, um enxergar (há quem tem olhos e não vê), uma quase visão terreal. Entendeu que, desde o instante que viera ao mundo, as pessoas diziam que o mundo era assim ou assado, o que deveria fazer, dessa ou daquela maneira. Por algum tempo acreditara num circo-horror-show armado ao seu derredor, no seu convívio de todos os tipos. Mas tinha deixado regras, normas, conceitos, tudo isso de lado, e descobrira sua maneira própria, singular, pessoal, de ver a realidade E compreendia ali, uma frase da canção do cantor cearense Belchior que dizia: “...Não se preocupe, meu amigo/Com os horrores que eu lhe digo/A vida realmente é diferente - quero dizer/Ao vivo é muito pior!” Ele sabia e tinha em si o peso dessa dura sapiência. Na sua sua solidão-cangalha, com seus cadernos manchados de vida, de sofrências e desespelhos, entre tantos outros despojos de sua lírica de vegetar na boca de inferno da vida, escreveu um poemeto que dizia assim: 37 Anos 60 Fugi do colégio interno Fugi do quartel inferno Fugi da ditadura de farda, gravata e terno E assim, poeta do lixão capitalista pós-moderno Finalmente me descobri: Ser Humano com pedigree! Assustou-se, no entanto, dias depois, ainda sendo pensado com exagero, conforme considerou já com razoável noção de saúde recuperada, quando foi procurado por um gordo espírita de mesa branca, cheio de verdades empacotadas pra consumo frívolo, depois um padre tolamente neocarismático e pegajoso com sua toga viciada em querer ser mais que o Mestre Carpinteiro, depois um pastor loquaz e inconveniente, e, finalmente um psiquiatra que mais parecia o próximo paciente da camisa de forca do que um especialista em problemas mentais, que achavam que era o que ele tinha. Segurou o riso de desdém o mais que pode. Controlou sua braveza. A estratégica tinha que ser outra, entre pseudo-donos da verdade, intuiu. Como não respondeu nada e à ninguém, foi dado como meio esquizofrênico, fora de órbita. Um caso perdido. Demência e senilidade precoce, rotularam uns. Até remédios possantes para esse fito de cura receitaram. Recomendaram terapias alternativas, estrangeiros livros de auto-ajuda, tratamentos de choque, “viagens” de regressão a vidas passadas, homeopáticos arranjos florais, periféricos centros de macumba, sais arimáticos, viagem à um Hospital Geriátrico de Genebra tão freqüentado por empresários comprometidos com a realidade da cobrança do tempo e cheio de decadentes artistas ultrapassados ou em fim de carreira. Aceitou esse diagnóstico como se fosse um véu, uma bruma de honra. Mas como não tinha mais nada de bem ou de posses – os 38 filhos pagavam os caríssimos tratamentos – mal teve um momento de ocasional e oportuna chance, caçou o velho pente vermelho de plástico, um lenço lavado com cavalos negros bordados em alto relevo, um par de chinelos cor de abóbora – a Enfermeira Chefe ao dar-lhe obrigatório banho fora descuidada - sua única nova roupa de grife nova comprada pelos parentes nervosos, deu um jeito serelepe de parecer encorajado a ver o sol que serpenteava lá fora, fingindo passeio distraído vagou corredores de lavadíssimo mármore branco que cheirava a limpeza recente, disfarçou a roupa esquisita que estava larga pois não tinha sido provada e nem lhe assentara bem pois estava meio esquálido, entrou em lugares inacessíveis a pacientes como ele, disfarçou nódoas de intenções, escondeu-se em almoxarifados e lavados comunitários de funcionários de terceiro escalão, depois a oportunidade deu uma chance brusca e ele lepidamente como um guri de Itararé caçando sarna pra se coçar pulou a janela do primeiro andar da clínica sediada no bairro do Brooklin. Fugiu. Foi para a rua de novo. A rua era seu sagrado lar. Mas, tinha, ao seu jeito, aprendido uma nova lição. Poderiam achá-lo de novo. Sim, era isso. Poderiam caçá-lo como a um bicho doentio. Da próxima vez – repugnou-se a pensar que houvesse outra chance de ser pego - então seria internado talvez num sanatório fora do eixo Rio-São Paulo, teriam-no com camisa de força e tudo, talvez num asilo de débeis e imprestáveis, quando então nem pudesse mais ser o que era, ou sequer cumprir a missão para a qual fora chamado e aceitara responder, se propondo a passar por aquilo tudo, servindo ao próximo e amando-o como se à si mesmo. Tinha que mudar as coisas. Fazer suas próprias regras. As normas ele sempre as quebrara, quer com determinação, opinião própria, suborno, status ou violência. Não deixara de ser muito pobre, para ser muito rico, por acaso. Soube apenas, de ouvir-dizer, que a imprestável mulher Dagmar Marlene já se envolvera naqueles meses em que ficara livre de papel passado e montada em grana, com um ator de filmes pornôs de terceira categoria, e tivera dois filhos de envolvimentos assim, no temo que ele vagabundeava pelas ruas da amargura, tentando se encontrar. Em família, ganhara alguns netos novos, o filho caçula sofrera um acidente de jet-ski numa praia da Grécia, o escritório que vendera pegara bom preço e tinha agora a direção de mafiosos coreanos, seus bens pegaram boa cotação no mercado de oferta e procura e todos 39 ficaram seguros e ricamente satisfeitos. Como ele era adorado pelos amigos, pela família, fora difícil achá-lo de novo, mas ele sabia fugir. Que lugar é o esconderijo perfeito do nada? Onde poderia ser útil e ao mesmo tempo ler sobre alguma coisa eu e lhe preenchesse um vazio? Queria ler sobre tudo. Mistérios, filosofias, historias, física quântica, Idade Média, Religiões, tudo. Queria saber do lado Muçulmano, Islâmico, Judeu, Budista e tudo mais, de ver o mundo. O homem, afinal, não era esse imenso ponto de interrogação pendurado à beira do abismo de sua insegurança existencial? Lembrou de ter sabido sobre um mosteiro de Capuchinhos Descalços num sítio ermo lados da serra do Mar, sentido das primeiras curvas da estrada de Santos. Onde lera alguma coisa a respeito? Devorava jornais, livros, mas nunca os que tivessem a ver com o espiritual, o sensorial, o ser humano e suas circunstâncias. Era bom em romances, clássicos, essas coisas. Pois, ao invés de correr o risco de ser pego de novo, sedado e até sendo inconvenientemente trancafiado num hospício até bater as botas, ganhou rumo, à pé, com um novo peregrinar, em busca de uma ocasional reclusão que se lhe permitisse servir a Deus mesmo que numa duvidosa forma de religião ou campanário, além de o ajudar na recuperação física e preenchimento espiritual, mas, pelo menos ali, ao seu modo, seu jeito, seu gosto, tentaria de novo oportunamente ganhar as ruas e ajudar os pobres, com sopa, com agasalhos, com remédios, com a palavra de Deus. Era uma decisão nova em estágio seguinte de sua busca de si mesmo. 40 SETE O Mosteiro dos “Capuchinhos Descalços” ficava perto de um eito de mata atlântica, à beira do lado ermo da represa Guarapiranga, perto do fim do planalto paulista, bem adjunto de onde se precipitava o relevo e o geo-físico entre neblinas ocasionais forçava abruptamente a descida da serra, sentido da área beira-mar do litoral sul paulista. Um lugar calmo, verdejante, tranqüilo. Um pedaço bonito de de terra. Um pedacinho do céu? Na verdade, um Mosteiro antigo, segundo lendas de tempos coloniais, fundado por um filho bastardo de Padre Anchieta com uma índia antropófaga que tinha sido convertida às escondidas quando o engordava para proposital abate em cativeiro, e que ministrava teologia, filosofia, e que também recebia recrutados pobres jovens seminaristas de todo o Brasil, quando poderiam numa ala fazerem ou não votos de pobreza e total reclusão (quando seriam, então, levados para serem depositados em confinamentos peculiares), mas com todos ali bem atarefados e totalmente reclusos, rezando estribilhos decorados ou trabalhando na lavoura de subsistência, sem água encanada, sem luz elétrica, apenas livros em quantidade enorme, começando as atividades diárias ao mal arrebentar-se das avencas aurorais do sol, até a última luz do crepúsculo baixo, quando todos rezavam uníssonos numa prece usual de prática decorada e pouco útil, praticam cânticos religiosos ao som meio fanho de um órgão antigo trazido do Vaticano e depois de uma sopa de fubá engordada com nacos de peixe de água doce criados em eios próprios, quando, finalmente, iam dormir com senso do dever cumprido, de terem sido ordeiros servos de Deus e oradores vigilantes imperiosos das intempéries do mundo Pois foi ali que um dia, um sr. de nome Paulo aportou com calça blues de grife larga para o seu número, sandália havaiana cor-de-rosa (era de uma enfermeira desprevenida que saíra fumar fora do quarto), a roupa de cima uma espécie de camisa de pijama em listras de branco e azul-celeste. O homem de jeito cândido mas bem maleixo de aparência tinha a barba novamente por fazer, estava com os cabelos calvos na fronte mas longos e mal cuidados de lado, tinha uma humildade no gestos seguros e foi bem notado, pois naquele lugar nada acontecia de diferente, tudo era sempre chato, apenas o barulhar diário da jandaia alvissareira querendo amendoim e alpista, o surgimento de esquilos e lagartos serelepes, mais, aqui e ali, o aparecimento 41 predador de uma onça pintada meio morta de fome a atacar o farto galinheiro dos freis meio obesos de tanto se empanturrar de comidas com banha de porco e falta do que mais fazer de bruto, pesado e útil. Uma estradinha maleixa saía da beira da represa. Para chegar até esse início de picada, só conseguindo carona com um pescador de bote inflável, ou, alugando uma lancha para esse propósito ali no pier da represava. Pois Paulo conseguiu uma carona com um boy que ia buscar o pai que cevava a bebericar aguardente com losna numa ilha de areia próxima, onde se deleitava tomando pinga macerada de ervas e pescando antes da mudança de lua quando a ceva era mais fácil e a pesca régia e farta. Pois ali desceu o tipo estranho que mais parecia um pedinte, um coitado doente, como intuiu o rapaz viciado em Coca Cola diet com seu walk-mam cheio de musiquetas idiotas e cabeça vazia de boas intenções a respeito da curiosidade que lhe atiçava o páreo do momento. Mal o curioso Paulo desceu na espécie de chácara de ermitões, foi notado com carinho, de longe, por um irmão, o esclerosado e doce Frei Joshua (ali os internos escolhiam um novo nome, se quisessem) sempre de mente aberta, instinto aguçado, coração abatido mas espírito de luz irradiando fim de vida próxima. Quando chegaram outros internos, quando viram que o tipo estranhamente não tinha sido anunciado por carta ou pelo precário radioamador movido por bateria, chamaram o Monsenhor Frei Lázaro, o superior mandatário ali entre eles, que veio saber de que curioso ocasional se tratava, ou se era mais um perdido a se escorar ali. Não haviam muitos à luz do dia nas imediações. O local recebia ladrões noturnos, visitas inoportunas, pescadores bêbados perdidos, náufragos que se salvavam por um milagre das profundezas da represa, ou mesmo alguma autoridade religiosa trazendo um novo irmão querendo servir à Igreja (à Cristo?), ou mesmo vinham em busca de dados clericais importantes, alguma reportagem mística, ou mesmo algum remédio artesanal caseiro, quando não gostosos licores, frutas sem química, ervas raras, legumes todos puros que algum Cardeal, com saudade da terra caipira ou remota de origem, mandava buscar com sua lancha possante ou mesmo com um helicóptero da Santa Madre Igreja. O carismático Papa Dom Paulo Segundo, para ali fora certa feita de noite, escondido da mídia, à sorrelfa, beijar os murchos pés dos Capuchinhos Descalços, quando recebeu de presente mel silvestre de abelhatiê, licor de melissa cruzada com hortelã, rapadura de mandioca-brava, bagres defumados e curtidos em salgo grosso e uma cruz média feita em cera de nó de pinho, onde o rosto torto (e deformado pela veia e corte do entalhe) de 42 Jesus Cristo Crucificado tinha o rasgo de dor mais triste que qualquer ser humano vira em arte neorococó. Não era identificado o escultor talentoso entre eles, pois tudo pertencia à Cristo, disse o Monsenhor, feliz com o sentimento de aceitação tão pungente e agradecida, de tão importante autoridade da igreja. Pois, embaixo de uma amendoeira secular, o estranho no ninho, o esquisito invasor Paulo sentou e esperou silente, cômodo, contemplando o casario a menos de mil metros, com cães vira-latas presos e latindo sem parar, mutuns ribeirinhos mordendo-o no branquelo calcanhar descalço, um sol já merreca vestindo as calças curtas do horizonte enuviado, meio cor de fogo, mais o ambiente carregado arrebentando um cheiro de pão caseiro, somando a todo esse aparato natural com umas cantorias sacras de um coral mavioso e plangente que punha céus na sua esperança de leigo procurando demão de luz íntima. Esperou pelo menos meia hora, como se fosse parte da natureza em paz, quando viu aquele velho todo calvo, algo obeso, barriga saliente, descalço e de pés grandes e chatos a pisarem a mal cuidada grama verde, entre jacintos sem cuidado, vestido com um macacão marrom escuro que tinha uma touca, tudo de um pano grosso, na verdade um hábito costumeiro ali, mais um cajado de vara meio torta na mão direita, um crucifixo de arame farpado preso ao largo peito peludo como se de um montanhês arfando por causa de ar rarefeito caçando a ovelha perdida do redil dos céus. Mal viu o idoso dirigir-se à si, quase pisando margaridas do brejo, restando-se sem caminho de retorno (a lancha tinha se ido há tempo), os cães pararam de latir no tropel todo, a ferroadas dos porvinhas de beira d’água calaram o violino doloroso, e Paulo levantou-se sorriso completo nos olhos esbanjando expectativa de felicidade pretendida, cuidando que aquele servo especial de Deus lhe abrisse uma outra porta de necessária solidão sacrificial que fosse, para que ali pudesse estudar as coisas de Deus e dar testemunho de sua busca, em seu precário estado de necessidade. O Monsenhor prudentemente parou a menos de dez passos, sondou o estranho de forma calma, sorriu um sorriso novo e quase que desacostumado de sorrir inteiro, olhou a água manchada de espuma verde e puxou conversa, sem estar muito a praticar aquilo com quer que fosse de estranho naquele paraíso : 43 -Esse rio está cada vez mais poluído. E a cada dia piora mais seu estado. Que tristeza me dá vê-lo assim desse jeito imprestável! Paulo esperava um pito, uma reprimenda ou uma saudação de boatardar, não um comentário assim, sem mais nem menos, como se encruado do contexto todo. Achou engraçado. Mas respondeu, na contramão da conversa já iniciada feito faca torta em mão de bêbado ou em prumo errado: -É o mal que o homem faz à si mesmo, destruindo as coisas de Deus, quebrando o sagrado equilíbrio da natureza. Disse isso e o coração disparou. Uma lépida tesourinha alvinegra cortou o horizonte na altura turva que a vista curta, doente e cansada alcançou Nem entendeu direito como aquilo soou, de improviso, sem pensar, sem mais nem menos. Era Deus pondo lenha na fervura de uma maduração de encontro e diálogo? Sondou essa hipótese. Como se fosse uma senha divina, o pacato Monsenhor sorriu modesto, disfarçando a surpresa. Mas gostou muito da resposta. Prosseguiu – era um teste? – ao seu jeito esquisito de travar elo de conversa fiada, fora de propósito que fosse: -Se não chover hoje, chove amanhã. As chuvas abençoam os teréns de terra vermelha. São os desígnios do Criador. -Com sol ou com chuva, toda a terra louva ao sr.- disse Paulo, como se fosse só um rebatedor de íntima voz do Espírito Santo o guiando na fervura do encontro tão delicado. -O sr. não foi convidado mas precisa ser benvindo. Temos essa fama de agradar a todos que batem à nossa porta. Na casa do Pai há muitas moradas. -Tantos são convidados para a ceia do Senhor, mas muito nem chegam a atravessar os riscos de uma travessia para tentar. Paulo respondeu isso e, por algum motivo, incomodou-se daquele diálogo sem eira nem beira. 44 -Esse é um lugar de retiro, de privações, de escolhidos a dedo. Não é para qualquer um... -O dedo de Deus toca o coração por dentro?. O dedo de Deus toca no mais íntimo e inimaginável de nós? O Monsenhor brincou um pouco com o cajado, fez umas firulas com aquela pedaço de pau envernizado de suor, depois deu, finalmente, tom de formalidade central e peremptória ao inusitado encontro: -Bem-vindo em nome de Jesus Cristo e da Sagrada Virgem Maria. Como o sr. se chama? A que devo a honra dessa visita não anunciada? -Vim buscar paz, irmão. E também tenho um pouco dela. Vim buscar conhecimento de Deus, pois só tenho conhecimento do mundo vil. Vim buscar luz para meu espírito, pois sempre vivi por invirtudes. Vim buscar a benção para a minha alma, que quer a salvação, pois eu sou um nada na cumbuca do nada mundo. Vim pedir leito, pão, fermento, sal, corote de fé e ainda dar-me de serventia. Nada tenho para oferecer a não ser minha vida hoje feita uma cumbuca vazia. Tampouco nem posso pagar, mas sei que posso ser de alguma valia física... E Paulo de Tarso foi falando, como se fizesse um discurso decorado muito tempo, quase que declamando – gestual, verdadeiro, solene – para o rio, as árvores, as borboletas brancas, as gardênias, as nuvens se fechando, a mata atlântica, as formigas saúvas, as flores de pessegueiro, os pernilongos, os pardais alvissareiros num laranjal próximo. Afinal, era um homem instruído. E ali, mais do que nunca, com a graça de Deus, era também um abençoado. O monsenhor serenamente ouviu aquilo por uns minutos. Quando Paulo parou de falar, após dar o nome e se dizer um antigo mendigo, morador de rua, agora um pedinte da graça de Deus. O religioso, macaco velho, viajado – mas sentindo ali uma aura de luz, uma energia santa na voz, um halo diferente – encorajador ao seu jeito, replicou cândido e já meio implicante: -O sr. Paulo fala bem para ser só o que diz que é. Mas isso não importa. Temos leite e pão, vinho e pão, água e pão, amor e pão, Deus e pão. O quê o amigo deseja o meio de nós? Fique à vontade. 45 Paulo não esperava aquela espécie de interrogatório esquisito e fora de propósito. Não fazia sentido mas era ao mesmo tempo gratificante e engraçado. Uma toleima? Calou fundo a pergunta, e deixou que a resposta viesse como um pacote pronto do mais fundo de si: -A graça de Deus me bastará. A graça de Deus será meu dínamo. A graça de Deus fará meu cálice transbordar... Quantos dias o amigo quer ficar, porque veio realmente e quanto quer de estadia, qual o mistério que o trouxe com a mudança de tempo – o sol parecia vestir um pulôver escuro de nuvem, relâmpagos parecia ferroar de flashs do Criador mirando a terra - São Pedro parecia estar mudando os móveis de lugar. Um vento de chuva varreu as árvores que parecia bater palmas para aquele destino de encontro. Salvas anunciando tempestade? Mal o Monsenhor foi dizer alguma coisa no improviso da situação, alguns pingos pesados começaram a peneirar aqui e ali, no tabuleiro do beiço da tarde e gola turva da noite. O Monsenhor estendeu a mão gorda e peluda ao estranho, e, ambos, seguiram no sentido da segurança que o Mosteiro ali naquela ilha de isolamento tendia a representar. Por várias horas, aquela noite, à beira de um fogão de lenha sempre mantido aceso por grimpas de pinheiros e lenha verde a crepitar o ranço do fogo, quase cem capuchinhos, todos com o rosto coberto menos a face frontal, ouviram a história daquele Paulo que, invertendo o papel do maior pregador dos evangelhos de Cristo, queria vir ali para ser o Irmão Saulo, e assim achar seu caminho. Espírito, alma e coração, precisavam da engenhosidade de Deus. Explicou que, como Santo Agostinho, entendia que Deus falava com ele por meio de sinais. E que era uma linguagem individual que requeria muita fé, sentido tácito de compreensão e observação acentuada contínua, requerendo até certa disciplina e radar sensorial para ser totalmente absorvida como deveria. E ele tivera, para construção de sua alma, quatro forças invisíveis, o amor, a morte, o poder e o tempo. E o tempo era seu fermento ali, até porque compreendia que o Criador julgava a árvore pelos frutos, não pelas raízes. E ele estava começando a criar seus brotos de nova floração. Quando terminou, ninguém bateu palmas, claro – e era uma história e tanto – mas o Monsenhor disse Aleluia e todos disseram um ensaiado Amém uníssono, fizeram depressinha o sinal de cruz e, depois, em ordeira fila 46 indiana se dispersaram, caminho dos aposentos quentes, com certeza de que aquela história era sobre o mais belo “chamamento” divino que ouviram. Estavam impressionados. Monsenhor deu uma chave ao noviço e só disse: Quarto Dois, primeira porta verde à direita. Intimamente abençoou-o, boanoitou sonoro com sua voz de trombone contrabaixo, depois girou nos calcanhares e ganhou busca de seu recolhimento em quarto especial. Não era acostumado recolher-se depois das onze. Paulo entrou no corredor vestido de silencitude e logo viu a porta próxima, de imbuia torneada, envernizada à mão. Abriu-a e viu que mal era um cubículo de dois metros por quatro, com uma cama de solteiro, de arame e capim, um travesseiro de palha de arroz, uma janelinha que dava para o breu noturno, uma espécie da prateleira onde havia um velho lampião Aladim movido a óleo de cozinha de terceira categoria aceso com pavio curto, fogo baixo enchendo de melancolia o ambiente humilde, um jarro de barro vermelho grande com água potável fresca, uma toalha feita de saco de farinha de trigo com as iniciais bordadas J.C. (Jesus Cristo), uma Bíblia de Jerusalém(*), um pote de barro imitando cuia cheio com arroz-doce, um crucifixo de arame farpado igual ao dos demais preso perto da cabeceira da cama, e, no chão rústico de terra batida mas limpa – todo o casario era assim – um grande penico branco usado com pequenas pinturas de desenhos de primitivas âncoras azuis. Paulo ajoelhou-se ao redor da cama e chorando orou um pai-nosso. Estava tão cansado que ali, reconfortado pelo cheiro de silêncio (foi assim que entendeu de entender), adormeceu pesado sem mesmo se despir, sem fechar a porta, sem fazer alguma espécie de asseio precário mas de necessidade, pois a cama tinha lençol e fronha do mesmo material da toalha, e, além de um grosso corta-febre, era o que lhe daria o calor naquela noite chuvosa que prometia esfriar. Pois dormiu como um bebê-cavalo. Parece até que desmaiou seu pesado corpo feito um pacote de culpas. De manhã acordou ouvindo sininhos e pensou que lhe soavam no íntimo. Havia uma serenidade de imensa paz que vestia o ambiente de luz. Era a sintonia fina de seu reencontro consigo mesmo. 47 Acordou assustado – tinha baba no lábio inferior, remelas como goma arábica seca abaixo dos olhos e uma vontade enorme de fazer xixi – com os alvissareiros e curiosos irmãos de meio brincando com seu estado mal assentado ali, cara de boi lambido, disse um, Soneca, comentou outro, aludindo a um personagem anão da história da Branca de Neve. Paulo levantou e bondiou alegremente a todos. Todos responderam mas um deles, assomou-se, se adiantando, quando apresentou-se: -Sou o Irmão Leonel, só quero ser Frei, não padre. Vamos tomar banho ou o sr. prefere ir direto pro café quente com pão quente de torresmo e manteiga caseira?. Paulo não respondeu. Apertou a mão do simpático jovem seminarista e só disse: -Tenho que tomar banho, mas não tenho sabão e só tenho essa muda de roupa que trago comigo. Eu mal tenho à mim mesmo, confessou, rendido às evidências. Um deles adiantou-se e lhe deu o mesmo uniforme padrão, capuchinho marrom, tamanho médio, depois uma sandália de couro cru também – riram um bocado de sua havaiana cor-de-rosa – e um outro tomou-o pela mão dizendo que o levaria ao banheiro coletivo, dando-lhe meio sabão de cinzas. Lá fora o sol ardia. Pássaros teciam a anunciação auroral. Havia um cheiro de cedro no ar. O ambiente da casa era de estilo colonial por dentro, com janelas largas de batentes de ferro torneados com arranjos artísticos. Enormes girassóis lá fora pendiam como se anjos feitos de coalhos estéticos de sol. Alguém começou a literalmente cantar um salmo conhecido em latim ou grego. Um cheiro de chá de erva-cidreira com hortelã encorpou o ar. O Monsenhor passou por ele com uma baita cesta de flores silvestres e só disse: -Já acordou o homem que veio com a chuva? Bom-dia, servo noviço. O Senhor esteja convosco. Está um belo dia hoje. O sol já mostrou sua crista límpida. Agora Paulo, ou melhor, o Irmão Saulo, não estava inspirado nem tocado por obra do Espírito Santo de Deus. Mas não perdeu o estilo e disse: 48 -Bom-dia Monsenhor Recolhedor de Flores para Deus. Toda graça de cor é obra divina. Que a paz esteja conosco para sempre. Todos entenderam perfeitamente que ali estava alguém especial. Era o começo de um novo ciclo para Saulo e sua vontade de encontrar a Deus. -0- 49 OITO Para cada um dos noventa e oito internos mais alguns serviçais leigos, contado com o Monsenhor, havia uma própria captação inerente e entendimento peculiar da “história” do Irmão Saulo. Ele contara, sem reservas, a sua vida, os seus sucessos, os seus descaminhos, as suas ousadias, tudo isso em rápidas pinceladas. No entanto, na parte que contara o que vira do alto do edifício, montara sua versão limite para passar adiante, de que vira, entre as almas caridosas que atendiam os carentes, distribuindo comida, sopas, roupas, cobertores, vitaminas, Anjos “alados de luzes” como se fossem eles que estimulassem, de alguma maneira, aquele serviço de caridade e humanismo aos abandonado de toda sorte.. Também não deu a sua maravilhosa “versão própria” (conhecimento exacerbado – visão total do que realmente estava inteiramente havendo ali, em intenção e propósito divinal), o que poderia acrescentar horas mais de como chegara àquele compreender exacerbado, imenso. E poderia provocar risos de alegria, comoção em lágrimas, aleluias e até manifestações de línguas estranhas entre eles, tocados pela magnifica esperança que poderia fazer a todos compreenderem que a espécie humana estava salva, que as profecias se cumpririam, finalmente, que aquilo era o maior Milagre da história da civilização humana, da humanidade, dos descendentes de Adão. Não, essa parte o irmão Saulo pulou. Eles não compreenderiam como ele. Eles não estariam preparados? Precaveu-se em guardar sua versão estimulada pela sensibilidade extrema então redesperta, depois que fora atrofiada pelo lucro, pelo poder, pelo status quo institucionalizado sem ética. O que contara, sem mentir, lhe bastara por enquanto. Se pudesse – e acreditava piamente nesse hipótese – um dia contaria tudo e inteiro. Talvez num livro. Iria esrever um com tantos arscunhos-despojos diários, tantas anotações garatujadas às pressas? Talvez saíssem pelo mundo pregando a boa-nova. Talvez glorificassem à Deus, talvez comunicassem ao Papa, talvez fossem em busca do que ele vira, tentando um contato imediato, tentando benvidá-los à terra, tentando fazê-los crer que contavam com a bendita volta, que o homem valia a pena, que alguns se escolheram ser escolhidos e, fiéis filhos de Deus, dariam testemunho da fé, dariam testemunho de vida, fariam acertos, talvez até se encarregassem – quisessem ELES – os apresentariam às autoridades, seriam 50 elos de ligação e, então, graças à Deus, o mundo inteiro se converteria, seria todo um planeta cristão, arrebatado nos ares, bilhões se ajoelhando à presença angelical e sublimes deles , e então – e esse seria um outro grande milagre – o mundo inteiro estaria salvo do limbo, convertido, o mundo inteiro estaria resgatado, o mundo inteiro seria o Paraíso!. Todos por Deus? Não, Paulo de Tarso não contou tudo e de forma completa. Sabia que não era hora ainda. Podia compreender bem isso. Era muito saber que mal continha inteiramente em si, mas, macaco velho na tábua de carne da grande lição que é a Viagem de Existir, compreendeu que teria uma situação apropriada, um momento positivo e definitivo para tudo isso. Precisava “limar” muito bem em si, o que vira. Para que tudo coubesse dentro de si. E então poderia adaptar tamanho ver à limitada compreensão da miserável e finita espécie humana e, decodificada em palavras de uma hermenêutica entendível, então, em prosa narrativa ou poesia prosaica, em versos, salmos, cânticos ou louvação, diria aos seus irmãos da espécie o novo destino do homem. A nova saga angelical da espécie humana. Tudo a seu tempo. Diria ao mundo a sua versão pura e abrangente do que vira. E isso abalaria os pilares do universo. E isso tocaria o coração mais rude, mais bruto, mais seco. Porque a graça de Deus é milhões de vezes mais forte do que o corte de um imenso e potente diamante-nuclear. E isso precisaria ser elaborado com jeito, com prudência, com importância. No entanto, por outro lado, cada interno seminarista ali, tinha certamente a sua própria interpretação peculiar da pessoa exata do noviço. Para alguns era só mais uma historia como tantas outras. Para alguns desconfiados, um mero burguês querendo salvar a pele. Para outros, mais serenos, um santo que se escondera em cargo, diploma e grana feito um imposto PHDeus. O grupo era heterogêneo, a maioria de sulistas, poucos paulistanos (a religião em Sampa era o lucro, o levar vantagem em tudo) e raros tipos do nortenordeste do Brasil. Alguns assexuados, outros afeminados, com explicita homossexualidade recalcada pela religião ou Fé (o que era menos pior), quando outros também na situação de, usando um termo do sociólogo Gilberto Freire, propensos ao meio-sexo. Havia um tipo que se destacava dos demais, pela cara grande, nariz grande, olhos grandes, cabelos oxigenados, jeito de animal querendo adiar o bote, gestual molenga de maricas recalcado, que, pelo jeito, não tinha ido muito 51 com a inoportuna notoriedade dele, não tinha ido com a fachada do invasor do reduto. O nome dele era Walter Bello. Mas todos tinham sua visão, de acordo com a bagagem, o conhecimento intrínseco do que trazia, do que era, do que de suporte íntimo tinha, o recém ingresso entre eles. Mas, no geral tinham boa impressão e o receberam muito bem, simpáticos que eram e aceitadores de imperfeições, fugas reveladoras e desajustes íntimos e sociais. Só que haviam normas, regras, usos e costumes, ditames usuais e comportamentais, claro, entre eles. O que pouco a pouco iria aprender, na sua breve estada ali, Paulo ou Saulo, foi registrando na medida do possível em seus cadernos. Era a Soma. Como um ritual, toda ponta de noite, com um lápis preto número dois, escrevia e contava, registrando, arrolando. Registrava tudo que fosse importante. Era essa a sua missão? Sim, o mundo saberia, por intermédio de um livro, se fosse possível, a partir de tudo o que relatasse – a partir do que vira – que o mundo tão em pecado, tão triste, tão violento, amoral e injusto, tinha grandes chances de escapar de uma hecatombe, de uma explosão vinda do espaço, de uma nova Guerra Mundial. O amor de Deus era infinitamente maior que o monturo dos pescados até histórico dos insensíveis humanos. Tinha que registrar tudo. Iria registrar. Só esperava não encontrar inimigos, não ser tripudiado, não sofrer o crivo precípuo de um sistema e seus meandros, seus totens. Pois ele contaria, custasse o que custasse. Sua vida era ser arauto de fé e dizer ao mundo de que a Esperança era o verdadeiro sinal de inteligência da Vida. Aquele dia ainda ouviu atento (e tocado por um noviço como ele) tirar uma canção de Ivan Lins no violão, que era um sinal divino de sagração dentro do mais íntimo de si. A música dizia: “Depende de nós/Quem já foi ou ainda é criança/Que acredita ou tem esperança/Quem faz tudo para um mundo melhor/Depende de nós/Que o circo esteja armado/Que o palhaço esteja engraçado/Que o riso esteja no ar/Sem que a gente precise sonhar/Que os versos cantem os galhos/Que as folhas bebam os orvalhos/Que o sol descortine mais uma manhã/Depende de nós/Se esse mundo ainda tem jeito/Apesar do que o homem tem feito/Se a vida sobreviverá...” -0- 52 NOVE Quartos para uma Pessoa: Noviço. Quarto para duas ou três: parentes, mesma origem (região, lugar) – ou ainda concumitantemente até, em fase adiantada de estudo ou por acomodada salutar convivência. Quarto com quatro beliches de até três camas. Pessoas de meia idade, maduros. Uns e outros se cuidando: pensar plural-comunitário. Enfermaria: todos por todos – velhos amigos, na maioria anciãos. Um em cada quarto deste, era o votado líder sempre de prontidão, um plantonista. Atendimento, socorro, desdobrando-se, dirigindo, tomando decisões emergenciais, pedindo ajuda superior ou paredemeia, auxiliando também a área pertinente e ao derredor, num associaçonismo recíproco. Horário de comida certo. De banho, à vontade. De dormir, vale o voto coletivo, na intenção do que falar, do que trocar, do que valesse a pena largar o sono e o descanso de lado para o diálogo. Mas, e isso era grave, agressão até, se alguém cochilasse uma queda só de pálpebra no foro de monotonia, de gesto, de queixo ou gestual identificador de desdita ou falta de atenção do assunto rendido ao diálogo, era acabada a reunião e o “culpado” lavaria roupa de quem estivesse falando por um mês, também obrigatório por voto de silêncio total durante um ano. Quem produzisse mais, ganharia pontos, na matéria Ação Comunitária. Ajudaria na soma para a média da nota final do semestre e depois anual. Repetindo-se apenas uma das vinte matérias, teria que fazer tudo de novo. Terminado o ano, depois os outros quatro ou cinco de estudo, de acordo com o estágio peculiar, característico, de básico (os comuns), intermediário (quase perfeitos) e avançados (estes eram os verdadeiros escolhidos de Deus, quase mitos, tocados, adorados, quase que idolatrados), poderia o irmão capuchinho descalço continuar na casa, mas já como Monitor Diplomado (haviam sete deles ali), professor auxiliar (do Monsenhor – se este deve sua benção de endosso para tanto – haviam dois apenas), ou ir embora – era isso o mais importante, para a Seara de Deus, diziam – quando se tornariam teólogos, 53 filósofos (da igreja), diáconos, freis, presbíteros, mas principalmente e quase na sua maioria PADRES. Ou ficarem para sempre Capuchinhos reclusos no bem-bom cômodo do mosteiro bancado com fundos da Ordem dos Franciscanos, uma sede com ramo para a América Pobre com domicilio na cidade de Paula, na Itália Estes, teriam tratamento tratamento especial no Conselho de Regência da Direção informal. Podia ficar. Mas ficar pode redundar em tédio. Pensava em oração com ação. Os melhores oradores (falando), os melhores oradores (rezando), contavam pontos bons na matéria de Dialética Religiosa. Não se fumava, não se bebia – a não ser um delicioso Licor de Jabuticaba (adoçado na fermentação e preparo com rapadura de coco, junto com rapadura de cravo, canela e laranja – era um deliciosa especialidade única da casa). Assédio sexual, homossexualismo, masturbação constatada, contato íntimo com denunciada má intenção mesmo que implícita, EXPULSÃO Perda total de direitos, pontos, tempos, diplomas. Há jogos: porrinha (palitos), futebol (grama – cinco ou seis contra), baralho (só pif-paf, vinte e um ou paciência), dama, xadrez. Além de exercícios como canoagem (caiaque), natação, ciclismo, pular corda, brincadeiras como pular carniça, bolinha de gude (havia torneios). Soltar pipas. Aliás, estimulavam “brincadeiras de crianças” – queriam despertar o angelical da “infância” no Ser que iria assim, repurado, redepositário da mais magna essência de si, ser um verdadeiro e bravo Servo de Deus. Primeiros Socorros – Paramédicos – Matéria obrigatória, constando na grade curricular. Teriam, todos, que saber verificar focos de doença, sinais, manifestações, além de aplicar injeções, medir pressões, fazer compressas, engessar, lidar com essências, fórmulas químicas, florais, homeopatia, um pouco de acupuntura, análise da íris do doente (e suas expropriações), problemas psicológicos (estudavam pela postura gestual, etc.) Leitura: Tudo – do bom e do melhor. Eram ratos de biblioteca. Aprender a ler os filósofos, os clássicos (tinham a lista dos dez, dos cem, dos mil melhores livros do mundo), além de terem que aprender noções básicas de 54 espanhol, inglês, aramaico, italiano, latim, hebraico, noções de grego e árabe, iídiche (não entendeu por que) e, é claro, português, na maioria gramática, redação e literatura em todas as suas fases, da fase colonial ao pós-moderno. Canto (matéria própria dentro da área de música): De cirandas, folclore, até sertaneja, brega, pop, pagode a cantorias de cantos gregorianos até partes de árias de óperas ou mesmo trechos murmurados de música clássica, de barroca ao Mozart, Bethoven, Lizt ou mesmo Wagner, o louco, como rotulavam esse gênio. Brigas: Há – Se os dois resolvessem partir para as vias de fato, entrar no tapa, deixavam. Quebrava a rotina. Mas delegavam “fiadores” de embates inevitáveis. Quem perdesse a briga (num momento grave apartavam, antes de acontecimentos fatais ou que tendessem a render seqüelas físicas), repetiria de ano, tudo o que estudara ou que iria estudar no ano letivo, não valia nada, não valeria nada. Perdia o tempo e teria que fazer tudo de novo, obrigatoriamente. Quem ganhasse a luta, lavaria os banheiros todas as madrugadas, uma hora antes do costume, o ano todo, para aprender que na vida não havia nem vencidos nem vencedores, apenas uma apurada “convivência”. Ou seja: brigar era estar no mato sem cachorro, montar num porco, em português vulgar, uma “fria”. Louvavam mais a Virgem Maria do que Jesus ou mesmo Deus. Rezas repetidas ao êxtase. Ladainhas sósias. Quase que uma doentia catarse coletiva apurada pela obrigação, silencitude e ambientação ajudando. O Papa quase que um DEUS, imaginem. Muito mais importante, no contexto todo, do que o próprio filho do marceneiro José, Jesus Cristo (que nunca andou em liteira de ouro, não obrigava que se ajoelhassem aos seus pés de sandálias de pescador, nem deixava que beijassem suas mãos, não tinha pompa, vaidade, nem nunca usou coroa de ouro – a não ser uma de espinho que com fortuito espirito de glosa lhe pregaram no alto da cabeça de crucificado.) Mortes: Notificavam o arcebispo mais próximo ou de contato direto e imediato, que legalizava a justa causa (tráfico de influência junto aos órgãos competentes). Depois os cadáveres eram levados de helicóptero (propriedade da Santa Madre Igreja) com Certidão de Óbito, bandeira do Vaticano, duas autoridades referenciais de Cristo, mais os eventuais precários bens do de55 cujus. Os parentes recebiam dez salários mínimos a título de ajuda-de-custo e indenização pela serventia do familiar oferecido à causa dos Evangelhos, da Fé, de Deus. Drogas: Não há – é proibido. Ou, há: lições repetidas (decoradíssimas à exaustão ou histerismo de se acreditar que aquilo era peremptório, única verdade), na chatice de catecismos ainda mais velhos do que os dos tempos dor credos bizantinos. Os CDFs caiam maduros e alienados. Causavam estragos íntimos para sempre. Quase que um open-doping de “igrejismo” apostólico romano, em benefício da Santíssima Madre Igreja de São Pedro. A Bíblia valia pouco menos que os prelados papais. Virtudes: todas e mais algumas. 7 pecados capitais. Teorizadas. Metáforas, figuras de linguagem. Teatro, Festival de Piadas (valiam algumas picantes), Exposição de Artes, Feira de Doces, Churrascos de salsichas, hambúrgueres, peixes defumados e costelas de porco. Bailes de homem com homem. Transvestir-se era cavar expulsão. Exorcismo: aprendiam alguma coisa. Tiveram que exorcizar um Monsenhor abalado mentalmente, senil, esclerosado, ponte de safena, imputável juridicamente, que foi salvo por um milagre de um velho "ancião” do Conselho que o curara de forma irremediável, ao final matando-o. Tornarase Monsenhor no lugar dele, e, após apaziguadas as memórias, estrategicamente foi promovido a Assessor de um Professor Universitário de Direito Romano no Vaticano. Nunca mais se soube dele. Perfumes: sabão de Coco. Tudo cheirava a isso, em reuniões, rezas, banquetes, festins. Haviam alguns outros perfumes florais, como jasmim e outros, naturais. Cuecas e Pijamas (ceroulas). Feitos com sacos usados de farinha de trigo, doados – uma promessa de família – por uma clã de muçulmanos árabes que tinham negócios no mercado da CEAGESP de São Paulo. Trocavam de cueca e a lavavam incontinenti. 56 Suicidas? – Um (inexplicado – arquivo sumido – autoridades subornadas – era um usuário de cocaína que ali se refugiara, diziam uns com voz baixa, na surdina, por baixo dos panos das aparências) Direitos e deveres: Deus versus Deus Café amargo (açúcar cristal ralo), pão artesanal (às vezes pão de lingüiça ou torresmo), mais manteiga caseira feita com leite fresco, de cabra ou vaca, que criavam para consumo. Vacas, cabras, porcos, perus, pavões, frangos garnizés, galinhas de angola, patos, criações de peixes e variedades de pombais (não os filhos do Marquês de, claro) Flores e frutos. Belos canteiros, hortas, bosques e áreas de árvores frutíferas. Bananeiras, laranjeiras, goiabeiras, pessegueiros, amoreiras, limoeiros, e outros frutos. Autoridade máxima respeitada: A verdade (em tese) Mentira confirmada/denunciada: catação de lixo por cinco anos, todos os dias. Todos os lixos. Medo do escuro? Mijão. Medo da morte? Cagão. Medo de Deus? Benção! (Estranhei) Fofoca: Maricas – lavava e passava roupas (ferro a carvão/brasas) do lote semanal do citado em lorota infame. 57 DÁDIVAS -Tempo de casa -Puxar o saco -Primeiro prato (a servir-se – comia-se bem e melhor, nãos os refugos finais de um picadinho movido a salitre coletivo) -Direito a expedir uma carta por mês (as demais, uma por ano, no Natal ou Ano Novo, só. Ou em situações excepcionais.) -Escolher o time (capitão): futebol, cozinheiro, faxineiro, colhedor, extrativista. Os mais craques, apesar de algo obesos, valiam ouro, eram disputados em porfias especiais ou sorteios concoridos para campeonatos internos -Dirigir o ritual litúrgico da missa diária, matinal -Cota extra-dia de Licor de Jabuticaba (pode dispor o que quiser, até reserva para consumo íntimo, próprio, em quarto particular com todos os arranjos do melhor que tinha), inclusive para venda, troca, presente, tráfico para fora do lugar, cessão. -2 Cobertores, 2 lápis, 2 colchões, chinelos especiais: direito aberto de uso para entretimento do Rádio-Amador -Podia trazer parentes e amigos (curiosos tratados como príncipes – mas ninguém jamais vinha ou se propusera a vir ver aquilo tudo, pois estar ali, para pessoas janotas e boçais era quase que um castigo, não um prêmio de aventura, e viam o convite com desdenha, humilhação. -Raspar toda a cabeça (sinal de limpeza, dignidade, sabedoria, grandeza aos olhos de Deus também) -Direito a uso do Telescópio do Mirante do lugar -Direito a voto extra em decisões que envolvessem o grupo, ou exigissem um voto minerva final para decisões cabais -Direito a viagens anuais ao Vaticano, depois de cada ano de mérito. 58 MORTES: Morrer de velhice: beatificado de imediato. Nome no Livro da Glória. Ligado na terra, ligado no céu. Com testemunho bispal, sacerdotal e papal. Morrer noviço: Anjo recolhido primeiro Morrer de acidente: protetor do meio. À vitima era acendido uma vela de sete dias todo Domingo, depois da missa obrigatória na Hora do Angelus Morrer ausente: Símbolo da exterioridade de Deus que ali cultuavam em três concorridas orações obrigatórias por dia Pior crime: peido público (flatulência sonora explicita) Pena: ir embora por livre e espontânea vontade, levando os pontos, os certificados, as conquistas educacionaisreligiosas. Poderia continuar o curso num outro seminário, ou aproveitar os documentos para prosseguir em concursos (ou cursos) técnicos ou de terceiro grau. Melhor membro do clã dos Capuchinhos Descalços. Morrer Capuchinho descalço por velhice (sabedoria, conhecimento, divindade) (Diário de Bordo – Data ilegível/borrada, talvez por café e-ou chá com mancha/nódoa de licor de jabuticaba) . **** - 59 E os poemas, arrolados nos cadernos como se butins recolhidos da rua, por intermédio de seu espírito criativo e acessado por sofrências e sensibilidades revisitadas à flor da pele, verdadeiros resgates de vida: -01)=EU, TU, NÓS Bati em tua porta E perguntaste: quem és? Tolo, eu respondi -Sou eu – E limpei os pés Mas disseste: -Aqui Só cabe UM – Fiquei a sós Pois eu amadureci E voltei a ouvir tua voz: E disseste: -Quem está ai? Então eu respondi: -Nós! Então me deixaste entrar E juntos somos um lar! -0- -01)=VIVEIROS 60 são tantos os canteiros que venho semeando pelas lavras do caminho que às vezes me esqueço e dou-me chorando tão pobre de mim sozinho são tantos os luzeiros que venho acendendo na minha vida pergaminho que, às vezes me encontro tal frágil, horrendo sangue do meu próprio vinho são tantos os viveiros que venho encontrando dentro do meu serzinho que, às vezes, abandono-me ser tão nada: Passarinho -0- 61 -03)=HAVIA UM TEMPO Havia um tempo muito distante Em que se falava pouco de amor Porque todos se amavam Não teorizavam E o amor era de pai pra filho Entre amigos, parentes, vizinhos Ninguém era de si mesmo sozinho Havia um tempo, muito distante Em que se falava pouco em honestidade Porque todos eram honestos Não apenas de palavras Mas de ações – eram honestos naturalmente Entre irmãos, conhecidos, parentes E ninguém de si mesmo era ladrão Havia um tempo, muito distante Em que se falava pouco em Deus Porque todos os amavam Tinham-no presente E o amor de Deus era realmente Uma conseqüência de uma soma de valor De honestidade, convivência e amor! -0- 62 DEZ O engenheiro e agora circunstancialmente noviço-residente estava já com ótima aparência, bem recuperado, com cem por cento de tranqüilidade serena e paz na vida que o ambiente permitia, e isso – para quem não tinha nada de butim de vida entregue a rumos de improbabilidades lógicas – era lhe até muito eficaz, fazia bem, dava êxito íntimo, estrutura, embasamento de pertencimento interior. Ajudava-o, sobremaneira. Dava-lhe chão; um tapete voador imaginário na perspectiva de luz, de um sonho de divinização presencial. Mas entendia que só o coração era clarividente, só ele sabia, só ele sentia, só ele via e previa. Entendia que, ainda que a inteligência se servisse do cálculo – ainda mais no seu caso – não era calculadora, mas uma certa palpitação divinatória do coração organizado pelo cérebro, que, de per-si, nada tinha de cerebral. Ali, auto rendido em si mesmo, tinha seus insights, flashs de errôneo cotidiano trivial, banalizado, com a consciência entre dividida entre as imagens solares de fora e as imagem simbólicas e líquidas de dentro, que implicavam até com sua marginalização do mundo real, quando chegou até a compreender precariamente que sua consciência apurada podia ser uma espécie de “doença”. E a espreita mimetizava um processo de oclusão de sua persona. Era quando sentia vertigens, alguma espécie rápida de distonia que mal controlava. Estava “possuído” naquele estágio de “chamado”? Questionou as coisas de Deus, as coisas dos homens, os sete pecados capitais, as dez virtudes até, que descobriu serem a Disciplina, a Compaixão, a responsabilidade, a Amizade, o trabalho, a Coragem, a Perseverança, a Honestidade, a Lealdade e a Fé. Achou que, observando ali todas as dez, fazia-se melhor. Apenas ficou com dúvida no “quesito” Fé Foi quando indagou-se: -E as ações somadas, fazendo uma dupla dinâmica com as Orações? Tinha esse questionamento feito quirera de dogma em seu intimo. Para ele, catecismos não substituíam a Bíblia Sagrada. Terços não invocavam divindades. A Virgem Maria era tão humana (debaixo do céu tudo era vaidade) e maravilhosa mãe, mas não era mais importante que Jesus Cristo como notara em alguns exemplos templários ou divinizados por exageraos de extrema veneração. O Papa era simpático, digno, um peregrino da Fé (pregando o mote Todos Por Um), mas ainda era um homem finito como todos os homens. E representava todo um aparato com o qual não concordava. Por que as igrejas inventavam regras, dogmas, normas, cassinos, se Cristo era outra coisa? Por que o Império Romano valera-se de um Cristianismo de 63 Igreja para dominar os pagãos, atrair fiéis? Por que a Igreja criara a triste Inquisição, depois apoiara o Nazi-facismo, abandonara a África à própria sorte, mais: o FBI confirmara que Banco Ambrosiano era um ramo da Máfia mano-negra da Sicília. Isso era a Santa Igreja? Claro que não tinha sido coisa do Brasil, mas da história da velha Europa. Mas tudo era dúvida. Era a pessoa certa no lugar errado? Era um cristão à moda antiga, como um último romântico. Sentiu-se algo fora de uma realidade que deveria ser divinal pela presença do “amor ao próximo” Não, não queria um missal-circo, uma igreja-banco, um saltitante (e janota, boçal) padreco-cangurú num circo-horror-show de mídia estética televisiva, as vendas (Ltda. - S/A) de bonecos, posters, cedês, cruzes e espúrios terços bizantinos (e bisonhamente bizarros), além, de montadas imagens retocadas de vaidade e retórica chinfrim; fúteis neocarismáticos como cópias pioradas de seitas neoevangélicas, tampouco bobas histerias religiosas de araque dando lucro às partes das quadrilhas (de fundo falso) envolvidas, atrelada à espúria mídia ganhando espaço de neoconsumistas que, com um suspeito aval de tipos artísticos demodês e de qualidade duvidosa, feito sepulturas mal-caiadas, vendiam o sangue de Cristo para engodar o açodado mercado de vendas sem limites de probidades confiáveis, mais camelôs da economia dita informal ganhando dinheiro sujo com venda de fotos de personalidades desabonadoras da fé posando ao lado de padrecos querendo ser artistas de ocasião, mas sendo maus pregadores, incompetentes críticos sociais, nefastos à verdadeira causa manifesta nos Evangelhos, dentro da própria ótica crítica do “ orai e vigiai”. Queria orações mas com preces politizadas (todo homem não é um animal político? - como dizia o filósofo Sócrates; tudo na vida não é mesmo política? - como pregou Bertold Brecht?.) Queria preces com obras, com os religiosos verdadeiros pegando no breu para produzirem mudanças, pondo a mão na massa para mudar estruturas oligárquicas, acumulativo capitalismo inumano, visando alcançar objetivos lícitos e imediatos em favor da maioria da população pobre e oprimida, a gama maior da população mundial, vivendo na miséria absoluta. Captou que os seminaristas noviços eram moles, frágeis, ovelhas de certa forma tosqueadas, e mais queriam sombra e água fresca, não arregaçar as mangas e se juntarem a favelados, sem terra, sem tetos, sem empregos. Sem Amor. Uma igreja verdadeiramente de CRISTO, com senso crítico na fala e postura social de Dom Hélder Câmara, do qual era ídolo, e que quando falava de 64 Amor aos coitados, era chamado de Santo. Mas quando ensinava os coitados a pensar (e se mobilizarem, votando melhor, agindo criticamente, argüindo por direitos até mesmo Constitucionais ou humanitários) era tachado até por membros de parte da diocese alienada (ou comprometida com coronéis do arbítrio ou arautos da mesmice vulgar) de “Comunista”. Também lembrou-se de ter conhecido o Padre Lancelotti, aquele sim, um verdadeiro mensageiro de Deus, um homem de muita fé e inquestionável prática cristã de caridade. Um homem de ação. Um humanista de valor. Pois, brincando, os irmãos do Padre Júlio Lancelotti, o chamavam de “Madre Teresa” de Batina, pois envolvia-se com as crianças com Aids depositadas em repartições públicas, um homem da rua, um padre de rua, um servo de Deus de rua. Compreendeu melhor aquilo tudo, no “estar” que se restava de certa forma rendido de agir, promover, produzir, criar, que era seu modus operandi, seu estilo de vida, sua vontade e característica. Era seguro de si, mas não estava inteiramente satisfeito. Estava mal completado ali. Tinha que avaliar melhor, medir a situação toda Ali tudo era muito cômodo. Calmo e, paradoxalmente, no seu entender crítico, vazio demais. Era tranqüilo apesar de, de certa forma inútil como fito precípuo, primordial de Soma. Queria movimento por justiça social, mobilização da maioria da população. Ali não fazia muito sentido. Aquela boa turma retida a só caprichosamente rezar ali, se fosse para uma das favelas do alto da Serra do Mar, perto do gaseoduto que subia de Cubatão, seria muito mais humana e cristã, ajudando, construindo, dizendo de Cristo e mostrando obras feitas com as mãos de todos, leigos e pastores. Estava errado? Como Cristão sabia que não estava. Precisava passar sua delicada opinião crítica para o Conselho que reinava ali, que regia o local. Destemido, consciente, seguro e inteirado de boa intenção até sacrificial, iria requerer uma Reunião Extraordinária do Conselho Regente, para expor suas dúvidas, sugestões e insatisfações de foro íntimo. Seria considerado? Seria expulso?. Tinha direito à isso, compreendeu. A palavra que, estranhamente (quem a colocara ali no seu “pensar” imediato?) era Ombudsman Ombudsman? -065 ONZE “Nós olhamos com perplexidade a parte mais alta da espiral de força que governa o universo. E a chamamos de Deus. Poderíamos dar qualquer outro nome: Abismo, Mistério, Escuridão Absoluta, Luz Total, Matéria, Espírito, Suprema Esperança, Supremo Desespero, Silêncio. Mas nós a chamamos de DEUS porque só este nome - por razões misteriosas – é capaz de sacudir com vigor o nosso coração. E, não resta dúvida, esta sacudida é absolutamente indispensável para permitir o contato com as emoções básicas do Ser Humano, que sempre estão além de qualquer explicação ou lógica...” (Nikos Kazantzakis – Escritor Grego) Enquanto o Conselho Regente do Mosteiro dos Capuchinhos Descalços, em Reunião Extraordinária votava as três opções decisórias que a si seriam aplicadas, Irmão Paulo ficou em seu quarto, ajoelhado, jejuando, esperando que, o que quer que fosse decidido em seu favor, para o seu destino, ele teria que aceitar como desígnio de Deus. Só esperava não ser enganado, nem estar fazendo alguma besteira. Era puro em seu buscar. Queria retornos limpos. Deixou nas mãos do Criador do mundo, o passo seguinte. Sua vida tinha sido assim: ele a conduzira com suas próprias mãos, passo a passo, e agora, ali, lhe dizia respeito de espiritualidade e humanismo. Queria morrer fazendo o bem, não ganhando milhões e torrando em cassinos, cruzeiros, bastidores políticos de corrupto liberais e obras inúteis, superfaturadas e mais totens de mídia para um grupo de ladrões e corruptos com trânsito municipal, estadual, federal e internacional, regido pelo maior corrupto do Brasil, o turco corrupto 66 maquiando o estilo político- eleitoreiro com o mote sem-vergonha do, “rouba, mas DIZ QUE FAZ!” Veio-lhe à mente, segundo a segundo, quadro a quadro, ajoelhado que se restava com as mãos em forma de oração, segurando um crucifixo de pedrasabão feito pelo irmão Emanuel que se tornara seu melhor ombro amigo ali naquele confinamento cristão, o momento em que, de cima do Edifício Aurora (soubera o nome depois), olhara para baixo e vira. SIM, ERAM ELES: Ao lado de pessoas santas, preocupadas com os coitados, altas hora da noite fria, úmida, distribuiam Amor em forma de comida quentinha, cobertores, remédios, sanduíches, cartões para que depois agendassem atendimento gratuito, ou que os acionassem quando precioso. Pois, e isso era o mais incrível – jamais esqueceria a visão de 360 graus do momento quase que de várias dimensões: Entre os coitados, excluídos sociais, entre os verdadeiros cristãos, serviçais de Cristo, o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro VIRA ESPÉCIES DIFERENTES DE ENTES-ANJOS! Sim, Anjos enormes, quase dois metros de altura, com magníficas asas sinuosas em prata-neon luzente que pendiam das omoplatas até quase abaixo da parte traseira dos joelhos, em tons lilases que refletiam como se um fulgor de gás palpável, um esplendor divinal. Pareciam estarem a supervisionar a caridade ali notória, como se estivessem, de alguma forma também, na mente, nas mãos, nas intenções daquelas pessoas meigas e práticas. Sim, eram Anjos. Pareciam membros de uma orquestra, mentores de alguma mudança que imperiosamente se fazia necessária. Mais não era uns quantos apenas. Sim, eram vários, muitíssimos, aqui e ali, onde alguém ajudava alguém, um anjo acendia-se presente, com sua magnitude, talvez auditando valores humanos, talvez registrando a presença de Deus no mais íntimo de cada um. E ele vira – vira e sentira – o que aqueles anjos ali na verdade representavam de implícito até. 67 Sendo uma falange deles, aqui e ali, deveria haver uma missão própria, antecipando alguma coisa?. Seria? E foi isso que seu sensorial captou inteiro, cabal e completo. Evacuação? A Igreja arrebatada nos ares? Então estavam preparando caminhos, trilhas, hangares. Uma evacuação no silêncio da noite. “–Eis que virei como o ladrão de noite”, disse o mestre. Um resgate? Ele sorriu-se na lembrança. Queria estar no meio dos escolhidos. Sim, era isso o que queria. Sim, era o seu desejo mais grandioso, Queria estar entre os que seriam salvos. E se Deus era dos bem-aventurados fracos e oprimidos, ele era do rol de Deus. Queria, assim, ter seu nome no registro da terra que o ligava aos céus de sua busca. O que mais sentira totalmente - tinha até medo de pensar - lembrar-se, para não conspurcar com a blasfêmia de seu novo sentir edificante. Era muito para conter-se em si. Tinha que administrar bem AQUILO QUE SABIA, para que purgasse em si, não o demonstrasse tresloucado. Um dia daria testemunho do que compreendera, afinal. Escreveria algo a respeito? Teria o tempo necessário? Tinha até certo medo de registrar isso. Não caberia em palavra crível, pronunciável, entendível ao precário compreender humano limitado. Era quase uma senha só sua. Alguém mais notara? Einstein com sua teoria da relatividade fora visitado? Leonardo da Vinci também? Jorge Luis Borges? Quase chegou a cogitar que Stephen W. Hawking era um ANJO! Temeu-se por admitir consideravelmente isso. Sentiu-se, de alguma forma, vigiado. Estranho. Sentiu-se alertado por um interno “detector de mentira” (foi isso que "entendeu” de sentir). Corria risco? Haviam pessoas erradas ali? A espécie humana podia permitir isso. Quem ali, no Mosteiro era passageiro, vigia, denunciador, espião?. E espião, se fosse, ESPIÃO DE QUEM? POR QUÊ? Temeu-se. Temia também pelo sentido sócio-plural comunitário daquele silos de cândidos beatos. Seu instinto apurado (mais o lado sensitivo-sensorial readquirido), mexeu com estruturas íntimas. Aguçou um medo que bateu na mente. Tremeu. Orou mais forte. Orou alto. Chorou. Tremia, suava frio. Parecia acuado de alguma maneira. Enquanto isso, na soma ao que lhe tinha sido Revelado (só ele entendia aquilo), seu destino era decidido numa sala a duzentos metros dali. 68 Seria expulso? Ou sairiam com ele, pregar o Evangelho de Cristo, ajudando favelados dali pertinho mesmo? Ou pensar assim era muita pretensão, incompreensível sonhar? Seus estudos bem adiantados valeriam alguma coisa, para o caso de querer voltar ou prosseguir os estudos bíblicos num outro local? Ou, se precisasse trabalhar, poderia lecionar Teologia, Filosofia? Ou iriam “sumir do mapa” com ele?. Tudo era possível. Enquanto orava alto, chorava copiosamente, aos soluções, as mãos trêmulas e enfebres, o terço rústico a lhe grudar as nervuras palmas das mãos como os cravos de uma tentação, ele ouviu a claríssima sineta que anunciava o fim do problema. Mas não era o fim do mundo. Aquele era o toque costumeiro de que a reunião em seu propósito tinha sido encerrada, finalmente. Sua sentença presencial, táctil, iria aparecer ali, na porta aberta, e ele seria inteirado do que tomaram decisão por si, oficialmente em nome de Deus. Teria que aceitar? Aceitaria? Quando abriu os olhos, infinitos segundos eternais depois, o Monsenhor já estava serenamente sentado em sua humilde cama, com a sua arranjada mala de couro preto, uma sacola branca de juta com alguma coisa que cheirava bem e dava água na boca, uma pasta de papéis oficiais e um sorriso maduro, bonito e cheio de orgulho do lado. Era o seu passaporte para o céu. 69 DOZE Paulo de Tarso lembrou-se de sua infância de Itararé. Seus avós caboclos por parte de pai, velhos arigós, ao venderem uns bens, umas terras no distante sul do Paraná, deram parte a um filho e parte a um sobrinho e primo-irmão do filho único, criado em família por causa da morte precoce dos pai deles, num acidente ferroviário lados do Porto Paranaguá, litoral do Paraná. Um, logo pegou o quantum herdado e saiu de casa, em busca de seu destino. Nunca mais foi visto e nem deu notícias. Desapareceu. O outro, meio manteiga derretido, caseiro, restou-se por ali em Itararé mesmo, vendendo bananas num boteco que alugou em ponto de embarque e desembarque de jardineiras que faziam trajetos rurais. Pois esse sr. com o dote de partilha, muito trabalhador e poupador, depois ainda recebendo a herança dos pais, ficou muito rico, casou-se, tornou-se empresário, pouco ligando para igreja mas freqüentando-a por um desencargo de consciência (nunca se sabe o dia de amanhã), e, poupando cada vez mais, passando-se à pão e água, além de quizilento e unha de fome, mão de vaca e miseravelmente recluso socialmente, em décadas ficou ainda muito mais rico, casou, divorciou-se, casou-se outra vez, perdeu a mulher, ficou viúvo. E numa das tantas aventuras extraconjugais, entre um casamento e outro, ele nascera de uma empregadinha da empresa comercial do pai que era a sua mãe jovem e algo inocente, filho bastardo desse empresário rico, só que nunca reconhecido de papel oficial pelo pai, chutando essa enganada caixa de supermercado que fora seduzido com a promessa de um anel, uma promoção, uma viagem. Essa mãe precoce, rendida as evidências, no seu núcleo de abandono, filha única e órfã de pai e mãe também, sem parentes ou amigos para ajudar, foi despedida, quando avisou que não iria calar a boca. De origem humilde originária de Cerro Azul, lados rurais do Paraná, foi dada no desemprego, caiu na vida, passou fome grávida, viveu necessidades cruciais. Mal deu-se por passando fome, ajudado por uns maçons de antepassados suecos, mal alfabetizado e com curso primário, Paulo resolveu ajudar a mãe que com a idade, saindo das primeiras crises, mal virou uma pobre lavadeira de roupas pra fora, a tentar sobreviver com um mínimo de dignidade, criando juízo e se 70 segurando no seu lugar, intimidada que foi para não abrir o bico, não dar com a língua nos dentes, ficar na sua. Paulo, então Paulinho, comprou fiado um carrinho de mão torto e enferrujado, e resolveu de vender bananas nas ruas de cacau quebrado (paralelepípedos) e nas descalças ruas periféricas e cor-de-rosa também de Itararé. Era o Paulo Banana que ia, carrinho de mão enferrujado, de bar em bar, de casa em casa, de rua em rua, gritando sua mercadoria, seu preço, suas qualidades – pintadinhas, amarelinhas, caturras – com dez ou doze horas de trabalho, mais poupanças (tinha a quem puxar pelo lado do genitor), ajudando à mãe que continuara solteira e infeliz depois dele, a sobreviver. Tivera uma infância difícil. Sua mãe dissera que passara fome com ele na barriga. Depois ela sentira a fome na primeira infância também. Então ele teria que ser forte. E ele o seria. Sentia que poderia enfrentar a barra pesada que era o verbo Viver. Só quem passa fome uma vez na vida, e tem um mínimo de brio, de vergonha, de caráter e de determinação, pode compreender inteiro o baixio rés do chão da miserabilidade, da finitude humana. Não há sensações no esquecimento. Mas começou a vender banana caturra que comprava na coragem, a preço de atacado, de um cidadão amigo e bondoso que confia muito nele, depois revendia a preço de varejo, com boa margem de lucro (e com bom papo, bom tino, ótima visão de negócios e comércio, insistência, determinação), puxando o pai que o renegava, começou a se aprumar na vida. Foi aos poucos, claro. Foi muito difícil. Foi um longo trajeto até pôr os pés na estrada e ganhar vôo próprio, rumo limpo, a bendita estrada de tijolos amarelos, como um sonho de realizações pretendidas. Mas, afinal, se tudo fosse fácil, seríamos fáceis. São as coisas difíceis que produziam heróis, vitoriosos? As grandes batalhas produziam grandes pessoas. Cada existência tem seu preço. Algumas pagam a difícil cota de sobreviver com dignidade e lisura. Outros se dependuram em terceiros, em parentes, em amigos, em sortilégios, fugas, mentiras, igrejas, vaidades ou proselitismos disformes do real. Tendo pego a mochila que lhe deram de presente por gratidão de companhia, uns trocados para as passagens e um lanche gordo e suculento numa sacola encardida de juta, o Irmão Saulo (fora autorizado a manter o nome de fé), mal 71 entrou num ônibus intermunicipal sentido da periferia de São :Paulo, lado contrário à saída da Anchieta, lados do acesso à serra do Mar, no ônibus sacolejante foi relembrando seu passado como se um retrato fiel de sua galhardia, sem perder a ternura jamais, sem perder as raízes, os símbolos de origem, o quem, certamente, o levaram a avaliar melhor a vida, e tomar as atitudes que tomara de corpo aberto. Ainda, quando rico, sonhara em voltar para Itararé, apresentar-se ao pai de nome Gaudêncio Marin. Mas agora, pobretão por força da opção, o que o pai acharia dele? Um louco, com certeza. Ele tinha sido um sonhador mesmo, a vida inteira um plantador de sonhos. Foi quando, rapidamente e a grosso modo, sem querer até, viu uma placa, lado de uma estradela de terra branca, sentido de um matagal em aclive, que dizia: Precisa-se de caseiro. E havia uma seta, indicando o lugar de subida, sentido do local de procura e necessidade, mais um número de portão e também um telefone para contato. Era um aviso? Tocou-se. Acreditou que era um sinal dos céus. Deu um toque ostensivamente abrupto na campainha, de tal forma repentina que o motorista que mal o pegara três pontos atrás murmurou um palavrão cabeludo, o ônibus truculento e cheirando à merda velha refugou um esparramo de breque, e ali ele jogou-se fora do veículo, ainda ouvindo um precário sermão do motorista nordestino e um olhar vesgo de um cobrador bronco e metido a sebo. Havia um cheiro de polenta frita no ar das imediações. Cedrinhos do brejo punham moedas amarelas num raso corguinho perto da estradela e da pista asfáltica por onde viera. Estava na estrada de terra de areia finíssima e branca. Longe um trem apitava repetidamente. Andou-se por ali. E isso era melhor: sim, era melhor o estar caminhando. Do que o próprio chegar ao fim da linha, o próprio conseguir, o que quer que fosse.. Pediu que Deus o ajudasse. Intuiu que, sendo caseiro por ali, pelas redondezas, perto de uma periferia pobre e abandonada, quem sabe seria mais útil, falaria de Deus e trabalharia também. O trabalho era a sua honra. Gostava mais de mostrar-se em Cristo do que só falar, falar, falar. Andando com o número da Chácara anotado (o nome era Cantinho das Rosas), foi lembrando outras coisas. 72 De como Deus o vinha preparando. Como não reparara antes? Da vez que, passando fome – quando chegara em São Paulo, a título de pedir dispensa do exército por ser pé chato e também arrimo de família, filho único – foi interpelado por uma senhora idosa que, mal sabendo seu nome, mal se identificando, deu-lhe uma cópia da chave, dizendo: Você está passando fome, pode ir comer lá em casa todo meio-dia. O quê Deus fazia acontecer, sempre, em sua vida? Nunca soube o nome da mulher. Quando melhorou de vida, e quis ir lhe levar um presente, conversar inteiro com ela, sabê-la, foi que soube por terceiros que tinha se mudado e, no novo endereço que dera de procurar, um vizinho dissera que, ela mal mudara, teria morrido de um ataque de asma crônica. Aí então disseram, o que mal sabiam da vizinha nova, o nome: Dona Maria. De outra feita, morando numa pensão no Bixiga, indo jantar tarde da noite, fora avisado (intuição?) que iria ser assaltado. Cuidou-se. Pois se livrara, fazendo um novo percurso extraordinariamente maior. Tinha tanta história de estranhos diminutos “milagres” para contar, que, trabalhando sempre, estudando muito – nas férias, nos feriados, nos finais de ano – foi poupando até fazer os cursos regulares em escola pública à noite, cursos complementares e cursinhos em escola particular, depois de alguns anos e vários vestibulares ruins conseguira a sorte de entrar na Universidade de São Paulo, a famosa USP. Depois, pagando cursos de especializações, extensões. mais outro curso caro de pós-graduação na Universidade Mackenzie e um outro de Economia e Administração na PUC. Depois – como o melhor aluno que a Universidade de São Paulo já tivera - com um currículo especial, fora de série, sério, pontual, orador da turma, acabara num escritório de engenharia, contratado para estágio e com promessa de efetivar-se com carteira assinada e tudo. Pois ali conhecera a secretária e filha do dono e diretor, uma solteirona pela qual se apaixonara perdidamente, apesar dela ser seis anos mais velha do que ele. Afinal era um homem e tinha suas carências afetivas e fisiológicas. Pois casou-se com a moça meio encalhada mas idônea, amiga, prestativa e séria. Ela ajudou-o Tinha poupado grande parte da herança materna falecida à poucos anos, juntos guardaram mais grana, até que finalmente, com a concessão estimada do velho patrão já entrando em idade e sem herdeiros, compraram parte da firma, Paulo finalmente dera um final de vida digno à mãe (o pai que o renegara era riquíssimo empresário dono de vários pontos 73 comerciais, latifúndios e imóveis na região de Itararé), a esposa com a partilha da herança recebida do pai que morreu anos depois partiu para um doutorado na USP eu era seu sonho, sua lenda pessoal, dera lhe filhos corretos e perfeitos, todos varões, largando-o como sócio majoritário na empresa pois confiava nele e queria fazer carreira acadêmica que tinha sido sempre seu sonho e agora o realizaria com ajuda do marido de boa índole, um caipira oriundo de Itararé, cidade que conhecia de viagens turísticas com amigos do Diretório Acadêmico de quando fizera curso em escola particular. Daí para a inteligência, o faro para negócios – dons geneticamente adquiridos do pai? – foi um pulo. Seu sogro tinha antigos laços, desde os tempos que era diretor da Universidade Mackenzie, desde que era ligado ao CREA, desde que, como coronel, tornara-se um membro do CCC e caçara esquerdistas, torturando, matando-os, valendo-se disso para galgar cargos, atingir posições, valer-se de tráficos de influências. Pois ao morrer deixou também um ranço, um mafioso legado de vínculo a corruptos, radicais, reacionários, todos bem envolvidos no desvio de erários públicos, valendo-se de um estado público na verdade privado, pregando, como desculpa estúpida, um exagerado e bobo medo do comunismo, dos ateus. Pois ele ali nesse antro se desenvolvera, crescera, ficara muito rico, forte, poderoso e admirado nessa espécie “capitalista” (e selvagem, amoral) de mar de lama, esquecera dons e instintos, se enturmara ao seu jeito pouco alvissareiro, crescera, ligara-se ao Lions, ao Rotary, a outras associações, ficara importante, colunável, fazendo montadas caridades promocionais e com fins escusos, mas sempre inexplicavelmente sentindo um vazio dentro de si, com o eterno questionar de seu ídolo, o cantor de MPB, Caetano Veloso, que o levara a adquirir aquela frase inquisidora "Existir, À que será que se destina? Pois ele vira o que vira – OS ANJOS, OS ANJOS! – e soubera identificar tudo isso, de forma abrangente e maravilhosamente divinal. Pois aceitara a missão que captou no íntimo e ali estava. Mal ouviu um cachorro latir no mato, viu o número e a plaquinha indicativa, entre hibiscos murchos: Chácara das Rosas, Número 333, Bairro das Virtudes. Viu um campônio magro e velho carpindo perto de uma cerca verde. Bateu palmas. O cachorro latiu alto. Umas árvores de acácias amarelas sopraram acenos ao sabor de um alísio primaveril. Um sabiá de peito marrom comia grãos no estrume largo de uma vaca que pastava pertinho. Um rio murmurava sua sanfona lânguida nas imediações. 74 O velhote veio vindo e Irmão Saulo sentiu a presença de Deus ali. Sem entender porque, lembrou-se alhures de um colega de seminário, o mais afeminado de todos, cabelos louros, oxigenados, sorriso maroto, que parecia temer-no. Ouviu comentários que o tal tipo de nome Walter Bello volta e meia blasfemava entre pares absortos em trabalhos árduos, que Deus era Mãe. Não entendeu o que o fato desprezível ligara com a paz que trazia em si. Parecia uma revelação de que aquele louro era o pecado, o mal em pessoa. -Deseja alguma coisa, senhor?, perguntou o tipo de cara amarrada. Era o velhote. Saulo então foi desperto, assustou-se. Estava misturando coisas. O bem e o mal duelando dentro de si? Cristo e o demônio lutando? Mas não fora sempre assim? Quem fosse limpo, se limpasse mais. Quem, fosse sujo, se sujasse mais ainda. Quem quisesse se salvar, olhasse para os céus, buscasse a Deus. E ele, o que era? Ainda um ponto de interrogação à beira de um abismo? -O sr. está passando bem? O velhote abriu a tramela do portão grande preso por pedaços de lonas de pneus, gritou severo com um cachorro jaguara que ficara nervoso de repente, pediu que o estranho sentasse num toco de tora de madeira feito improvisado banco, mostrando doçura na voz, insistiu, ressabiado: -O sr. veio por causa do anúncio? Quando reparou - Saulo parecia fora de si (talvez um desvario de questionamentos pessoais entre as cartas e o jogo de poder do bem vencendo o mal no vulcão silente que era seu corpo, tabernáculo de Deus que não podia ser profanado) - estava com a carta de apresentação do Monsenhor na mão direita, já que a mochila estava pesando às costas e o saco de juta com capa de chuva, frutas e um virado de ovo pendurara num galho de pessegueiro florido que pendia rente pro seu lado Foi um erro. Lembrou-se disso muitos anos depois, enquanto conferia o apanhado do livro que o rascunho de mais de trinta cadernos redundara. 75 O caseiro era crente e não via com bons olhos os reclusos homens barbados do convento a pouco mais de dez quilômetros, sentido serra do mar. Quase não quis aceitar a continuação da conversa. Fechou-se. Parecia transido. Era meio emburrado, fechado em si, introspectivo, pois sempre vivera só e recluso a cuidas de terras dos outros. O cachorro cheirou o visitante e o seu tempero de carne de capivara e banha de porco no virado. Um bando de periquitos azuis e amarelos fez estrepolia perto, a menos de cinco passos. As nuvens andaram lentas no céu como se altas membranas de espuma do sol ardido. Alguém passou na estradinha ao longe, pedalando uma bicicleta amarela assobiando uma toada mateira de Tonico e Tinoco. -Abandonei o Mosteiro, disse Saulo. Aquilo soou como se pela voz do alísio que beliscou o espaço derredor. Isso fazia sentido. Isso mexeu com a simpatia nova do velhote fechado de nome Aarão. -Vamos lá dentro, tomar uma água fresca da bica, conversar sobre o emprego, os afazeres, disse o caseiro velho que estava aposentado e só morava ali de favor, mas já não dava muito no couro da empreita completa pretendia pelo dono do lugar, cujo terreno quase dava certinho um alqueire de terras devolutas, parte legalizada de forma bem suspeita, parte com mata virgem protegida pelo IBAMA, parte com criações, plantios, hortas e tudo mais. Era o fechamento de um ciclo e um novo estado de serviços e serventia. Saulo compreendeu que, nas horas vagas, dissimulando se fosse preciso, iria levar alguma coisa para casebres próximos, fazer preces, ajudar a rebocarem humildes e precários barracos, aceitar denúncias verídicas, fazer vistorias como meio paramédico (aprendera depressa, tinha interesse), aprontar denuncias e rastreá-las sendo averiguadas, grosso modo, de abandonos sociais, chamar a imprensa, preciso fosse. E ali, naquela chácara, era um bom lugar não apenas de observação, mas de pisar a terra, saber, ler, ajudar, construir, crescer. 76 Olhou o velhote e sentiu que ele lhe poderia ser muito útil, pois conhecia bem o local, parecia honesto em que pese meio arigó, no sentido bom da palavra. Seria um amigo e tanto, mal sabia ele. Sim, fariam um bom trabalho ali. -Aceito o emprego, disse ao homem, estendendo-lhe as mãos firmes, resoluto. -Não sei porque, disse o homem, mas, ao mesmo tempo em que gostei do sr., em que me simpatizei, fui com a sua fachada, vamos dizer assim - acho que dará conta do trampo todo - ao mesmo tempo uma voz que não soa diz que eu vou me arrepender de estar lhe confiando esse lugar. Que barbaridade, exclamou, puxando uma toada rústica num assobio de taquara rachada que soou algo desafinado. Fazia sentido, compreendeu Saulo. Que apenas respondeu – já tinha sido testado antes, a vida toda, aliás – e vencera os percursos: -Se Deus é por nós, quem será contra nós? Um trem apitou ao longe. Um tiro de espingarda de caça se ouviu alto e forte. Uma chaminé ao pé do serrote a quilômetros punha rolos de fumo no céu da tardinha. Umas cigarras começaram o matraquear e Saulo sentiu uma vontade enorme de dormir, de sonhar, de fazer uma roçinha. Pensou na mãe já falecida há mais de vinte e dois anos. Pensou no homem que seria seu pai e era o segundo ou terceiro maioral da economia Itarareense e da região. Foi conhecer seu quartinho perto de um paiol. Compreendeu que iria adorar trabalhar ali. -0- 77 TREZE Sofreu pra cachorro, tentando aprender alguma coisa de útil, já algo velho que era. Estava desacostumado de pegar feio no batente. Foi dura a fase entre o que tivera no confinamento a engordar do Mosteiro, e aquele novo serviçio braçal e pesado ali. Mas suportou. Negar-se era queimar ou pular etapas. Os serviços todos ali eram muitos, cansativos e difíceis, quando não emergenciais, não previstos até. Era barra pesada pra seu costume de. estudioso, de escritório, de bon vivant. Infinitamente pior do que no convento, e do que supunha. Plantar. Cuidas das cercas. Verificar animais, vigiar, arar, aguar. Ficara ali anos, sem nunca ver o dono, só o velhote Aarão que ia até um mercadinho próximo, a menos de dez quilômetros, onde ali recebia os envelopes de pagamento, alguma instrução escrita, pilhas pro rádio, jornais velhos, algumas sementes ou mudas e tudo mais que poderia servir. Foi numa edição de um diário paulista que leu um texto do Jornalista Casoy que tinha a ver com seu compreender a vida e as relações humanas, e que dizia mais ou menos isso: “A solidariedade não está vinculada ao fato de você precisar. A Solidariedade com o próximo, que não se realiza ou sofre com as barreiras das grandes cidades, onde as pessoas não se cumprimentam, não se tocam, evitam se aproximar, especialmente é um sentimento que independe de religião. Acho eu, quando você realiza um ato solidário, se aproxima de Deus e sente recompensas. É como um bumerangue. Ocorre um retorno que nos energiza, capacita, impele, tange e reforça no sentido de nos tornar mais presentes, mais fraternos. Extra-religião, extra qualquer tipo de critério, provoca uma sensação extremamente boa, quando você se comunica, se confraterniza, auxilia e é ajudado por outra pessoa. Pode ser de qualquer crença, raça, convicção. Seres Humanos são Seres Humanos em todos os locais, etnias ou pontos de vista. Merece esse pensamento de aproximação, de Fraternidade, de altruísmo, de ajuda. E isso faz bem para todos nós. O que faz mal é o ódio, a desconfiança. É mortal para a saúde, o organismo, a mente. E, do mesmo modo que a Fraternidade traz novas energias, bons fluídos, alto-astral como dizem os jovens, a raiva, o ódio e a desconfiança só podem atrair, por questões até psicológicas, resultados semelhantes.” 78 O Irmão Saulo fez um bom trabalho nas redondezas. Sem se dizer católico praticamente (e o era, tinha sido algum dia?), ajudava todo mundo. O velho Aarão dizia que ele podia ser crente, daria um, belo exemplar de “irmão” tinha feitio para isso, confessou encantado, até tentou convertê-lo, pois ele não bebia, não fumava, não dizia impropérios, lia muito a Bíblia (o crucifixo que passara a usar, só se valia em lugar discreto, na intimidade). O velhote ficou adorando-o, pois era quinze anos mais moço e bem sabia lidar com as coisas, era bom de papo, sabia tratar bem a criação, e o que não sabia, logo queria saber, aprender, tal como afiar faca, pegar peixe, fazer cabo artesanal de martelo ou enxada, afiar serrote, capar porco, tirar leite, fazer lavoura de feijão, época de colher o milho, saber ler ventos, luas – identificava chuva do mar, geada, neblina, temporal. Empirismo? O velhote era um sábio ao seu jeito. O homem do campo era um sábio? Com seu empirismo, tinha muito o que passar. E ele sabia aprender com a vida, as vicissitudes, as pessoas. Sempre soubera. Sabia ler angustia demorada nos olhos turvos da mãe pregada dia e noite no tanque ou no ferro de passar roupa cheio de brasas. Sabia ler grandeza nos gestos da primeira mulher com quem se casara por amor. Apenas ficara vendido quando tornara-se em vicio e tivera, provocado na sua virilidade latente, uma amante – erro de avaliação e percurso – que o laçara, com ameaças de fazer arruaças, denúncias, cair na má boca do povo ou virar refém de manchetes de jornais, pelos negócios escusos que o escritório herdado lhe deixara de mau lastro, de empresariado fundado em mau-caratismos e outros jeitos nefastos, inidôneos. Agora ele sabia avaliar bem, avaliar melhor, avaliar tudo. Aquele velho era uma mão na roda. Ombro amigo, confidente. Não tinha obrigações, vivia ali de favor, como se um encostado, mas servia-o e muito bem. Era pau pra toda obra, como diziam em Itararé. Precisavam um do outro. Só implicava quando o velho falava de sua religião como absoluta. Então ele falava de um Cristianismo puro, sem placa de igreja. O companheiro não compreendia cem por cento, mas ainda assim admirava-o, respeitava-o, e assim viam bem. Paulo tinha lido sobre Islamismo, judaísmo, janismo e marxismo no Mosteiro. O velhote gostava ainda mais, quando ele recebia a pouca grana do salário e sem medir tempo de reter o parco valor, doava quase tudo, além de levar 79 laranja, couve, remédios, roupas e palavras de amparo para os coitados das imediações. Com isso, com o passar do tempo, o local logo ficou concorrido, manjado, famoso, como se um pronto socorro para tudo. O velho crente até pensou em botar uma baiúca ali, para vender quitutes e guloseimas caseiras, mas depois temeu sofrer reprimenda do patrão que não sabia de nada pois em vinte anos apenas dera as caras por ali umas poucas vezes. Parecia que era ligado ao ramo de cimento, da empresa Votorantin, mas que vivia mais no Texas, Estados Unidos, do que no Brasil. Devia ser filho de gente fina, importante. Gente cuidando de ficar mais rica do que já era, e os pobres mais pobres do que tinham sido. Pois o Seu Saulo ganhou destaque, alguns barracos foram sendo construído ali por perto, arredondando de gente carente nas imediações, gente simples foi recorrendo à ele – quando precisava, acionava o Mosteiro (chegou a passar alguns domingos por lá, levando doce de abóbora que aprendera a fazer com o velho bom de forno e fogão), quando vinham remédios, problemas jurídicos ganhavam aparato de um Bispo mais aberto, enfim, tudo se resolvia na santa paz. Notou, ocasionalmente e de passagem – esse fato viera-lhe à memória altas horas da noite, como se um registro de fluxo de inconsciência – que parecera ter visto de novo um companheiro de Mosteiro, um capuchinho meio afeminado e olhar suspeito (Walter Belo era o nome dele?), cabelos oxigenados, que lhe vivia sondando entre irmãos, e que, talvez passara ali em seu novo habitat para sondar situações novas, bisbilhotar, quem sabe espiar sabe-se lá para que fito ou mesmo propósito escuso. Tudo era possível. Saulo passou a morar num paiol que pintou de verde, depois de limpá-lo, arejá-lo e fazer uma varanda que rodeava o lugar de sombras por causa das samambaias que dependurou por perto. Adorava flores e pássaros. . Dali despachava diariamente com dezenas de pessoas que faziam fila para uma consulta rápida. Não benzia, não orava, nem rezava ou falava de religião – não era isso exatamente o que queria – nem deixava em hipótese alguma que o tomassem por beato ou santo. Era um com um, dizia, humilde. Tocava as pessoas com feridas, doentes, picadas de bichos, com amarelão, varíola, AIDS, dava remédios caseiros, indicava raízes e ervas para chá. Era mais um atendimento espiritual? 80 E para rodas de convívio e explanação, tinha uma palavra de fé, de encorajamento, um ombro amigo, um consolo. Lia a Bíblia, pedia que as pessoas buscassem à Deus, só adorassem Jesus Cristo, nem imagens, símbolos, retratos, e nem se preocupassem com ele que era só de si mesmo mas era inteiro e feliz sendo útil entre eles. Só se lembrassem dele nas preces. Mas as pessoas iam e vinham, trazendo problemas, galinhas de doações, doces cristalizados, alguns pares de roupa usada (ele vivia com uma única roupa quase uniforme, uma calca jeans surrada, chinelo de dedo preto, malha branca.) E isso lhe bastava. Tinha à Deus no coração e nas benfeitorias. Do mesmo modo que era admirado, querido, é claro que despertou olho gordo, inveja e maledicência. Tinha sido intimado por um delegado, a titulo de indiciá-lo por falso beato, curandeirismo. Deu um telefonema demorado, o delega pediu desculpas e deixou de pegar no pé dele. Aarão, que não era bobo, ficou impressionado com Seu Saulo. Aquele homem daria um pastor e tanto. Daria um missionário, um padre, um, professor, um belo e magnífico servo de Deus. Mal compreendeu que Saulo o era. Era uma ovelha escolhida a dedo. Dedo de Deus. Tudo ali caminhava bem, até que o Saulo conseguiu ajuda de companheirismo, empreita e serventia social. Um casal sem filhos adotou a sua causa social. Como eram de família honesta, moravam bem ali nas imediações, passou-lhes um pouco a causa social, a maneira gratuita e transparente de ajudar. Um advogado veio pagar uma promessa e ficou fazendo parte da turma para serventia e precisão. Seria muito útil em querelas jurídicas. Uma viúva enfermeira apareceu também, toda solícita, oferecida. Quando deu-se por ter uma equipe inteira, séria, objetiva e de variadas religiões (católicos, crentes da Assembléia de Deus, um obeso e solícito espírita de mesa branca – confidenciara que estava ali porque fora inteirado que aquele Irmão dos Pobres era uma nova reencarnação do Apóstolo Paulo – um casal de budista descendentes de chineses, um ateu comunista mas com um coração de ouro, e um soropositivo que tinha sido rapaz de programa e morava de favor no porão da casa de uma tia caseira dali perto. ) Afinal, tudo fechou-se num movimento social único, plural, comunitário, ecumênico de ajuda objetiva. Acordando numa madrugada que um galo estrupício cantara – e ainda cantaria mais duas vezes – foi que Saulo entendeu que ali já tinha feito a sua bendita parte naquele lugar. Causa encerrada. 81 Queria voltar para as ruas de São Paulo. Tinha muita coisa a fazer. Tinha se passado cinco anos que saíra de casa, fugido, estava ficando velho, queria experimentar novamente a sensação de ver o que vira. Queria saber se ELES estavam presentes ainda. Queria identificar-se entre eles, achara que tivera um bom treino e fizera por merecer sabê-los. Sim, era isso, voltaria para as ruas. Ninguém mais o reconheceria do jeito encardido e mais calvo que estava. Estava maduro, pronto. Mudara. Pela face era puro outra vez, simples, limpo. Pareceria mais com os pobres do que da primeira vez. Estava seguro disso. Seria inteiramente um deles agora. Tinha a linguagem dos pobres nas mãos, nos gestos, nos olhos, nas palavras. Ettão haveria de estudar, pesquisar e compreender – também com a Bíblia que bem lera tantas vezes; com os excelentes cursos (e uma nova visão filosófica, teológica conceitual-religiosa) que aprendera no Mosteiro, saberia entregar-se mais, de corpo e alma, à causa que abraçara como se punho e pulso do seu se sentir vivo. Achara a resposta? Viver era lutar? Cristo era caridade? Amar ao próximo como se à si mesmo? Estava bem encaminhado. Um dia anoiteceu e não amanheceu. E deixou, nomeadamente, em seu lugar, de papel registrado e tudo,. o jovem aidético de nome Carlo Bolam. Designou-o, se isso fosse possível. Saberia que aquela missão delegada manteria o pobre coitado vivo por muitos e muitos anos. Sabia, não sentia como, que o mundo estaria por pouco. Logo - ele se apresentaria presente e todo estruturado – a palavra dos Evangelhos teria que ser ouvida em todo mundo, em todas as línguas, como era profecia. Para que todos tivessem o livre arbítrio de aceitá-la, não importa em que forma de religião ou placa de igreja, mas pelo menos sabiam essa opção crível, maravilhosa. Ele ali tornara-se comodamente inoperante e inútil. Durante uma semana foi se despedindo secretamente das pessoas, das coisas, do ambiente, dos animais. Foi se despedindo a prestação, escondido, silente, até que, de repente, de uma hora pra outra, simplesmente sumiu de circulação. Os sem terra, sem teto, sem salário, sem emprego, sem Deus, sem Amor, das ruas de São Paulo, ganharam seu peso em ouro: o irmão Paulo de Tarso que 82 assumiu o nome de seu documento, já que não despertava mais atenção e suspeita, achou isso. Com nada de si, mal que um saco de estopa, alguns trocados, uns papéis (cadernos e cadernos), mais um carrinho velho de supermercado (comprara num lixão – vira tipos destes na televisão andando pelas ruas dos Estados Unidos e mesmo em países da velha Europa, dito berço da civilização) e resolvera de chegar ao seu povo, a arraia miúda, os borra-botas dessa maneira, pois era inteiramente um deles. Voltara à luta. Estava de novo entre os humildes sem terem onde cair mortos. Que bem-aventurado fosse. Que Deus tomasse tento de sua grandeza. Era ele de novo, em estrada nova, em proporção e grandeza. Queria ver à Deus na pessoa do mais próximo e desesperado que houvesse. Resolveu desembarcar desse jeito no centro velho de São Paulo, numa ruela onde vários mendigos se amontoavam dormindo, e onde, pertinho, num canto ermo regado de sombras, crianças de tudo usavam craks e policiais passavam mais batendo e surrupiando do que prendendo, identificando, levando para hospitais ou casas de repouso, talvez algum lugar que ajudasse a recuperar a fauna da noite enferma de São Paulo. Arrumou seu saco de estopa, sua caixa de papelão (cobria a cabeça do sereno), seu cobertor, sua chaleira (aprendera com caminhoneiros a fazer café de um jeito fácil, rápido e comum), e assim daria o resto de sua vida a servir, ser útil. Foi quando viu de perto o que estivera até então se preparando (e como se treinando) para VER. Foi três dias depois que retornara que se deu isso 83 QUATORZE Era uma madrugada extremamente fria de julho, não tinham jantado – já era reconhecido, admirado e bem aceito no local cheirando à urina velha e esgoto rente – quando chegou uma senhora trazendo - tirando de dentro de uma velha brasília amarela já queimando óleo ruim - uns latões enormes de sopa quente e gordurosa de macarrão cortadinho com feijão-jalo. E ele viu. Por ali, como se “guardas” vestidos de alguma roupa iluminada de prata, coisa radioativa, os ANJOS davam segurança (a velha e o parceiro de óculos de fundo de garrafa sabiam?) e supervisionavam a obra de Deus manifesta além de orações, mas de assistencialismo imediato, direto e objetivo aos seres largados nas sarjetas da vida, prestes a morrer de fome, na miséria absoluta. Então Paulo levantou-se resoluto, sem medir risco, sem medo de ser feliz. Não para comer um pouco e suprir sua fome de pão, mas levantou-se e caminhou para um amigo que dormia o porre de horas antes. Queria testemunhas. Queria fazê-lo documento de registro. E mostrou. Feito louco, loquaz, estupefato mostrou: -Veja aqui, Dito Baleia; veja ali; veja no alto do prédio da Polícia Federal, veja ali perto da porta com corrente do metrô. Veja, parado no ar, perto da Igreja de São Cristóvão, veja! veja! O mendigo acordou, olhou para o nada ainda aturdido de susto e medo, recém desperto, teimou o reparo apurado (e forçando o ímpeto de assomar-se) mas não viu nada, sentiu o cheiro da comida – cheirava a azedo de vômito, baba, remela e cachaça ruim vencida – e faminto largou o amigo ali, apressadamente ganhando rumo da fila para a sopa, onde tomaria sua porção de ração de amor numa enferrujada latinha velha de leite Ninho. Então Paulo caminhou para AQUILO que certamente só ele via. Chegou perto. 84 O “anjo” maravilhosamente brilhava uma “radiação fria”. Quando olhou nos olhos daquele ver que não imaginava ter coragem para assimilar em todos os sentidos (o tanto), sentiu uma dor – no cérebro, na retina, no coração, na alma, no espírito (um choque) e caiu, DESMAIANDO (COMO SE SOFRENDO UM DESMANCHE DE OSSOS, PELE, MÚSCULOS, VEIAS E NERVOS) – Quedou em átomo, sons, palavras, sentidos vitais. Vazara o globo ocular? Estava cego de ver a maior obra de Deus, muito melhor e imensamente acima do ser humano. -0- (FIM DA PRIMEIRA PARTE) 85 CAPÍTULO SEGUNDO – SALMO (ARREBATAMENTO) 86 concha oval, quase um útero de placa-mãe. E dentro de onde agora eu estava – parecia uma placenta lilás da natureza – eu “via” (não sei se esse é o exato verbo) sons dodecafônico não decodificados. E sentia o toque presencial ( como se o dedo do Intocável!) vindo em formato de uma espécie desconhecida de som magistral, arrebatador, e esse Som, pelo que, aturdido, busquei compreender quase insano de alguma maneira ou por alguma arrebentação no todo sensorial-sentidor de mim, FALAVA-ME!. Quereria um veredicto? Pedia assento para inédita lavra? Livre arbítrio? Nenhuma das alternativas anteriores? Falava dentro de mim naquele estágio-estado, como se eu fosse metamorfoseado espécie de mutante hospedeiro de algum altíssimo Elo-lume genético-sideral adquirido. E onde eu estava, eu não me compunha completamente em mim, mas dentro da partículaláctea-cosmonal de um outro novo espaço-tempo-(existencial), talvez tocando a nau de ícaros do improvável, talvez silo de alguma presença terreal para muito além do que podia residir e assim representar como um Ser-Ente. E nesse presencial eu era tornado finalmente um novo semeador, não entendi bem do quê, de quem, para quê, quem, quando e como. Tudo era confuso, mas, sem paradoxo, ao UM “Creio na prática e na filosofia do que se convencionou chamar de magia, e no que devo chamar de invocação dos espíritos, embora sem saber o que são, no poder de criar ilusões mágicas, nas visões da verdade nas profundezas da mente quando os olhos estão fechados(...). E creio que as fronteiras da nossa mente mudam-se constantemente, que muitas mentes podem fluir em outras, e criar ou revelar uma mente única, uma única energia(..). Creio que as memórias são parte de uma grande memória, a memória da própria natureza.” (Ideas of Good and Evil – W.B. Yeats) ......................................................... (Eu estava dentro de uma Bolha, e essa “bolha” feito nebulosa binária nutria-se-me sem aparentes dutos ou drenos. E haviam dois sóis, e eu tinha dois corpos, dois espíritos, duas almas, duas mentes, dois corações. Tudo era duplo etéreo em mim. Eu saíra de um vazio infinital, caminhara para dentro de uma espécie de túnel de luz – zilhões de olhos de todas as dimensões-chaves acompanhavam minha queda para aquele vôo abissal – e me quedara ali naquela bolha em formato de 87 dentro do mais sublime ACIMA DE MIM, de um deserto onde purgaram-se todas as minhas divindades – e não me cabia no assento sacrificial do meu duplo ser entre “Euses...” -Era geleia cristalíssima num quartzo-neon de um gomo do sagrado em meu próprio deleite. Quem era eu ali? Fragmento-pó de átomo de folha corrida de Existir? Um não-lugar me fora dado para a travessia do descanso; a vacância entre o passado e o estágio profano seguinte? – Não sou: estou a procura de. (Será que morrer era como ser tirado de um peito da mãe vida, abrir-se em choro, até ter um outro seio à mão para continuar linhagem nova em seio de degrau seguinte?) Eu tinha pré-morrido e estava naquele gomo vivencial. (Todos estão perdidos no seu século, o século está perdido no tempo, e o tempo está perdido no incompreensível?) - Eu não me lembrava de nada que me ocorrera ou tinha sido dado antes. Só pedia a Deus para não sofrer muito, caísse onde caísse, qualquer que fosse minha sentença adquirida, meu grau de polimento maturando inusitadas lógicas até incompreensíveis ali. Eu só sabia que era algo-coisa, porque a própria Bolha era também uma espécie de gaveta côncava de manuscritos pertenciais que me davam cunho neural. Talvez eu fosse uma célula de pertencimento ulterior, e eu, fosse quem fosse, mesmo tempo magnificamente, magistralmente confuso. Surpreso mas estranhamente calmo (e “aclareado” de alguma maneira) dentro daquela imensa bolha-bolsa(nau?) - convenci-me feliz a identificá-la assim – eu via-criava espécies de totens neobarrocos de luzes cujos sons eram senhaschaves (códigos legados). E eu “lia” (isso foi o que senti naquele estar extraordinário como se num refluxo-eixo de ser sugado como se fosse todo poro; cevado para um funil) toda uma rampa invisível do meu cérebro, o meu paraespirito (ou metaespírito), a minha alma-nuvem naquele estojo de pelica de meu paradeiro talvez de alguma forma supraestrelar. Por um momento (ácido-nucleico) veio-me à mente uma frase que lera de algum cientista (cujo nome não me era inteirado ali no mosaico de fulcro do fluxo quase inconsciente com meu conscienciar pinçando alhures palavras-coisas) que uma bigorna, um poema, um sopro de vento, uma abóbora ou uma vaca eram formas diferentes de uma mesma energia e então submetidas às mesmas leis cósmicas que regem o infinital universo (e suas dobras de buracos negros da espécie), mas possuíam características comum: não existem, não são matérias, e, reduzidas às suas essências quânticas primordiais não passavam de energias concentradas. Eu divagava? - Eu estava nos ares – 88 alguma fonte de áccua fidedigna, energética, sideralmente águacomposta de espírito-Luz! Eu mal me cabia em mim de contentamento imedível, e no entanto eu era puro e simplesmente um NADA. Eu estava dentro do in loco do tudo que era um outro “mundo ? Era o trono do carpinteiro/marceneiro do universo? Recebi a resposta afirmativa com nãos e sins, e positiva como se um punho me socasse a interação da postura. Então seria ELE – o Sem Nome – que no pouco era o Verbo, que fezse Criador no caos do inexistente, e que me produzia, como a bilhões, um fruto em miserável & ente? Então eu tinha visto permanente para ser chamado O Escolhido. Era um estado de Salmo Arrebatador? Sim, ouvi sem ouvir, a inflexão, o impulso possante do silêncio indizível tocar respostas no gene primordial da ilha do meu genomacentro de condenado a voltar a Existir. Era um “enter” para eu escolher estojo, mas eu me queria de mim em mim, sempre descansando naquele colo do maior Pai Abrahão, silêncio sem documento. Tinha escolhido ser oferta? Tinha estado com os miseráveis, e, sim, lembrava-me, queria voltar ao compromisso de ser Ser Humano perante eles, até ser definitivamente plugado para o arrebatamento final nos ares dos quatro cantos do mundo, como estava escrito no livro das profecias vivia ali (depois de cego? – morto? - Como captei isso?) mal me cabendo de contentamento perene e extremamente essencial, dinamizado por estar daquela forma inusitada e incrível “morto” para outras dobras da Vida como um todo. Eu estaria no paraíso? Aquilo era o único céu de todas as crenças? Aquele “lagar-lugar” então era o verdadeiro verbo “religare”? Pareceu-me estar ouvindo (o silêncio espiral do meu dentro era só espirito-alma) palavras num misto de hebraico – tudo em braile epidérmico-sensorial meio sânscrito, meio aramaico antigo, meio língua estranha nesse liqüidificador-mistura; sim, tudo isso num invólucro sensorial, tamanho, inexplicável. Senti como se uma verruma de arco-de-pua invisível mas de certa forma táctil, abrindo alguma cavidade nevrálgica de algum pomo de adão do meu cérebro anterior. Houve um curtocircuito feito orgasmo mental eletrizante que durou a eternidade inteira de alguns micro-milésimos de átomos de segundos, feito flash de relâmpago contido na minha limitação, depois senti o psicossomático somatizar, pontilhando de bisturis, gruas, zíperes, ignições, irrigações e correntes de gambiarras de energia atomal com o vácuo de uma luzmatriz, sem rótulo-nome. Que curso de não-círio aquilo me daria, ainda ali um Sem-nome, a beber de 89 fracos e oprimidos, os abandonados, os descamisados, os rejeitos sociais, e ser, com eles, um excluído do livro dos homens notáveis, mas, com certeza que estaria registrado no Livro dos Céus. Que lugar era aquele – ah a maldita aventura da curiosidade (e imaginação) humana! – em que eu me restava hospitaleiro? Quem era eu de presencial ali? (O Ser Humano não podia suportar tanta realidade?) Parte de uma grande fala pluridimensional? Pois deleiteime. Não sabia se estava vestido de vida, de pé, espírito, voando (eu me sentia assim), para experimentar o desfrute da vagação e deixei-me ir, mesmo sem sair dali, sem sair-me do Eu de mim. Que emissor e receptor eram aqueles, num entendimento parapsíquico, abrangente, sofisticado, baseado na descoincidência vígil dos veículos de manifestação de consciência?. Eu ali deixava de me existir sozinho, começando a participar de uma grupalidade que poderia chegar às gestações conscienciais? Antes eu era indeciso, ali nem mais tinha tanta certeza assim. Precisava elaborar essa experiência, transformar em palavra. E eis que aturdido vi meu corpo entendido no chão do retorno. Era uma calçada suja, feia e úmida, perto de um breu humanídeo, noturno total, perto da Estação da Luz do metrô, fétido centro velho de São Paulo, e uma horda de mendigos se preocupava de João. (“Agora vejo por espelhoenigma. Mas verei face a face”) -O que se cumpria em mim era referencial de aceitação, o chamado libre arbítrio da engrenagem da roda da vida, mas eu não queria sair mais do potássio/oxigênio/ácido laico/sais de minha sozinhês no estofo daquele estágio peregrino e sonhador que eu era. Queria continuar caminhante e ser o Saulo que ali estava da trilha da Estrada de Todas as Decisões. Se era uma avaliação oxigenal, eu aceitava o crivo de. Se era um purgar-se, eu faria o teste da estadia. Senti-me num hospital feito UTI, mas tudo ao meu presencial simplório e imediatista se resumia na contemplação-pincel-scanner de uma bolha que era minha primeira pele, na tessitura de uma capa de resto. Pior: Eu era uma bolha antes de ser um Ser número um com vestimenta-pele qualquer? Minha voz não se soava. Ainda não a tinham escolhido para a minha estética compleição finalizadora. Eu era todo – espírito, corpo, alma, mente – um espécie de almacatamarã: sintonia fina da Vida Eterna? Tive medo de mim sendo isso, o que quer que “isso” fosse. Eu queria – como lera de um poema espanhol – era mesmo subir numa escada e tirar os cravos da cruz do Mestre Rabi sofredor, para tirar do seu rosto a sofrência, e deveria (precisava – intimamente, devia isso à mim mesmo) estar com os 90 comigo (ou do que me restava menos do que posta humana ali) – eu estava acima deles todos; 360 graus acima! – ou, pelo menos a bolha invisível de onde eu acabara de apear num desembarque dolorosamente podre para o retorno de ser novamente o Eu miseravelmente simplório e finito de volta.) ......................................................... 91 DOIS “Que é o homem? – Pergunta a Esfinge à Cruz. E a cruz responde à Esfinge, perguntando-lhe: - Que é Deus?” (Eliphas Levi) Policiais azedos (pareciam alterados quimicamente – pela aura estavam roxos, podres, como se com culpas tácitas somatizadas no halo) pediam aos berros, feito loucos desesperados (com armas pesadas nas mãos nervosas) que todos se afastassem, abrissem caminhos, fossem circulando, dessem no pira. Pareciam ter medo daquele monte de inúteis pertencentes à ralé, à escória daquilo que, como autoridades mal representavam. Faziam isso quase babando histéricos, aos sopapos e aos sopetões em um ou outro pobre coitado que encontrassem pelo caminho; um bando de simplórios sem eira nem beira, a maioria que nem tinha direito onde cair morto. Uma oxigenada repórter frila que, de faro fino cheirara mais do que a simples e triste rua do crack por ali, por ser área de infrações de rotina estava pensando em montar um documentário sobre os “pais de ruas” de menores infratores, subitamente passou a filmar o amontado todo do ocasional entrevero, e, parece-me que um reator inexplicável qualquer - preso por uma grua no gerador da picape com canhão de luz informatizado - como que circunstancialmente “varreu-me”, de certa forma com um certo chamativo do Eu de mim à dura realidade corpórea e terrenal, atiçando meus pontos positivos de vivacidade que o instintal acessa, que, finalmente, numa espécie de soco-sopro (à seco) fui-me despojado inteiro e completamente para fora da “bolha” (bolha?) e, de forma abrupta (susto, medo, sangue humano – Ai podridão de ancestrais!) dei-me de novo comigo ali (cacos de espelho quebrado no íntimo pela descida de novo ao “inferno” da crosta terrestre), novamente redivivo, pobre e finito serzinho a mendigar novamente agora a textura do oxigênio do mundo insano, fluxo de necessária consciência, algo quebrado como arroz de terceira, rompido de uma estadia inexplicável (eu estivera numa dobra dimensional de um outro mundo?), ganhando nódoas de movimentos parcos, parecendo que, de certa forma levara, de alguma maneira sem entendimento de palavra explicável que seja numa hermenêutica coloquial, um tremendo choque (de dobra de algum “campo do espaço”), e, de novo algo consciente ali, por impulso imediatista levei a adormecida mão 92 direita aos olhos dolorosos, procurando como que, a qualquer custo romper a pupila que parecia ter uma remela vítrea, a íris não vindo-me como deveria – senti-me desesperado, numa estranha distonia – quando finalmente percebi (pelo toque algo abrupto do dedo indicativo) que eu tinha uma espécie rústica de gaze com crosta a cobrir os olhos como se, de certa forma, vazados internamente. Muito tempo depois é que soube que eram grossas feridas com pruridos (e larvas de cogumelos de infeção), mais o meu precário cérebro atiçado a disparar estilhaços de luzes em ritmos estranhamente hexagonais na mente. Ficamos de alguma maneira “cegos” quando não compreendemos o que vemos? Estava na expectativa do que se me viria, entre burburinhos e murmuros de medo, batidas de portas e coturnos, cochichos esquisitos, cuspes, alertas sonoros que não captei inteiros, quando, finalmente então senti-me levantado de repente por broncos braços duros de tipos mal-cheirosos que diziam repetidamente palavras de ordem para terceiros ao derredor (Vamos circulando! – Vamos circulando! – Vamos circulando!). Finalmente, grosso modo, arrancaram-me violentamente do meu estar em mim - do caminho humilde concorrido por mendigos e moradores de ruas curiosos - arrancandome como se um pacote ruim do chão frio, um rude estrupício inoportuno cheirando a febre-terçã, e então fui conduzindo na marra e aos safanões para algum lugar. Fui levado meio arrastado, aos trancos e barrancos. Ouvi uma porta de aço ser rompida, destravada. Depois jogaram-me no que deveria ser o chiqueirinho de um carro com grade e chão cheirando a sangue seco – ouvi um mendigo de voz conhecida dizer para alguém anotar aplaca daquela carro cinza da polícia - quando compreendi que eu voltara à dura realidade de Existir. Estava eu de novo ao rol do baixio chão da existência humana. Humana? Eu não estava passando bem. O coração disparava um bólido dentro. As mãos tremulavam. A mente tinha disritmias. Eu respirava com enorme dificuldades, o peito arfando chiava, a pressão subira a mil, mais algum atiçado instinto de sobrevivência animal tocando-me de forma feroz, voraz. Tinha medo do escuro que me restava fendido, vexado e sem prumo, não me sentia inteiramente em mim. Pois que finalmente aquele precário meio de retenção fez-me voltar-me à mim, e me fazia mal, muito mal. Eu estava com espasmos, tremendo, nervoso quase com diarréia. Uma grudenta coriza atrapalhando a respiração, enquanto o carro policial cheirando a sangue e urina velha rodava corcoveando com sua sirene feito vaca louca aloprada a 93 abrir caminhos tortos e inacabáveis, revirando-me mais ainda o estômago azedo. Quase vomitei água ácida na borracha com cheiro ruim da viatura. Eu estava mal, principalmente pelo choque do antes, do depois e do agora, nas medidas da dicotomia do haver; ainda mais em se considerando o arrebatamento, o resgate, que eu vivenciara de forma estranha, inusitada e inexplicável. O “vácuo” (pós-mortis) de onde eu me restava depositado, residente (e depois feito “hospedeiro” de algo, alguma coisa), sofrendo uma inesquecível “avaliação” - que poderia ter sido treino para algum rito de passagem - que eu não compreendera totalmente, talvez jamais viesse a entender, no voltar provocara um refluxo de ambientação e eu, para usar um termo técnico, não tinha entrada em nenhuma câmara de despressurização. Se é que havia uma entre o antes da morte, a morte, depois da morte e a pior parte: a “volta dos umbrais da morte” que eu acho que é onde eu estava. Onde eu estivera? Por quê? Com quem? O que eu sofrera? Ali onde eu estivera era um dos labirintos do jogo profano da morte? O que era morrer? Acordei muitos dias depois num hospital Infelizmente, a primeira pessoa que tive o desprazer de ver e vi – eu nunca mais queria vê-la em minha vida! – era Dagmar Marlene. Só que estranhamente bem mais velha com tez de um rabecão antigo, com a seca pele facial com jeito de noz, parecendo uma empacada fera ferida, irreconhecível flor murcha, com o rosto apresentando uma espécie de escamas de peixe (ou traçados de casca seca de abacaxi), e que – pobre de mim – ao me ver repentinamente pôr um pingo no i do respirar completo e inteiro, fez um pandareco exagerado, gritou histérica feito uma aloprada macaca de auditório (ela nunca tivera nota boa em bom comportamento na vida), chamando o pessoal da equipe médica da UTI que em sala adjunta estaria em palestra com uma montoeira de parentes meus, dizendo que eu saíra do Coma induzido para desintoxicação e restava-me mais sadio com chances de total recuperação e ampla sobrevivência. Notei Dagmar-Marlene algo humilde, não entendi como captei isso. (Sobrevivência?) -0- 94 TRÊS “Você merece, você merece/Vai ganhar um fuscão no Juízo Final/Você merece!” (MPB – Gonzaguinha) ________________________________ Num dia extremamente ruim, difícil, com baixa estima, Saulo pensou realmente em se matar. Sim, acabaria com tudo.! Seria o fim do que era a estrangeira tragédia de sua vida arrebentada nesse plano. Atirar-se-ia nas rodas de um caminhão de feira e pronto, estaria tudo acabado!. Que Deus tivesse compaixão. Chorou um pouco. Chorou escondido. Chorou por dentro como uma pedra trincada internamente. Depois mediu bem a situação. Refugou o ímpeto. Já se levantara da calçada para tomar a decisão, atentar contra sua própria vida. Por um segundo de melancolia diferenciada pensou na finada mãe para quem era tudo. Ele teria orgulho de vê-lo rico, posudo, famoso e com posses, cursos superiores, depois ter largado tudo isso que conquistara de forma difícil mas determinada e ter se- dado inteiro ao estranho ninho dos pobres e miseráveis. Ponderou. Um átimo de juízo varreu-lhe a medula: não, não faria esse mal à memória dela. Por algum motivo – e isso vinha-lhe à torna em situações desgastantes, constrangedoras, além de uma resiliência inerente - sentia que tinha uma outra parte de si vagando pelo mundo – NÃO SABIA EXPLICAR DIREITO PRA SI MESMO - talvez um irmão, talvez um espírito, talvez uma outra alma, numa outra dimensão. Estaria morto? Morrera no parto difícil? Era só uma vaga lembrança perdida no inconsciente algo falho? Nunca tivera coragem de inquirir a triste genitora a respeito dessa mácula, dessa perda ou entrega, dessa geração de instinto maternal provocando rupturas. Segredo maternal? Depois reconsiderou os pensares que entendeu como se fossem sinais de depressão, de demência. Se se matasse, a ignorância e a insensibilidade venceriam. Mas se ficasse forte, sensível, fino e cortês, a Sensibilidade de sua parte venceria. Sim, era isso! Lembrou-se de ter ouvido um poeta de Itararé dizer num programa da Rádio FM local que os inteligentes do mundo precisavam se mobilizar, pois os imbecis estavam no poder. Era isso. Teria que sobreviver à si mesmo, e isso era o mais difícil. Contudo, faria o possível para dar testemunho de sua vida. Compreendia que, quem tinha coragem, 95 podia dá-la aos outros, menos afortunados, assim como a chama de uma vela por pequena que seja, ainda pode acender outras. Depois de ter esse momento difícil de baixa estima, sentiu uma fisgada no baixo ventre. Alguma doença, talvez. Outra vez? Sentou-se na calçada, seu lar a céu aberto, já que sua casa era seu corpo como um todo. Quase desesperouse. Aquele problema vinha lhe incomodando há tempo. Uma hérnia? Problema na próstata?. Ouvira o galo cantar mas ainda não negara-se à si mesmo. Era um filho de Deus e ninguém teria que passar por ele, o que ele teria que passar, pensou. Depois garrou o caderno de rascunhos e despojos poéticos diários, e começou a responder à um chamado do seu lado “Sentidor” (como dizia a sensitiva escritora Clarice Lispector) e escreveu, escreveu, escreveu feito um condenado à vida. Escreveu muito. 96 QUATRO “De repente levanta-se o homem pela manhã/Sente que é povo e começa a caminhar/Observa que a primavera voltou/E que os galhos começam a ficar verdes..” . (Admir Guilboa – Poeta de Israel) _______________________________________________________________ Nos cadernos deixados por Saulo/Paulo, haviam alguns textos de natureza incompreensíveis, além dos depoimentos claros ou até de forma explicita, quando não realista ou sob ótica próxima do proselitismo literário, mais alguns com lucidez extremada, fora do comum, quando aproveitamos, na medida do possível, sua grande narrativa pessoal de diversos registros e diferentes momentos e enfoque técnico-descritivo (ele mesmo escreveu que era um relato limitado e no apuro imediato dos momentos, grosso modo), às vezes fora si ou bem próximo disso, quando não à beira da morte (ou, “dentro da morte”), num estágio onírico quando se julgou na presença dos céus, tocando o altar próximo do sagrado, nas palavras do autor que vivenciou tudo isso ao seu jeito, estilo e compreensão. Ele era famoso pela boa memória, pelo Q.I. alto, pela facilidade de declamar textos inteiros de Shakespeere, belos poemas de Bertold Brecht, crônicas maravilhosas de Rubem Braga, árias de Wagner e até cantava seu repertório predileto que era o do artista Caetano Veloso. Ele adorava Caetano Veloso, que considerava a maior cabeça pensante do país em 500 anos. Como logrei pesquisar a vida toda do personagem central, coube-me essa tarefa para fins do que seria somente uma reportagem jornalística que depois virou esse “romance”, os relatos (ouvi testemunhas, em São Paulo, na família, na favela, nas ruas, no Exército da Salvação, nas Igrejas, no Mosteiro – até cheguei a falar com quatro filhos da velhota Dagmar Marlene - e que relataram-me o que sua mãe lhe contara do que o Dr. Paulo de Tarso lhe confessara como desabafo, ou mesmo doente, passado, sob tratamento e dependência química pesada, quando falava dormindo, em devaneios... 97 Ela tivera de início, dois filhos de pais diferentes, depois que largara o Dr. Saulo, antes de voltar para ele, e tentou esconder as crianças, filhos de alguns acidentes de percurso sexual, num Educandário São Vicente de Paula em Itararé. Depois que ele a largara, após ser espancada na favela, resolvera ir morar em Itararé e lá tivera outros dois, novamente com fecundadores diferentes pois tinha parceiros sexuais às pencas, isso muito antes de ficar velha, louca e morrer num Asilo da cidade, abandonada pelos próprios rebentos que não viam a mãe com nos olhos, não a querendo por perto pois tumultuava as relações deles, atrapalhava-os com a má fama e os destemperos irracionais.. Impressionou-me também, os relatos de lavra poética, quando, amargurado, com baixa estima ou resquícios de depressão despojava, e que aqui arrolo antes de encerrar esse capítulo intermediário, até a narrativa final que compõem a experiência toda, quando darei no próximo tomo denominado (sugestão de rascunho do vivenciado) de Apocalipse. Lendo os poemas, além do livro como um todo, o leitor poderá ter uma justa idéia da cabeça, da personalidade, da cultura, da sensibilidade do Dr. Paulo de Tarso Trigueiro, que ao morrer confiara os relatos à um membro do Departamento de Letras da USP, e que por um canto qualquer largara os papéis, até conhecer-me conterrâneo dele, e resolver fazer uma cópia e mandar para a Prefeitura do Município de Itararé, terra de origem do mesmo, e que lá os despojos ficaram largado num canto de uma biblioteca de um inacabado Centro Cultural da Rua XV de Novembro. Ao me saber professor de história e geografia, Itarareense, além de escritor, sugeriu, talvez blefando, que eu poderia coordenar a publicação do que achasse por bem em formatar, indicando-me o que tinha e o que enviara para Itararé. Os trabalhos todos, apesar de, de certa forma precariamente datados e não necessariamente em ordem de acontecimentos seqüenciais, aqui são postos nessa ordem, portanto, o tempo em si tornou-se desnecessário. Deixo ao critério do leitor a crítica, a avaliação. 98 POEMA DO MOSTEIRO O homem era larva de estranho magna gélido Numa cratera de cometa viajador de órbita irregular Pousando em fragmento feito meteoro na terra-mãe Virou cavalo-marinho de profundezas náuticas Quando, enorme lesma-cavalo-marinho Deixou sua gosma-láctea no tapete lama da terra Anfíbio se restou de rabo rendido E habitou as ribeirinhas com medo de ser predado Por enormes galináceos dinossauros O ente-ser esse bicho quase símio-rex Feito mutante na cadeia genética hereditária Criou pêlos (as radiações vulcânicas) Depois perdeu o rabo (a fome terrestre depois de milhões de anos de chuvas) E encavernou-se à subsistir, subterrâneo, rupestre, primata Dúbio tumor da espécie erectus laica Houve um acidente abismal vindo do buraco negro do espaço Feito nebulosa sentença de quasar binário E metamorfoseou o cérebro diferente do bicho homem Com as fêmeas deles, ao fincarem-se em pé (A sobrevivência açodando ritmo sequencial) Expeliu o ser com o cérebro grande, atrofiado Mas marcador de etapa seguinte na cadeia de mil elos naturais. Para um novo céu e uma nova terra. E o gênese fez-se verbo vivencial E os frutos fizeram-se rasteiros E cada macaco no seu galho, o homem Ofereceu-se aos deuses vindo da labirintíca dobra espacial E, numa cadeia derivativa de códigos legados O homem-larva-cavalo-marinho-E.T. Deu-se à haver descobrindo estupefato e táctil: O fogo fátuo – a roda – o som – a lavoura arcaica (Não necessariamente nessa ordem) 99 E dividiu-se em nômade trilha bering intercontinental Mesmo vindo do pomo de barro do adão sósia que o precedeu Quando um anjo caído traiu o Deus Criador Incentivou o homem e sua sosinhês pra fora E a sua costela de tripa utilizável pra dentro Porque o anjo expulso sabia o que sabia dos prazeres da carne Oferecida a fruta gostosa do pecado (E perdida a sutra da divindade boi-de-piranha) O ser atravessou o mar da tranqüilidade da cratera existencial E deu no que deu: bicho-grilo, porra-louca Baby babel (Ai do big bang!) Depois Sodomigomorra Inquisição, nazismo, nagazaki-hiroshima Até o intergalático ser sideral pós-tudo O homem-larva no nada quantum - do espaço guerra nas estrelas Procurando a cratera láctea de sua dúvida existencial Seu enorme jugo - ponto de interrogação À beira do abismo de sua solidão presencial Na nave-terra vagando no espaço Túmulo de larvas. -0O SÉTIMO SELO Os segredos das pirâmides São um só: Vermes – pó! (divindades terrestres – não tem nada a ver com o existenciar-se) -0- 100 SE Se, isso, Se, aquilo Tudo própolis Se, isso, Se, aquilo Tudo fermento Se, isso, Se, aquilo Tudo metamorfose Uns se acreditam deuses Outros se creditam reses Outros pertencem-se (Eu pelo menos sei ler cactus secretos E círios reveladores no escuro do haver) -0- 101 DEUS Deus Para poder merecer-me ser Ser Tenho que amadurecer-Te Em mim Como um átomo conduzido à reflexão Hospedeira, de ser inteiramente nulo, não-lugar Deus Para poder fazer-me Teu (Como convém a um átomo do tomo) Em mim Tenho que te decifrar-me teu à exaustão Parte de Ti, em Ti – Universo e Hangar Deus Para poder pertencer-me como Ser Tenho que revelar-me Te E assim Como um nada dar-me à exatidão De revelar-se-me paradoxo práxis. -0- 102 POEMA DA CHÁCARA A noite É só um dos gumes (cumes) Do corte: Viver é puro esporte Sorte Absorver-se com alguma Coisa Causa Carma (Totem) Xote Dote Mote A morte é só isso mesmo: AVESSO -0- FLASH Os relâmpagos conversam entre si São sinos do Código Morse de Deus E até trocam figurinhas carimbadas Com o fogo fátuo de almas penadas (Os relâmpagos são canhões com flashs de choque De Deus querendo dar ao mundo um novo retoque -0- 103 GOZO ETERNO Zíper – purpurina (A melhor morte É a Poesilha) -0- CONCHA ACÚSTICA O pior Da enorme concha do mar É quando você começa a escutar Não pedidos de socorro Mas seu próprio suór e sal Choro e ranger de dentro Sete Pecados Capitais Visitador e Esqueleto Poesia no plural Do seu próprio naufrágio urro -0- 104 Ancoradouro Mártir O pior medo É o reflexo -Piér! -0- METÁFORA posso precisar de ti, para um crime posso precisar de ti para um creme posso precisar de ti para um cromo posso precisar de ti para um carma posso precisar de ti para o habite-se a grife e então aceitarei o jet-ski para navegar o mal de lama com pedigree de quem não se aceita sendo o que não é pangaré por próprio desvio de conduta e acabar sendo o que realmente é filho da puta -0- 105 POEMA DAS RUAS Se o paraquedas não abrir Você pode sorrir O derradeiro espanto audacioso vácuo-vôo Entre a exacerbação Contemplação E o inesgotável filé do próximo finito chão Se o paraquedas não abrir Você pode existir Àquele infinito segundo à segundo exato E aceitar-se então Interação Entre o horizonte e o fortuito rápido chão Se o paraquedas não abrir Você pode partir Com o seu próprio mistério e sagração Entre a estupefação (comiseração) E ser só o vôo ali, na derradeira extinção (Melhor é você não sair do chão) -0- 106 POEMA DA CONTEMPLACÃO (O medo Da pronúncia) -0- 107 CINCO “O olho com que vejo Deus/É o mesmo com o que Deus me vê...” (Eck Hardt) Esses são os primeiros poemas achados garatujados em calhamaços de papéis nodosos, sendo que um outro montante encaixo no capítulo seguinte, para dar testemunho da cabeça e sensibilidade de Paulo de Tarso Trigueiro, o Irmão Saulo ou o Beato Saulo. Pelo que pude verificar dos rascunhos garatujados pelo Irmão Saulo, ele tivera crises de saúde, de consciência, de baixo-estima, até mesmo fora tentado a largar tudo e voltar para casa, voltar à cruel sociedade de onde era originário com toda sua variação de personalidade e mesmo sensibilidade atrofiada pelo lucro, pelo poder, pelo status. Entre os textos que eu achara do mesmo, havia um que era uma carta a filhos, netos e amigos, e que, depois de bem decifrada (parecia um rascunho feito em estado de dor ou quimicamente alterado), e que diz, depois de decodificada, assim, menos no que traduzimos de compreensível: Meus Queridos: -O que para vocês pode parecer loucura e até permitir alguma vergonha socialmente falando, para mim não é uma seqüela, nem tampouco o curso de uma fuga. Antes, é uma necessária e inquestionável Busca. Bendito seja o ser Humano que seja convidado a passar pelo ritual todo dela. Não é, como podem pensar, um neoesoterismo tantã de fim de século, nem por causa de frustração social da falência das ideologias marxistas, tampouco sou membro desse banco de lucro que é a chamada Nova Era, para enganar a pessoas com problemas de vivência e mesmo psicológicos. -O que me fez sair da falsidade de casa, além, da busca sacrificial (que o seja) de mim mesmo, é o desejo de experimentar a vida com os abandonados pela sorte, com os fracos e oprimidos, como falou o Mestre Jesus. 108 -Não, nunca fui um religioso da carteirinha, nem, de carnê de dízimo. As caridade que vi, nos meios que habitei, eram tolas, inócuas, promocionais, supérfluas, além de terem o ranço de fariseus: fazendo propaganda do que faziam. E, entendo, que o que uma mão faz, a outra não deve saber. -Nasci pobre filho bastardo de pai rico que ignorou minha própria existência, lutei muito, trabalhei feito um espeloteado, passei fome, vi minha mãe morrer com o pouco que eu lhe pudera dar, no entanto, vim para Sampa e aqui carreguei meu fardo, combati o meu combate, fiquei rico, casei bem, tive filhos maravilhosos, tinha status, dinheiro, poder, força, a influência política, no entanto -NUNCA FUI FELIZ! -O que é ser feliz? Tudo e nada ao mesmo tempo. No entanto, sentindo que o luxo, e luxúria, o poder e o mando, o dinheiro e a grife não me davam personalidade de espirito, resolvi cair na ruas. Não foi um gesto impensado. Antes, fui um “gesto” revelado. Quando Deus toca o seu ungido, só resta dizer sim ou morrer pela ignorância dos credos. -Sim eu estou bem. Na rua, estou em casa. Sinto-me dentro do meu próprio coração. Fone, asseio, violência, medo? O que somos? Tiramos tudo da natureza para comer, beber, vestir e habitar, e, no entanto, que mal fazemos à nós mesmos? Que mal fazemos ao próximo? Que mal fazemos aos pobres e desamparados? Vocês sabem que sempre adorei o discurso do Pastor Martir Luther King, quando dizia que tinha um sonho e morreu por esse sonho. Eu amava a música Imagine de John Lennon, aquele que disse que há pessoas que são aleijadas por dentro. Gandhi foi um outro que admirei, além de Betinho, Florestan Fernandes, Vladimir Herzog que tive o prazer de conhecer na TV Cultura e tantos outros, Mesmo sendo rico, lia obras importantes, de Sócrates e Paulo Freire, de Kant a Fernando Henrique Cardoso, até que este deu no que deu: um traidor de si mesmo, um seqüestrador de sonhos de uma nação de maioria absoluta pobre. -E assim vim apreendendo lições nesse difícil viagem de existir. Os nossos problemas são os nossos mestres? Ouvi isso não sei onde. E acredito que de certa forma era verdade. Traí a mãe de vocês e só fui sentir remorso aqui no baixio chão da rua. Nem sei se fui um bom pai, se criei vocês 109 direitos. Hoje, tenho tempo para pensar, até questionando-me. Dei-lhes poder, nobreza, dinheiro, mas, acredito, que poderia dar-lhes mais amor, passar mais tempo gracioso com vocês, não em reuniões ou em clubes, quando perdi-me de mim em diretórios de partidos liberais feito antro de escorpiões, ou em viagens que não nos levavam a lugar nenhum, já que nunca podermos fugir de nós mesmos, do lugar em que estamos. E depois, compreendi, a única forma de me livrar da tentação era cair nela. E foi na rua que compreendi que a alma nasce velha e com a nossa vivência, também de conhecimentos que advém de problemas e conflitos, torna-se jovem. E que só o corpo nasce jovem e depois envelhece. E que é essa a tragédia da vida. Não tenho agora, medo de ninguém na face da terra. Temerei apenas a Deus. Não terei má vontade para com ninguém. Sou eu mesmo agora, um Eu inteiro e consciente, pleno. Não aceitarei injustiças de ninguém, para com os humildes. Vencerei a mentira pela verdade, e na minha resistência à mentira aceitarei o jugo de qualquer sofrimento. E agora, como Luther King, eu também tenho um sonho onde o lobo e o cordeiro pastarão juntos, onde não haverá ricos e pobres, mas somente SERES HUMANOS. -Adorei os netos que tive. Penso neles todo final de tarde. Foi num desespero ocasional desses, que pensei em largar tudo, quase traindo-me comigo mesmo, quase questionando a minha fé. Uma andorinha só não faz verão, conclui então. Mas depois lembrei que poderia fazer uma minúscula parte, e que assim seria meu quinhão íntimo de serenidade, fora de uma vida vã, sedentária. Outros fizeram uma minúscula parte, e foram testemunhos de verdadeiros filhos de Deus. Feitos à imagem e semelhança. -Não peço que tenham piedade de mim, nem me procurem jamais, por favor. Não me criem esse constrangimento. Peço que tenham piedades de vocês mesmo. Não adianta buscarmos o lucro fácil, a mão de obra barata, a matéria prima fácil, se passamos os finais de semana enjaulados em nossa própria casa, ou, depois de sairmos com a Secretária, viajamos para Miami para estarmos em segurança com nossos familiares. Que país é esse? Que capitalismo de araque é esse? -O Brasil é a nona ou décima economia do mundo hoje, mas, pergunto, para que? Para quem? Só para os ricos. Como ouvi, dia desses, numa música que tocava incessante da kombi de um feirante, que “o de cima 110 sobe/E o de baixo desce. Acho que é isso. Que raio de neoliberalismocâncer social é esse? Margareth Tatcher a bruxa do “capitalhordismo’ bem sabia, insensível, bronca e inumanamente amoral que o é. Que Deus tenha piedade dela, quando o diabo ficar arisco para não perder o lugar para ela nos quintos dos infernos. -Eu não estou frustrado, tampouco um janota boçal arrependido. Perdoem esse velho gagá, se ele achou um jeito de servir. Sou mais contente e humano quando dôo, do que quando recebo. Isso faz sentido para vocês? -Não tenho que ouvir discursos pomposos, chatos, cheios de falsidade. Não tenho que apertar a mão de um ladrão e chamá-lo de “colega” quando são espertos e não experts, mesmo sabendo de superfaturamentos de obras, de obras públicas inúteis, de quadrilhas de doutores, bacharéis, liberais e "autoridades". -Frustrei-me com a vida social. -Só me entendo como gente aqui. Aqui, pelo menos somos todos iguais. -Quando caí pela primeira vez na calçada, com fome, sem comer nada, fui que senti o primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro desdém visto debaixo, da ótica do coitado. -Para os ricos, eu era mais um inútil, um pária. -Para os pobres, a satisfação de me saberem iguais,. -Para a maioria apressada da população – a maioria dos paulistas anda sozinha em bandos – eu era um marginal, um zé-mané. Uma negação de ser. -Mas me senti melhor assim. Existo ou vegeto? Que Deus tenha misericórdia dos que vegetam em cargos, em fachadas, camuflados, com posses. Muitas autoridades deveriam estar presas, de ex-prefeitos, exgovernadores, ex-presidentes, para não dizer ex-ministros, secretários, senadores, deputados, vereadores, juizes, delegados, desembargadores até. 111 -Muita gente da rua não merece estar na rua. -Ouvi histórias e sofri muito. Traições, mágoas ódios encruados. É isso que move essa gente? Ver um dia uma horda de miseráveis de um holocausto rueiro atropelar autoridades, invadir palácios, fazer farra e pilhar pessoas finas nas mansões, nos faróis, nos totens públicos? -Não quero viver para ver esse dia. -Sei que tenho muito pouco tempo de estadia aqui na terra. Preferi dar o meu exemplo de dedicação, saindo de casa. A rua é um lar a céu aberto, onde vemos melhor as estrelas perto do esgoto. Onde passamos fome para sentir o valor do pão. Onde fazemos bicos para valorizar o trabalho, onde somos reles para valorizar a grandeza de Deus. Onde os puros rastejam e ainda têm que sofrer o crivo dos olhares duros e impiedosos dos que passam rápidos e com nojo, em seus carros importados, em suas poses falsas, em suas posses conquistadas com riquezas injustas e impunes, como bem pregou São Lucas... -Se a minha vida vale alguma coisa assim, que lhes sirva de exemplo. -Não sei quem de vocês mais se parece comigo, nem o que mais odeia pelo que faço agora. Mas algum de meus descendentes há de ser pintor, poeta, artista. -O tempo é o melhor juiz. -Dia virá que todos os lares serão molestados pelos homens pobres das ruas, que os campos não produzirão nada, que a violência generalizada como a corrrupção endêmica hoje institucionalizada em todos os níveis – atacará a brancos e mestiços, a pobres e ricos. Então será o fim. -O fim do homem é um fim em si mesmo? -Não me procurem agora. Não me procurem nunca, pelo amor de Deus!. Não datei essa carta porque, algum dia, se me sobrar alguma coisa do esmolar rotineiro, comprarei um selo. -Esse selo lamberei com minha boca mole, murcha, com dentes ruins, com algumas doenças que contraí na rua da amargura, 112 -Esse selo será meu testemunho, como uma metáfora. -Comuniquem a amigos que agora sou eu mesmo, estou em mim. Digam que os loucos herdarão a terra. Contem que agora estou em paz com minha consciência. Que eu passei fome na barriga de minha mãe e quando era criança, mas não odiei a humanidade por causa disso, nem me fiz rato social para parecer que era o que não era, para pensar que pensava. -Do pó vim, ao pó voltarei, -Que Deus tenha piedade de mim. -Que Deus abra os olhos insensíveis de vocês. -Salvem-se por suas próprias obras, e assim poderei dizer "até qualquer dia desses..." -Amo-os. -Mas, acreditem, meus filhos, irmãos – minha verdadeira família – são os que estão agora dormindo em bueiros, em favelas, em cantos. São os que não comeram, os que estão doente, os que de certa forma estão mortos por dentro. Os que estão sendo visados pela Morte. -Paulo, agora Saulo, num lugar qualquer da vida, do mundo. -Num lugar qualquer do coração de vocês. -0-. 113 SEIS “Neste momento terno e pensativo/Aqui sentado a sós/Sinto que existem noutras terras/Outros homens ternos e pensativos...” (Walt Whitman – Poeta Americano) Não se sabe quando, nem como, sequer por qual parente (sobrinho, neto, nora?), mas o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro começou a ser procurado no Brasil todo, novamente. A família tinha lá seus lapsos de ignorância e esquecimento, depois parecia que a consciência pesava em algum membro novo do clã e tudo recomeçava. Era uma sina ser caçado em sua fuga para dentro de si mesmo?. Em horários nobres de programas de tevê, em programas populares de rádio, até mesmo alguns investigadores de polícia foram contratados para fazerem bico nesse sentido, mas o fato é que cartazes começaram a aparecer em postes procurando o homem que era Dr. Paulo, na rua transformado no Beato Irmão Saulo. Quando os moradores de rua o viam em fotos de quando era posudo, jovial, olhos brilhantes, e, quando o reconheciam naquele que houvera passado por eles, e até mesmo fugira depois de ser filmado num fato de seu mistér, os comentários eram generosos, edificantes, magnânimos, dignos de serem registrados: -Olha só a cara do Irmão Saulo. Como ele era muito diferente quando era doutor! -Isso é que é Ser Humano. Vejam que pose deixou para estar conosco? -Um escolhido de Deus, isto é o que ele era. Deixar tanta riqueza para estar nos ajudando, servindo, ser ombro amigo... -E ainda dizem que não existe santo aqui na terra! 114 -E as igrejas querem ser o que são, inúteis. Esse Beato é que era verdadeiro e feito à imagem e semelhança de Deus-Pai.? -Por onde é que ele anda, afinal? A recompensa pela dica é boa. -Deve de ter morrido, o coitado. Ter uma vida de rico, e depois se enlamear conosco, não foi fácil. Deus tenha piedade da alma dele. -Deve estar à direita de Deus. -Benza-Deus. -Foi o melhor Ser Humano que eu conheci. -Certa feita deu-me o pouco que tinha e ficou feliz ainda sem nada, sem comer, morrendo... -E da vez que apanhou comigo, quando fui atacado por um fiscal semvergonha da Regional da Sé? – Participamos graciosamente juntos, de várias passeatas cívicas na Avenida Paulista. Ele gostava de passeatas...Para ele aquilo era alegria (ao contrário do medo que a ditadura impõe), era gente junta buscando um mesmo ideal, todos por todos, unidos - o povo, a razão de ser do Estado... -Não era exatamente um de nós, mas era o melhor de todos nós! -Deus o tenha! Deus o tenha! – disse um seboso mendigo que se dizia chamar Dorival Abreu, e que costumava repetir tudo duas vezes, por um problema talvez de insanidade. -Fui operada espiritualmente por ele. Estava com tuberculose e ele fez com que eu tossisse um dia inteiro, ficando roxa, até expelir tudo. Quase morri, mas salvei-me de apodrecer na rua! -Salvou minha vida uma vez também, lembra-se Fuinha? . -Era um verdadeiro servo de Deus. Nunca mais haverá outro igual. O céu por testemunho. -Nunca mais haverá um cidadão de rua como ele, nunca mais!. 115 -Nunca houve um Ser Humano como ele. E nunca mais haverá. -Dizem que estava escrevendo tudo sobre o que se passou em sua vida, sua cabeça, desde os tempos de pobreza, de riqueza, até se escolher parte de nós. Era meio metido a Poeta também. -As ruas de Sampa nunca mais serão as mesmas depois dele. -Pelo menos tivemos um bendito exemplo de vida. -Temos que pedir à Deus por ele. Temos que guardar a memória dele. -Deus? Ele é amigo do homem. Teve ter crédito e tanto lá em cima. -Acha que ele já morreu, Camurça? -Um homem como esse nunca morre na lembrança da gente, Zé Goiaba. -Era um verdadeiro santo! -Era um magno exemplo. -Quem nos defenderá agora? Pobre de nós. -Quem nos arrumará Sopa, Remédio, Agasalho e Internações, agora? -Estamos órfãos. Estamos todos órfãos de alguma forma. -Estamos abandonados. Benza-Deus. -Precisamos nos mobilizar. -Quem tal fazermos um sindicato de moradores de rua -Você está sonhando, Azeitona?. -Irmão Saulo era o maior plantador de sonhos. -Sim, podemos nos mobilizar, temos força, somos muitos. 116 -Sim, podemos parar o trânsito, invadir palácios, pedir moradias. Poderíamos nos juntar aos Se Terra, Sem Cortiço. O que você acha, Centopéia? -Seremos tachados de subversivos, de comunistas, de agitadores, radicais. Não sacou que somos o lixo do lixo do lixo, Gasolina?. Vê se se enxerga, cara! Tome tento, se assunte, ora essa! -Estamos sozinhos agora. Somos o Vietnã do Brasil, cada cidade uma espécie de Saigon tropical -Mas o Brasil não tem vulcão, não tem terremotos, não tem geleiras, não tem furacões -Nunca tivemos uma guerra; não aprendemos a dar valor. Parece que tudo cai do céu. -Temos um terço de água do mundo, somos o segundo lugar em terras plantáveis -Não temos essas coisas todas, mas tivemos o militarismo incompetente, violento e corrupto no processo histórico. Temos os empresários corruptos, uns ricos podres, umas autoridades sórdidas... -Fomos colonizados por prisioneiros, depravados, pervertidos e ladrões do velho mundo...O país hoje é um grande barraco continental... -Valha-me Deus. Nem me fale! -Deus estará conosco! Minha Nossa! -Deus? -0- 117 SETE “Fechados em casa/Os homens escoram as paredes/Com os corpos/O mundo sem estrelas/Totalmente negro/Não permite que vejamos/A mão posta diante dos olhos” (Fragmento - Adonias Filho) Algumas anotações do Saulo/Paulo não foram possíveis conferir, talvez por estar em estado onírico, de devaneio ou situação excepcional semelhante. Mas procurei considerar alguma coisa, de alguma maneira crível e essencial a esse projeto como um todo. Mas o que me impressionou sobremaneira, foi ele narrar com riqueza de detalhes, a existência de uma vida não apenas do submundo paulistano, mas uma “existência social” no subterrâneo na cidade de São Paulo, onde parecia haver uma cidade de párias, doentes, viciados, marreteiros e moto-boys comandados por uma gangue de motoqueiros aliados de máfias e traficantes. No texto algo incompreensível, borrado (marcas de catarro, restos de cascas de frutas acridoces e sangue humano, inclusive), Saulo dizia de uma subcidade em Sampa. Como isso era possível? Dizia que tudo começava nos subterrâneos da própria Avenida Paulista toda garbosa, mas haviam subramificações nos buracos do Metrô, no Anhangabaú, onde quase um milhão de pessoas viviam escondidas, praticando pequenos crimes, infrações, furtos rápidos, e depois se escondiam nesses buracos de ratos, de tatus. Eram os rejeitos da escória da rua da amargura. Eram os inferiores aos moradores de rua, porque subjugado por condições difíceis e, de certa forma, a serviço do mal que ainda, de alguma forma, os dava estrutura. O preço de viver ali, com uma sopa rala à noite e um café com pão e banha de manhã, era servirem de pequenas “mulas” intermediárias dos narcotraficantes, abastecendo toda a grande e populosa cidade. O lugar como um todo era uma terra de ninguém, onde a dor jamais era ouvida e as lembranças duras de dias inglórios se perdiam sepultadas nos curtumes das sombras tenebrosas. Constou que a entrada para esse acesso vigiado, ficava perto da Estação Paraíso do Metrô, e que funcionários de áreas de serviços terceirizados da 118 empresa estariam mancomunados com a gangue toda, desde o portal até outras entradas e saídas furtivas, como passagens secretas estratégicas. Fingindo-se de mais doente e em situação precária que estava, caído na Avenida 23 de Maio, o corpo do Beato Saulo (para eles) foi socorrido ali, onde uma prostituta que tinha sido professora universitária de medicina prestava serviços, valendose de altas doses de heroína. No pouco tempo em que perambulou por esse lugar estranho, incrível, rodando-o como um se um labiríntico rocambole de monturos entre canos expostos (gás, esgoto, água, luz, fibra ótica) entre bases de prédios e raízes expostos de árvores centenárias, no submundo de uma Sampa subterrânea, Saulo viu o que de pior podia conceber de existir. Leprosos, aleijados, pessoas sumidas de circulação – dadas como desaparecidas ou “justiçadas” – ali estavam de uma forma ou de outra rendidas ou mesmo acomodadas (quando não reféns de alguma maneira). Havia também um Banco de Órgãos. Bastava uma pessoa do exterior, via máfia asiática ou européia, pedir o órgão, o tipo de sangue (davam até característica), e eles tinham no depósito - ou então futuras vitimas devidamente cadastradas pelas ramificações ligadas ao PAS (Programa de Assistência à Saúde) que era uma cooperativa de corruptos tachada nos bastidores de “programa de assalto à saúde” - onde eles conseguiam até mesmo em hospitais públicos os pacientes, os doentes, os repositores vivos que precisavam. Os jornais mesmo, sempre noticiavam pessoas que apareciam "achadas” em lixões sem os olhos, sem algumas veias ou alguns ossos, quando não sem rins, fígado ou coisa assim. Era o tráfico de partes de corpos humano, num mercado paralelo escabroso. Essas pessoas visadas, cadastradas ou mesmo já catalogadas (mesmo sem o saberem) desapareciam do percurso rotineiro (lar, escola, rua, clube, viagem), depois apareciam mal, aleijadas e “operadas” (clandestinamente) num hospital, normalmente com cicatrizes de costuras ou suturas de cortes, quando tinham sido extraído rins, ossos, havendo até casos de pessoas que apareceram cegas, porque os globos oculares tinham sido tirado para exportação clandestina via porto de Santos, com a benesse dos olhos subornados dos chamados podres poderes, principalmente elementos da Policia Federal e da Alfândega de Santos. Havia casos também de turistas estrangeiros que vinham em busca de menores – era um ramo da prostituição infantil – havendo um ramo que atendia a pederastas que vinham ao Brasil fazer programas com menores de rua e mesmo guris e meninas bonitas tirados dos lares para esse exercício. Depois de abalados pelo que sofriam, os que perdiam membros, órgãos, ou sofriam estupros e toda sorte de sevícias, então eram alojadas ali no 119 submundo subterrâneo de São Paulo, quando a troco de alguma ração para sobreviverem ainda prestaram serviços rápidos, quando não eram treinadas para serem vigiadores de cativeiros, pequenos furtos rápidos, assumirem infrações de adultos pois que eram imputáveis, fazerem serviços manuais primários, e coisas assim. Os miseráveis, mais os marginais de certa elite, no local, de vez em quando saiam dali e iam lá em cima, na cidade, seqüestrar um riquinho, um empresário, um doutor, uma autoridade metida a sebo, para fazer dinheiro (que chamavam Caixa Preta) que os mantivessem mais ou menos (ou quase seres) ali, sobrevivendo como subseres, quase ratos dos subterrâneos. Um relatório específico dele, dizia: “A Sampa do subsolo, undeground, subterrânea, é algo parecida com a superior, da superfícies, também tem sua desorganização disfarçada (pelo Quinto Poder que era o crime organizado), também às vezes caótica e muito ocupada, para não dizer explosiva. Na verdade é mesmo uma terra de ninguém, um paliteiro com pontos de fuga, buracos, túneis, poços, esgotos, fios soltos, formado oficialmente por perto de 100 mil metros quadrados, segundo me disse um elemento viciado em cola de sapateiro com lança-perfume. Encanamentos, galerias de águas fluviais, cabos de alta tensão, de TV, de telefone, além de perigosa rede de distribuição de gás, tudo isso com gambiarras, com fios roubando energia, com cabos e tubos desviando informações em redes paralelas, clandestinas. Toda soma das linhas num sentido reto, daria o equivalente a altura do Monte Everest, em torno de 8,8 mil metros, e quase doze mil Vezes o Aconcágua, de 7 mil metros de altura, e cerca de 500 vezes a própria extensão do canal de Suez que tem 163 quilômetros. A promiscuidade de redes antagônicas podem ser desastrosas, além de crateras que cabem vários carros populares dentro, além de áreas com corrosão e solapamento do terreno interior. Há muros de contenções de água erguidas com alvenaria, muitas com infiltrações vulneráveis a produtos químicos. Há derra120 mamento combustível e outros produtos corrosivos nas galerias de águas pluviais, com risco de algum ramo de esgoto ser perfurado por causa disso. O tráfego pesado também provoca tremores, com barreiras aqui e ali vindo abaixo, túneis a dentro. A chamada “intercorrência” (aquilo que se mete no meio em termo técnico de engenheiro) pode vedar galerias, acabar com saídas estratégicas, matar pessoas que, estaticamente, oficialmente não existem, estão na clandestinidade, a margem de dados oficiais. O próprio ar, roubado de áreas de ventilação externa, é sofrível, pegajoso, num ambiente escuro, abafado, aqui e ali com um reflexo de luz ou com uma velha lâmpada única, roubando fraca energia, amelando ainda mais o sombrio ambiente, principalmente quando não há recebimento das vazões exteriores da luz do sol. Quase tudo é coberto de entulho, de toda espécie. Há areia e pedregulhos. Há lugares que, em se apoiando numa mureta de risco, numa parede com cheiro de óleo díesel e perigosamente lisa, sem querer dá-se com fileiras de baratas gordas, quando não a galeria se afunila e é preciso caminhar com jeito, agachado, quando não desviado de gordos ratos que as vezes servem de pastos por menos privilegiados, doentes, tipos viciados procurando o que comer sem medir conseqüência. No lugar, ainda além de dutos, os gases inflamáveis como metano, hidrocarbonetos, monóxido de carbono e cloro sujo de uso. De vez em quando um tampo de bueiro explode, voa exterior acima, mas o pior é quando ele, por força do asfalto ter cedido (efeito estufa que amolece a composição), sai de uma boca de lobo, e desce buraco abaixo, fazendo um estrago, provocando explosões, matando, rasgando paredes, destruindo barracos, tendas, pessoas miseráveis que morrem rasgadas, e depois os corpos são tirados dali, largados em qualquer lixão ou aterro sanitário da superfície. Também há regiões que as escavações para aumentar espaços subterrâneos, ferem lençóis freáticos, e é aquela correria para salvar roupas, comidas, sobras de munições, material de refino de drogas(...) 121 Quem tentava fugir (e isso era raro), ou dedurar, era simplesmente morto, eliminado, e seus órgãos traficados. Também, ali num ermo subterrâneo fétido, úmido e cheio de ratos de um canto na Avenida Paulista com a Estação Paraíso do Metrô, havia um Banco de Sangue que supria – a custa de doadores forçados (principalmente as instruídas vítimas do rol dos miseráveis) – os bancos paulistas, brasileiros e mesmo latino-americanos, pertencentes à chamada iniciativa privada. Enquanto nos hospitais públicos, faltava sangue, ali havia o bastante para venda a dobro do preço aos coitados catados na rua e que cediam a troco de banana. Quando alguém morria por seguidas doações – eles estimulavam algumas quimicamente – eram simplesmente desossados e os ossos vendidos como se de animais para fábricas de goma arábica, ou exportados. O maior mercado de pele e ossos (e pedras de rins humanos), além de cabelos e unhas, eram, os Estados Unidos. O que era bom para os Estados Unidos eram bom para o Brasil? Havia ainda os bem montados micro-laboratórios de refinos de cocaína, pertencente a uma turma ligada a policiais de Campinas, tendo como assessoria jurídica “competente” em Sampa, o filho de um Desembargador, que, estranhamente, sempre era o mesmo a decidir em instância superior contra o maior corrupto do Brasil. E mesmo assim, ou deixava vencer prazos, prescrever situações, dando sempre pelo arquivamento dos processos, sem saber que já tinha sido visto com o Turco Ladrão em Campos do Jordão, no Exterior, e que estando o corrupto sendo investigado até pelo FBI, certamente, cedo ou tarde, ele iria cair na armadilha, em que pese as suspeitas leis brasileiras só protegerem os ricos e poderosos, e valessem apenas para quatro pês, como se dizia: Pretos, Pobres, Prostitutas e Petistas. Pois esses laboratórios itinerantes com alta tecnologia de ponta, era sustentado pelo crime organizado de Sampa e do Rio de Janeiro, mais dinheiro lavado da Colômbia, e as máfias de todo tipo, juntando ainda a grana alta de políticos envolvidos com traficantes e ligados a partidos chamados liberais do nortenordeste brasileiro, mais alguns “terroristas” falsos de países que faziam fronteira com o Brasil. Uns boys motoqueiros disfarçadamente armados faziam a ciranda de vigia rotineira no local, acompanhando entradas e saídas, dando retaguarda para os negócios escusos, sendo os seguranças e vigias da ordem marginal imperiosamente mantida ali. Era uma subcidade que respirava pelos buracos 122 de cimento armado, que tinha água furtada em subterrâneas torneiras internas das entranhas da terra, onde tinham toda sorte de estrutura arrancada dos porões dos prédios e ainda com ramificações estratégicas em garagens e edifícios de serviços públicos atrelados... A “entrada de serviços” (por onde era reposta a muamba toda) chamada Portal A, era um bem disfarçado buraco de esgoto com capim-gordura perto na Marginal Pinheiros, ao lado de um viaduto novo superfaturado, mais parecendo enorme boca de lobo, feito escoadouro falso de águas sujas, mas tinha sua vital importância pois era área próxima da rodovia marginal e com fluxo de trânsito (saída de emergência e receptação, pouco policiada) para aeroportos clandestinos e mesmo as rodovias Raposo Tavares, Castelo Branco, Bandeirantes e Anhanguera. Ali, entre monturos de pedras, lixos hospitalares e químicos, alguns tipos disfarçados montavam guarda, passando por bóia-frias, sem terras ou mesmo ciganos em sujas tendas improvisadas. A outra saída ficava num respiradouro de ar do metrô, lados da Praça do Correio, num buraco disfarçado que dava entrada por um estacionamento pouco usado, mas onde camelôs guardavam carrinhos, e onde, vigiados por falsos guardas municipais, os seres do subterrâneo de subcidade saiam para a vida, o sol, para o ar puro, longe daquelas entranhas putrefatas. Só que nessa subcidade os pobres viviam até melhor do que muitos no chão paulistano. Ali tinham uma espécie de “merenda” diária, água (roubavam de canos), luz (roubavam de prédios públicos), além da segurança de ladrão não roubando ladrão, antes sendo solidário, multiplicando as munições, dividindo os pontos de desovas e de passagem de maconha e crack, além de se ajudarem em doenças, quando todos sabiam que o falecido apenas tinha ido primeiro e que, cedo ou tarde, outro iria, até o fim de uma época, uma turma, pois logo outra vinha,. Outra era recrutada, sendo que os chefões tinham ali seus testasde-ferro de confiança, pois disfarçavam-se em bacharéis, doutores, milicos, empresários, isentos microempresários da lavagem do dinheiro sujo, bem nas barbas dos totens do capitalismo, que eram os bancos de lucro fácil, pois o teatrológo Bernard Shaw bem dizia que não havia muita diferença entre assaltar um banco, e montar uma agência bancária, tudo era a mesma forma de roubo. Além de tudo, destilava-se bebida ali, mas como era de pouco monta, acabava sendo usada como moeda de pagamento entre os próprios moradores, pouco 123 era vendida fora. Mais: falsificavam ali, desde tickets refeições, vales transportes, passagens, carteiras de identidade até diplomas de cursos em gerais, virgindades recuperadas e outras tantas transações ou operações ilegais. Alguns moradores-depositários eram severamente controlados, não podiam entrar e nem sair, Outros sabiam muito para dar as caras fora,. Quando viam que pelo menos tinham um canto para morar, porque a rua estava lotada de lixo humano. Em resumo, todos eram fichados em desconfiança, só os subchefes dos grupos ou os do alto escalão entravam e saiam das entranhas fétidas de São Paulo, mas sempre em ocasiões especiais, de assaltos a bancos, de mudarem cativeiros, de promoverem sequestros, de interferirem em passeatas para tumultuar (normalmente essa era a ala nazista). O resto podia roubar tranqüilamente. Era a corrupção que sustentava o precário capitalismo brasileiro, de forma sórdida bem manifesta ali em Sampa. Afinal, na América Pobre toda, haviam cinqüenta milhões de indigentes, dos quais a maioria no Brasil, com seus mestiços da uma periferia sem dono, sem estado, apenas o medo enraizado, o alheio tomando conta, o embuste, a empulhação. Terra brasilis. ............................................................................................................................. Pois ainda assim, foi nesse local incrível, que o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro conseguiu de um louco que passava maconha e artesanato de couro falso para uns ilegais imigrantes chilenos que naquele reduto eram discriminados e considerados a escória de uma ‘latrina américa” de tantos Pinochêts e que vendiam a erva e os trabalhos na Avenida Paulista, um desconhecido trecho de Olavo Bilac que dizia: “O dinheiro é uma força tremenda, onipotente, assombrosa, Todos o amam, todos o procuram, e, entretanto, todos dizem mal dele. O maior crime do Dinheiro é este: 124 Ele é o grande corruptos, o grande envenenador das almas, o grande prostituidor das consciências. É o seu crime formidável e terrível. Portas, que se conservam fechadas resistindo ao duro embate de um aríete de ferro, abrem-se ao seu tímido e quase indistinto bater de uma moedinha de ouro... O dinheiro alucina as almas e dá-lhes ambições que não obedecem a nenhum freio. O primeiro milhão possuído excita, acirra, assanha a gula do milionário. É um declive fatal e terrível, um despenhadeiro em que o especulador não pode parar. Essas grandes fortunas, essas realezas do milhão, essa plutocracia brutal, em que há o rei das estradas de ferro, o do petróleo, o do ouro, o dos diamantes, o da navegação, e até do trigo – essas grandes fortunas, mantendo e desenvolvendo cada vez mais a ambição, acabam por converter os milionários em novos reis Midas, desejosos de poder transformar em ouro tudo quanto suas mãos tocam” Mas Dr. Paulo de Tarso Trigueiro tinha aprendido bem a lição da viagem de existir. Compreendia ainda que a felicidade era como uma borboleta, quanto mais a perseguia, mais ela fugia. Mas que se voltasse a sua atenção para outras coisas, ela viria mansamente, serenamente, pousar em seu ombro, em seu coração, em seu íntimo... Também foi ali, tentando escapar sem deixar rastro, como uma lesma cega, que compreendeu que só o fim da vida dava sentido à vida como um todo, e que Deus estava mais próximo dele do que a sua própria jugular. E ainda escreveu, num rasgo de papel de pão com nódoa de haxixe velho: -“Não sei se o que transcrevo, passo, arrolo, registro, torno assento, por metáforas, parábolas, despojos quase diuturnos, de alguma maneira transtextual (ou mesmo pantextual) pode apontar alguma coisa, além de só sugerir. Pareço-me às vezes estar num delírio místico, sempre perplexo, 125 sedento, talvez míope ou louco de algum modo, tentando com esse garatujar obsessivo pôr ordem da desordem. Afinal, os seres humanos gastam a maior parte do tempo e do dinheiro parecendo o que não é. Eu, onde estou, como vegeto, quase escondendo-me de existir, colho lições dessa longa viagem que é a travessia da Vida, nem fantástica nem rala. Mas, graças a Deus, compreendi, que o momento de partir, não é o momento de se preparar para partir, e assim eu pude ser servidor do homem, não explorador dele. Que o bom Deus-Criador tenha piedade de mim. Afinal, a caridade é sofredora mas é benigna, não é invejosa, não se trata com leviandade, não se ensoberbece, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade, pois a Caridade tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, pois a caridade nunca falha, como disse o Apóstolo Paulo aos Corintios(...)” . -0(FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO, SALMO) 126 CAPÍTULO TERCEIRO – APOCALIPSE (FINAL) “...as pessoas marcadas são perigosas, pois sabem que podem sobreviver” (Josephine Hart – Perdas e Danos) 127 UM “Se não houver frutos/Valeu a beleza das flores/Se não houver flores/Valeu a sombra das folhas/Se não houver folhas/Valeu a intenção da semente” (Henfil – l944/l988) Qual a verdadeira geografia exata do espírito incontido do homem? O homemanimal-racional é um ser sozinho no espaço? Qual o estranho mapa do tesouro da alma desse ente entrevado em si mesma? A alma é o depósito-crédito da salvação? Qual o sentido de nos reconhecermos irremediavelmente perdidos e ainda assim prosseguirmos como lesmas lerdas deixando a nódoa de nosso vagar na crosta epidérmica da havência terrestre? Como estar na pele – dores, sentimentos, misérias (fome, violência), - de um pobre coitado e miserável abandonado pela sociedade inumana que o ignora presencialmente e o rejeita socialmente falando também? (Como é dura a dor de uma liquidação existencial!) Quem protege o mundo dos desafortunados, os excluídos sociais do acumulativo capitalismo selvagem e suas oligarquias de feudos que legam-nos convulsões camufladas e holocaustos silentes de ódio legado? Qual é a chance de nossa salvação em alma-cor-sombra-dor-espírito por causa dessa ignorância causal da realidade sofrível que nos permitiu fundar os chamados “povos de ruas”? Qual é a nódoa moral que mascara o sentimento de um mundo todo em desvario, de raciocínio precário, eticamente obtuso? Qual é o sinal que não podemos nunca deixar de enxergar, de ouvir, de sentir – como se um aviso contra nossas trincheiras de lucros injustos, lucros impunes – feito o brado silencioso de horrendas hordas de infelizes? (Como é amargo o cálice da existência impacífica do homem garrote do homem!) O quê a sobrevivência extremamente difícil faz ao espírito dos injustiçados da vida? Que triste passaporte de angústia futura, em nosso seio social (de 128 descendentes) carimba uma dor fatal e odiosa de estruturar, paulatinamente, a cada dia, a tempestade social que se prenuncia a partir da ignorância pública no imperativo curtume dessa vasta gente humilde no subsolo infinito do nada? Que marca (para sempre) é a histórica insensibilidade política de cinco séculos? História de fracassos (e perdedores) não são contadas com facilidades nos becos, guetos e cortiços abertos das ruas. Os livros dos dias têm os destinos dos abandonados por aventados filhos de Deus? Não, nem todos os livros foram escritos, nem todos foram abertos, nem todos foram aceitos, nem todos têm a vileza do homem escrita com sangue. (Como é fácil medir a consciência pelo peso da insensibilidade lacrada com limo de lucro-fóssil) Domesticação e camuflagem de realidades-nódoas fazem, do acerto coletivo da elite dominante (no sentido de fingir e ignorar históricos contrastes sociais) uma eliminação da verdade lactente que bate à nossa porta diariamente, de diversos modos e maneiras, e nós, totalmente insensíveis, como totens, fechados em grades, alarmes, grifes e consumismos, pensando que varremos para baixo dos tapetes das etiquetas, toda miséria, toda fome, toda subvivência, todo ser social circunstancialmente inferiorizado, isso somado de forma camuflada que fica por isso mesmo?. Somos o que pensamos que e somos? Ou pensamos que pensamos? Ai de ti Planeta Vida! Que vítimas de revés no cálice do devir somos nós, num tédio adquirido, insanos que nos tornamos (e broncos) para não ver a realidade óbvia da insensibilidade patriarcal que rege os podres poderes? Clamam por justiça, os miseráveis, mas fazemo-nos de surdos. A dor devora o espírito dos desgraçados e mancha a sociedade que os ignora de forma inumanamente radical. Que confinamento é o da falta de sentido plural-comunitário de uma vida em prol dos descamisados? Até quando essa mancha na história dos povos com rótulos de “civilizados”? A dor e a fome geram lucro. A dor e a fome têm estruturas ricas por trás. Empresas mandam funcionários embora, têm mais lucro e suas ações sobem no mercado das bolsas de valores. Que raio capitalismo é esse? É isso que queremos, que resultou do chamado fim das ideologias sociais? Oferta de injustiça e procura de posses? Terceirização de subviver? Mais valia de exercícios efêmeros de poses? Exercício de maldição como legado permitido recíproco? A esperança é a inteligência de um instinto de sobrevivência, mesmo que amaldiçoado pelas altas classes sociais. Viver é tão pouco. 129 Vivemos em média sessenta anos, setenta, oitenta anos, se tanto. Somos bons? Se o somos, para quem? Para quê? Não confiamos nos estatutos da desgraça que o descaso social sem limites preconiza, apontando-nos eliminação vários tipos de agressões de retorno, seguranças supérfluas e caras (pagas com o desvio de salários justos), armas poderosas e inúteis mas que só matam, não matam a fome, e perdas humanas irreparáveis (de todas as classes sociais) para o futuro de nossos descendentes, fundando um futuro mundo de conflitos, com sérias perspectivas de desastrados retornos em tragédias e vinganças abarcadas geneticamente. Meu coração foi apunhalado pela realidade cruel da vida dos povos de rua, a maioria, a massa de manobra, os povos de rua, furacão humano, vulcão de quase irmãos. Os Sem Amor – frutos dos Sem Terra, Sem Salário, Sem Emprego, Sem Pátria, Sem Teto, Sem Nada. Frutos do Modelo Globalitário, o totalitarismo da globalização neoliberal. Marginalizamos os pobres, ignoramos os desesperados. Nunca viajamos para dentro de um Brasil real? Que país é esse? Que povo catolaico é esse?. Que soma é essa que divide, multiplicando dezelos;? A população de rua é um ignorado holocausto de retirantes, de desesperados, de fugitivos da fome rural, de lixo pós-moderno do neo liberalismo cão, neo liberalismo câncer. Um holocausto de crianças alienadas, de jovens sem saída, de velhos apodrecendo em filas, de migrantes, mestiços, negros, quase pretos, pardos e outras sub-raças sub-viventes, desse planeta que em nome de um amoral modernismo reformador internauta globaliza a miséria absoluta, a corrupção endêmica institucionalizada em todos os níveis, tornando a violência e a mentira irmãs, a prostituição infantil e política baseando tudo. A ignorância dessa realidade emergente que brutaliza o sentido mágico da vida, na verdade dá-nos passaporte de insurreições silenciosas, concedendonos atestados de vilezas e disparidades existenciais, além de nos figurar como desumanos primatas, débeis e irracionais. O fim do mundo? O fim da espécie? O desmundo? ............................................................................................................................. Ao fazer essas anotações de desabafo doído, lembrei-me de Jesus Cristo falando aos seus discípulos. Pois eu tinha lido uma oração-salmo quando bem jovem ainda, em Itararé, no verso de uma folha-dia da famosa Folhinha do 130 Sagrado Coração de Jesus que ganhara de presente de natal da Dona Doquinha da Santa Casa de Misericórdia, e a guardara numa carteira de couro que, depois de puída, rota, foi largada num canto qualquer de tarecos com seus pertences pessoais desprezados. Pois, ao resolver ganhar a rua dos abandonados, a rota de fuga dos que não tinham saída de emergência, lembrei-me daquela publicação graciosa e edificante, e, foi com grande prazer espiritual que achei tal página arrancada de um antigo dia passado de minha vida sedentária de lobo caminhante, e lá estava a pequenina folha com a bendita mensagem universal, papel amassado, amarelado, mas ainda sendo uma espécie de oração de honra da espécie. Quase um tributo à vida. Consegui que um amigo de escritório de fotocópias me aumentasse aquele “texto-talismã” abençoado pela expressão do único filho de Deus. Não havia preces outras, promessas de venerações pecaminosas, crendices arcaicas, simpatias-logros, santos de pompas e vaidades montadas em trevas inquisitórias, sequer mensagem dita neo-esotéria do embuste Nova Era - que dava muito dinheiro para espertalhões e estelionatários de espúrios curandeirismo com trânsito na própria mídia internacional – que substituíssem uma linha sequer do Mestre Rabi, que pregou, e que dizia: Bem-aventurado os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. 131 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, dizerem, calúnias e maldades contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós. (Evangelho Segundo São Mateus/Capítulos de Um a Doze – da Bíblia de Jerusalém – tradução trilingüe direta do hebraico para o inglês, espanhol e português/Edição limitada/l.997/Publicação da ONG Cristo Não é Religião/Cristo é Caridade, Sede para as América, Arizona/Novo México/Estados Unidos) 132 DOIS “Um sistema de desvinculo: boi sozinho se lambe melhor. O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá amor; condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços..” (Eduardo Galeano) Paulo ou Saulo, as mesmas pessoas na dubiedade de um sendo cristão, humano, ético, outro sendo um burguês de classe dominante a auferir lucros a qualquer preço, a qualquer custo, somando suas riquezas impunes às riquezas injustas como prego São Lucas, para o contexto de seu meio e suas seqüelas de seus históricos contrates sociais. Por isso, Saulo, O Irmão dos Pobres, tinha vergonha de registrar tudo o que vira na rua, um holocausto desconsiderado pelos órgãos governamentais do mundo, mas, pior do que as guerras, o nazismo, o fascismo, porque, desses ainda houve contestação, denúncias explícitas, resposta de uma parte horrorizada da humanidade. Mas os cidadãos de rua – Paris, Nova York, Moscou, Lisboa, Londres, Rio, Berlim, Buenos Aires; países chamados Tigres Asiáticos (e seus neoescravos) e outras áreas subdesenvolvidas de justiça social com piores condições ainda, davam o volume do holocausto de abandono social sem precedentes da história da civilização terrestre. até o extremo da situação contemporânea. Saulo tinha seu carrinho de supermercado roubado de um estacionamento enorme deles, e era tudo o que possuía. Aquele pertencimento era seu lar, armário, muleta, carrinho de mão, estoque, quase parte do seu todo corpóreoespiritual. Um quase filho de arame e alumínio, rodinhas e comando direto e imediato. Dentro desse baú de restos, as sofrências de seu butim das ruas, um balde velho manchado de tinta seca, sacos de lixo de supermercado, roupas 133 velhas encardidas de cerotos e manchas de sangue, poluição, miséria e suor, cobertores (puídos corta-febres) comido por ratos e baratas, lampião que mal funcionava de velho e defeituoso, latas de mantimentos, papelões, trecos inúteis, alguns poucos documentos que nunca davam identidade alguma, tocos de vela, cascas de frutas para chá, uma esperiteira enferrujada, tocos de lápis e uns cadernos, além do acervo básico: arroz, açúcar, sal, óleo, aspirinas roubadas de um camelô de rua, uma foto velha de um Jesus de costas sob enfoque de Salvador Dali, um punhal pequeno sem cabo, uma faca comum, uma colher, um garfo de três dentes e um pente velho já desdentado. Era tudo (só isso) que possuía de bem, de posse. Quem era a maioria dos cidadãos de rua, naquele holocausto de “trecheiros” (onde estavam as ONGs e seus sociólogos – onde estavam os marxistas de dialética pura sem moedas podres e bandas sociais de pés na cozinha do FMI?). A maioria de nordestinos e descendentes deles, pretos, pobres, crianças largadas (com ou sem abusados “pais de ruas”), traficantes de baixa categoria, devedores de pensões, bicheiros e traficantes, velhos atirados fora de casa por filhos canalhas, fugitivos de prisões ou arapongas do crime organizado, expagadores de penas que foram recusado no retorno à casa (ou à sociedade), cafetões, prostitutas cerzidas, pedintes rastejantes, aleijados (de toda sorte – há pessoas que são aleijadas por dentro, disse John Lennon), fugitivos da lei com paradeiros desconhecidos, fiscais corruptos querendo tirar vantagem de tudo, cabos eleitorais prometendo vantagens e exigindo mais do que davam, viciados sem escrúpulos que dormiam onde passasse a ressaca ou a depressão pós-dependência. Mercadores de todo tipo, desde contrabandistas informais, a traficantes de fundo de quintal, desde camelôs de quinquilharias inúteis a varejadores de fabriquetas (de falsas grifes – cabritadas) de periferias ou favelas passando de pobres, ex-favelados fugindo de matadores ou traficantes que, por eles denunciaram o juraram de morte, desempregados de estúpidos planos econômicos que, de alguma forma, covardes ou não, vítimas das circunstancias, largaram a família não apenas por não terem competência para reação, mas porque não havia luz no fim do túnel mesmo, a não ser que se matassem para formar-se de “justiceiros” de ocasião. E as coisas ainda iria piorar mais, diziam. Eram sub-seres pedindo para morrer; uma bala perdida seria o reino dos céus; um atropelamento seria a muleta de um hospital; um linchamento seria o pagamento final; um filho de papai, milico ou deputado, a lhes dar fim com álcool ou gasolina seria sair do fogo do inferno terrestre para o céu de uma esperança limpa; uma doença ruim poria fim à desgraça, um pedaço de 134 comida deteriorada do lixão geral que era a cidade de São Paulo era o filé do comer sem medir risco. Sim Sampa um verdadeiro esgoto a céu aberto. Ratos do tamanho de coelhos, baratas enormes, sarna, malária, amarelão, cólera. Esse era o símbolo vulgar e amoral de uma cidade que conduzia o testamento de uma sub-raça, os miscigenados de três cores, branco, preto e vermelho. As cores da bandeira da cidade de São Paulo. Uma cidade de milhões de habitantes oficiais, sem estatísticas para os coitados. As máfias governando os governos. Uma pústula social de terno, gravata, farda e toga. A fina flor da espécie? Igrejas-circos. Igrejas-bancos. Máfias chinesa, japonesa, paraguaia, russa, italiana, norte-americana, coreana, vindo fazer estágio em São Paulo. Belas catedrais cercadas de grades, alarmes e câmaras de segurança, enquanto ao pé do desamparo total, pessoas expunham suas varizes, seus traumas, suas doenças, seus desesperos, esperando um milagre, sim, um milagre, mesmo que por uma fé com horário nobre, com agenda lotada, com catraca para regular o funcionamento, com um religioso celebrando seu ritual decorado bonito de pompa e vaidade, depois fechando o pão e o vinho em cofre com tantas senhas, tirando o hábito, batendo a porta, pondo os cidadãos de rua para fora dos templos que deveriam ser enfermarias, refeitórios, escolas abertas, franquias puras de Deus, bolsões de recuperação, áreas de atendimento médico ou de doação de sopa. Mas o seu país continental de tantos Contrastes Sociais era – e não tinha sido sempre? - uma ignótica. Para algumas potências (ou potentados do oriente) uma republiqueta de canalhas. Rotas de fuga da escória social de qualquer resto de sociedade decadente. Tinha sido assim desde as primeiras caravelas de degredados que trouxera seu câncer europeu confinado nos grilhões brancos das primeiras naus de despejos. A escória jogada no continente invadido. De Gaulle dizia que o Brasil não era um país sério. A tachada “descoberta” pelos portugueses que extinguiram milhões de índios e destruíram sua cultura nativa, fundando declamadores de latins, bastardos, mestiços, filhos sem pais ou pátria. Nascera aí o tristemente famoso “jeitinho brasileiro”. Depois a sórdida escravidão inumana, a inquisição amoral(a idade das trevas dos cruzados no velho mundo atingira o novo mundo e seus cristãos novos), depois uma libertação de escravos que “libertou” mas não indenizou, largando os membros das senzalas no mato sem cachorro, fundando aí os morros e favelas. Pior: uma "indenização” que indenizou os ricos escravocratas. Depois 135 uma Reforma Agrária em tempo mais que hábil, que João Goulart pretendia, e o golpe militar canalha de Primeiro de Abril de l964 recusou (tachando de coisa de Comunista), mas que ao seu cabedal de arbítrio e regime de exceção privilegiara um sul maravilha e seu mercado agrário-exportador, em detrimento dos coronelatos do nordeste preterido nesse modelo econômico, fundando agro-rurais bolsões de miséria e pontos de partidas de êxodos rural sem precedentes, migrações em massa, inchamento populacional nas grandes metrópoles da região sudeste. Depois, enfim, a democracia de araque (não era para ser uma democracia social?), pois nem todos eram iguais perante a lei, uns eram mais iguais que outros. E era um capitalhordismo internacional financiando o selvagem capitalismo tupiniquim com suas dívidas sociais impagas por 500 anos. E o que era São Paulo nesse contexto todo? A capital econômica da América Pobre. Corria mais dinheiro num quarteirão da Avenida Paulista, do que em todo o resto do país mais o resto da própria América latina toda. Mas haviam as riquezas injustas, as riquezas impunes, as periferias Sociedades Anônimas, a grife versus o crime, os contrates sociais. São Paulo era um tétrico modelo que não deveria ser um exemplo de civilização, cidadania, sustentação social pública. O Estado Público na verdade era privado. Agiotas do capital estrangeiro mandavam no pais e suas privatizações roubos, suas reformas modernas que não reformavam nada, mas davam vernizes novos a oligarquias velhas. São Paulo era uma cidade que, quando morria um filhinho de papai, rico, carro importado, relógio de grife, branco, aluno da USP, uma perua apresentadora demodê de programeco da TV fazia campanha (chorando histérica em frente às câmaras) do tipo “Reage São Paulo”, promovendo delegados torturadores de inocentes e fazendo coro com os cupinchas do arbítrio, políticos do tipo “rouba mas diz que faz”. Era uma “rica a qualquer custo” que se pregava contra imoralidades, mas tinha sido candidato pelo partido desse estilo de engodo, de amoralidade de meio. Era só uma perua bregamente maquiada que dizia ter bom senso mas era a pior ignorante políica, pois era falsamente metida a moralista só para aparecer e ganhar dígitos no ibope? Mas, quando morria todo final de semana, mais de cem pretos pardos, mestiços, nas favelas ou periferias pobres da grande São Paulo (mais de dez milhões de pessoas), ela não fazia nada. Um delegado torturou inocentes para arranjar culpados e ser promovido. Um juiz, tempos depois deu sentença pela libertação dos suspeitos de ocasião (suspeitos de sempre, pretos, pobres, 136 favelados) e chamou a sociedade de Sampa de hipócrita. Será que a tal apresentadora de TV, uma perua velha, poderia alegar ignorância disso? Tinha visão ampla para entender a malha turva da mídia, da qual era fantoche e ao mesmo tempo reprodutora de injustiças?. Demagogia de uma típica ignorante política atrelada à mídia, apoiadora de políticos corruptos e ladrões. Quem sorri para o ladrão que o rouba, é ladrão de si mêsmo, ladrão de sua cidadania, de sua ética. São Paulo era uma cidade onde um professor universitário de Direito (Constitucional, Filosofia do Direito, Direito Tributário, etc.) declarava em meio acadêmico sua preferência por um candidato a prefeito tido como o maior corrupto do Brasil desde 1550, e que, em país de origem de seus antepassados, teria as duas mãos cortadas. E ainda diziam que a grande massa de manobra dos corruptos no poder (sofrendo open-doping) da mídia eram os nordestinos, gente pobre, arraia miúda. São Paulo era um estado onde um promotor matava uma esposa grávida e não perdia o cargo. Onde dez por cento dos crimes apenas eram apurados, com os delegados (ser incompetente é uma forma de roubo?) continuavam existindo com salário de marajás, quando deveria tal classe ser extinta e não iria mudar muito. São Paulo era uma cidade onde um juiz trabalhista superfaturara os gastos com um palácio de justiça, e continua no bem bom de sua lida. São Paulo era uma cidade que criara um esquema para acabar com a prostituição infantil no norte-nordeste, mas verificou que as maiores ramificações desse tipo hediondo de crime eram na grande São Paulo mesmo. Um modelo econômico que financiava o sul maravilha, agravara os problemas sociais (mais a seca) do norte-nordeste. Se aquela era a maior cidade do Brasil, e era um esgoto a céu aberto, imagine o resto do país? O Brasil, afinal, como cantara Caetano Veloso (seu ídolo) era mesmo um enorme Haiti? O Haiti era o Brasil e São Paulo era a cloaca do terceiro mundo. E os moradores de rua sentiam o reflexo disso, eram o reflexo disso. Ninguém cai na rua porque quer. E depois que se cai na viela do anonimato social, sobreviver não tinha preço, risco ou medida. Eram sub-gente transformada em pobres hienas esquálidas que mal riam de sua própria desgraça, comendo o pão que o diabo amassou, comendo merda e 137 não tendo nenhum prazer em amar, existir, no significado que a palavra deveria expressar de conteúdo e filosofia. 138 TRÊS Dagmar Marlene foi conhecer Itararé, a cidade de seu amado, e se encantou pela cidade como bela jóia incrustada no sul paulista, quase às Barrancas do Paraná vizinho. Presumia que, entrando em idade, o querido Saulo (primeiro homem que a suprira , compreendera, respeitara e sendo cavalheiro e gente fina nunca a magoara) voltaria para a terra natal de origem. Como ele demorou a compor o quadro de sua interioridade, custou a voltar, e ela, que não era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, logo ganhou a noctívaga fauna boêmia de Itararé (famosa por seus bares, serestas, artistas, forfés, quermesses e gandaia generalizada), que ali se aprumou, ao mesmo tempo que arrumou sarna pra se coçar, já que era uma tipa “caliente” da pá virada em noitadas na peleja sexual que era sua fuga. Um dia, sem querer, em casa, sarando de uma noitada de sábado no Biribas Blues Bar, point de guaiú máximo da cidade, com MPB ao vivo, viu uma reportagem rápida a respeito dos moradores de rua de Sampa, e reconheceu de soslaio e de passagem, o acabado homem de sua vida, ainda pagando o preço na caridade, se acabando na rua, fazendo milagres aqui e alia. Teve muita pena dele. Comoveu-se. Como levou um susto, voltou-se para si mesma, mediu-se. Teve-se pena, bem maleixa, com quatro filhos que criara, dois de extraviados pais paulistanos rebeldes, e dois de pais Itarareenses que mal identificava quem fosse realmente, tal a sua inescrepulosa variedade de parceiros, na oxigenação de seixos íntimos. Sentindo-se desiludida, os filhos pinchados fora, trabalhando ou estudando, deu-se de beber ainda mais. Dizia que não era de trabalhar de carteira assinada, que não suportava ordens nem patrões, que ninguém mandava nela, que tinha sido poderosa e voltaria a ser. Alias, brigara com os pais, os irmãos, os amigos, os amantes, os vizinhos, seus relacionamentos eram doentios, ela sempre fora nariz arrebitado problemática, achando que o mundo que estava errado, mas nunca se aprumara de arrumar serviço sério, com horário para cumprir, fazer seu pé de meia. Quando o calo apertava, no entanto, apelara para uns e outros, quando era novamente inutilizada. Não era racional para enxergar um palmo além do nariz, mas se achava a santa, enquanto o mundo todo estava errado. Quando apanhava da vida dava-se de desculpas falsas. Ela era a errada. Errada? Os seus caminhos: a idade. Os dentes amarelados: os vícios. A pele escamada de noitadas: a doença. Estava novamente sem recursos, os filhos escolheram a longínqua fuga de estarem longe da mãe 139 desnaturada e ainda metida a ser o que não era. Acabou por passar mal, caiu em absoluta e perigosa depressão, passando necessidade, quando foi acudida por vizinhos que a desprezavam, achavam-na uma puta rameira (os pai também profetizaram ou intuíram isso décadas atrás), e ficaram com medo de uma tragédia envolvendo as imediações, além de com nojo do mal cheiro, e a levaram para o Asilo São Vicente de Paula de Itararé, onde ficou largada, sem ninguém de si para dar carinho de retorno ou prece de empenho. Ali foi definhando aos poucos, apesar de ter algum remédio ocasional, companhia de pessoas mais velhas e até certa comida regular. Mas a infeliz mulher, apesar de não ter estudo, profissão, não ser nada e nem ninguém, por incrível que possa parecer. não gostava de obrigações, de cumprir regras, julgava-se independente e livre para pintar e bordar. Começou a ficar louca, ver fantasmas no armário. Começou a falar sozinha. Remédios aplicados na marra eram inúteis. Uma noite de natal, de um ano qualquer, muitos anos depois de ir mirrando paulatinamente, num dia frio e com chuva, vestiu-se de palhaço, situou-se um pouco – tinha uma bendita mania de limpeza – e ajudou todo mundo se arrumar para a festa que nem era promessa ou pertencia-lhe, parecendo até meio esquisita, da esquizofrênica e quizilenta que realmente, no íntimo, mesmo disfarçadamente o era. Pois agitou, desmontada da pose anterior, fez festas como se louca varrida, mentiu-se que era feliz sendo ali a Rainha dos Miseráveis, a Dama da Noite, a Missa Nada – não tinha sido sempre assim a vida inteira? - alegrou com a balbúrdia toda os mais velhos somada a remédios que continham álcool, cantou, bebeu, dançou, estrebuchou (boca murcha, olhos fundos, dentes podres, mãos trêmulas) fez firulas, como se se dissesse presente no circo da vida e do meio. Mas haviam as varizes da alma, do espírito, da mente e do coração. Quando acabou o improvisado forfé todo, motivo de chacota e regalo para funcionários e visitantes surpresos que a sabiam casca-grossa, quando todos foram em busca do sono ou dos lares como se prenuncio da morte, e da realidade chocante, Dagmar Marlene não se deu por vencida. Não era disso, onde já se viu? Não era feliz? Ora, ninguém pode perder o que nunca teve. Catando uma antiga cinta com fivelas de couro de javali que guardara como parte do butim de áureos tempos em que era feliz e não sabia, tempos de vacas gordas em que o belo e esbelto corpo era sua arma de sedução e conquistas, arramou o pobre souvenir no cano enferrujado do chuveiro do banheiro 140 coletivo do asilo, e, ainda pintada de palhaço, nariz de bola de plástico vermelho e tudo, e finalmente enforcou-se. 141 QUATRO “Quantos filhos esperam a chegada de seus pais/Tantos deles não vieram – não chegarão nunca/A calçada não é casa, não é lar, não é nada/Não é nada mais que um caminho que se passa tão estranho para quem fica/As palavras no asfalto – nessa vida/São tão duras/O carinho não consola, apenas alivia/A calçada não é cama, não é berço, não é nada/Nada mais nos faz humanos sem afeto/E o medo é um abraço tão distante de quem fica/-Onde vai? – Nós estamos de passagem/Onde vai – Onde a rua nos abriga/Onde vai? –estamos sempre de partida/Onde vai? –Onde a rua nos abriga desse frio/(As pessoas que se enrolam nos jornais/Não são mais notícias/Elas não esperam de um papel de duas cores/Nada mais que um pouco de calor/A calçada não é pai, não é mãe/Não é nada mais que um abrigo, um refúgio/Tão estranho pra quem passa....) (Música “Jornais” – Thedy Corrêa – Banda Nenhum de Nós, in, Jornal Zero Hora 20.02.2000) Nas ruas as histórias tinham somente um final: sobreviver até onde posse possível, e que Deus tivesse piedade de todos. O instinto falava mais alto, o instinto de sobrevivência era o único eixo terminal que movia o sub-viver puro e simples, sem qualquer mais valia que o respirar por respirar, o existir por existir. Aliás, Viver era quase um crime. Alguns tinham medo desse subsistir. Sabiam que, a qualquer momento, por algum motivo (ou motivo nenhum), seriam atacados, atropelados, presos, inutilizados. Uma chacina, um erro, na forçada doação de órgão. A rua era a filial do inferno, descaminho, ponto de fuga para a baixa-estima e a degeneração. Para alguns, era o inferno da terra. Poucos compreendiam que 142 estar vivos era graça de Deus. Deus? Para alguns, Deus, Sinal Fechado, Sopão Comunitário, Esmola, Segurança, Sono, Porre, Morte – tudo era a mesma coisa. Estavam mortos espiritualmente. E essa é a pior morte que existe. Porque é uma “morte” que não abre canais de comunicação, não funda canais de esperança, não acessa o toque de Deus. A morte espiritual era quase um anulamento da essência de Ser. E as histórias dos moradores de rua, eram escabrosas, tristes. Algumas quase inacreditáveis. Só estando na rua para compreender os códigos-chaves dos miseráveis e porque desceram tanto. A maioria pedia, implorava piedade. Um tanto, mais pessimista-doente do que só abatido em todas as formas, ao sentirem piedade explícita de alguém tornavam-se mais que restos de bichos, mas monstros horrendos, partiam para a violência com as mãos, quando arrancavam olhos,. Rasgavam com dentes, pisavam o peito e a genitália das pessoas piedosas como se pisassem a alma do mundo. Eram furiosos até extremos. Por isso as histórias das ruas eram dantescas, anormais. Havia um homem idoso e com dentes podres, que chegara em casa e vira a mulher na cama com o vizinho seu velho amigo de infância. Com medo do que poderia virar, ou não ter forças para ousar tanto – uma espécie de medocoragem evitando o doloroso gume da fatalidade trágica – como um camaleão saiu escondido e furtivo como entrou, sem avisar, ganhando, com a roupa do corpo somente, a rua da amargura, seu ilhar-se de inútil fugitivo. Não matara os desgraçados, dizia ele, pois já estava morto com o que vira, e com o que sentira do que vira. Matara a paixão de sua vida no íntimo. Filhos largara, não os queria sabendo da baixaria da mãe. E da ocasional impotência do pai para lavar a honra. Honras? O abandono íntimo, a rua da amargura, era uma honra que mentia pra si mesmo. Era a fuga para o nada. Era o purgar-se, o vegetar-se, até que os dias seus fossem consumidos. Era na rua que punha sua baixa-estima, sua depressão, catando restos de lixões. Disputando espaço com ratos, baratas. Queria morrer. Mas a morte só escolhe os despreparados, os vivíssimos. Ele praticamente vegetava. Ou um outro que, cansado de subviver, passando fome, sede, tendo sarna, chato, convulsões, um dia caçou o cantinho garantido sob uma marquise do Irmão Saulo e lhe pediu, com carinho mas com postura resoluta e coragem de firmeza: 143 -O sr. poderia ajudar-me a me matar?. Sei que o sr. sabe como. Sei que o sr. pode. O senhor me ajuda a morrer e, por certo, Deus me encaminhará com a bondade do préstimo, da intermediação de sua benéfica ajuda. -Havia um outro, que tinha um escritório em Curitiba, mas cuja mulher, em tramóias de meio, traíra-o com o sócio da empresa, fazendo-o assinar documentos vários, depois o fizera perder a firma, largara-o para juntar-se ao parceiro do marido em negócios de imóveis. Pois ele caíra na rua, bebera, peregrinara e Sampa era seu reduto fechado, com medo de fazer a maior besteira da vida: tornar-se um assassino. -Um outro, baiano, me contara que seu pai perdera terras para um político baiano, um coronel sempre ligado ao poder, principalmente desde a funesta ditadura, quando aumentara em mais de mil por cento os bens, adquirira vários canais de Tevês. Quando o pai o acionara na justiça, matara o velho. O rapaz então intercedera ao juiz, mas não adiantou nada. O juiz foi morto antes de dar sentença contra o político baiano. Já pensando em atocaiar e acabar com a vida desse reacionário elemento nefasto à sociedade brasileira, fora posto por familiares, na marra e sedado, num ônibus e embarcado para Sampa, e então a rua era seu exílio de uma dura realidade. Eram todos classificados (às vezes até entre eles mesmos) como uns filhos da puta da vida, disse uma louca que tinha estudado filosofia, se envolvera com tráfico de drogas na USP, dedurara uns tipos, fora perseguida, policiais envolvidos montaram contra ela um flagrante, e acabou perdendo emprego, status, amigos, parentes, só escapando das grades por sorte. Pois rendera-se às evidências: os imbecis estavam no poder. Sabia do que regiam os calouros de Medicina na USP, todos despreparados para o trato com vida humana, como eram quando assediavam calouros. Sabia o que os veteranos faziam (julgavam-se se impunes com professores na retaguarda), e, porque nunca se identificavam culpados, no corporativismo de meio, os Diretores faziam vistas grossas, despistavam porque não podiam investigar inteiramente nada. Haviam riscos. Se fossem mexer em águas turvas, teriam lama nos pés, na carreira, na própria estruturação do curso e do meio. E bem sabia das coisas da rua, quando dizia seus palavrões em várias línguas, prostituía-se com mendigos aproveitáveis, querendo pegar uma doença grave e morrer podre, com seus restos sendo comido por larvas, vermes, escorpiões, pois estes eram melhores do que os seres com os quais convivera em corporativismo irracional de meio acadêmico 144 De outra feita soube de três crianças que sobreviviam de pequenas infrações e da catagem de `restos de lixões. Um dia viu os coitados, filhos de uma mãe alcoólatra favelada que fora pego por engano por justiceiros, fazendo uma sopa numa lata de tinta, onde algumas bolas eram fervidas sem sal mesmo. Acharam aqueles pacotes congelados de coisas redondas e pensaram que eram frios ou mesmo carne comestível. Quando Irmão Saulo viu, mal conteve um grito. As crianças estavam para comer glóbulos oculares de seres humanos, que tinham sido inadvertidamente jogados num lixão hospitalar porque estavam com o prazo de aproveitamento para transplante vencido Ficou sabendo de outras coisas. Vira acidentes, assaltos, tramóias, golpes, gangues, racistas, assaltos falsos, crimes de colarinho branco, tudo. Mas em qualquer ocasião, para as vítimas, os prejudicados, os bobos, os usados, as massas de manobra, as buchas de canhão, sempre tinha uma palavra de consolo, de fé, de esperança. Benzia, ao seu jeito, sem batina e sem crucifixo. Para uns, era um abençoado. Para outros, um louco, Para outros, um alcoólatra. Mas para a grande maioria de pessoa humilde era mesmo um Santo. E ele só queria o que todos deveriam ser: Seres Humanos. Bebia, sim. Para tornar as realidades mais aceitáveis. Comprava algumas cervejas que tomava quente mesmo. Chegara a roubar – na rua a ética de sobrevivência é irmã do instinto tribal que anima o ego atiçado. Fumara também. Mas não maconha. A dura realidade não era sobreviver, era o medo de estar vivo. Ganhou amigos e inimigos. Com todos aconteciam isso. Quando voltou à si na UTI, os filhos estavam emocionados mas paradoxalmente bravos. Queriam o pai de volta. Netos, parentes, ficaram de devolver o que dele receberam. Mas ele não queria nada, só sumir dali. Dagmar Marlene, ainda antes de ir para Itararé, atirada que era, ao se envolver com rapazes de aluguel – tinha grana alta para pagar por prazeres carnais aos montes se contaminara. Não era soropositiva por pouco, por um milagre. Mas engravidara de um traste. Ao saber – fuxicos, fofocas – do retorno do inferno, do retorno da merda da sociedade, o homem que lhe dera um sobrenome, um 145 lar, uma herança. fora em busca de um apego do seu ex, tentando o paliativo da reconciliação. Mas o encontrara pior que ela, pelo menos no aspecto estético. Pois ela, escondendo-se de ser o que realmente agora era, disfarçando-se e dando uma de alma caridosa, sem a rejeição explicita e imediata de seu amado – descobrira que o amava; que tinha sido o único e verdadeiro amor de sua vida – o ajudara a fugir, bem na barba dos segurança reforçados que subornara, dos parentes e dos caros médicos especialistas que o estavam desintoxicando menos do que comia e bebia, e mais da pobreza que Saulo queria como legado ou canga que fosse, mas como carimbo de passaporte para salvar sua alma no reino dos céus. Pois ali estavam, num barraco podre da Favela Real Parque, adjunto ao bairro do Morumbi, entre o Palácio do Governo e o rio pinheiros, entre o palácio do Estádio do Morumbi e uma área de riscos, o barraco do casal Saulo e Marlene. Eles eram a ajuda dos cantes, dos pobres. Eram mal vistos pelos traficantes, ladrões, justiceiros, pois atraiam gente. Sim, a fama de Saulo tinha descido entre os desafortunados. E ele passou a ajudar, dar sua benção, orar pelas pessoas, como paramédico até ajudá-los no que fosse possível. Como ele era sensitivo (a rua apura o extraordinário sensível das pessoas), sempre acertava nas previsões. Ora malária, tuberculose, tifo, gonorréia, leptospirose. Quando não um fígado podre, um coração arrebentado, uma bala perdia, um vazamento de gás, um barraco atropelando deslizamentos de terras. Sabia causas e efeitos. Encaminhava para hospitais, igrejas, ONGS, ou mesmo para cemitérios, asilos ou sanatórios. Dagmar Marlene era sua palpável realidade com o mundo lá fora. Servia de elo de contato. Tinha perdido a vaidade e ganho uma porção humana. Parecia até compreender melhor os pais que morreram de mal com ela. Era um pouco mais humana, ainda que tivesse um fogo nas ventas, uma volúpia para o pecado. Mas Saulo era uma espécie de seu Id, seu guardião moral. Desdobrava-se. Sentia que não iria para morrer, queria conhecer Itararé, Ter filhos, queria compreender melhor a loucura do milagre de um tipo rico e poderoso, que trocara o luxo e a riqueza para servir à causa dos pobres e oprimidos. Parecia um milagre a vida daquele homem. Tornou-se 146 mais do que apaixonada por ele. Tornou-se fã, fanática por aquele “beato”, aquele anjo terrestre, como contou-me anos depois seu filho. Milagre? Pois Saulo começou a realizar “milagres”. Afinal, sua escolha em nome de Cristo já não tinha sido um? -0- 147 CINCO “-Há um tesouro na casa ao teu lado! -Mas...não há casa nenhuma ao lado! -Então precisamos construir uma!” (Diálogo dos Irmãos Marx) ______________________________ A primeira vez pareceu estranhamente mais uma coincidência. Uma professora de Escola Pública viera ali ser benzida pelo Irmão Saulo, reclamando de sua solidão de infeliz, de relacionamentos tumultuados, de problemas de convivência amorosa, à tudo isso somado uma enxaqueca e uma vontade de morrer. Pois, depois de abençoado – uma palavra de conforto, um ombro amigo, alguém que escuta vale ouro em Sampa – ao despedir-se, num arremate o beato disse: -Adeus. Boas férias, feliz Natal! Cuidado para não voltar grávida das férias. A professora Rosalinda morreu de rir. Estava há mais de ano sem se envolver com ninguém. Estava com medo de amar. Pois voltou do recesso escolar apaixonada e grávida. A segunda vez, uma aluna já entrada na promiscuidade com amigos do alheio que rondavam as imediações da favela Real Parque – ali meninas de mais de onze anos estavam na primeira ou segunda gravidez, às vezes não sabendo quem era o pai - passando mal num barulhento jogo de pôker com cerveja das imediações, foi levado a Saulo, como recurso presto e rápido. Que quando a viu entrar, sentiu uma repugnância,. Vira sobre a aura dela, uma caveira lhe estendendo os ossos dos braços, como se seguindo-a, querendo tocá-la, não querendo perdê-la. Saulo benzeu-a assustado. Comentou com Marlene esse “ver” esquisito. 148 Dias depois, no ir e vir dos comentários do lugar, ficara sabendo que a moça tinha feito aborto na manhã daquele dia que depois de um primeiro gole de cerveja preta tivera um siricotico espumoso e fora levado até ele. De outra feita, avisou um rapaz para que deixasse de fazer e tremenda besteira que estava para fazer. Pois o rapaz deixou a gangue que iria assaltar um banco, e depois ficara sabendo que todos os bandidos da quadrilha tinham sido mortos, que o assalto fora um tremenda furada. Ainda outra vez, ao benzer uma criança, notou que ela conversava com o nada. Sim, falava sozinha, como se estivesse com alguém ao lado. Saulo não sentiu quem era, mas, inteirado (ao seu jeito de entender a redondeza terreal das coisas) avisou aos pais do menino que ele seria recolhido. Os pais ficaram preocupado, pensaram em fazer macumba, coisa assim, mas doas depois, ao chamarem o filho único de manhã, para levar à creche, viram que ele tinha morrido dormindo, mas conservando no rosto um sorriso sereno, os olhos brilhando (como se pétreos por uma visão cristalizada de luz), e ainda tendo nas mãos um gracioso bilhete de despedida, escrita com letras miúdas, dizendo que iria fazer uma viagem, que os encontraria depois. Coincidências? Milagres? Marlene assustou-se. A vida tinha limado o lado meio paranormal de seu amado? Outras coisas aconteceram. Um tipo de alta sociedade, ligada à família de corruptos que tinha uma universidade na Avenida Paulista tinha sido seqüestrado, e a policia fora sondar ali na favela, quando encontraram o Irmão Saulo indo à feirinha comprar peixe e banana. Um deles, de passagem puxou conversa: -Como vai, Irmão Saulo? Tem acontecido alguma coisa diferente por aqui? O sr. tem visto algo de novo? Alguma movimentação diferente. Saulo olhou aquele tenente da Rota e, na bucha respondeu, sem mais nem menos, sequer sem ser inquirido. Falou pelo seu lado sensitivo: 149 -O cativeiro do refém é numa pensão da Rua Aurora. O policial, assustado a princípio, depois mediu-se, mediu-o, e, sem pestanejar um só instante, passou via rádio a informação pretendida quente, mas o que aconteceu foi que era verdade o pressentimento do velho. O resgate não fora pago, o seqüestrado ficou de pagar promessa, os bandidos foram desmascarados. A imprensa veio alvoroçada. Irmão Saulo resolveu dar um tempo, sair daquele lugar, indo morar uns dias com uns restos de índios da tribo Pankararu que tinham se mudado da favela – um de seus lideres fora morto por engano – indo passar uns tempos lados da periferia menos violenta chamada do Embu das Artes. Quando voltou, depois de uma enchente – tinha havido mortes, deslizamentos na favela, o projeto Cingapura apoiado por mídia e dinheiro escuso, suspeito, era apenas mais um totem, não servindo mais que para mídia eleitoreira, não resolvendo nem um por cento do problemas de moradia daquela cidade de mais de 600 favelas e mais de dez mil cortiços ou condições sub-humanas de localização e moradia. Na favela, continuou a prestar serviços. Dagmar Marlene depois de muito exigida fizera um curso de enfermeira no Hospital Alberto Einstein e lhe era de mais valiosa ajuda. Só que Dagmar Marlene não tinha sido picada ainda, pelo mosquito da fé. E resolveu, numa decaída de convivência humana e pacífica, tentar ganhar algum dinheiro, como se estivesse em poder do velho Dr. Paulo. Deu uns telefonemas, exigiu resgate – queria fazer caixa para o caso do velho morrer de doença, de velho ou assassinado, quando teria seu pé de meia para continuar sobrevivência, pois a AIDS ainda não se manifestara, e tinha medo de não poder ter o máximo de filhos que imaginara. Incubada, não a tinha atacado inteiramente, talvez escapasse, quem sabe. Foi quando foi pega por uns policiais da Garra, dando uns telefonemas. Os favelados, vendo a mulher de seu melhor irmão de meio sendo atacada por quatro tipos, um soldado raso, dois sargentos e um capitão, movimentaram-se em paus, tocos, tijolos, cabos de vassoura e atacaram os soldados. Dois escaparam com vida. Dois morreram. Não sem antes comentarem 150 desesperados quem eram e o que estava fazendo a tal Dagmar Marlene, que não era boa bisca, e que eles, tolos, manés, defendiam. Então a turba furiosa se voltou contra Dagmar Marlene, e como a cascavel peçonhenta e traiçoeira que ele finalmente se revelara, e,. após surrarem-na com paus e pedras, lincharam-na no mais alto e seguro ramo de uma goiabeira poluída com folhas secas. Dizem que depois disso, a árvore que sempre dera frutos de polpa branca e depois quase que bichara pela poluição, sujeira e mau ambiente, depois voltou a dar frutos. Só que polpa vermelha e muitos bichos. Um milagre? Milagre foi seu corpo ainda ser achado com vida, mesmo depois de alguns segundos pendurado ali como um espantalho horrível preso por uma corda frouxa. Vieram uns policiais de reforço e a levaram para um pronto socorro popular das imediações. Com certeza se salvaria, talvez tomasse jeito. Só que o seu cheiro e sangue ficou muito tempo por ali, atraindo urubus, com pessoas vendo fantasmas (consciência pesada?) entre e cachorros mortos, ratos do tamanho de lebres, entre monturos levados pela correnteza de um rio após inundações, enchentes, quedas de barracos. Dagmar Marlene teria que pensar melhor sua visão de vida. Foi quando, pensando em encontrar seu amado na terra natal dele, pensou em ir morar em Itararé, e ali esperar pelo seu amado, sem saber que jamais o encontraria de novo, que decairia, que seria internada num asilo, que feneceria primeiro do que ele, mais acabada do que ele que, apesar de mais velho, ainda viveria por muito tempo entre os fracos e oprimidos, os excluídos de toda sorte. Saulo, que nesse ínterim, estava com malária – tinha sido picado, tinha sido contaminado – não soubera de nada nem pudera providenciar enterro digno para sua traidora. Quando foi inteirado de tudo, era tarde demais e estava desprotegido. Um dia foi acusado de curandeirismo ilícito e preso, sofrendo processo, encaminhado ao Carandiru. Poderia ter alegado ser portador de crime superior – no Brasil, qualquer pessoa rica, com ramo de influências e formada mesmo por uma faculdade de fins de semana em áreas longínquas, técnico-juridicamente poderia matar até três pessoas continuaria livre (haviam alguns que até pregavam que todo rico tinha direito a matar três pessoas). Mas Saulo não quis cadeia especial, sequer que dessem curso público de sua prisão, para não atrair a mídia e, pior, 151 envergonhar, de certa forma, seus parentes que pelo jeito agora o tinham ignorado definitivamente e de uma vez por toda. Era isso o que pensava, pelo menos. Pois foi cair num pavilhão horrendo da penitenciária do Carandiru, Zona Norte de São Paulo. Foi quando descobriu que, se o preço de viver nas ruas era uma carteira de acesso ao inferno, sobreviver no Carandiru era mesmo estar na filial da casa do diabo. Ali ele seviciado, roubado, agredido, condenado de meio. Primeiro porque era branco, segundo porque comentários maldosos de funcionários corruptos da repartição disseram que ele era doutor e de família cheia da grana. Para os presos, humilhar alguém diferente e metido a sebo era um prazer. Ele aceitou aquilo como se uma coisa que tivesse a pagar. Aos poucos foi sendo aceito, foi levando ao seu jeito, até que viram nele um melhor do que eles todos. Os anos que Saulo passou ali, não mudaram seu caráter. Ao contrário. Ninguém o podia atingir, se ele não quisesse ser atingido. Depois que passaram de odiá-lo, viram, com a consciência pesada – e um medo dos infernos – que aquele pobre ser na verdade era um verdadeiro servo de Deus. Uma igreja evangélica que prestava assistência religiosa e jurídica no local, conseguiu que ele saísse para ser albergado, trabalhando durante o dia e dormindo na prisão a noite. Mas ao saberem que ele só um amigo dos pobres, tentaram, depois da pena que lhe deram pelo suposto conluio na morte dos policias, o abrandamento da pena e, cumprindo um terço em liberdade, foi posto sem lenço e sem documento na rua. E a rua, para quem sai de uma prisão daquele potencial medonho, era quase que um paraíso. Afinal, o Carandiru era uma filial do inferno. Na cadeia tinha deixado seu testemunho de resistência. Se passara entre condenados e não se igualara a nenhum deles, também ganhara amigos e defensores, além dos, por ele, escondidamente convertidos, curados, salvos. Novos milagres que um aparato todo tentava dissimuladamente sondar, fazer vistas grossas, não o querendo mais no foco na mídia, pois ele posai fazer mal a seitas, crenças, ideologias, á própria Nova Ordem Mundial e uma falsa Nova Era que engodava (e obtinha lucros) com amebas que a buscavam de falso consolo, principalmente depois da queda da fase ideologia que tirara muita esperança dos que pensavam socialmente, no coletivo. 152 .............................................................................................................................. Das tantas pesquisas que fiz, havia uma interessante. Constava que o Irmão Saulo fora pego por um delegado que tinha amigos na Academia da Policia que tinham métodos supostamente “modernos” (de Primeiro Mundo civilizado, diziam) de saber investigar crimes e pessoas, e que tinham se valido de um chamado ultra atual Soro da Verdade para arrancar alguma confissão do Irmão Saulo, visando deixá-lo em dificuldades, gerar motivos para extorsões. Fiquei sabendo disso meio que em of, por um tenente da Rota que estava para ser expulso da policia, por estar envolvido com Matadores de Aluguel de Guarulhos, e que tinha medo de também ser eliminado como queima de arquivos, pois sabia muitos podres entre políticos, empresários e membros da alta sociedade local. Tentou conseguir com a Polícia Federal um tratamento especial ligado ao Serviço de Proteção à Testemunha vinculado ao Ministério da Justiça e ao Congresso Nacional, mas nada conseguira de objetivo dada à burocracia que emperrava a máquina tucana-liberal, depois roubara uma empresa alemã de jóias raras e, largando a família iria fazer uma operação plástica e sair do Brasil. Tinha intenção de ir para Miami, juntar-se a bandidos, prostitutas, corruptos, vagabundos e traidores da pátria (a curriola que restou dos tempos sujos da ditadura sórdida de Fulgêncio Batista) que o Comandante Fidel Castro estrategicamente tinha expulso de Cuba e que ali, com o apoio de braço armado da CIA, ainda covardemente postavam-se de forma mal intencionada (e dirigida) como se confiáveis anti-castristas. Confesso que, a contragosto tive que subornar o tipo, que me conseguira a muito custo copiar a mão alguns dados do depoimento do Irmão Saulo. Ele dissera muitas coisas, desde a frustração do berço pobre, do pai que o renegara, da mãe que soube por uma época de miséria caindo da vida, mas o que mais me impressionou disso tudo, não foi a visão que o mesmo tivera ao largar o ônus de rico podre entre pobres limpos, ou de que ao morrer viraria uma espécie de homem-pássaro, mas de que sentia, de alguma maneira, por alguma vaga lembrança de pequenino ainda – guardara no fluxo da inconsciência essa dúvida, essa quimera de relembrança? - de que tinha um irmão gêmeo e esse de alguma forma o ajudava num outro lugar, outro plano, outra dobra de dimensão terreal que fosse. Não pude compreender inteiro isso, mas era uma questão importante a ser observada e eu teria que correr atrás do 153 prejuízo dos fatos, com aquilo tudo me dando nos nervos, abrindo meu faro de questionador, de repórter enxerido e entrão. No mais, os depoimentos, tirando as partes emocionais, de meio (onde se corrompeu por causa do sogro, membro da chamada tradicional família quatrocentona de Sampa), as buscas desesperadas de si mesmo, haviam ainda algumas espécies de “revelações” que fizera aos atônitos policiais que ficaram surpreso com sua tão apurada paranormalidade desviada, sua intuição quimicamente dirigida, mais: sua lucidez extremada que lhes dera tento de que o Beato era realmente muito especial. ALGUMAS REVELAÇÕES (Outras, quero crer, ficarão melhor em livro próprio): -Os novos tempos do Brasil, tentando descobrir os podres históricos dos três poderes, poderiam atingir interesses cooperativistas de militares, autoridades judiciais e mesmo bandidos com imunidade diplomática ou imunidade parlamentar. A corja deles estava entre os chamados políticos de direita, todos bem encastelados, confiantes a continuarem mamando nos cofres público. Era a corrupção municipal, treinada com a corrupção estadual, enquanto a corrupção federal financiava devidamente maquiada (papéis escusos com rótulos de vernizes novos) o sucesso da economia norte-americana. -Ou seja, o sistema todo era podre. O país desde o golpe de 64 vivenciava, dia após dia, no trânsito, nas chacinas, nas brigas dos campos com grileiros e latifundiários, uma verdadeira guerra civil disfarçada, bem disfarçada. As estatísticas oficiais e, por isso mesmo camufladas da grande mídia, atestavam que o Brasil tinha uma “guerra dos balcãs” em suas terras, onde os pobres eram eliminados pela fome, pela miséria absoluta. -Revelou também que, por questões de brigas de egos em zonas de fronteira no chamado Cone Sul, poderia haver riscos de uma sangrenta tentativa de golpe militar, bem como entreveros de divisa. pois certa caterva de marajás alojada em quartéis não queriam perder as benesses adquiridas quando estavam surrupiando o poder, em regime de arbítrio. -Revelou ainda que a miséria ainda iria aumentar ainda mais no Brasil, na América Latina (muitos países teriam terroristas aliados a capos traficantes no poder), o terrorismo tinha tomado um caminho social paralelo e bem lucrativo – a globalização da miséria e violência sem fronteiras também - e iria dar o 154 que falar no continente pobre da América que era mesmo uma latrina de interesses das grandes potências insensíveis e com grande poderia bélico. -Revelou também de guerras civis em países da África, violência essa, generalizada, provocada por hordas de miseráveis – sem fronteiras inclusive de armas e princípios tribais – todos tentando sobreviver à seca, às minas terrestres, aios interesses de ex-colonizadores e descendentes de colonizadores. -Falava de atentados que alguns políticos corruptos sofreriam, para que não tentassem levar de roldão, nas apurações de ilícitos, outros membros do crime organizado que sustentava o Brasil Real e seu tucanato (balaio de ideologias e muito nhennhenhen), de suspeitas privatizações-roubos, de duvidosos pedágios doados a amigos do alheio, de erário público saindo pelo ladrão da gangorra econômica espúria e suas bandas podres, moedas podres, planos econômicos com fitos eleitoreiros. Afinal, com mais de dez milhões em áreas atrasadas vivendo em miséria absoluta, tinha ainda o povão trocado seu dinheiro pau a pau pelo dólares, depois de eleito, FHC desvalorizou a moeda e tudo passou a valer a metade. Era uma empulhação com endosso dos três poderes. Quem iria pagar por isso? Qual era o verdadeiro nome do sócio do Brasil? O engodo estatal baseado em uma prostituição política também? Mas o que me chocara das revelações arrolei bem: -Algumas figuras feito corvos do arbítrio, eminências pardas, tinham revelado ao estagiário Dr. Paulo, quando ainda no começo de vida social em Sampa, ao lado de juizes eleitorais facilmente manuseáveis, desembargadores de bolso, militares babaquaras de alta patente, autoridades atreladas a certos antros de escorpiões ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) que Juscelino tinha sido propositadamente morto, que tinham colocado cocaína no uísque de Elis Regina porque ela falava muito (verdades), e que se Lula (ou algum membro do PT) fosse eleito eles saberiam como agir: reteriam matérias básicas de consumo comum (leite, açúcar, óleo, carne, trigo – como fizeram em tempo de Jango financiando atentados, greves e tudo mais), e, com uma montada convulsão geral bem arquitetada, o eleito seria deposto a título de se recuperar o equilíbrio social e da balança econômica. Parecia que o Brasil era apenas uma questão de lastro financeiro para o FMI e o Grupo dos Sete. Não interessava, aos Estados Unidos, uma grande potência em seu quintal. Por isso financiava a corrupção que sustentava o “capitalismo” amoral brasileiro. São Paulo inteiro – famílias, sociedade, instituições, meios, mídia, etc – estava 155 entregue às mesmas moscas que cresceram desde a colonização exploradora, o escravismo, a ditadura e o neo liberalismo de FHC e amigos do alheio. Só que, para Saulo, com sua sensibilidade excepcional, bem como a artistas, pessoas sensíveis, geniais, questionadoras, críticas, o esforço para compreender o universo (e o ser humano no contexto, claro – de onde veio, o quê é, para onde vai?) era uma das poucas coisas que elevavam a vida humana muito acima da comédia bizarra (que era o verbo Existir) e de certa forma conferia um pouco de dignidade na tragédia. 156 SEIS “Desde a mais tenra idade/Inicia teu filho no amor/Aos horizontes largos(...)/E ensina-lhe/A criar amplos interiores/Precisos – sobretudo/Se a vida reduzi-lo/A uma nesga de céu! (Dom Hélder Câmara) .......................................................................... No Jardim Ângela, a maior e pior favela do mundo, a mais violenta, a de pior índice de vida e de sobrevivência, Irmão Saulo foi sondar seus parceiros de desgraça. À eles levou um pouco de si, um pouco de Deus, um pouco de sua prática de amor e caridade. Para alguns, pobres coitados, era somente mais uma espécie de marginal disfarçado a se esconder de existir ali. Para os traficantes e seus nichos de armas e drogas, era um risco. Ele era perigoso. Pois passou a ser visto com exagerada desconfiança, depois seguido não apenas por miseráveis que não tinham nada a perder, mas também por luzes de improvisados repórteres e até mesmo alguns correspondentes do estrangeiro. Foi gentilmente convidado a se retirar, ir cantar noutra freguesia, com a promessa de erguerem um Posto de Saúde com a retaguarda básica dos chefões dos narcotraficantes. Como o Estado era incompetente, eles passaram a fazer isso também: dar assistência social – um remédio caro, um caixão de defunto, uma ambulância, uma operação, um tratamento, uma vingança que resolvesse um estupro, uma ameaça, uma dívida impaga. E, da maneira como Irmão Saulo e seu séquito foi “convidado” a dar no pira, só restava mesmo aceitar a retirada estratégica, ou morrer, quero dizer: aparecer atropelado, “suicidado” ou em montado em algum flagrante propositalmente arquitetado para acabar com a raça dele. Preferiu ceder. Ao menos poderia ver seus coitados amigos terem alguma coisa de assistência, em que pese, pelo abandono do governo, das mãos dos marginais. O Quinto Poder - a Violência – dando ao povo o que o governo com seus altos impostos desviava para banqueiros que financiaram sua 157 campanha de eleição e reeleição, para continuarem mamando nos juros das eternas dívidas externas, ou desviando verbas para cobrir cofres de corrupções herdadas do regime da incompetente, corrupta, violenta e senil ditadura militar. No Braz, bairro da zona leste de Sampa, conheceu um Chefe de Camelôs ligado ao esquema das propinas, que lhe confessara estar para ser atocaiado e assassinado, por estar revelando os podres da máquina pública municipal, envolvendo Administradores Regionais, Secretários Municipais e até uma penca de Vereadores da Situação. E no Braz o Irmão Saulo conviveu com a maior gama de moradores de Sampa: os Nordestinos. Com suas barracas de comidas típicas, feiras concorridas e barulhentas, quermesses caipiras com bumbos e triângulos, shows populares de forrós e repentes, cantigas folclóricas de roda, tudo, ao melhor estilo sertanejo de fugidios do agreste sertão e suas fomes programadas politicamente para a Indústria da Seca. Os nordestinos, discriminados, aprenderam a discriminar. Não votavam em seus colegas de região, mesmo que mestres, doutores, sociólogos, bem desenvolvidos. Pior: servem de massa de manobra para corruptos e ladrões, eram usados em seu miserê. Coisa para sociólogos estudarem. Por incrível que possa parecer, no entanto, têm os melhores humoristas, palhaços, artistas de circo que fazem troça dos problemas, sendo até considerados os melhores humoristas do Brasil. Milhões de nordestinos sobreviviam em Sampa, sob viadutos, cortiços, pensões com uma marginália toda. Mas bebiam, dançavam baiões, cantavam sua Asa Branca, rezavam pro seu Padre Cícero e Nossa Senhora. Eram tementes à Deus mas abandonados pela sociedade que via Deus somente em orações inócuas não em práticas políticas. Sob o Viaduto chamado Elevado Costa e Silva, conheceu gangues de travestis que atacavam curiosos e clientes; conheceu narcotraficantes cobrando dívidas de prostitutas; ficou sabendo de bandos de matadores de aluguel fazendo contratos escusos por ali; viu camêlos sendo apertados para pagarem propinas: viu feiras rápidas surgirem e sumirem; viu turistas estrangeiros serem depenados, viu ladrões infames roubando marmitas e vales de refeições. Viu velhinhos madrugando para ganharem lugares em filas enormes em busca de um atendimento primário gratuito. Viu assaltos, roubos, furtos. Compreendeu que o inferno tinha chegado. Que o inferno era ali. Ou, pelo menos, uma filial do inferno. 158 Pela ocasional cobertura de cimento armado, pela segurança dos prédios ao lado, pela companhia de turbas de carentes, Irmão Saulo fez estadia demorada sob o Minhocão. Ali passou dias e noites entre fracos e oprimidos. Conheceuos na alegria e na dor, na pobreza e da riqueza, na fome e na pequena infração. Com seus dons, pensava as pessoas certas nas horas incertas. Quando não evitava uma situação mais grave e fora do contexto do tempo de milagre, tinha uma palavra de paz, de conforto, de amparo. Como se um Antônio Conselheiro dos Pobres, logo sua presença ganhou uma legião de mendigos, fiéis admiradores e discípulos, a quererem beber de sua esperança-luz, das migalhas de fé que caiam de sua mesa de sonhador, de plantador de sonhos. Sua passagem aqui e ali, era um séquito. E dos prédios velhos daquele lugar abandonado pela estética arquitetônica, caiam pétalas de aplausos, lágrimas, flores, papel picado. Era adorado pelos sensíveis. Era um Beato, para os menos desafortunados. Mas estava ficando velho, a idade batera, a barba crescera muito e ficara grisalha, um improvisado cajado do que era antes um cabo de guarda-chuva grande lhe dava apoio. Tinha varizes, labirintite, problemas do músculo do coração pressionando as veias internas e o pulmão já com a marca terrível da rua.. Para uns, era um místico, para outros, um vidente, para tantos um filho de Deus no presépio do abandono social. Uma vez, madrugada de lua cheia e frio de junho cortando, foi procurado aos berros por uma velha da classe média alta, bem vestida, jóias, olhos azuis, que pedia uma ajuda pela sua dor. Era a otosporose fazendo mais uma vítima, sem medir credo, pose social, idade ou vaidade. Saulo mal tinha despertado para ir mijar num vão de construção, tomara um resto de água tônica quando foi alertado sobre a presença da velhota àquela hora da noite, que insistis em vê-lo. Parecia louca e estado lamentável de desespero e dor crucial. Saulo prontamente se cobriu, envolvo numa manta velha, pediu que a senhora sentasse num banco feito com dois botijões, um tampo velho de mesa e uns cobertores encardidos. Pois colocou as mãos peludas e trêmulas no punho direito da velha, que era o que mais apresentava deterioração epidérmica – e fedia carne podre – depois, com as duas mãos, subiu e desceu, do punho até o alto ombro daquela sra Parecia rezar. Parecia em transe. Suas palavras nessa hora eram egnimáticas. Podia ser uma prece, um murmuro, uma oração vertida intimamente. 159 Na primeira vez que fez a espécie estranha de “massagem”, a velha urrou de dor, como se estivesse sendo atravessada por uma lança. Na Segunda vez a mulher segurou o ímpeto, mas as lagrimas cairam aos borbotoões. Na terceira vez foi que se deu o bendito milagre: a pela de mulher como se foi cerzida pelas mão de Saulo, como se estivessem sendo fritadas no osso, recompondose na vermelhidão quente dos toques severos, diretos. Então ela sentiu que a dor a deixara, que os ossos receberam alguma energia, e, antes de desmaiar de “tocada”(o dedo de Deus?) murmurou um lânguido agradecimento demorado. Enquanto seus amigos a levavam dali, Saulo foi cercado por uma repórter e um cinegrafista de um Canal Pirata de produção independente, que filmara os uivos desesperados da mulher, filmara a operação de limpeza epidérmica o ou coisa que o valha, e agora o queriam entrevistar. Aquilo valeria uma nota como trabalho de frila (free-lancer) nos principais noticiários do país. Mas Saulo só queria dormir reconstruir a pegada do sono, descansar, Só que a velha (foi identificada depois), tinha vivido um milagre e ele estava na mídia. Mas a mídia tinha seus donos. Pelos padres foi acusado de charlatão Pelos crentes de falso profeta. Pelos espíritas de curandeiro. Pelos macumbeiros de débil mental. Para as bruxas, videntes, feiticeiros, videntes, paranormais, esotéricos, sensitivos, acusando de ludibriar a boa fé dos incautos. Mas ele estava onde estava. Não era um ignorante jogado ali entre escrecências sociais. Ele escolhera estar ali, e isso fazia sentido. Ele era politizado. Ele tinha estudo, cultura, lera muito. Ele sabia muito mais do que os pobres miseráveis que o assistiam. E sabia do holocausto das ruas pobres do mundo todo, mas da situação ruim também no continente africano, com 766 milhões de habitantes, expectativa de vida em torno de 53 anos, com 0,3% apenas de terra cultivável, oito países atrasados envolvidos em guerra (que interessavam às grandes potências), mais de 200 mil crianças lutando como soldados, o continente todo coberto por l8 milhões de minas terrestres, 3,5 milhões de pessoas fora de casa, fugindo ou em busca de trabalho (a sobrevivência), além de pelo menos 22 milhões de pessoas contaminadas com o vírus da AIDS, Isso o fazia tremendamente infeliz. Sampa tinha seu holocausto imediato e presencial. 160 Ele era ainda um irmão de sonhos, um irmão que, nas sombras, levava sua luz. Não queria ser uma mera autoridade religiosa, nem preocupar-se com dogmas, dízimos, rituais, nominações,, ou filosofias de baixo calão, sem um fito precípuo e imediatista de ajudar, amparar, salvar vidas. Ganhou inimigos declarados ao permitir descobertas em flagrantes de subornos e extorsões oficiais de um espúrio estado paralelo corrupto, além de alguns judas disfarçados na sua horda de miseráveis. Alguns queriam seu posto, mas não tinham sua estatura mística. Onde acampava com sua modesta trupe, era motivo de festa, de repórteres estrangeiros, de fanáticos por religião, de doentes em cadeiras de rodas, aleijados, loucos, leprosos, seres irracionalmente atacados pela vida ou largados de Deus. Ele era a única esperança que restava. Ele então sem mais alarde, pose ou sem querer aceitação de santificação (que isso era vaidade estúpida, dizia), então se prontificava a atender gratuita e com respeito. E dizia de curas, promovia a cura, profetizava a cura ou indicava o lugar exato para tanto, quando não dizia, no ouvido do cliente-paciente, a morte, a ruptura, o final, e o que a pessoa vitimada tinha que fazer para salvar-se. Muitos pacientes morriam em seus braços nessa hora, e ele os abençoava em nome de Jesus. Muitos , após morrer, tinham um sorriso nos lábios doentes, um olhar brilhando como se realmente, ao deixarem essa vida, estivessem, vendo a gloria de Deus. Como era época de eleição, sua imagem de ancião beato quase santo (cabelos brancos com cãs da cor da flor de algodão) foi usada aqui e ali, sem autorização. Quando procurado por um político que era ex-ateu, ex-sociólogo, ex-marxista, não viu ali ninguém especial, mas um tipo doente do ego, doente de má companhia, doente da mentira que a vida o fizera, doente de várias maneiras, Mas não viu cura para aquilo. O ser que à ele se apresentara entre fotógrafos e comitiva palacial, saíra como viera: doente para sempre. Uma vez foi procurado com a promessa de recursos financeiros por um tipo que promovia de cara lavada o mote de “rouba mas faz”. Mas ali o Irmão Saulo só viu o câncer de uma metamorfose ambulante, Não achou que ia ouvir o que teve que ouvir na teve, no horário político eleitoral. Todo mundo o queria perto. Todo mundo dizia que iria fazer pelo povo o que deveriam estar fazendo. Quase vomitou de nojo ou ouvir tanta mentira. Mas nenhum daqueles políticos, avena da rapina liberais, conseguiu uma só palavra dele, sequer profecia ou sinal de cura do mau-caratismo. O triste foi quando esteve sendo sondado para embarcar para uma capital do nordeste, para fazer a 161 campanha de um político corrupto, violento, irascível e ladrão que o queria em campanha de um parente. Ele, ao ser visitado por esse tipo, viu que o homem já mandara matar autoridades, juizes, promotores. Que aumentara em mais de mil por cento a grana da família; que perdera uma filha lésbica, viciada , poeta e comunista, mas que nem assim tinha sido tocado pela consciência. O moça tinha sido devidamente forçada a se suicidar. Muitas décadas depois, por continuar ainda insano, despreparo, foi lhe colida outra parte de si: um filho na flor da juventude. Mas nem assim aquele homem gordo, já condenado a morrer, se arrependera do enorme mal que fizera ao país, nem tinha sido sensibilizado para triplicar o valor do salário mínimo, ajudar os pobres. Era um homem que encarnava o próprio satã em terras brasileiras, pensou Saulo. Como estava velho, Saulo passou a valer-se de um par de muletas, pois não queria liteira, nem ser carregado. Aquele par de prótese lhe bastava. Punha-o em alerta, se movimentando, ouvindo, sabendo das coisas. Foi quando começou a ter certos “ataques” somados com estranhas distonias e sudoroses. Levado a um pronto-socorro, ali ficou horas sem ser tratado. Os serviços públicos estavam abandonados. Como passou o problema, pediu para ser levado de volta para o seu canto. Na fila de espera, sofria mais do que com o arrebatamento em si. Os serviços públicos estavam sucateados de propósito. Uma cooperativa de.saúde, além de inconstitucional era amoral e roubo oficial. Haviam interessem de bancos e agiotas do capital estrangeiro, interessado em venderem seguro-saúde de previdência privada por trás. Mas ele sabia mais do que podia dizer, do que podiam compreender os seus amigos tão solícitos admiradores. Nesses estados de “ataques” seu cérebro “voava” e ele como que recebia pensares novos, diferentes, que passou a escrever em um caderno especial, que só foi achado muito tempo depois, entre suas bagagens ruins, imprestáveis. Quase que as anotações importantes todas foram atiradas num lixão hospitalar ou mesmo incineradas. Em profunda crise espiritual mais o avançado estado da idade, marcado por certo niilismo inexplicável, tinha um sentimento de estrangeiro no mundo. Talvez os estudiosos pudessem explicar nisso um parentesco distante com a náusea do existencialismo pregado por Jean-Paul Sartre, como a agonia da esperança. Nesse estágio transcendental não cabia paralisia. Era um certo tipo de ascese que implicava na mortificação da carne e do isolamento, com a finalidade de buscar uma prática para a plenitude de uma nova vida espiritual, cujo ápice seria a união com o Deus-Pai-Criador. 162 Era como se uma caminhada mística para dentro de si. E haviam os estágios que ele, sem o saber, de certa percorrera bem ou aos trancos, e que eram: Primeiro, a Preparação com três deveres, sendo o primeiro a aceitação, sem revolta, dos limites da mente humana. Compreendeu ao seu jeito, ao seu modo, que não existia a possibilidade de libertação se conferirmos à mente um poder que ela não tem, o de ser ilimitada. Ao contrário, a grandeza residia exatamente na sua limitação: ela só aprende a relação existente entre as aparências e os fenômenos da matéria que são energias concentradas. E ainda assim tais relações não são reais, pois dependem do homem por ser ele mesmo quem as gera, e não são as únicas possíveis, mas as mais convenientes para as suas necessidades práticas e teóricas. A soberania da mente decorria de aceitar esses limites, e, ao aceitar a incapacidade de mente em ir além deles, estaria se preparando para ir ao encontro da própria libertação que sonhava feito um louco. Em segundo plano, como dever, precisava viver intensa e profundamente a agonia de não aceitar esses limites, de tentar e não conseguir apreender o que se esconde por trás dos fenômenos, de desvendar o mistério da vida e da morte, de saber se existe uma presença invisível escondida além do rocambole do tempo, do funil do tempo, do espiral do tempo e suas dobras abismais. Se a mente é impotente para a tarefa de transpor os limites, cabe ao coração atribulado essa espécie de “sexto-sentido” fazê-lo da forma devida: E era do coração que se lhe vinha o grito – Não reconheças nunca os limites do homem, rompe esses limites, negas o que teus olhos vêem, morre até mas diz ’Á morte não existe!’ É do coração que surge a esperança da fraternidade universal e de aplacar a terrível angustia de saber que a terra viveu e viverá sem o homem para muito além do fim do homem. Vencer a maior das tentações: a esperança é um dever primordial. O palco dessa tentação é a mente que delibera, e o coração que é todo alegria no afã, no mister de romper as amarras para alcançar e essência do verdadeiro conhecimento. A liberdade consistindo em libertar-se de ambos. Nada a temer ou a esperar quando se alcança esse magnifica liberdade. E nada existe então, nem vida e nem morte. Em terceiro lugar, a Marcha, com os quatro estágios-degraus em que ela se dá inteiramente. 163 O primeiro é o Eu. Imobilizado pelas trevas da sua insignificância e total desamparo, o Eu procura o seu senhor e o encontra: ele é o grito – seu companheiro de armas – É o Grito que arranca o Eu do imobilismo petrificante, na angústia-vívere de sua nulidade. E o tal Grito determina: “Ama o perigo...aprende a obedecer...aprende a comandar...ama a responsabilidade de pensar...ama cada um de conformidade com a sua contribuição para a luta...Sê sempre inquieto, descontente, inadaptado, crítico, provocador, radical. É o grito que agarra o Eu do nada sideral-abismal, que lhe mostra ser um fragmento do universo infinital. Precisa também, o espírito, nesse estágio, sair da dominação da raça, um ouro avanço-degrau, porque ela, por meio de antepassados, fala em seu nome, e com isso torna-o prisioneiro de um passado imemorial. Só se liberta dos grilhões da raça genético-espiritual quem sente dentro de si todos os seus antepassados, ancestrais, para em seguida acalmar-lhes o ímpeto, e finalmente passar para o filho a missão de superá-lo. O outro degrau é a Humanidade. Libertado da raça, o ser humano deve empenhar-se em “viver a luta do homem”. Que luta é essa? Iniciada nas auroras dos tempos, ele narra a história do homem ereto entre os símios dos quais descende, momento primordial e primevo de uma corrida que termina com a inexorável e terrível consciência da Morte! E como nenhuma luta contra ela é vitoriosa, o seguidor da estrada dos caminhos é exortado a enfrentar a vida, como seu espantoso turbilhonamento e buscar aventuras – dar sentido à difícil lição da Viagem de Existir – pelejar ser tréguas, crescer, com-viver com os homens, os deuses, os animais, porém sem se livrar do medo-senha porque a escura subida parece nunca Ter um fim. A terra é o quarto e último degrau nesse estado de “trecheiros”: Ela, inteira, com suas águas e suas árvores, seus bichos, seus homens e seus deuses, grita no coração de todos os sensíveis. A Terra, subida do caos, fez o homem e o homem lembra-se e sente piedade pelas gerações que o sucederam e que, amando e morrendo, abriram-lhe caminho. Cumprida essas etapas, surge a terrível visão: a terra inteira juntou-se a ti, tornou-se corpo teu, grita dentro do abismo. Depois surge outra visão: Deus! (Senhor, por que ruges como fera? Teus pés estão sujos de sangue e lama; tuas mãos também. Pesadas como pedras de moinho são as tuas mandíbulas trituradoras....Aonde vais? Choras, te agarras a mim, te nutres do meu sangue, alentas e bates o meu coração) 164 A Luta: É a partir dela e dentro dela que os impulsos de Deus se manifestam, entre eles o que o homem pode perceber é a dramática ascensão da matéria inanimada às plantas, destas aos animais e deles para o homem-Ser. Degraus que Deus criou para poder pisar e ascender-se? A última parte é a verdadeira Prática: São relações de cosmogonia. Uma relação entre Deus e o ser Humano. Nesse percurso pré-final de configuração, os sentidos são renovados, reviçados e purificados por excelência, e nem cabe mais explicar o ritmo da marcha de Deus-Pai-Criador, mas sim fazer com o que da nossa fugaz existência com ele sincronize. Não importa o nome que damos ao círculo supremo as sagração das forças turbilhonantes, mas nos acostumarmos a chamá-lo de Deus porque desde as infinitais dobras dos tempos ele nos comove, nos toca, nos supri, nos intui, nos exercita em caminhos e descaminhos, com desvarios ou não, de nosso rebuscá-Lo. E aqui Deus é definido em nós tanto pela via negativa como pela afirmativa; não é onipotente, não é onisciente, não é de todo bondade, é homem e mulher, é moral e imoral, é excremento e espírito, é naufrágio e âncora, é balaio e tampa. E em nossa carne efêmera corre perigo: ‘ ” Não poderá salvar-se se nós, com nossa luta, não cuidamos disso; e não nos poderemos salvar se ele não salvar-se em nós. A última fase é a relação entre o homem e a natureza. O mundo que nos chega aos sentidos de duas forças prodigiosas: uma que desce e busca a imobilidade e a dissipação e a outra que sobe, procura a liberdade e a imortalidade. Essas duas forças aparentemente contrárias, se entrechocam sempre, perpetuamente, reconciliam-se e voltam a guerrear por todo o Universo, desde o torvelinho de uma gota de água até a infinita torre binária de astros da Galáxia. Afinal, constata-se que o homem e o mundo são um, que formamos um só exército, que anêmonas ou quasares combatem à esquerda e à direita, não se conhecem mas lhes acenamos intimamente até. Nem por isso o homem está livre da condenação ao niilismo, a um projeto inútil de vida, a um absurdo de conceitos, filosofias ou empreendimentos. -0165 SETE “Vive-se nessa dimensão de tempo e espaço convivendo simultâneos com outras dimensões do Existir. Próximos, ao mesmo tempo infinitamente distantes. Exigir-se numa densidade da matéria que, exceto em raras exceções, nunca consegue ultrapassar os limites intransponíveis en-tre-mun-dos” (Decio One) Um dia, perambulando pela Rua Augusta sentido da Paulista – ele adorava passeatas; para ele era o movimento do povo se empolgando a procurar direitos e mudanças era sinal de viço democrático - Irmão Saulo, fugindo um pouco do assédio de seus amigos rueiros, deu-se frente à uma velha loja de móveis usados. Foi quando se viu num espelho com detalhes em bisotê de alto relevo. Não acreditou. Ficou muito impressionado. Meu Deus! Assustou-se. Teve-se medo. Não se reconheceu “naquilo” que se via entrevado. Quem era aquele? O quê era aquilo? Não, não, certamente que não era mais o posudo doutor, tampouco apenas e tão somente um rueiro. Era pior ou melhor do que antes? Que medida há no cárcere à céu aberto das ruas e suas situações escabrosas, mórbidas?. Parecia transfigurado. Mal coube em si. Foi como se estivesse frente a um pelotão de isolamento da realidade cruel. Curvo, velho, enrugado, barbas longas e grisalhas, curvado (o peso do que sabia somado) cabelos compridos e brancos, muletas toscas, sapatos rotos, olhos fundos e tristes, tinha o jeito mesmo de um matuto feito beato do agreste, só que em petição de desacorçôo. Sentiu isso: era um misto de louco, de mendigo. Pior: era um misto de nada elevado ao cubo, pensou, abalado. 166 E notou-se ali com o par esquisito de muletas poluídas, com ceroto, encardidas, maleixas, que passara a usar por causa das varizes, dos problemas de articulação, de uma dor que surgira no joelho após um entorse de percurso. As muletas lhe machucavam o sovaco, lhe puxavam uma velha hérnia, lhe davam caimbras e tristes dores musculares, lhe macetavam os músculos sobre os sovacos suados e com escamas de feridas velhas. Pior foi o notar que, com o uso das muletas, parecia que as omoplatas estavam crescendo. Não entendeu por que. Parecia ser-lhe uma metáfora, esse aludir. Mas, de alguma forma, instintivamente até, sentia isso? Seria má impressão pelo fato de ver-se em tal estado? Um ponto de fuga? Irmão Saulo anotou isso e, logo em seguida, num outro caderno, alguns poemas que aqui são relatados: POEMAS DAS RUAS Poema Um - Esgoto Gótico No esgoto fétido das rua transversal O cachorro atropelado na semana atrás Sorriu-me com lágrimas nos olhos melancólicos Enquanto a perna direita aos poucos apodrece. Poema Dois – Donos Passa o pastor distribuindo versículos bíblicos Passa o padre distribuindo hóstia e sinais da cruz Passa o espírita falando em chacras, karmas e livre arbítrio Passa o ateu falando em revoluções ideológicas Mas também passa o contrabandista obeso e calvo O traficante, o gigolô e o guarda-noturno corrupto E à eles pedimos bençãos, segredos, naus de sobrevivências Pois eles são os verdadeiros donos da miséria 167 Poema Três – Os Velhos Herdarão a Terra Uma velhota de oitenta anos apareceu morta De fome e frio E seu corpo foi recolhido por um caminhão de lixo Clandestino Poema - Quatro – Éramos Blues Os camelôs matam, roubam, traficam, bebem, amam Jogam baralho E sobrevivem assim, em suja paz química Com suas consciências pesadas E saudades de quando eram só trabalhadores Não membros do informal crime terceirizado Poema Cinco – Para Não Dizer Que Não Falei de Flores Na igreja vazia O mendigo dorme de dia E de noite rouba toca-fitas Para trocar por injeções de café com leite E gordurosas marmitas Poema Seis – Chiqueirinho Quando passa o carro da policia De madrugada Com a sirene vaca louca ligada Todos acordam assustados Como ratos desconfiados Apenas eu, com a lua caipira de companhia Na sarjeta bebo cerveja quente e faço poesia. 168 Poema Sete – Sampa Revisited na fila do hospital na fila do banco na fila do correio na fila do cinema na fila do restaurante na fila do estacionamento na fila do cemitério na fila do motel na fila do açougue na fila da hóstia na fila do sopão na fila da morte Poeta Oito – Rota Um dia um policial militar Pediu-me documentos Parei de comer um pedaço De pizza que achei no lixo E dei-lhe meu mais triste olhar Nunca mais me apareceu ali (Acho que se recolheu a um quartel Para chorar) Poema Nove – Sinal Fechado Um dia vi minha neta Isabela Trigueiro Na fila de um caixa rápido de supermercado Que, quase a chorar, eu corri para ela De onde estava pedindo esmola no final fechado Mas depois com medo (e seqüela) Sentei-me no chão e chorei desacorçoado (Um guarda veio me tirar dali, armado) 169 Poema Dez – Sudário Dormi na chuva hoje Não por gostar Mas por não ter outra opção (Mas havia estrelas no meu coração) DEUS SABE ONDE PÕE A CRIAÇÃO) Poema Onze – Anticorpos Achei um rato morto, envenenado Na marmita que deixei restos, ontem E eu se estou vivo é por milagre Poema Doze – Love Story Apaixonei-me pela florista do supermercado Mas ela não sabe, nunca saberá desse coitado Que a amo demais, por mim e por ela, dobrado Poema Treze – O Câncer Acho que estou com tuberculose Ou câncer da próstata Mas pior é Sampa que está com Maluf Poema Quatorze – Hino Nacional Deus é brasileiro Mas está com passaporte carimbado Pra ir morar na Somália ou no Haiti 170 Poema Quinze – Sede Um vigia-noturno de um estacionamento Matou um amigo meu, pedinte, por erro Pensou que ele ia roubar um dos carros Mas o pobre coitado só queria pegar água Poema Dezesseis – Limonada Hoje eu faria meus oitenta anos Como pobre não faz aniversário, dura Comemorei comigo mesmo a data E tomei um porre de tubaína de limão vencida Achada num depósito clandestino de uma rua sem saída Poema Dezessete – Núcleo de Abandono (hoje eu chorei escondido/Ninguém deve Ter percebido/Até ouvi um tiro perdido/Mas guardei-me de dor comigo) Poema Dezoito – Lição Uma menina bonita Vestida pra escola Deu-me um real E seu olhar de esmola 171 Poema Dezenove – Piscina Uma borboleta azul-piscina Pousou no corpo de um cadáver irreconhecível Que veio boiando na enchente Poema Vinte – Vão o mendigo alcoólatra do Vão do Masp vomitou o jantar recolhido no lixão mas veio um cão sarnento e comeu tudo além de lamber os lábios do mendigo Poema Vinte e Um – Mãe de Rua Há um travesti com sífilis, silicone e lentes de contato Que faz ponto sobre a marquise onde vende o corpo Onde arrecada grana de militares, juízes e office-boys E depois deixa um copo de leite para cada pedinte Poema Vinte e Dois - Bandeira do Brasil No monumento do Ibirapuera Um louco pichou em verde-amarelo Uma verdade: Radical é a fome! Poema Vinte e Três - Bicho Homem Um cachorro sarnento e com bernes, quem diria Dormiu ao meu lado uma madrugada de um longo dia Mas fiquei com pena de vê-lo em tão má companhia 172 Poema Vinte e Quatro – Lei da selva Olhos fechados Ouvidos fechados Bocas fechadas A lei do sil6encio das ruas É como um código legado de sobrevivência Poema Vinte e Cinco – Modus Operandi Meu asseio matinal É uma torneira esquecida sem cadeado Meu banheiro ocasional É um monturo, uma sombra, um vão Minha penicilina É um cogumelo chamado sobrevivência Minha fé ou religião É medo de ser um corpo entendido no chão No mais, sobrevivo, pobre, ermitão Exilado em meu próprio chão Em decomposição Poema Vinte e Seis – Subvivente Todo Dia de Natal Eu penso em me matar Depois descubro consolado e já nem tão triste Como posso matar o que não mais existe? 173 Poema Vinte e Sete – Mãe Pensei muito em minha mãe, certo Domingo de Páscoa E em depressão atirei-me nas rodas de um caminhão O motorista brecou a tempo e eu escapei por milagre Não sem antes anotar a placa da cidade: Nova Aurora Poema Vinte e Oito – Madrugada com Fome e Frio Hoje eu acordei Com vontade de morrer Depois recebi uma carta anônima de amor Que tive vontade de fugir, ter prazer Resolvi tomar um porre Pois de amar também se morre -0- 174 OITO Walter Bello, o seminarista afeminado do Convento dos Capuchinhos seguira Saulo em todos as idas e vindas dos percursos em tantas andanças, vigiando-o aqui e ali, pois temia que, com o aparato de uma mídia interesseira e fora de contexto, o pobre coitado intrometido fosse não apenas uma espécie de Antônio Conselheiro, um novo Chico Xavier, um Zé Maria, um Padre Cícero, mas até mesmo considerado um santo, e isso que ele sentira daquele rico boçal se metendo a pobre, ele não podia aceitar nunca. Era inadmissível. Ele sim, era um verdadeiro santo católico, pois dera toda sua vida, desde pequeno, à santa madre igreja. Ele merecia ser motivo de rezas, promessas, simpatias, novelas, um dia. Ele, Walter Bello, só ele, mais ninguém Desviando sua tendência homossexual latente desde que nascera, prometido que fora de forma precipitada à igreja pela mãe uma beata discípula de São Pedro a quem atribuía vários milagres e resposta de pedidos cruciais, fazia mal à si mesmo, à fé, ao meio, à religião, escondendo o seu meio sexo, cobrindo-se de capuchinho para esconder o que os gestos não disfarçavam em inteireza de revelação. Era limitado, mas, na sua vivência de discrespâncias, nunca enxergara isso. Seguiu, como pode, os passos andarilhos da peregrinação de Saulo, na periferia das chácara perto da descida para a Serra do Mar, nas ruas anônimas da grande São Paulo, nas internações provocadas e fugas inevitáveis, além de que, nas aparições ocasionais via ‘midia" (chegara a subornar profissionais de imprensa para evitar maiores manchetes espalhafatosas a respeito), intrometia-se contendo variações de fanatismos explícitos, supervisionando espaços, intenções e maiores predicados de aparições ou mesmo fanatismos de meio. Tinha ciúme, inveja. daquele homem puro que não fora, não tinha conseguido ser, nunca seria. Era um nada cansado do nada, mas, não tinha competência afetiva para ter conhecimento inteiro disso. Ser o que não era o limitava. Pensava em melhorar os ensinos, os estudos, o currículo, mas não iria simplesmente virar mero frei ou padreco de paróquia provinciana nos cafundós do judas. Queria, isto sim, desembarcar no Vaticano, conhecer os famosos rapazes de aluguel iugoslavos que abundavam em Roma fazerem a vida entre bordéis de luxo e saunas de turcos banhos públicos. Pois aprontou de todo jeito, maquiavélico e tresloucado, desviou intenções, montou teatros de absurdos, que, a certo tempo, as autoridades do lugar, cansados de tê-lo 175 como professor interesseiro e atrapalhando a sagração tranqüila do lugar, já que não podiam afastá-lo ou mesmo cassá-lo de ser o que era para desgraça própria, que, finalmente montaram caminhos, estruturais e administrativos, conseguiram uma promoção-castigo, e, finalmente mandaram o mal intencionado servo de Deus para estudos complementares visando o bispado no Vaticano em Roma. Livraram-se dele, claro.. 176 NOVE “Conversamos futilidades. Nada temos a dizer, mas não podemos ficar calados. Quando encontramos alguém fazemos festas, recordamos os bons tempos, sentimos algo agradável; ma não sabemos ao certo definir. Nem sempre somos sinceros nessas ocasiões. Desenrolamos o fio de Ariadne. Enrolamos o fio novamente. Quando alguém faz um gol, gritamos gol. Não ficamos nem alegres nem, tristes. Vivemos numa zona de sombras. Vultos. Não queremos morrer, não queremos viver. E trabalhamos. Não podemos ignorar o que todos sabem. Nossas vozes se confundem. Temos a nítida impressão de que nossas palavras não são nossa. Durante anos perdemos a memória. NO entanto, isso não nos prejudicou. Ao contrário, a amnésia nos protegeu das culpas e dos aborrecimentos. É certo que também levou nossas melhores lembranças. Mas, o que se pode fazer com lembranças? À noite, quando o universo é mais belo, quando a vida revela seus segredos, nos acomodamos em silêncio em frente à televisão. Em geral, não assistimos aos programas. Ligamos porque apenas não suportamos a solidão. Nunca vamos além do permitido. Por vezes, um de nós solta um peido. Sorrimos. É uma senha. Afinal, estamos vivos. A cidade tem 150 salas de cinemas, 90 de teatro, 800 bons restaurante, zoológicos, museus, casas noturnas, clubes. Se queremos ser diferentes, temos que ser iguais. Temos vergonha de nossa nudez, nossa barriga, nossa calvície, nossas roupas. As incertezas nos desesperam. Não sabemos mais em quem acreditar: na psicanálise, na astrologia, nas seitas orientais, na terceira onda, no fim iminente por uma guerra nuclear, nas profecias de Nostradamus, na velha e tão nova igreja católica. Matamos Deus. Ressucitamos Deus. E, a todo minuto, nos injetam mais dados, mais informações. Não nos recordamos mais quem foi Hitler. Vamos vivendo, vamos morrendo. Temos sempre desculpas prontas, na ponta da língua, para cada ocasião. Pedimos socorro por olhares, mas quase todos estão cegos. Somos vitimas e inocentes. Desaprendemos muitas lições. Desajeitados, constrangidos, preferimos o escuro. Fazemos amor já sem alegria. Não estamos preparados para a alegria. Não temos tempos para os irmãos. Não temos tempo para nada. Mas dançamos. Em breve, muito breve, teremos um filho. Ensinaremos a ele tudo o que sabemos. E o que não sabemos...” (Casais – João Anzanello Carrascoza) _________________________________________________________________________ Um dia Saulo sonhou que tinha outro irmão. Era uma obsessão intuitiva que vinha-se-lhe de tempos em tempos, como se um inesperado desvio de conduta mental. Um resquício de paranormalidade em vezo inferior? Sonhou ou foi só um mero fluxo de inconsciência, revestido de memórias parcas guardadas desde a primeira infância?. Era só uma nódoa de legado íntimo? Por muito tempo teve que carregar ainda essa cruz, feito enorme ponto de interrogação nas paredes das reminiscências. Pois certa feita sonhou que estava com esse irmão já bem crescido e muito parecido com ele, e, ambos, 177 crucificados junto com o filho do Marceneiro José, com Jesus Cristo já transpassado dizendo que ambos estariam, com ele no paraíso. Saulo acordou assustado, trêmulo, pálido. Chorou. Era então mais um ladrão, um corpo na Quarta Cruz do Calvário? Ladrão de si mesmo? Ladrão de sua cidadania? Que mensagem complicada e indecifrável era aquela? Tudo foi um mero sonho, mas esse sonho-lembrança marcou-o Nunca ganhou tanta esmola como aquele dia difícil, quando comprou leite, pão, manteiga e mortadela, e, como o fazia quase sempre, distribuiu a comida rápida e simples aos seus semelhantes, largados ali entre uma oficina mecânica e um depósito de ferro-velhos, numa travessa da Avenida Faria Lima, no bairro de Pinheiros. Escreveu muito aquela noite fria de junho. Ouviu conversas de mendigos sobre uma tal Confraria Miosótis, também ouvir lascivos sussurros de mendigos se amando e fez força para não se destemperar em impropérios. Cuidou-se. A lua vinha de Itararé e era inteira, branca , linda e nua como dizia a canção de Caetano de música Lua de São Jorge. Depois acalmou-se. Bobagem, pensou. Uma coruja beliscou a camurça do silêncio em seu íntimo transido. Um sapo-martelo barulhou identificador nas sombras Uma cigarra triscou a tábua do breu. Um grilo anunciou chuva e ele teve medo de alguma coisa. As estrelas tinham se recolhido numa gaveta secreta do infinito, e um ventocoisa com cheiro de chuva do mar trouxe ainda mais melancolia e angustia pro cárcere privado de sua reclusão, como se lhe espetasse um punhal de cidra. 178 Ouviu barulhos e medrou-se. Tinha havido uma outra fuga no cadeião de Pinheiros, ali perto, na marginal, e a policia ia a vinha nervosa, pondo todo mundo ali em risco, pondo as adjacências em polvorosa. Xingou a mãe da esperança. Um retrós de sombra pesada cobriu- o em sua insignificância pré-auroral. Dormiu como um cutelo. -0- 179 DEZ Uma outra bendita noite sonhou que fazia o caminho de volta para casa, para sua aldeia Itararé. Que tinha que se preparar para voltar às origens e entregar seu estandarte de vivência ao julgador da espécie humana Mas não havia mais mãe. Tampouco conhecidos ou amigos que o reconhecessem naquele feição em desacorçôo. Só havia um pai passando de cem anos que o renegara, e que se mantinha rico e importante membro da sociedade. Queria ver como o ancião ainda na ativa reagiria ao sabê-lo mendigo por opção. O velho era dono de tantas coisas, que por certo mal cabia em si de vaidoso, orgulhoso, enorme camelo difícil de passar no buraco da agulha da salvação para os reinos dos céus. Ele era um mero bastardo, um renegado. Pois uma manhã tomou a decisão, saiu de fininho do canto rueiro dos pobres e coitados, escondido deu no pira furtivamente, quando, a partir da Rodovia castelo Branco demorou meses na trilha do sol, a caminho de casa. Ganhou Sorocaba, depois Itapetininga via Raposo Tavares, até Capão Bonito, depois garrou uma rodovia vicinal sentido Taquariavai, Itapeva e, finalmente adentrou Itararé, sul do estado de São Paulo, seu rincão amado. Quando chegou em Itararé não acreditou. Era como se entrasse dentro de si mesmo. Há quanto tempo não se sentia em paz consigo mesmo? Havia ternura naquela volta, emoção naquele reencontro. O povo, os lugares, as lembranças guardadas. Itararé continuava linda, verdejante e acolhedora. As ruas em que vendera banana-caturra, os prédios centenários e novos, as andorinhas bentas, as árvores de ipês amarelos coroando as calçadas centrais. Desceu pela Rua São Pedro e seu tapete de lustrados paralelepipedos como se cacau quebrado, passou a praça da Igreja São Pedro e garrou rumo do Supermercado central do velho genitor, que ficava no chamado centro velho da cidade, perto do calçadão. 180 Apesar de ser um sábado qualquer na vida rotineira da cidade, seu pai exigente e unha de fome como era, mesmo algo curvo e lento no gestual, estava conferindo pessoalmente um caixa que não batera, com medo de estar sendo ludibriado. Vendo-o, nem conhecido e nem freguês, pior, um mendigo esquálido de cabelo e barba grisalhos, desdenhou-o, quando a repugnar-se. Saulo fedia a suor, a falta de asseio. Como o velho empresário não o identificou conhecido, enxotou-o Saulo pensou em simplesmente dizer – quantos anos ensaiara o reencontro todo - “Pai estou aqui”. Depois temeu-se. Temeu-o - Como a falta dele tinha sido crucial em sua formação humana. Era tudo um reflexo disso? Não há sensações no esquecimento. O velho empresário alto, vermelho, cabelos ralos, braços compridos, em furia, vendo-o entre uma prateleira de tubaina de limão e um balcão com sandálias havaianas em oferta, atacou-o: -Fora daqui, seu estrupício. Não atrapalhe meus negócios, seu filho-da-puta. Saia já daqui ou eu chamo a polícia. Quem o deixou entrar? Não se enxerga? Sai! Sai! Sai! Vá feder assim nos quintos dos infernos! Saulo não se reconheceu filho “daquilo”. Recuou aturdido, lágrimas nos olhos tristes, frustração completa e dolorosa no peito. Girou nos calcanhares, entre fregueses atônitos e seguranças bravos. Ganhou a rua com sua tristeza multiplicada e o peito azedando um curtume de sublimação temporã. Voltou para sua família rueira em Sampa. ............................................................................................................................. Uma noite, deitado sobre umas tábuas, no largo de Santo Amaro, depois de ganhar algum adjutório e de apanhar algumas frutas parcialmente aproveitáveis numa feira nordestina própria, perto do Largo do Socorro, tendo problemas nas articulações, talvez um reumatismo ou problema de hérnia, resolveu tomar uma aspirina para ver se passava. Estava ficando velho, 181 concluiu. Logo, a sua hora chegaria. Ansiava por isso. Iria descansar o espírito atribulado. Por isso foi dormir e nem eram duas da tarde, com um sol ardido queimando a pele do dia. Escolheu um canto de obras ao lado de um prédio abandonado por estar com problemas nas estruturas, e ali adormeceu entre sarnentos cachorros vadios e um esgoto correndo fétido. Quando acordou já era perto da meia noite, pelo que observara de um relógio de banco num alto prédio ao longe. Súbito foi tocado por um tipo que, certamente não era dali e nem mendigo, e que pediu que o seguisse. Era um estranho no ninho. Quem seria? Como teve medo de ficar empacado ali, numa recusa fora de propósito ou mal explicada, entrou numa kombi (seria daquelas que distribuíam alimentos aos neessitados?) e viu que o carro queimado óleo rodou por mais de hora, saindo daquela zona sul de Santo Amaro para o outro lado da cidade. Foi levado até uma instituição de caridade, cuja senha de entrada, ouviu, era Operação Miosótis, lados do bairro de Santana, zona norte. Era um prédio velho e simples, mas onde parecia ficar sediada uma administração de empresa caridosa ou coisa assim. Ali, chamado às falas com um sr. de nome Carlo Magmo, foi inteirado de que poderia deixar a rua, poderia ir servir ali, como empresário, como filantropo, como doutor, como caixa administrador. Seria de ótima valia. Quando Saulo indagou como eles adquiriam recursos para manter a operação toda, um tipo que vigiava ao lado disse que a organização era uma espécie de Robin Hood moderna. Tiravam coisas de quem tinha muito, para dar aos pobres. Disseram que era uma ramificação nova de uma ala de maçons do leste europeu, com trabalho ali em Sampa. Tomavam dinheiro conseguido por bandidos em altos resgates, desviavam contrabando roubados, enfim, na contra-mão dos fatos, agiam bem estruturados para roubar ladrões, traficantes, ricos, poderosos. Com isso, aplicariam dinheiro lavado do narcotráfico, dinheiro sujo de contrabando, na ajuda humanitária. Era a Operação Miosótis e os fins justificam os meios. Saulo até achou interessante aquilo. Será que o mundo globalizado sofreria um revés a partir de pobretões do terceiro mundo? Era a terceira via contra a Nova Ordem Mundial com suas injustiças também terceirizadas? 182 Mas também era suficientemente esperto para perceber que estava com alguma virose, que não duraria muito na tábua de carne da terra, que logo bateria com as dez, como diziam seus amigos de Itararé, e não poderia empatar tempo ali num escritório, do qual fugira quando era rico, como se fugisse de uma cruz montada em pose . Queria voltar as ruas. Precisava. Com todo respeito foi levado de volta, sabendo que, pelo menos, alguma coisa os desafortunados estruturados para terem algo de melhor. -0- 183 Pré-final “Para nós, surdos do coração/Tudo é Código-Morse” (Marcelo Ferrari) ................................................................. O melhor lugar pra se fazer passeata em Sampa, é na Avenida Paulista. Ali, em alamedas largas, de duas pistas concorridas, centrada sob totens de ricos empresários, multinacionais, bancos estrangeiros, e ainda sob o foco imediatista e constante de milhões de trabalhadores (além do trânsito insano e diários congestionamentos que afetavam toda a malha viária da cidade), os desfiladores alvissareiros, barulhentos, altivos, críticos e com personalidade de sindicatos ou mobilizações sempre tentavam tocar a sensibilidade dos executivos e boys que iam e vinham colecionando jargões, frases de efeito, críticas por atacado, mais fanfarras, fogos de artifício, carros de sons, apitos, bandeiras, estrelas, pencas sonhos, cachos de esperanças inócuas. Era quase impossível atingir aos ouvidos de mercador da classe média alta (e principalmente da classe dominante, claro), mas, fazer passeata era um desabafo, uma demonstração de força (ah se o povo soubesse o poder que tem!) e desfile de protestos ali era muito bonito, não apenas um mero jogo de cena, mas com certeza viraria manchete de jornais, atrairia a atenção da mídia, verdadeiro exercício democrático de cidadania, participação e conhecimento da dura realidade que atingia as veias do país. Fazia bem a todos, à causa de todos. As autoridades austeras e despreparadas proibiam, os estúpidos policiais desqualificados faziam cercos de entradas e saídas, extorquindo, querendo vantagens, apreendendo instrumentos, carros de sons, placas, faixas, mas, quem é que queria ser policial nesse mundo? Todos logravam até com extrema facilidade os homens de farda, cassetete e cães, principalmente em países subdesenvolvidos e atrasados como o Brasil. Quem os levava a sério? Eram ocasionais pobres filhotes órfãos de uma ditadura culpada por todos os tipos de falências do país, herdeiros do abuso de poder, do arbítrio e sempre mal treinados para bater, torturar, matar, não para pensar, serem lúcidos, serem profissionais, dinâmicos, experts. Era uma moleza. Eles ameaçavam com olhos tortos, beiçudos e com cassetetes importados do Chile da ridícula hiena com dolmã-de-tala chamada Pinochet, mas todos escapavam lisos e caçoadores, pois o direito de greve é permitido na Constituição, e nesses casos o povo é melhor do o que representa o povo.. 184 Pois foi aquele dia véspera de seu aniversário, final de agosto (era do mesmo signo de Jesus - lera pequeno ensaio de um astrônomo israelense a respeito) que, saindo de fininho do Largo de Pinheiros onde se achava fazendo nova temporada (dizendo que ia ali perto num monturo fedorento, disfarçar para fazer um xixi), e, pedindo carona de graça para um motorista (de vez em os deixavam entrar pela porta de trás, ou, pela porta da frente desde que passassem por debaixo da catraca) e, finalmente deu-se ali no começo da Avenida Paulista, esquina com a Avenida Consolação, área toda enfeitada, em balbúrdia, lotada de policiais sisudos. Para confinar o povo a policia prestava. Para prender bandidos de terno, gravata e farda – os ricos eram imputáveis – não! O famoso vão embaixo do MASP estava lotado. Ambulantes adundavam. Punguistas, curiosos, pedestres apressados também. A Praça Trianon e o edifício Gazeta era um carnaval só. A democracia é barulhenta? Por motivo que ninguém descobrira, nem desconfiava, Saulo resolvera se dar de presente estar naquela passeata. Era sua maneira de pertencer-se, valorarse, ser elo numa corrente, acreditar no sonho impossível. Era uma maneira de somar, de deixar de ser um ilustre anônimo e se dizer também em soma. Era mais um cooptada, entre um grupo de professores que iria protestar contra a corrupção municipal, estadual e federal, pressionando para que uma CPI em Sampa cassasse o prefeito que nada mais era que um fantoche do mandatário anterior, uma vaquinha de presépio no lucro das operações ilegais enraizadas na Prefeitura, desde as administrações regionais até as tétricas trincheiras do inútil Tribunal de Contas do Município, um antro de marajás despreparados e comprometidos com os corruptos, legalizando o ilegal de forma torpe.... Antes não tivesse ido. Bem cedo, quando perdera o sono com fome a contemplar a estrela vésper, ouvira num roufenho radinho chato de um morador de rua uma canção dizendo de picaretas em Brasília.. Mas não teria tempo para me arrepender. Era, finalmente, o ultimato crucial do seu destino, foi. E ali estava, ao lado dos mestres (que em Sampa, a capital da Corrupção do Terceiro Mundo, ganhavam menos do que motoristas de ônibus urbano), sentiu-se orgulhoso deles, achou-os bonitos e jeans e fome de justiça nas 185 palavras, como disseram alguns professores que tinham reparado em sua alegria, sua boa vontade, sua determinação de marchar, apesar das muletas, de seu jeito de ancião já mais pra lá do que pra cá. Mais de dez mil pessoas amontoadas com fervor e palavras de ordem. Como se marchassem para lugar nenhum, mas ainda assim seguiam em frente. Como se conduzidas ao matadouro das resignações, mas altaneiras, firmes, resolutas, assumidamente confiáveis e politizadas com verve de meio e propósitos. Súbito, de uma hora pra outra, mal uma pomba voou baixo a procura de restos de pipoca doce, mal um sol vazou o alto edifício da FIESP, e ouviram-se gritos espantados, salvas de tiros, cocos voaram para cima de cavalos, pedidos de calma de um aparelho de som, e um chiado espoucou no ar rente. Um flanco de gente correu, outros abortaram a fileira em marcha, Saulo inconsciente mas lento e cansado apressou seu par de muletas rústico para ganhar a segurança do vão do prédio da Gazeta, quando ouviu um zumbido curto, todo mundo correu buscando cuidar-se, depois imaginou-se com uma pontada de água gelada no lado direito da cabeça (como uma gota de chuva ele murmurou, antes de fechar os olhos aturdidos), e caiu para dentro de um buraco que certamente sabia que ali não existia. Não existia? Pisou em falso? Qual era o Calcanhar de Aquiles de sua miserabilidade? Tombou como vara verde na serra elétrica de sua circunstância. ******* 186 Seu corpo coberto de crisântemos e pequenas dálias japonesas foi enterrado em Itararé, na guardação e féretro mais concorrido que a região de luto tivera notícia. O mais interessante, no entanto, foi que compareceu ao velório – e identificouse emocionada – uma senhora de nome Pietra Halcskic, descendente de húngaros que morava em Santa Catarina, e que contara ter adotado o mal recém-nascido irmão gêmeo de Saulo, pois a abalada mãe deles estava passando necessidade num canto piorado da zona de meretrício da Vila Osório de Itararé. Como que comprara uma das criança, dando-lhe o nome de Felipe e criando-o com todo zelo, todo amparo. Pois esse alma gêmea de Saulo, irmão de sangue (mas não de leite) dele, casara-se, formara-se em Filosofia pura (era doutor em dialética social) tornara-se excelente maçom e filantropo – era paranormal também, com linha homeopática e também ligado à cura alternativa aplicada com base na medieval acupuntura budista – tendo três filhos que chamara Pedro, André e Thiago, sendo que os três meninos, gêmeos, tinham se convertido ao judaísmo e estavam entre saibras num kibutz rural de uma área de colonização perto de Jericó, em Israel. Esse irmão de Saulo, Felipe, o identificara trecheiro após uma reportagem na revista de Sociologia Política da USP que lera no consultório de um amigo de boemia de Joinvile, lá pelas tantas, escorado de idêntica frustração, sentindose para morrer, internara-se num seminário a título de aprender teologia laica e ali fora achado morto por problema de angina, ajoelhado num confessionário cheio de lírios amarelos e uma imagem de Jesus Cristo agonizando na cruz. Era igual ao irmão? Aquilo era um sinal de que a missão do falecido seguiria adiante? Afinal, finalmente Saulo compreendera - e passara isso de forma firme e convicta - aos outros, como uma mensagem completa e traduzida entre teoria e prática, de que viver não era, necessariamente, ser um chato de galocha, ou simplesmente ser um chato. Viver era enternurar cada momento de sabedoria presencial, estimado em amor e luz (conhecimento da fé), para que as águas de nossas vidas conduzissem energias, gerassem árvores e alimentassem sonhos e perspectivas de evolução natural, intima e comunitária naturalmente, em todos os sentidos vitais de inúmeras pluralidades existenciais, como espécies próprias a serem construtoras de somas como paz e justiça para todos. 187 A mão de Deus tem vários dedos, e, mesmo às vezes escrevendo certo por linhas tortas, ainda sabia tocar feridas existenciais, apontar caminhos, amparar, plantar sonhos no coração dos sensíveis. -0- 188 FINAL “Bem-aventurado os procuram, porque acharão” que (Fragmento de texto apócrifo em aramaico antigo, escrito em papiro de estranho material desconhecido, atribuído a parte perdida do Evangelho de São Mateus, subtraído por Napoleão Bonaparte da Torre do Tombo em Portugal e encontrada num palácio perto de um castelo que fica num desvio geográfico da Serra dos Pirineus, numa área considerada adjunta ao sagrado caminho de peregrinos do Campostela) Quando Saulo capengou e caiu, ainda na correria louca da Avenida Paulista, de súbito foi tomado de um soco seco – já tivera aquilo antes, aprendera o entremundo – e rendeu-se à evidência. Tinha sido atingido, sentiu. Era chegada à sua hora. Pensou da mãe. Pensou em Deus. Pensou no pai ingrato. O tal filme inteiro de sua vida difícil passara-lhe pelo cérebro em questões de segundos, como se um raio atingisse sua descarga de neurônios em hora sacrificial. Estava dentro do Nada e encontrara a beleza desse lado de dentro? Não ficou triste por, finalmente ter chegado a sua hora. Esperou por aquilo desde que se deu por gente? Quase suspirou de contentamento. Tinha feito bem a sua parte: tinha vivido da melhor maneira possível. Quase que agradeceu à Deus, dizendo “obrigado meu Deus” por ter me livrado desse inferno, ter me tirado desse castigo de existir. Quase que sorriu inteiro, como nunca houvera sorrido na vida inteira, a agradecer a Deus por o ter ferido de tal fim. O fim da dor, o fim da fome, o fim de tantos desencontros. Sim. Era isso mesmo o que queria, como se um alienígena na vida estrangeira da terra. Estava em paz pela primeira vez desde que nascera? 189 Olhou para o céu. Estava lá. Estava no caminho de volta. Olhou-se e não se enxergou. Sentiu-se atingido por uma espécie de anestesia supra-terreal. Foi quando pensou que não fora ele quem criara o caos...ele estava ao redor e a única chance, a única saída era deixá-lo entrar (ou entrar nele?). A única chance de renovação consistia em abrir todos os olhos e ver, mesmo sem compreender, se sentir inteiramente. Só que ali era um caos verdadeiro que tinha tudo a ver com a vida eterna... Que mundo era o mundo? O que era o outro lado, o lado de dentro? O que era o não-mundo? 190 .............................................................................................................................. Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas Em que existir dura apenas um instante em que cada instante Verte no vazio no esquecimento de Ter existido Sem esta onda em que no fim Corpo e sombra juntos se tragam Que faria eu sem este silêncio abismo de murmúrios Ofegando furioso direção do socorro em direção do amor Sem este céu que se eleva Sobre a poeira de seus lastros Que faria eu eu faria como ontem como hoje Olhando por minha vigia se não estou só A errar e a virar longe de toda vida Num espaço títere Sem voz por entre as vozes Encerradas comigo .......................................................................................................................... . No interior de cada introvertido Há um extrovertido e vice-versa 191 _______________________________________________________________ (Carl Jung) .............................................................................................................................. Onde estavam as muletas? Quem era ele ali?. - VIU que seus ombros eram mais largos do que sabia que eram. Seus chatos pés descalços e inchados de andarilhar vestiam a pantufa do ar. Cadê as suas dores musculares, as varizes - as omoplatas dolorosas? Cadê a angústia, a melancolia, a depressão, a pele velha, a mente com disritmias? Em que estojo se restava despojado da vida nua e crua? Finalmente compreendeu porque às vezes intuía que as muletas de certa forma o estavam aleijando, alterando, deformando também internamente, de alguma maneira ou de insabida mutação íntima. POR DEUS! Estava voando! Tinha saído do mundo infame, vil. Asquele era o outro lado do maldito mundo? Sem que se autorizasse interiormente, sem que esperasse ter chegado a honra da hora – uma bala perdida, um tombo de escada, um ataque fulminante do coração – estava sem corpo podre, finito, nojento – ai do podre sangue humanus! – e agora era nu nos ares de um altar que ficava na sagração de muito além do sol. Pela última vez contemplou seu corpo ali no primeiro degrau do edifício da Gazeta Esportiva, com um policial assustado guardando o cassetete, pessoas parando para recolherem-no ao vê-lo caído longe das muletas, repórteres feridos espoucando flashs como se pequenos relâmpagos de sintonia fina. Estava morto na terra e o barulho de uma ambulância (e gritos, correria, pancadaria, palavrões) invadiam o ambiente varrido de medo e correria generalizada. Ao mesmo tempo estava vivo no céu de todas as honras?. 192 Subindo, tragado por uma dimensão (paralela?) sendo finalmente reveladome, pode finalmente compreender que tinha sido aceito: SIM, ERA DELES, FINALMENTE ! Mas não estavam promovendo resgates, evacuações, arrebatamentos. Era, finalmente, como tantos outros, uma prova de que HAVIAM SERES HUMANOS NA TERRA PARA QUE O CRIADOR – que nos fez à sua imagem e semelhança – não se envergonhasse do que criara e não abandonasse a esfera global a própria sorte de vagar para sempre no desgovernado curso do universo cosmonal. E os viu aos montes. DEUS ESTAVA NO MEIO DE NÓS – não fora feito à imagem e semelhança, não era um elo como parte do todo em Soma - E ELE ESTAVA ENTRE ELES! Eram muito mais do que podia imaginar. Estavam em todos os lugares. Uns tinham-se tornando de alguma espécie terrestres – um novo céu e uma nova terra? – alguns tinham cargos públicos, outros descobertos curas de doenças terminais, um monte deles tinha trazido a invenção de um tal disco-voador ao campo da ciência terrestres e agiam com outra face numa área desértica perto da fronteira com o México, numa sede clandestina da Nasa. Cada pessoa habitava um campo de energia multidimensional. Cada vida ou morte era uma dimensão. Todos eram campos de mais ou menos energias. Aos poucos os seres ruins da terra seriam substituídos? Então todos seriam, cedo ou tarde, SALVOS PELAS OBRAS? Era isso que eu pensava que era? Meu Deus!. Tinha imaginado, intuído, sofrido para enxergar mas era exatamente. A intuição e a criatividade, a imaginação, a abstração, traziam o verdadeiro conhecimento 193 O dia da vinda do Criador já tinha começado. ENTÃO DEUS, EM SUAS MÚLTIPOLAS FORMAS JÁ ESTAVA NO MEIO DE NÓS! Ele tinha dado Noé, Elias, José do Egito, Moisés, Abrahão, Jesus Cristo Maomé, Buda, Leonardo da Vinci, Santos Dumont, Pablo Neruda, Gandhi, Luther King, Madre Teresa de Calcutá e tantos outros. Éramos todos um só como se “limados” pela mesma energia? Todos em Um? Sentiu-se calmo e tranqüilo, em paz interior, pela primeira vez, finalmente. 5Tinha o que queria: a verdadeira felicidade espiritual, a paz na alma. Finalmente estava dentro de si. O cálice da limitada vida terrestre tinha sido afastado de sua angústia-vívere interior. Estava no rol sagrado paraíso. Estava finalmente, feliz, completo, eterno, descansando nos braços sagrados da paz celestial , no paraíso celeste que era a magnífica e extraordinária contenteza do D E S M U N D O ! -0- (FIM) 194 (*1)-Dr Paulo de Tarso Trigueiro foi atingido por uma bala perdida de um policial da Rota atrelado ao governador insensivel com os problemas da educacão e Violência, seu corpo reconhecido por familiares. Foi enterrado no cemitério Centenário de Itararé. (*2)-Dagmar Marlene deixou quatro filhos de pais diferentes, todos eles moram na região de Itararé. Um tornou-se padre, um outro é pastor protestante, um terceiro estuda Espiritismo. Mas um quarto é comunista, excelente ser humano que ainda acredita num socialismo de resultados. (*4)-O Frei Walter Bello que andou sondando o irmão Saulo, ao seu jeito afrescado (de meio sexo), cabelos oxigenados, gestos moles, é o pervertido novo Chefe dos Capuchinhos descalços. Por ter aprontado entre irmãos, foi recomendado para fazer curso (retirada estratégicamente legal) de Direito Romano no Vaticano. Sonha em ser o primeiro papa latino-americano e já teima nos bastidores essa intenção maquiavélica. (*5)-O velho Aarão da Chácara das Rosas fez noventa anos e arrumou ainda mais o lugar. O dono do terreno ao saber de seu trabalho, passou o lugar para seu nome, ajudando, transformando o local num centro de Atendimento Social, chamado Fundação Sócio-Cultural Irmão Paulo de Tarso (*6)-Os filhos do Dr. Paulo de Tarso são todos aliados de corruptos e ladrões, a maioria de políticos liberais. Dirigem clubes, universidades, instituições, ONGS, têm cargos públicos bons, já aumentando as posses em mais de quinhentos por cento. A vida do pai não foi lição suficiente. Nem querem saber dos sobrinhos, filhos do irmão gêmeo do pai. Mal sabem o que sabem. (*7)-São Paulo continua um esgoto a céu aberto, com o seu prefeito envolvido em rede enorme de corrupção, que começou com seu anterior prefeito e mentor político, Paulo Maluf. É mais um ramo da Máfia chamado Pau-Brasil agindo, apesar de já investigada até pelo FBI. Mas têm 30% de chance de ser eleito o político do estilo “rouba mas faz”, o mais corrupto do Brasil. Uma pesquisa da Folha de São Paulo estatisticamente descobriu que pelo menos vinte e dois por cento dos paulistanos aceitam um ladrão no poder. 195 (*8)-Caetano Veloso ganhou o Troféu Imprensa (Programa Silvio Santos) por ter o melhor cedê de MPB gravado no ano, estourando nas paradas de sucesso com a música Sozinho do cantor-compositor Peninha. (FIM) 196 SAMPA-ELE está no meio de nós Um homem de poder, realizado financeiramente, mas que não é feliz com todo o status que tem. Ao contrário, é infeliz e, secretamente busca um sentido para a vida, para a pergunta que cantou Caetano Veloso: “Existir, a quê será que se destina?” Pois esse paulistano de Itararé, sul do Estado, certa noite de passeio e gastança como tantas outras fugas inúteis, ao lado de uma bela e fogosa mulher que tinha sido sua amante e agora desposara, vê uma resposta excepcional para o que procura, enxergando então, muito além do costumeiramente comum. É quando vê - com uma antiga e atiçada paranormalidade de sensitivo novamente redesperta (passou décadas com esse dom mascarado em si, pois ganhava dinheiro, crescia, estudava com a vida sedentária de rico que levava). É quando esse TAMANHO VER mexe com suas estruturas íntimas, espirituais, sensoriais. O quê era exatamente VIVER? Valia a pena a sagração da infinita Viagem de Existir, sendo o que era?. Era bom, sim, mas, para quem? Para quê? Então toma partido de sua vida pessoal, readquire novas e puras convicções, tem inteira clareza do que realmente de extraordinário (e de inusitado presencial) acontece nas ruas de abandono social de São Paulo, onde ocorre um incrível holocausto de rejeitados por causa do dezelo social público, os chamados excluídos, descamisados. Gente simples, pobre, humilde, carente. Moradores de ruas entre pedintes subviventes, mais velhos largados pelos clãs, fugitivos de êxodos rurais e periféricos (e suas injustiças explícitos), E ex-favelados atirados na rua da amargura dos contrastes sociais. E lembra-se do que de mais belo lera de Cristo, sobre o Sermão da Bem-aventurança que São Mateus dos Evangelhos resgata. Então toma sentido de si, toma tento de mudanças que se fazem necessárias. Tachado de louco, extravagante, passa a buscar grandeza de espirito. Quer lavar sua alma na causa dos desafortunados. Esse foi o primeiro milagre. Existem outros. É quando cai na rua, estuda, aprende, é tripudiado – quer orações com a Soma de obras sociais – e sofre, até que, tocando o intocável, tem-se aceito em sua missão, com o aval do “Dono” da falange que vê de maneira clara e cristalina. O quê um homem só, com sua esperança e luz, pode fazer contra um mundo globalizadamente amoral, insano e pouco preocupado com os Sem Teto, Sem Salário, Sem Amor?. O livro (neoexistencialismo?) prepara caminho interior para a releitura da existência sob uma ótica ética, humanista, nesses tempos tenebrosos de muito ouro e pouco pão. Não estamos sozinhos quando fazemos caridade? A força do amor move moínhos... 197 personagem principal aos poucos se tornara) o próprio Paulo de Tarso do caminho de Damasco. Dos relatos incríveis que ouvi, dos cadernos de rascunhos que achei em Itararé, procurei entender na medida do possível (e dentro do meu imaginário pequeno para a grandeza sensorial do vivenciador da história), tentando deixar o mais verdadeiro relato de uma vida maravilhosa recuperada em tempo para a obra suprema da caridade. Não inventei nada, nem enfoque ideológico ou religioso. Apenas formatei um relato do que de inteiro e crível entendi. Cada leitor avaliará melhor do que lhe for de serventia em fé e amor. Mas, com certeza, depois de ler sobre a vida de quem largou as páginas em branco de uma existência vazia, e foi em busca de se postar como um Ser plural, comunitário, será outro. Então ainda há esperanças para a espécie humana? Nem tudo está perdido. Muitos são chamados. O quê pode o amor gratuito e serviçal numa sociedade insensível? Eis o resultado dessa busca. O interesse de passar uma vida a limpo, transformando-a num registro, é o testemunho de que tudo na vida é um “milagre”. Os nossos problemas são os nossos professores? A imaginação é mais importante que o conhecimento? “A mente que se abre para uma idéia, jamais voltará ao seu tamanho normal”, disse Einsnten. A história desse Paulo de Tarso fiquei sabendo inicialmente de ouvir-dizer, entre tantos causos e lendas de Itararé, com sua gama de histórias, inclusive representativa do rol da história brasileira. De início não me fiei muito. Mas, coincidentemente em São Paulo, de um grupo de Psicólogos, Assistentes Sociais, Sociólogos e pesquisadores dos problemas de rua, bancados por uma ONG com base social na FAO (ONU) soube mais e busquei sondar melhor aquilo tudo de inusitado. Fui a creches, sopões comunitários, igrejas, hospitais, sempre buscando dados dessa vida magna. Conheci parentes do personagem – disseram ser verdade mas não quiseram se identificar – conheci mendigos recuperados que confirmaram (com lágrimas nos olhos) muitos fatos. Até fiquei sabendo de dados oficiais, como se um fio de luz terreal tivesse atravessado a insensível soma de problemas que fundam os feudos, becos e favelas periféricas de uma cidade insana com milhões de pobres entregues à própria sorte. Não é um livro triste. Antes, é um livro que relata uma vida. Parafraseando Walt Whitmam, quem toca esse livro, toca o Ser Humano na sua mais pura plenitude. Omiti dados escabrosos, de fundo político ou socialesco, mudei sobrenomes – um sr. até muito respeitoso confessoume ser esse “Irmão Saulo” (que o 198 Para os vivíssimos: Julio Lancelotti, Dom Agnelo Rossi, Cardeal Arns, Jânio de Freitas, Elio Gaspari, Bispo Crivela, Caetano Veloso, Roberto Carlos, José Nêumanne Pinto, Rabino Henry Sobel, Sebastião Salgado, Maria Bethãnia, Roberta Rizzo, Clovis Rossi, José Nêumanne Pinto, Chico Xavier, Milton Santos, Paiva Neto, Pastor Nehemias Marien e Carlito Maia Para os eternais: Betinho, Florestan Fernandes, Dom Hélder Câmara, Pastor Jaime Wright, Vladimir Herzog (Vlado), Martin Luther King, Mahtama Gandhi, John Lennon. Madre Teresa de Calcutá, Orlando Bandoni e Poeta Cecília Duarte Fogaça (de Itararé-SP) todos imprescindíveis E a todos os meus irmãos Lili, Luis Antonio, Claudia, Zé (in Memoriam), Neusa, Sirlei, Erzita, Sueli, Clarice, Cristina, Joana, Jacira, André, Paulo, Everaldo, Marco, Jair, Ricardo e, Celio Ely. À minha Mãe, Eugênia, que com sua voz de clarineta, alongou orações por meus sonhos. À memória de meu Pai, Antenor Corrêa Leite. Quando a morte matar a morte nós nos encontraremos de novo. COMENTÁRIOS DO AUTOR Esse projeto de livro tantas vezes começado, adiado, inúmeras vezes abandonado, foi de parto realmente difícil. Tomei-me de inteireza para, finalmente pesquisar o necessário e concluí-lo, na ocasião em que recebi o belo livreto chamado “VisLumbre” do excelente Poeta Alessandro Marino Lima (São Caetano do Sul), quando, ao final da obra, artesanal, o mesmo esperançoso, valera-se muito apropriadamente da frase “Um dia, enfim, todos os livros se abrirão”. Bingo! Esse mote belíssimo parece que lavou-me por dentro, abrindo em mim portas de entusiasmo e busca inconstante e impertinente, até que, finalmente, recolhi os dados, ganhei as ruas, bati em portas – “batei e abrir-se-vos-á?” – cobrei dados oficiais (assustei pessoas), e, finalmente, eis a obra que fala por si mesma. Ë a história de um ser humano que viveu intensamente. Caso passasse despercebida essa entrega, a partilha de seus altos e baixos, não haveria lição alguma, a não ser para os que o conheceram, dependeram, foram ajudados pela bemaventurança da tenacidade dele. Livro pronto, entrego-o ao público leitor, feito inventariante de uma vida especial e depositório fiel desse legado de emoções e buscas. Que façam bom proveito dele, da mesma maneira como me fez enormemente bem escrevê-lo “O futuro não nos traz nada e nem nos dá nada. Nós é que, para construi-lo, devemos dar-lhe tudo“ (Filósofa Simone Weil – França) 199 O AUTOR – Foi criado em Itararé desde os seis meses de idade – nasceu no bairro Harmonia da cidade de Monte Alegre-Pr no dia l9.08.52. Seu pai foi perseguido por grileiros de Lupion e voltou à terra de origem, onde tinha sido, quando moço, primeiro acendedor de lampiões de gás da cidade. Em Itararé passou a primeira infância e correu nas descalças ruas cor-de-rosa da pequena periferia da cidade. Começou a escrever precocemente ainda no Grupo Escolar Tomé Teixeira, em Itararé, no Curso Primário. Poemas pueris sobre o Dia da Pátria, da Árvore, do Índio, da Bandeira. Com 16 anos escrevia para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado, além de ter sido aprovado em concurso para locutor na Rádio Clube de Itararé. Em shows populares (prata da casa) cantava paródias e fazia imitações da nata da Jovem Guarda. Era um rapaz que amava Os Beatles & Tonico e Tinoco. Em Itararé, quando se iniciava nos estudos, também trabalhou como bóia-fria, engraxate, vendedor de picolés, garçom de bar e marceneiro, onde aprendeu essa profissão e ajudou a família, primeiro filho homem depois de cinco irmãs. Em finais de 70, bandeou-se para Sampa, para inscrever-se para servir a pátria. Por ser arrimo de família, foi dispensado. Voltou a estudar, terminou os estudos no salesiano (de Dom Bosco) Liceu Coração de Jesus onde foi medalhado, fez Direito, foi perseguido pela ditadura, ganhou ficha nos porões dos podres poderes do regime de exceção, a ditadura militar. Trabalhou oito anos na área de Pessoal e depois na Contenciosa, quando foi demitido por ter escrito texto para o Jornal da Tarde contestando as falcatruas da banda podre do Plano Cruzado de Sarney. Fez então Geografia e foi aprovado em concurso para professor da Rede Pública de São Paulo, além de ter feito várias oficinas, extensões e especializações (redação publicitária na ESPM; relações raciais, literatura e jornalismo na ECA-USP, além de inteligência emocional, filosofia para crianças, etc.). Fez pós-graduação em Educação (Mackenzie) , onde especializou-se em Didática de Terceiro Grau. Sempre escrevendo para jornais de Itararé, produzindo muito, começou a participar de Concursos, quando teve a sorte de vencer alguns, inclusive na USP, na Unioeste (Universidade do Oeste do Paraná – Concurso Paulo Leminski de Contos), e outros bancados por Bibliotecas Públicas de renome e Fundações Culturais idôneas. Em 1995 teve um livreto de Poemas (Trilhas & Iluminuras) bancado pela Coleção Prata Nova da Editora Grafite do RS. Começou a participar de mostras (inclusive no México), congressos, palestras (Faculdades Campos Salles), (exposições (Centenário de Itararé), feiras culturais (Faculdade Pinheirense – Grupo Teresa Martin), eme também a colaborar com várias revistas literárias, jornais e Suplementos Culturais, escrevendo sobre literatura, artigos, resenhas críticas, sobre teens, Terceira Idade, educação, Cidadania, Política 200 e Ética. Passou a constar em diversas Antologias Literárias, inclusive no exterior como Itália (Antologia Multilíngue de Poetas Contemporâneos), Portugal (Instinto Piaget/Concurso de Poesia) e Cristhmas Anthology (Estados Unidos), entre outros, além de ser incluído em alguns cadastros da nova poesia brasileira. Teve seu trabalho elogiado, entre outros, por Elio Gaspari(Folha de São Paulo), Crítico literário Erorci Santana (Jornal O Escritor da UBE-União Brasileira de Escritores), Solon Borges dos Reis (Educador e Poeta), Jamil Snege (Escritor de vanguarda do Paraná), Ricardo Ramos (filho de Graciliano Ramos),Senador e Jornalista Artur Távola, Jornal O Estado de São Paulo (quando ganhou prêmio na USP), Professora Maria de Lourdes Luciano Nonvieri (Jornal Tribuna de Itararé/Elos ClubeComunidade Lusíada Internacional) e Revista Literária Aldéa, da Espanha, entre outros. Em abril de 2.000 teve seu livro O Rinoceronte de Clarice, contos interativos, literatura virtual, bancado pelo Site httpp:www.hotbook,com,.br da Jornalista, Professora e Escritora Roberta Rizzo (Rádio CBN Rio de Janeiro), lançado na rede mundial da Internet, como trabalho pioneiro, único, de vanguarda, com ficções ao estilo “você decide”. Por duas vezes foi selecionado pelo Mapa Cultural Paulista (Secretaria de Estado de Cultura) como um dos dez melhores contistas do Estado, representando Itararé. Recebeu o título oficial de Cidadão Itarareense e é autor do Hino ao Itarareense, escrevendo ainda para o jorna Gazeta Regional de Itararé, onde é diretor cultural de clube e mantém atividades e família. Pode ser contado pelo e-mail [email protected] reside em Sampa à Rua Tucambira,44-Apto.2-Pinheiros-São Paulo-SP, atendendo pelos fones: 211.7l64, 9l08-6352 ou recados 289.4333(hor.comercial). É compositor inédito de rocks, baladas toadas & blues, tendo ainda vários livros inéditos, como romances, uma novela, dois livros de microcontos, um de haikais, vários de poemas temáticos, um de poesia para a juventude e um inventário sobre a Prática Educacional Vivenciada. O autor, como Manuel Bandeira, não acredita em arte que não seja libertação, acredita-se um plantador de sonhos, um eterno aprendiz da alma humana, acha que o mundo estaria melhor se tivesse mais mulheres no comando, além deter sua poesia rueira, descalça, como se uma espécie de respiração da alma, e a sua ficção classifica de ficção-angústia. Tem livros inéditos sendo prefaciados por José Nêumanne Pinto (O Estadão) e Bernardo Adjzemberg (Folha de São Paulo) e dois outros (um de auto-ajuda e um romance) em poder de editora de SP para serem avaliados. Um poemeto seu diz ”Ser Poeta é a minha maneira/ De chorar escondido/Nessa existência 201 estrangeira/Que me tenho havido”. Teve a idéia desse livro muitos anos atrás, começou a parou várias vezes o projeto, até ter tempo para pesquisa e acabar esse projeto de livro. Pensa em traduzir alguns de seus trabalhos e lançá-los no exterior, como fez com sucesso Ignácio de Loyola Brandão. Ainda um sonhador, acredita na utopia de um neosocialismo de resultados, envergonhando-se do “capitalhordismo” praticado no Brasil de muito ouro e pouco pão, de tantas riquezas injustas, de suspeitas riquezas impunes, onde os excluídos sociais fazem parte da miséria absoluta globalizada, da fome, da prostituição infantil e da corrupção endêmica institucionalizada em todos os níveis, com um estado público na verdade privado..(*) *************************************************************** 202