ELE
ESTÁ NO MEIO DE NÓS
a história de uma vida num belo romance de amor ao próximo
Ψ
Silas Corrêa Leite
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“Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça
particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles,
conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza definida de outras espécies em
leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu
próprio arbítrio, entre as mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti
mesmo. Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que
contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de
que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil
escultor, descubra tua própria forma...”
(Picco della Mirandola – Oratio de Homminis Dignitate)
Para todos aqueles que crêem. (Os que não crêem, merecem-se.)
Início pela primeira vez, fim de março de 1.998 – Término Junho de 2.000.
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ELE está no meio de nós
Introdução
“É preciso descer muito fundo para
encontrar forças e subir novamente”
(Cântico Hassídico)
Era para ser só mais uma simples noite em que Paulo de
Tarso Trigueiro saía para jantar com a segunda mulher, a ex-amante e agora de papel passado - esposa oficial, a bela, morena, alta e garbosa Dagmar
Marlene Zakir, corpo escultural, cabelos castanhos crespos e brilhantes, bem
cuidados, busto farto num tubinho preto de seda japonesa, bem decotado,
ancas grandes entre pernas bem torneadas, incisivos olhos azuis em formato
de amêndoas, carnuda boca oval em alto relevo, canelas luzidias e pés de
bailarina clássica, quinze anos mais nova que ele.
Escolheram, como sempre, o “La France”, um bem
freqüentado restaurante caro e famoso, fincado num enorme prédio estilo
neoclássico ali no bairro rico do Itaim Bibi, onde o lugar, de preços caríssimos
e com conhecido pianos-bar, ficava no terraço de ladrilhos azuis portugueses
de uma cobertura bem iluminada, perímetro urbano nobre da primeira ponta
da zona sul da cidade de São Paulo.
Era o final de março de um ano qualquer, o tempo cismara
ruim e se portara úmido o dia inteiro na maior cidade brasileira e uma das
maiores e mais populosas do mundo, mas, por ser sexta-feira e penúltimo dia
do mês ainda de outono com lua cheia, o engenheiro e empresário do ramo de
construção deu-se outra vez ao luxo de mais uma repetida noite sósia regada a
uísque importado da Escócia, um geladíssimo champanhe Dom Pérignon, de
boa safra centenária e de alto preço, rosada lagosta californiana ao creme de
patê de fígado de faisão belga, batata palha queijada ao molho de cidra com
queijo Camebert e manjar de manga mais arroz ao tempero acridoce. Depois
da sobremesa (sorvete de nácar de tâmara transgênica com licor de abricôt
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grego) iriam, certamente, ganhar um discreto motel de luxo das imediações da
Avenida JK, onde passariam mais uma noitade de amor e luxúria inesquecível.
Dr Paulo de Tarso Trigueiro, branco, alto, magro, olhos
verdes, negra barba cerrada tratadíssima, cabelos levemente grisalhos,
engenheiro civil formado pela melhor universidade do Brasil, a USP, com
doutorado em Edificações Modernas pela Sorbonne, França, estava viúvo do
primeiro casamento (o primeiro amor de nossas vidas é para sempre?) a
pouco menos de ano e meio, e então pudera, como prometera - mesmo que de
certa forma sendo imperiosamente forçado pelas circunstâncias, diga-se de
passagem - assumir socialmente a emergente socialite ex-amante de pouco
mais de trinta e cinco anos anos, sua ex-secretária trilingüe de pernas
fabulosas, agora oficialmente (e entojada) metida a falsa rainha do lar, mas
que, ainda assim de forma teatralmente dissimulada o depenava não apenas e
tão somente no jargão do sexo (e “suadouro” na peleja do côncavo e convexo
dos seixos íntimos) selvagem e total, mas, financeiramente também. Era o
estilo, o modus operandi de todo o sofrível percurso dela.
Havia sido uma perigosa aventureira sexual, cheia de charme
e volúpia explicita, oriunda do norte de Minas, família de descendente de
ibéricos católicos conservadores até as tripas, e que, coitados, mal sabiam os
estranhos degraus de ascensão que ela pisara como uma espécie de vampira ou
fêmea fatale, ou em quantas camas se aliviara perigosamente e com quantos
amantes fogosos desde a aldeia natal aprendera a ser poliglota para uso e
consumo, ou mesmo adquirira graus boçais de etiquetas de ocasião, além de
receptar certa bagagem de cultura inútil também, o que lhe valiam um jeito
loquaz, sedutor, irresistível, pegajoso, quase grude. A faca e o queijo.
Ele, um bem sucedido empresário algo liberal de ocasião,
nascido humildemente pobre e paupérrimo, pois que era filho bastardo de rico
empresário (que o renegara desde o ventre) só que criado em geográfico berço
esplêndido da aldeia natal, a bucólica cidade de Itararé, sul do Estado de São
Paulo, local histórico e famoso que adorava, e pelo qual era, como tantos
boêmios & artistas locais, fanático de carteirinha. Afinal, a história do Brasil
passava por Itararé de tantas revoluções que na verdade não revolucionaram
nada, apenas deram verniz de viés novos a engodos históricos desde os
primórdios da invasão colonizadora-exploradora de 1500.
Para ela, sempre atiçada, seria mais uma noitada feliz de
entrega total e prazerosa, a fazer sentirem-se numa sauna (e poder “depenar” o
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marido pato de todos os jeitos e posições). Para ele, no entanto, estranhamente
tudo aquilo era apenas mais uma mera fuga. Não passava de um deleite de
ocasião, um desfrute que apenas somava no contexto lógico-sequencial que
vivenciava. Nem era mais tão importante assim. Talvez uma mera e
fisiológica trivial oxigenação de cadarços íntimos. Ultimamente e, sem fazer
alarde, sendo discreto ao seu jeito, para não dar na vista; para não estimular
acirramentos de ânimos ou pôr desconfianças em arranjos pecuniários de
meio, estava com alguns problemas ainda não inteiramente decodificados
numa sintonia fina de seu interior algo transido. Não problemas financeiros,
pois tinha crédito internacional e outro montante em grandioso valor que
arrancava do governo corrupto até as vísceras, por competente tráfico de
influência de amigos e alta podridão que entrevava o executivo municipal sob
a guarida da quadrilha de um turco ladrão e sua máfia neoliberal da Capital
Paulista, tornando a cidade de tantos contrastes sociais um verdadeiro esgoto a
céu aberto, com mais de dez mil mendigos e outros graves problemas de falta
de sensibilidade administrativa estatal e noções primárias de humanismo
cívico. Coisa de Terceiro Mundo mesmo.
Tinha problemas era de foro pessoal, pois que vinha,
escondido de se manifestar, se sentindo cansado de viver, cansado de tantas
coisas. Lia muito como se quisesse fugir. Clássicos, teatro, gibis, jornais,
revistas. Uma fuga para dentro de um isolamento feito ilha? - Cansado de
viver? Sentia uma iniquidade da vida, talvez a depressão da acuada idade do
lobo num labirinto, talvez algum ramo da consciência pesada pelo que fizera à
primeira mulher amada, traindo-a por longo dez anos com a arrebatadora
secretária posuda e insaciável, enquanto um horrendo câncer de pele consumia
a gentil e prestativa patroa acadêmica, a cerzia epidermicamente como a tornála com pele de uma nós moscada ou uma pelica de maracujá murcho,
escondendo clandestina e secretamente um tempestuoso romance explosivo,
fugaz, possessivo e platônico. Arrebatador.
Ele, sem o saber inteiramente e identificador de curtume
íntimo, paulatinamente passara a ter um certo desprezo a este mundo,
construído por um Deus sem que este estivesse preocupado com o bem-estar
geral do ser humano. Era isso? Que absurdo era isso? Essa situação
contraditória em si mesma, na verdade significava um ato independente e de
afirmação da própria individualidade, misturando-se entre o vício e a virtude,
a coragem e a covardia, a vida e a morte, com perspectiva dessa rebelião
íntima levar ao risco de dissolução da própria existência com o suicídio de
alguma maneira, paulatina ou radical. Era a fuga sensível para a interioridade,
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criando uma espécie de impasse tragicômico. Era o Ser Humano entre o caos e
o nada, quase que um simples Eco sem saída.
Talvez, ainda assim, já sem o saber de explícito e com
alguma aceitação tácita, buscando – ao procurar sarna pra se coçar com uma
amante metida a amarrar homens incompletos - um verdadeiro sentido para a
sua vida, tendo sempre martelando na cabeça uma frase de bela canção do
cantor compositor Caetano Veloso que lhe implicava na mente abalada, no rol
dos dias taciturnos, atribulados, rotineiros e tristes, e que se lhe vinham a
cobrar sem harmonia, melodia e ritmo, a frase meio filosófica, curta e grossa
que cobrava:
...................
Existir a que será que se destina?
Podia fugir, esnobar, montar fantasias, viajar, claro. Aliás,
podia tudo. Tinha cacife e handicap para isso e muito mais. Tinha mansão de
arquitetura estilo helênico no Condado de San Marino e suntuosa casa de
veraneio projetada por Oscar Neymaier e decorada por Burle Marx na
Republiqueta de Mônaco, na área chique da Europa; podia levar a
temperamental esposa nova, cara e cheia de volúpia de nome Dagmar Marlene
para fazerem um retiro velejando numa bela escuna azul de nome Corcovado
pelas águas de ágata do mar Mediterrâneo, mas sabia que não era isso. Isso
não importava, já tentara e não fizera sentido. Que caminhos há nos
descaminhos? Portas e janelas não se abrem sozinhas. Sentimentos-chaves
abrem válvulas de escape por dentro?. Compreenderia as várias tríades para se
entender a vida: passado, presente e futuro; inconsciente, pré-consciente e
consciente; emoção, ética e razão; id, ego e superego; real, imaginário e
simbólico?
O quê estava acontecendo no cárcere fechado de sua
inquirição íntima? A viagem que tinha que fazer, que era necessário fazer, não
tinha rumo certo e sabido; sequer prisma, condução ou trajeto próprio. Não
identificava curso em si, como dizia a canção, sobre “uma estrada de tijolos
amarelos” de um ídolo pop britânico. Precisava não de lastro social, financeiro
ou que endossasse o ego algo doentio, mas de uma âncora na alma?. Tinha
tudo: poder, riqueza, tesão. Mas era infeliz. Baixa auto-estima?. Avaliação de
percursos. Cálices transbordando... Alguma coisa não cabia inteiro em si,
como se uma cisma interior, rançosa. Era infeliz, apesar de achar que com a
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morte da primeira mulher de sua vida, a Professora-Doutora Carolina Fé, sua
primeira namorada desde a saída de sua aldeia nativa de Itararé – amor a
primeira vista - seria livre e poderia alçar vôos maiores.
Mas, afinal, que vôo é esse que nos leva para dentro de nós?
Como o sol, a loucura tem sua própria órbita. A mente sensível que se abre
para uma idéia, pois estranha que seja, jamais voltará ao seu tamanho
originariamente crível. Era o caso dele. Mas ele mal sabia o que sabia.
Não entendia porque estava assim. Caros especialistas de
renome, seus amigos pessoais de jogos de pôquer ou bridge equestre que
adorava, detectaram que era tédio de viver na mesmice de tudo correr bem,
tudo dar certo, a grana fluir. Era uma “doença boçal de burguês, quase
frescura”, caçoaram, enquanto bebiam, comiam, jogavam, apostavam entre
firulas, levavam a vida no vai da valsa, pouco se danando para o resto do
mundo. Fricote babaquara de membro da classe dominante que não sabe onde
pôr a grana saindo pelo ladrão, brincaram. Só que ele sentia direito e
completamente isso. Ele precisava achar-se. Ele tinha que se dar um jeito.
Muita coisa não fazia sentido no eixo todo de sua vida. Era uma amargura,
uma angústia, um desespero. Tudo sem rótulo, sem viés, sem remo, sem praia.
Que importava a origem dos ventos, se os pedidos de socorro
estavam abandonados numa areia qualquer, sem pegadas ou espaço indizível
de sua inconstância? Que fuga perniciosa era aquela agora? Os filhos
adorados, semeados fáceis na lida, todos ricos, bem encaminhados, cheios de
si. Tinha uma dúzia de netos maravilhosos, de seus seis herdeiros todos
varões, que lhe davam orgulho e retorno de carinho certo, mesmo com a
estupefação geral em família por causa daquela madrasta intrusa que laçara o
patriarca, e que sabiam ser pouco menos que uma piranha dando o golpe do
baú, pois o velhote era mesmo da pá virada e bem assanhado por um belo par
de pernas. Crime e castigo?
Tivera já a fama caseira de fogoso. Mas, para quê era o cabide
da existência, reinava ele? Punhal de groselha preta no peito transido. Por que
estava sem chão? O medo da morte não era, pois que era determinado, cheio
de si, e até um adepto costumaz de esportes radicais, adrenalina à mil.
Praticava pesca submarina em Búzios, litoral carioca, exercícios de asa delta
nos grandiosos canyons da região de Itararé, ou caras empreitava corajoso
diversas viagens para alpinismo nos gélidos Alpes Suíços. Calibrar o medo era
parte de seu curriculo vivencial.
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Só compreendia, só entendia de saber que era um nó gótico no
mais íntimo de si. Estava perdido e não sabia por quê. Era bom mas não sabia
para quem. Era ser humano e não sabia exatamente o quê de exato e completo
era Ser inteiramente isso. Ou o que fazer disso. Há males que vêm pra bem?
Dagmar Marlene, obviamente, não compreendia nada daquilo,
era vazia inteiramente nessas conjecturas e ponderações de tal quilate. Afinal,
o quê ela compreendia? Só pensava em consumo fácil, em noitadas de deleite,
em mostrar-se esposa (com anel de brilhantes, turmalinas e ouro branco mais
os papéis que fizera correr depressinha em trâmites de proclamas do cartório
de Itararé) cheia de vaidade e rendida em si, em sua limitada ética de vivência
pessoal. Era interesseira e, topetuda. Desfilava com ele como se o tivesse sob
relho, chave de cela ou como se o pobre maridão fosse um troféu de caça
clandestina, um marionete ou um servil potro velho, não um engenheiroarquiteto e construtor de renome. Ela era dissimulada, vaidosa, egoísta, não
era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, como diziam em sua terra, lados
provincianos das Minas Gerais.
Ele era secreto de si próprio, ensimesmado. Ela mostrava-o à
sociedade como um passaporte da agonia para um céu de perspectivas novas,
invadidas, um butim que amealhou por ser não uma expert, mas uma esperta
no sentido ruim da palavra. E ele vegetava, ao seu modo, escondido de existir,
apesar de dar à ela, física e pecuniáriamente, o melhor de si. Mas isso não era
tudo. O quê é tudo? Ela era viajada de alcovas. Ele era prisioneiro de seu
próprio limite. Ela era uma loba sexual e ele correspondia. Mas não, não era
isso: nem sexo, droga, dinheiro, cultura ou status fazia seu mau estilo recémdescoberto. Não estava cabendo em si.
Naquela noite comum e rala como tantas outras, jantou
como se estivesse tranqüilo como de costume, comeu do bom e do melhor,
bebeu a fartar-se, para não perder o estilo rotineiro, quase relaxou a aparência
transida com a luva de pelica das aparências, da gula e do álcool. A química
da pele da sensibilidade, é alterada quando escrevemos uma fuga por linhas
tortas? O quê não fazemos estimulados pelo álcool entintado?
Tudo começou a acontecer exatamente quando, saiu da
cobertura cheia de lustres belgas do alto daquele prédio de destaque na
arquitetura urbana, pensando em ir buscar o carro importado, doze andares
abaixo, num elevador social privativo para isso, já tendo avisado pelo
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interfone o conhecido e gentil paroara Adalberto, encarregado das chaves e
dos préstimos costumeiros de rotina diária.
Por uma coisa boba, passageira, quase infantil – aviso ou
instinto? (a loucura tem lucidez que a própria essência do ser desconhece) –
resolveu, quase que de forma incrivelmente pueril, ver a grande e violenta
cidade superpopulosa e iluminada lá de cima, ainda algo longe dos camuflados
contrastes sociais da abandonada periferia sociedade anônima escondida em
morros ali pertinho. Chegou-se à murada de tijolinhos vermelho – o
manobrista deveria estar nesse momento procurando o carro caríssimo e
chique dele entre tantos outros de primeira linha e alta tecnologia – mas
aquele homem rico de posses e pobre de espírito estava contemplando o
curtume lá embaixo, enquanto a posuda esposa com o maitre conhecido
tomava o elevador social para esperar na área de luxo da sobreloja do edifício.
Foi quando ele viu.
Poderia ter sido só um meio desmaio, um circunstancial
estado onírico de momento (o jantar não fora um desfrute delicioso?) uma
visão estimulada pela química da boa safra que a cara e destilada bebida rosé
resultara, uma clarividência explicável que fosse coincidente, no favo da
sensibilidade apurada. Mas ele VIU!. Sim, ele enxergou completo. E era como
se esse estupendo e inusitado Ver imenso o ligasse à tomada extrasensorial de
alguma coisa no muito além de si, num plano terreal, numa placentária
gambiarra de luz, onde ele poderia afinal achar-se em serenidade e farta paz
espiritual consigo mesmo. Os desígnios de Deus nem sempre são os nossos?.
Lá embaixo, com a visão boa com que se descobrira tocado –
a saúde era perfeita para a sua idade, disse o Dr. Israel Barbeiro, especialista
em Geriatria pela Universidade de Nova York - viu o que não cabia inteiro no
pleno e cabal em si, em tal suprema contemplação. Meu Deus! - O coração
quebrou um cristal íntimo de ânfora que de presto enraizou de menta fina os
arquivos neurológicos do privilegiado cérebro de vencedor.
Pois, ao lado de uma mureta de um prédio velho em
reformas, perto de uma marquise úmida que servia de teto para mais um bando
de desiludidos cidadãos de rua, mendigos, menores e velhinhos abandonados
mal cobertos com trapos de papelão e retalhos de lixos, ele viu. Quase não
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acreditou. Então haviam os sensíveis que davam um pouco de si pelos
desafortunados? Que lição e tanto! Por um momento chocou-se. Levou um
susto com o que sentira do que vira!
Não aceitou aquilo, no primeiro instante do tranco no
cárcere de seu ser sensível. Mas o mais íntimo perenal de si creditou aquele
imenso e maravilhoso Ver alavancado pela sensibilidade mordida de algum
insight presencial. Ao lado de uma velha kombi branca queimando óleo,
saíram os três e deixaram a marmita de comida para os abandonados sociais,
quase duas horas da madrugada daquele dia que lhe fora difícil até para fechar
o balancete do ano passado e preparar as glosas costumeiras (batendo com o
Caixa Dois) do Imposto de Renda do Ano Fiscal anterior e sua ativa caixa
preta de insanos lucros impunes.
LÁ ESTAVAM ELES!.
Só podia ser. E acreditou piamente nessa maravilhosa
hipótese. Quase ralhou-se por um tomo de incredulidade da dúvida. A dúvida
a reinar? Olhou mais para o lado, temeroso que fosse um desvario, e, na
esquina, onde uns pobres meninos mambembes dormiam seus pesadelos sem
o crivo seguro sequer de eventuais “pais de rua”, tantos OUTROS. (Servos na
liberdade, pobres entre riquezas, mortos em vida porque traziam no próprio
corpo os grilhões que os prendiam, no espírito o inferno que os oprimiam, na
alma o erro existencial que os debilitavam, na mente abalada o letargo que os
matavam pouco a pouco, dia-a-dia.)
Algum escondido e inusitado sininho tocou em sua alma.
Uma nuvem de luz invadiu seu coração que moveu placas de sentimentos
revisitados. Sua mente aceitou um código não identificável. Era aquilo que ele
buscava. Uma resposta, um legado? Sim, para isso valeria a pena viver.
Chorou até ser surpreendido pelo Maitre Riovaldo que, na demora do retorno
para a saída o fora flagrar aturdido olhando para um nada completo lá
embaixo.
Mas ele vira TUDO.
Ele sempre tivera a percepção muito apurada desde guri em
Itararé. Era chamado de pessoa fina, especial, terna, doce, sensibilidade à flor
da pele, apesar de tudo o que a vida de ruim lhe dera como bagagem e destino
cruel. Desviara isso para um necessário instinto de sobrevivência, para um
tino comercial, para abrir caminhos. Manter-se vivo era uma coisa séria.
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Depois variara momentos, caíra nas redes do mundo, nas entranhas pouco
éticas do lucro fácil. E os desacertos do mundo não fazem bem à toda alma
humana. Criam ranço e certos disparates em fluxos de inconsciências por
traumas mal resolvidos. Quem é marcado pela fome, pelo abandono, pela
injustiça, sabe o peso disso. O medo de se perder é eterno. E ele mudara
muito. Mas não mudou tudo a ponto de secar inteiramente o Dom que
possuía, no mais íntimo gomo de um favo de si. Se bem que ,de uns tempos à
esta parte, era só um Ser Humano bem atrofiado pelo volume de negócios e
grana alta. Luxo, riqueza, poder. Que mal isso pode fazer ao homem. Riquezas
injustas? São Lucas falou disso nos Evangelhos. Riquezas impunes? O
intelectual Millôr Fernandes tinha escrito algo a respeito. Falácias de
intelectuais que gostavam de pobres?. O país era um caldeirão de
descamisados. Nem só por isso, mas o buraco da agulha se tornara menor, e o
camelo do esquecimento social cristão criara carcovas de irrazões e medos de
limites racionais.
Quase chamaram um médico importante do convênio
internacional. Quase pediram um helicóptero ou uma ambulância. O prédio
mesmo tinha um heliporto cinco estrelas. A segurança era perfeita.
-O que está havendo, doutor? Qual é o problema dessa
demora?
-Eu estou bem, pode ter certeza disso, Riovaldo. Muito
obrigado pelo préstimo da atenção. Você sempre tão gentil comigo.
-Mas o sr. está verde, doutor? Quer que eu chame uma
ambulância? Em minutos o sr. estará sendo bem avaliado.
-Pode deixar, amigo velho. Hoje foi o dia mais importante
da minha vida. Você nem pode imaginar...
-Mas o sr. está chorando!. E tem muitas outras lágrimas nos
olhos, prontas para o desmanche de um devir. Dá pra se perceber claramente
isso. Riovaldo era pintor escondido nas horas vagas. E ler livros de auto-ajuda
era seu hobby secreto. Cobrou preocupado e sensivelmente abalado com a
cara do cliente antigo: -O que houve, doutor? Retornou o elo da questão.
Estava preocupado, com medo, vestido de assombro.
-Nunca me senti tão feliz. Nunca me senti tão Eu. Na
verdade, nunca me senti tão inteiramente dentro de mim
mesmo, respondeu Dr. Paulo. Emocionadíssimo.
-O quê o sr. viu lá embaixo? Não dá pra distinguir nada. O
sr. está passando bem? Quer que eu avise sua esposa?
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-Vou descer. Até qualquer dia desses, meu bom rapaz.
-O sr. virá tomar seu uísque amanhã, antes do almoço,
como de praxe há mais de dez anos?
-Nunca mais! Nunca mais! Boa Noite, Ariovaldo. Desculpe
alguma coisa, por favor. Tenho que ir-me...
O Dr. Paulo de Tarso Trigueiro já não era o mesmo. Tomou
meio torto o elevador de serviços. Em minutos rendia-se com a com a esposa
Dagmar Marlene que já estava preocupada com a demora e reclamava
ostensivamente de alguma coisa, beiçuda, de tromba. Tomaram o carro, um
jipe cheroquee preto, importado. O dr. Paulo deu dez reais ao manobrista. Ela,
casca grossa, pediu de sopetão para dirigir, pois tinha bebido pouco e o queria
inteiro e despreocupado na cama com colchão d’água e italiano espelho oval
no teto.
Ele entrou pelo lado direito no carro e só pensou em ir para
casa. Sabia muito bem o que fazer agora. Sabia, finalmente, que rumo inicial e
definitivo tomar. Um dia os nossos sentimentos despertam agonias e placas de
emergências pedindo colo infinital.
Sabia o que fazer de sua vida sedentária. Que Deus tivesse
misericórdia de sua miserabilidade, pensou e guardou consigo essa toleima.
Estava emocionado que não compunha palavras no seu tento de sensibilidade
tocada. Parecia envernizado de lume terreal.
Tinha visto uma luz no fim do túnel e tinha que se preparar para
ir ao encontro dela. Era um “chamado”?
Era a única saída.
E a seguiria até os últimos dias de sua vida, que até então tinha
sido entregue à mesmice trivial de coisas pífias, ignóbeis, vis, nulas.
Coisas bobas, mediu-se,;que na verdade não tinham nada a ver
com a sua verdadeira essência.
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UM
“Deves criar o Bem a partir do Mal. É esse o único
modo de o criar...”
(Robert Penn Warren)
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Dagmar Marlene caçou o batom carmim italiano da bolsa de couro de javali
sul-africano que comprara na Butike Brasil em Mahatam, Nova York, Estados
Unidos, num verão do ano passado; nas montadas “férias” que viajou com ele
a título de segunda lua-de-mel, e, para não perder a pose e o estilo quizilento
da fase pré TPM, reclamou da sisuda cara de azedo do marido que parecia ter
visto, no entender dela, o próprio “cusarruim”. Ele percebeu: continuava
vendo, sempre e sempre, não acreditando que, finalmente tinha aberto algum
chip cerebral que lhe permitia tanto. Quantas vezes parara naquele mesmo
farol, entre a Avenida Faria Lima e o princípio de uma travessa da Avenida
Santo Amaro, e, tantas vezes, como outros milhares de motoristas ricos e
apressados empresários, destilara veneno no olhar bravo e no gestual bronco –
clicava rapidamente o botão do fecho do vidro automático, ligava o ventilador
- quando aparecia um pedinte rueiro sujo, um inglório menor abandonado
negro ou pardo, um esquelético velhote a querer tomar seu precioso tempo de
empresário bem sucedido; tocar com mãos sujas de fuligens e nódoas seu
potente carro, pedir a intrometida e inconveniente gentil caridade de mais um
adjutório. Por que não iam arrumar o que fazer? Por que não voltavam para a
Bahia que tanto cantavam em verso e prosa? São Paulo estava infestado de
miseráveis. Quando não favelados, migrantes nordestinos ou sem tetos
atirados na rua da amargura. São Paulo era uma pocilga, um mercado de
pungas, pensava nessas ocasiões. São Paulo era um monte de barracos, no seu
cinturão periférico. Como tinha sido mudado, no rol da desconstrução do eixo
de si. Agora era outro. Pensava diferente. Condoía-se.
Agora via tudo com olhares novos e limpos, puros, sadios. Sabia o que queria.
E ai de uma mulher que queira impedir um homem de ser o que ele é, quando
ele descobre algum segredo, algum mistério, alguma sagração de exposta
grandeza sensorial íntima exacerbada.
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Enquanto a esposa xucra para o seu nível cultural e de intelecto privilegiado,
nervosamente ligava o rádio e caçava no controle remoto adjunto ao volante
esportivo o dial de uma estação de FM com música brega-chique, ele
continuava olhando as ruas úmidas e entregues à fauna mista, entre ratos
humanos, baratas de lixões e toda sorte de gentinha, vultos imóveis entre
sombras, a ralé. Os miseráveis. A noite ia ser longa. Ele perdera o tesão pelas
coisas terrestres. Lá fora, aqui e ali, via tudo novamente. Sim, lá estavam
ELES. Sob a cobertura de precária lona encardida talvez roubada de um rueiro
carro de hot-dog, dormiam outras pessoas sem eira nem beira. Párias – a
escória. Parecia mais uma família de migrantes, levas de fugidos do nordeste,
por causa do modelo econômico agrário-exportador que facilitava o sucesso
da região sudeste, principalmente São Paulo.
E, reparou novamente, aturdido e ao mesmo tempo muito feliz: LÁ
ESTAVAM ELES. Como nunca sentira isso antes? – matutou encabulado.
Pois lá estavam e distribuíam silentes, zelosos e com compaixão, cobertores
comuns e pães aos abandonados, aos coitados, aos zé-manés daquela cidade
com tantos contrastes sociais, com tanto ouro mas com pouco pão. Era aquilo
que queria. Era aquilo que buscava. Deus tinha lhe apontado o dedo,
indicando um caminho. Fora tocado pela sorte de uma visão? Como um rio
desgovernado, estava vendo seu leito raso para correr, sem as margens limites
de uma obscuridade que o oprimia de repente. Tinha tudo e não tinha nada.
Era rico mas a sua natureza espiritual pedia paz que não se encontra nos
ditames sociais ou nos paradoxos do lucro insano, do lucro a qualquer preço, a
qualquer custo. Do lucro que fundava a fome e a miséria absoluta. Do lucro
que gerava emprego, modernizava (informatizava) e as ações da empresa
injusta cresciam no mercado.
Reparou que a esposa tinha acendido um cigarro de cravo indiano que pregava
adorar. Ele continuou como se sabiamente rendido em si. Se assuntando.
Medindo os sentimentos revisitados. O som de uma dançante música pop
espanhola enchia o ambiente seguro do veículo. Perto do sujo Largo da Batata,
no bairro de Pinheiros, viu uns coitados dormindo em bancos de praças
precárias, cobertos com jornais e por cima sacos preto de lixo disfarçando os
rejeitos humanos sob a marota garoa paulistana. Segurou o ímpeto para não
revelar-se, estragando tudo.
Conteve-se para não acordar aqueles seres humanos – sim, seres humanos! – e
levá-los para um hotel, pagar-lhes um mês de cama e comida e coragem, dar14
lhes identidade de serventia, abraça-los como irmãos. Por ele levaria até sua
ostensivamente rica mansão no nobre bairro do Morumbi, ali pertinho.
Olhou para a Dagmar Marlene e ela parecia feliz, cantarolando o refrão
repetitivo da musiquinha chata, demodê, apesar de rotulada de tecno-pop. Viu
novamente: Distribuíam comida para um catador de lixo de rua, que dormia
com um cachorro sarnento sob seu carrinho de madeira cheio de lixo. Tinha
achado seu farol norteador.
Em minutos estavam em casa, uma mansão colonial com gordos cachorros de
raça, truculentos seguranças paroaras, enormes grades elétricas, câmaras de
controle e muitos empregados ganhando uma miséria mas que dariam a vida
pelos patrões. Morava entre o estádio do Morumbi e o Palácio do Governo
estadual, área mais rica da cidade. Dagmar Marlene estacionou o possante
carro, resmungando, insatisfeita com a recusa explícita da peleja sexual que
pretendia como fito primordial de sua vida a todo momento sequiosa e
insaciável, atirou o toco de cigarro de cravo num vaso de orquídeas vermelhas
viçadas e entrou em casa dando chute na sombra, depois de abrir a porta de
aço com três chaves de segurança máxima com senha numérica e um cartão
magnético com código pessoal intransferível.
Iria tomar uma ducha na piscina quente, depois tentaria assistir um filme de
terror na tevê a cabo. Não gostava quando seu maridão emburrava. Ele vinha
tendo essas esquisitices agora. Teria outra? Chegou a pensar nessa hipótese.
Mas ela era boa de cama e sugava-o de um jeito, que não sobraria nada para
ninguém. E depois, também contava com a hipótese de que ele mal-e-mal
duraria uns vinte anos se tanto – se precisasse ela mesma o envenenaria aos
poucos - quando então ela ficaria livre com a fortuna que lhe caberia, e assim,
poderia cair fora, ir morar em Londres, arrumar parceiro jovem, ser feliz. Mal
sabia ela que nunca sairia do lugar que estava, e esse era o problema. Para
qualquer lugar que fosse, drogas, viagens, aventuras sexuais, teria que se levar
consigo. E sua vida desregulada era a sua própria cruz de exato tamanho.
E ela era o problema, a infelicidade quizilenta em pessoa, que, por um desvio
de relacionamento familiar que caíra no psico-somático, tendia para um
aparato sexual todo até como fuga. No entanto, era muito nova, apesar de
extremamente ousada. Tinha muito que aprender. Pior: teria que passar por
várias vicissitudes, para SABER APRENDER, o que, naturalmente é mais
difícil.
15
Paulo de Tarso estava aprendendo depressa a lição daquela noite especial. Não
titubeou um só segundo. Tinha descoberto a cura da dor de sua existência,
deduziu sonhador. Sabia o que queria agora.
Dirigiu-se ao escritório central da casa, uma saleta de seis por seis, piso de
lambris de peroba-brava, quatro metros de altura, com uma janela dando para
a piscina em formato de losango, onde começou a formatar atendimentos
jurídicos e formais de sua legitimidade adquirida naquela noite e começo de
madrugada, quando deixaria resíduos de pertencimentos nos atos legais,
peremptórios, preparando-se para deixar de ser, para sempre, o que até então
fora, entre mitos boçais pelos quais até inutilmente lutara em vão, pois nada
daquilo valia a pena, no apurado final de todo um viver medíocre. Seu
balancete era que vivera em vão, usurpando do Caixa Dois da vida. Como não
pudera compreender isso? Mas não era tarde demais. Quem somos? Existe
uma natureza perversa no humano, ou também somos um produto histórico
com capacidade de auto-regeneração?
Nunca é tarde demais? Agora tinha um propósito único, íntimo,
maravilhosamente pessoal e graciosamente verdadeiro e digno. Sabia o que
fazia. Finalmente tomaria uma decisão que mudaria radicalmente o rumo de
sua vida. Não provocaria adrenalina interior, como ver cardumes de peixe no
fundo dos oceanos, nem quando via o mundo de cima ao subir montanhas
altíssimas, nem quando voava em asa-delta perto das gordas nuvens crespas de
Itararé, mas seu espírito na verdade não tinha uma casa ordeira de encanto e
paz. Agora estava no interior completo de si. Era dono da situação? Agora
achara um fito primordial para o compreender o âmago do melhor de si para
si. Tomaria a decisão certa. Tinha tino para fechar ciclos, administrar novas
etapas, ganhar novos espaços. Teimava agora a arquitetura de sua
espiritualidade viçada.
Assinou procurações, rascunhou os termos de um novo testamento, agendou
alguns telefonemas para o próximo dia útil, principalmente o mais importante
– valia a sustentação final do caule de sua vida sedentária – com a Dra. Cidú
Lickson, quando, finalmente, largaria aquela vida de janota e entraria para
uma outra irmandade. A confraria dos SERES HUMANOS. O clã de uma
semente cósmica que vagava numa nave-terra pelo sideral espaço cosmonal do
infinito...
-016
DOIS
“No matter what we dream/What we dream is
true./No matter what doth seem/God doth it
wiew/And therefore it is/Real as all this ...”
Episode – The Mad Fiddler – Fernando Pessoa
– 19l7 – Editores Londrinos Constable &
Constable (*)
Na segunda-feira seguinte, depois do matinal asseio apressado e nervosamente
meio furtivo, ressabiado saiu bem cedo de casa sem dar muito na vista ou
sequer fazer alarde, sem a frescura do ritual cotidiano de paparicações e um
entojado breakfast oficialmente rotineiro e bobo, e foi até o escritório de sua
empresa, sediado numa travessa perto da Paulistana com a Brigadeiro Luiz
Antonio, na Rua Manoel da Nóbrega, e, acionando a antiga secretária Maria
Teresa, pediu que ela cancelasse todos os compromissos do dia, e ainda
alertou meio com medo e furtivamente preocupado, cismando a decisão
tomada: -Se ligassem dissesse que não estava. Depois, instruiu, calmo como
nunca houvera antes:
-Se o contatassem, dissesse que estava viajando para um lugar qualquer. E
completou: -Invente, chute. Arrume qualquer desculpa. Avise também aos
demais funcionários. Não quero ser importunado até fazer o que vim fazer.
-Mas o sr. não tinha reunião com aquele Vereador médico do Butantã e aquele
Secretário de Finanças da Prefeitura, para entregar a propina do que eles
exigem para dar o Habite-se do Condomínio 31 de Março?
-Isso não tem importância agora, querida. Nada mais tem. Vou sair dos
negócios para não mais voltar. Tudo acabado. Por favor, encaminhe também
para o Escritório da Dra Ana Laura Cedrez e do Dr. Danúbio Spínola os
papéis que estão nessa pasta rosa aí em cima de sua escrivaninha. A pasta
verde mande pro Gerente de Pessoal. O arquivo encaminhe pro Mestre de
Obras.
17
-O sr. viu passarinho verde, brincou a secretária, suspeitando que alguma coisa
não ia bem – estava estranhando – Era uma velhota na casa dos cinqüenta
anos, que fora chefe de pessoal por décadas na empresa e para ali fora
deslocada para servi-lo de perto, até que por sugestão própria da nova esposa
do dono, não querendo correr risco de ser substituída por igual cria.
-Pareço diferente? – Perguntou o Doutor. Sorriu-se: mediu-se algo orgulhoso
do que pensara fazer. Tinha minhocas na cabeça. Quem tem fé voa?
-O sr. está com um sorriso de criança, um gestual desmontado de acirramento,
parece até que viu passarinho verde... O que está acontecendo? O que houve?
-Você não vai acreditar, Maria, mas eu vi muito mais do que isso. Vou largar
tudo. Vou sair de circulação. Vou cair fora enquanto é tempo, enquanto posso.
-O sr. está com alguma doença grave? Os negócios não vão bem? Algum
problema com a CPI da Corrupção da Câmara Municipal atingindo seus
negócios? A propina pra Policia Federal da Alfândega do Aeroporto de
Cumbica foi pouca? – Ela sabia do que falava. Se ela abrisse o bico, por saber
o que sabia, teria que pedir ajuda do Serviço de Proteção à Testemunha.
Caçou de tentar ouvir a resposta, captar a justificativa.
-Não é problema financeiro, querida. Imagine só. Onde já se viu? É muito
mais grave do que isso. É questão muito mais importante. É questão
Espiritual....
-Deus do céu. Se eu não o conhecesse por vinte anos, diria que o sr. ou está
ficando louco, ou está para morrer... Quem sabe levou um choque total.
-De tudo um pouco, querida. Ligue pro meu filho primogênito, o Celso Felipe.
Trouxe uns papéis de casa. Você pode digitar pra mim? Ao lê-los você vai
compreender um pouco mais a mudança que mexe com minhas estruturas.
Não sou o mesmo de ontem. Mas sou eu mesmo em mim. Não seria mais o
mesmo nunca. Não vou almoçar no La France desta vez. Cancele o ritual todo.
Vou ficar despachando daqui. Daqui a uns dias você vai ficar livre de mim
para sempre.
-Credo – Deusolivre e guarde! Não fale assim, Paulinho!. Onde já se viu isso?
18
Quando queria ser gentil e mais íntima, quando via o patrão chateado ou com
problemas, Maria Teresa com educada confiança respeitosa o chamava assim,
propositalmente, de Paulinho.
-Talvez eu mude de nome também, querida. Nunca se sabe...
-Dr. Paulo o sr. está misterioso. O que é que, afinal, está acontecendo com o
sr? Estou ficando preocupada...
-Você nem pode imaginar meu bem – Dr. Paulo de Tarso a tratara de “meu
bem” quando queria ser doce, polido e gentil, mais do que costumeiramente o
era, em que pese nunca se deixasse fisgar por ser íntimo total de empregados.
Depois fez um muxoxo, sorriu renovado, coçou disfarçadamente uma bereba
imaginária na virilha direita, e entregou seis disquetes, três pastas de papéis,
uma lista de nomes com telefones novos com dados informativos sobre o que
ela teria que registrar, comunicar. Depois entrou no reservado adjunto ao seu
escritório, sentou-se numa cadeira anatômica de sua preferência – lembrava
uma cadeira de balanços que tinha na varanda de sua mansão estilo colonial
no Bairro do Morto Chato em Itararé onde tinha criação de capivaras e uns
colonos que produziam cera e mel de abelha-buri - surpreso olhou a sua foto
de formatura na parede – como tinha sido um jovem tolo, janota e boçal,
compreendeu finalmente – depois apagou as luzes do recinto arejado que era
uma sala de reunião adjunta ao seu gabinete ricamente decorado e chorou,
chorou muito, chorou impiedosamente.
Chorou como uma criança escondida de si. Chorou por todos os órfãos,
viúvas, pobres e renegados do mundo. Chorou como nunca chorara em sua
vida. Tinha o coração aberto apesar de pisado; tinha a mente entrevada mas a
se limpar, oxigenando-se: tinha a alma aberta mas com fissuras que buscavam
consertos terminais.
Aqueles eram os últimos dias de sua vida de insano, de bobo, de cidadão
respeitável no entender frívolo e comum das etiquetas sociais. Pobre alta
sociedade nula. Pobre de si, concluiu, de tromba. Tinha nojo do que
representara maquiando um existir pleno e crível.
Agora era um outro. Sentia que era. Tinha que o ser. Que o bom Deus o
ajudasse. Nunca pensou tanto em Deus como nas últimas horas. Pensara mais
em Deus naquele bendito final de semana com insônia acirrada do que a vida
19
toda de mais de meio século entregue ao nada, ao confinamento trivial do
funesto, do hediondo, do ridículo. Tinha sido assim um depauperado, apesar
das etiquetas, das aparências
Quando a secretária Maria Teresa começou a ler os papéis, os arquivos dos
disquetes, a compostura formal e inédita dos textos, das implicações formais,
formatadas, das decisões sacrificiais, dos termos autorais de seu bem
conhecido patrão, passou a temer pela própria vida, passou a sentir-se em
risco. Estaria correndo perigo sabendo aquilo? Passou a não olhar com bons
olhos o chefe tão próximo e agora ali encruado numa sala escura feito um
monstro escondido. Ficou com medo. E com estranho medo de ter medo dele.
Deus do céu! Será o impossível?
-0-
20
TRÊS
Foi uma reviravolta geral no cenário todo. Parecia que um circo existencial
estava pegando fogo. Seu telefone estava grampeado de alguma maneira? As
paredes têm ouvido?
O Sindicato Patronal ligou atarantado. Um vereador médico, altamente
corrupto e gagá ligado à Máfia das Regionais deixou vários recados nervosos.
A Gazeta Mercantil do Banco Liberal deu uma nota jocosa na coluna de
variedades quer mantinha num site online da Internet, uma emissora de rádio
ligada à FIESP telefonou querendo informações urgentes a respeito de umas
fofocas de colunáveis enturmadas no Clube Pinheiros, três amigos de
faculdade aparecerem mas não foram atendidos como pensavam, um dos
filhos ligou de Istambul porque recebera um telefonema de alerta que não
compreendera inteiro, um diretor do Conselho de Engenharia por e-mail
repetido com letras garrafais deixou um recado maroto pelo não cumprimento
da agenda prevendo um almoço com importante cônsul árabe, uns parentes
chegaram a pensar em entrar com ação para torná-lo desprovido dos bens
todos, antes de vê-o imputável, insano, julgando-o louco varrido, de pá virada.
Os telefones tocaram a tarde toda, até a entrada da noite fria de outono. Eram
retornos de transtornos previsíveis. Tudo para ela era novo, ao mesmo tempo
que previsível.
Mas nunca ele estivera tão bem assim em toda vida.
Nunca sabia tão bem o que queria e como conseguir dar o primeiro e
importante passo decisivo. Estava tão resoluto, decidido e determinado – que
sempre o fora, de certa forma – que até disse um baita palavrão cabeludo
(aprendido nos jogos de tranca num clube rural de Itararé), quando a patroa
chata ligara pedindo aumento do limite de crédito em um dos sete cartões, pois
tinha que operar o cãozinho podlle de uma seqüela reumática no fêmur, oiis o
pobre animalzinho de pedeigree caíra ao atacar rueiros gatos vadios no quintal
florido da mansão.
Ele mandou-a caçar o que fazer e desligou, depois de limpar-se da remela
salgada e das bochechas com sal de lágrimas secas. Compreendeu que fazia
21
bem chorar. E iria chorar muito nos próximos dias. Iria sofrer muito,
compreendeu, finalmente. Teria que enfrentar um mundo novo, ponderou.
Saberia ser forte. Era exatamente isso o que mais queria. Para isso valeria a
pena consumir seus dias terminais na tábua de carne da terra. Para isso valeria
jogar tudo para o alto e dar um salto de qualidade de vida intima. Que Deus o
ajudasse.
Fez acertos. Mudou relatórios. Deletou arquivos. Impregnou-se de íntimo
alumbramento e encheu-se de certa iluminura terçã. Tomou decisões radicais,
antes que fosse tarde. Era o fechamento de um ciclo? Doou parte das ações da
firma para todos os filhos, adiantou seguro-educação para os netos, deixou
volumosa importância para a esposa, que poderia passar o resto da vida
nadando em dinheiro, confiou alta soma aos melhores empregados – Maria
Teresa datilografou essa parte chorando de solução, assustando colegas de
sala, sem saber que ela chorava de felicidade, mesmo que encruando um certo
medo de seu chefe com suas inusitadas decisões insanas, assim, sem mais nem
menos. A maior bolada era a parte dela, sempre tão solícita, séria, honesta,
pontual, despreendida.
Ela estava rica. Podia largar aquele trabalho estressante, cuidar do problema
mal resolvido da angina. Ma nem podia compreender direito e inteiro a
bendita situação. Tudo aquilo dava-lhe nos nervos. Na verdade estava pisando
em ovos. Parecia não caber em si. Seu espírito criara asas de contentamento
imedido. Sentia que, de feliz, podia ter o risco de um ataque de felicidade
arrebentando o elástico curto do coração doente, em polvorosa, quase
arrebentando de impetuoso alumbramento.
Ele avisou que iria sair – nunca fizera isso antes, nunca avisava de nada, não
era obrigado e nem de costume – e inteirou-a de que talvez não voltasse o dia
seguinte, nem na outra semana, como corresse as coisas talvez nunca mais
voltasse. Ela quase correu atrás dele, ajoelhando-se aos seus pés, beijando-lhe
as mãos branquelas, em pranto que enrolavam palavras de agradecimento. Ele
não disse sim e nem não. Nem era de seu feitio. Guardou-se feliz. Saiu
rapidinho pelo elevador de serviços mesmo, não sem antes dizer, meio alegre,
meio esquisito, gesticulando diferente, para o coletivo em geral: -Sejam
felizes!
Sejam felizes?
22
Quase que o segurança Nestor Leonel, um verdadeiro guarda-roupa pardo e
armado até os dentes, seguiu-o, com medo de que o seu chefe saísse sozinho
assim sem mais nem menos, àquela hora, que estivesse sob ameaça velada de
seqüestro ou vivesse algum problema, talvez um pagamento de resgate
emergencial, talvez refém de alguma situação, um possível constrangimento
da curriola insuportável do Partido Liberal querendo mais verbas para gasto
eleitoreiro e as montadas arapucas para engodo de um drenado exercício
democrático. Em Sampa, para muitos ricaços, a vida era uma espécie de
cativeiro, enquanto para os pobres era um curral de estrume burguês.
Mal ele sabia, pobre coitado, que o dr. Paulo de Tarso Trigueiro, como o
próprio apóstolo no caminho de Damasco, estava cego. Mas era cego de
TANTO VER. E que tinha sido precariamente resgatado do meio deles, pois,
ao seu jeito, seu sentir, seu lado sensorial e sensitivo, quase escondido
paranormal desde a militância da primeira infância; tão recalcado em cifras,
estatísticas e números, entre tantos inócuos PHDeuses, tinha sido de novo
escolhido e tirado do meio de lobos e lobys.
Resgatado?
Essa era a palavra perfeita
Quando Dagmar Marlene, entojada e cheia de tédio numa mansão fria e sem
barulho de atividades sociais ou coquetéis concorridos que adorava, bocejando
de falta do que fazer, ligou para o escritório de seu doutor e escravo sexual,
foi avisada que o patrão tinha saído á pé, tendo doado os três belos carros
importados para uma obra de caridade que assistia crianças com síndrome de
dow, e uns cheques de lambuja pra APAE de Itararé. Tudo fofoca de uma
telefonista sem palpas na língua e sua olheira propositalmente colocada ali na
firma. Não entendeu bulhufas. Pior foi quando veio um conhecido e posudo
Corretor de Imóveis pessoalmente colocar uma enorme placa de Vende-se na
porta da mansão.
Assustou-se. Mas não pensou no seu arranjado maridinho. Pensou em si,
claro. A vida tinha sido dura com ela. Seus pais, recalcados, reacionários e
extremamente conservadores e beatos, a tinham substimado, depois de a
cercearem nas suas escapadas rápidas em busca de aventuras noturnas com
rapazes predatórios do bairro. Ela passara fome quando atirada fora do lar por
ser perniciosa e tachada de “putinha rameira” em família, mas vencera e não ia
agora aceitar ser rejeitada assim, sem mais nem menos. Tinha seus direitos.
23
Depois raciocinou, ensimesmada. O que estava acontecendo, afinal, pensou,
depois que caiu a ficha do raciocínio. O mundo estava acabando?
Não era muito de pensar quando estava segura de si, era dona de um homem
poderoso. Só enxergava mais que um palmo adiante do nariz, quando vinhalhe a lembrança dos dias ruins, ocasião em que a sexualidade varria escrúpulos
e então ela dava o mais de si, sem medir conseqüência, remorso ou atitude
lícita.
Naquela noite o Dr. Paulo de Tarso não voltou para casa. Aliás, nunca mais
voltou. Sua casa era o lugar que fizesse ser. Sua casa era o planeta água inteiro
pregado no varal do universo. Aliás, não voltou a ser o mesmo. Podia ser visto
feito um missionário improvisado distribuindo comidas para pobres,
cobertores para famílias de rua, afetos lânguidos, verdadeiros e demorados
para crianças perdidas dos faróis poluídos. Ainda encaminhou algumas
pessoas carentes, ouviu problemas incríveis, deu telefonemas a cobrar para seu
escritório, recomendando receitas rápidas, internações urgentes, viagens
necessárias, caixões de defuntos, ajudas caras e tudo mais. Estava começando
a pegar no breu, pôr as mãos na massa, arregaçar as mangas e fazer sua parte
como cidadão consciente, cristão, como Ser e como Humano
No entanto, não apareceu mais em casa, nem no escritório, tampouco no
Rotary Club onde era conselheiro, nem no Lions Club onde era membro do
conselho fiscal, tampouco no Mackenzie onde era Assessor da Diretoria no
Curso de Pós-Graduação. Aquilo para ele era passado, cheirava a naftalina,
implicava em rendição de sua sensibilidade novamente agora atiácada e à flor
da pele
A roupa do corpo começou a ficar ruim, claro, começou a ficar mal cheirosa.
Os sapatos de couro alemão logo revelaram-se gastos, a barba cerrada já
branqueando por fazer, a falta de asseio básico. Eram passos sérios de
apendizados primitivos, essenciais. Passou a dormir na rua, onde se
encaixasse, onde lhe coubesse o destino de um humilde estar perene. Um vão,
um pedaço de calçada, um cantinho pra chamar de seu. Depois de ter deixado
todo mundo forrado em grana, depois de ter doado alta soma para a Santa
Casa de Misericórdia de Itararé, depois de destinar bolsas de estudos para
parentes pobres, depois de sair com a roupa do corpo e só com o dinheiro nas
algibeiras (que logo gastou ou doou) para estar com os miseráveis, dormir
com eles, viver com eles, ser do rol deles, pertencer-lhes de corpo e alma, de
mente e coração, de espírito e dentro de uma esperança-andaime deles.
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Compreendia que um defunto dominava a sociedade: o “defunto” do trabalho.
Não era apenas uma crise social passageira. Entendia que a sociedade
capitalista amoralmente especulativa-acumulativa e agiota dominada pelo
trabalho tinha alcançado seu limite máximo, absoluto. Na sequência de um
neoliberalismo globalizador e da revolução microeletrônica, a produção de
riqueza se desvinculara cada vez mais da força humana e sua chamada mais
valia. Quem, nessa sociedade não conseguisse mais vender sua força de
trabalho – capacitação, idade, importações supérfluas, planos econômicos
inumanos – era considerado um traste, um bagaço, um nada. E estaria sendo
jogado no aterro sanitário social, onde sobreviviam os restos de seres,
denominados de excluídos sociais, de descamisados, de “trecheiros”, segundo
sociólogos.
25
QUATRO
As tristes ruas de São Paulo, além de mau exemplo pela péssima
administração municipal corrupta, amoral e inumana – a cidade abandonada
social e urbanamente falando, era um verdadeiro esgoto a céu aberto – era
mesmo uma assim espécie de filial do inferno. Além do seu sofrível cinturão
periférico de miséria, com suas costumeiras chacinas de fins de semana
(justiceiros anônimos e membros inidôneos da policia militar com máscaras de
todos os tipos), suas centenas de favelas entre bueiros e lixões, seus abandonos
sociais de toda a sorte, quando até os antigos cantões velhos dos centros mal
cuidados eram lotados de camelôs, mendigos, velhos doentes, famílias de
migrantes dormindo ao léu, traficantes de baixa categoria, crianças se
prostituindo, policiais incompetentes quando não corruptos ou coniventes com
todos os arranjos e melindres, mais vermes, doenças, bolsões de sujeira e
miséria, monturos de ratos e baratas, entre quase restos humanos que a muito
custo poderiam ser considerados gente.
Ruas essas que, sem notar, sem fazer estatística de desumanidade (não
interessam a eleitoreiros planos econômicos do FMI que só valorizam
ocasionais compras de iogurtes e dentaduras e desprezam códigos éticos de
civilidade urbana de nível sócial próximo do incrível e extraordinário), num
daqueles dias frios de outono daquele abril qualquer, recebera mais um pobre
coitado. Só que este, por incrível que possa parecer, fora por decisão própria,
por livre e espontânea vontade, por interação íntima, se é que isso fosse
possível, se todos fossem capaz de entender tamanho ato de entrega, de
coragem-dínamo, de próprio punho incrivelmente humano. Mendigou, sim,
pois já nada mais tinha de si, a não ser as mãos murchas e com nódoas de
sobrevivência oferecendo-se em amparo e ajuda, quando era necessário. E
sempre era útil, ao seu jeito cândido. Ajudar um leproso, comprar pão para
uma criança seca, impedir que trombadinhas achacassem um velhote, ajudar
um aleijado a atrevessar um perigo sinal quebrado no trânsito caótico, jurar
mentiras, inventar o inexistente, parecer-se com os inválidos, os abandonados,
os fracos e oprimidos, os bem-aventurados do Sermão da Montanha.
Era pau pra toda obra. Tudo o que conquistara na vida louca e sem nexo,
doara, ou para quem merecia, para centros de caridade, de sua aldeia natal
inclusive, Itararé, ou para quem eventualmente era de direito imperioso e
legal, tentando, também assim, reparar erros, desvios de percurso ou de
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conduta, indenizando, valorando, crendo-se revestido de fé e pura idoneidade
revisitada. O que lhe tinha rendido de seu, pertencia agora a muitos
necessitados, de toda ordem. O resto, era só sua perenal entrega de vida.
Aceitara estar com os fracos e oprimidos, ser da parte deles, viver até os
últimos dias para eles. Era uma decisão que pertencia aos sábios ou aos
deuses? Eram os pequeninos que recebiam um companheiro buscando calço
para empreita de seara nova, feito mais um lírio no campo
Nos descaminhos da rua da amargura sentiu a barra pesada da subsistência
concorrida por baixo, ao viés do baixio chão. Do baixio chão se vê os outros
com olhares tristes, desafiadores, pertos da marginalidade e do medo estimado
sob viés de caça a ser predada de alguma forma, por alguma maneira. O Eu e
as circunstâncias. Para pedir esmolas numa esquina concorrida, tinha que
pagar caixinha a quadrilhas. Vendiam caro os núcelos de dezelos humanos.
Haviam lugares com direito adquiridos na miserabilidade coletiva. Para
dormir na rua e não ser queimado pelos filhinhos de papai, ou ser surrado por
gangues racistas, quando não atacado por policiais ou seguranças, tinha que
pagar sua parte de vigilância e manter-se com algum zelo mínimo de precário
instinto de sobrevivência.Tinha que aprender a dormitar com um olho fechado
e um olho aberto, caçando sempre a brasa pro seu lado instintal de manter-se
vivo e ativo. Uma falha e era usado, furtado, posto à míngua da míngua.
Tudo tinha um preço. Até sua caixa da papelão – para dormir nela com outros
pobres coitados – teve que comprar. Era uma espécie de “trecheiro” de rua.
Numa certa “Rua Fábia” (um código? uma senha?) uns tipos montavam
doentes falsos (com feridas de velas ou isopor derretido) para viadutos e
terminais. Eram os falsos necessitados. Uma perna sangrando era falsa, uma
gangrena de bife seco era mentira, umas varizes em alto relevo eram estéticas
perfeitas visando a piedade coletiva, alheia. Doenças de grosso calibre
manifestas em percursos concorridos eram criadas com estilo e nojo latente.
Só que Paulo queria caminhar com os mendigos, tomar de sopas de igrejas
evangélicas, de centros espíritas de caridades, de catedrais com pastorais de
diáconos sensíveis, de ajudas voluntárias bancadas com estima pelo Padre
Lancelloti, um verdadeiro “pai de rua” dos pobres coitados.
Queria receber o pão minguado de algumas almas caridosas, estar com a ralé
do inumano e decrépito capitalismo selvagem brasileirinho. Daria testemunho
de si. Queria encontrar Deus onde ele estava, no meio dos homens lazarentos,
não nas alturas palaciais ou catedráticas de esnobismos pomposos por séculos
ou insensibilidades generalizadas no vício da história de contrastes sociais do
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país. E para isso teria que beber do amargo cálice da vida. Tudo um dia iria
transbordar, e ele então morreria, seria recolhido. Mas não tinha medo da
morte agora. Iria comer o pão que o diabo amassou? Para isso teria que descer
ao mais baixinho chão, às profundezas do abismo social, até ser então
escolhido pelo chamado, e assim habitar a grandiosidade divina para todo o
sempre. Era esse o propósito de ser mais um na cruz da espécie.
Não pensou em placa de igreja qualquer, em bíblia completa ou incompleta,
em suspeitas caridade de carnês para aliviar consciências pesadas, nem em ser
um bobo fanático religioso pelo engodo de meio ou de doping historico
montado em cruzadas irracionais. Isso bastaria a um comum. Para ele os
boçais podia continuar onde estavam, pagando o dízimo da consciência com
máscara ou fazendo caridade promocionais como os fariseus, entre clubes de
ocasiões e recatos idênticos. Ali, onde estava, seria mais servo de Deus. Ali,
entre os fracos e oprimidos, seria verdadeiramente um servidor. E isso era
tudo o que queria. Daria o melhor de si, pensou sereno e em paz como nunca
dantes estivera no curso de sua terrível e dolorosa travessia de viver
UM CORDEIRO DE DEUS.
No começo, claro, sofreu muito, passou necessidades. Tudo era um
aprendizado difícil Não estava acostumado a beber o cálice da miséria em tal
estágio. Era compreensível. Seu corpo refugou a princípio. Furúnculos, gases,
piolhos, cerotos, gastrites, hérnias. Mas sabia que isso era também uma
maneira de purgar-se. Saberia pagar seu preço. Sempre soubera? Depois das
necessidades de origem – passara fome na barriga da mãe; passara fome na
primeira infância, depois lutara para melhorar - lutara feito um cão danado,
feito um condenado a tomar sentido do plano da vida. E então vencera de
forma sortida.
Conhecera esse lado doce do sucesso, por sorte ou carta do destino, medindo
depois tudo com o triste, o escabroso, o inócuo, o vazio. Tivera tudo na vida.
Agora, de novo mas de uma maneira limpa e aceitadora, sem azedumes,
sobrevivia no triste estágio de não ter nada e isso lhe bastava. Viveria cada
minuto pelo minuto. E habitaria inteiramente cada segundo de sua existência
sendo de pleno direito um Ser. O resto de seu tempo na habitação coletiva da
terra, entregava nas mãos de Deus e sua infinita misericórdia. Seria um lírio
no campo, esperando a guarida de quem, acima de si, na orquestra natural do
meio, o ornasse de sustância primordial.
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Tinha que ser assim. Era assim que queria encontrar o seu caminho, a sua
lenda pessoal. O céu por testemunha. Daria documento inteiro de sua vida
dessa maneira. Com uns pares de cadernos espirais, para rebocar o esboço do
tempo demorado entre o tédio e a imperfeição de pares, começou
graciosamente a escrever seu despojo, seu furtivo muro de lamentações (que
era a existência). Conheceu cafetões, autoridades corruptas, fiscais dementes,
prostitutas com rezas prontas, viciados pedindo Deus, doentes sem cura,
traficantes com estrutura, contrabandistas informais, tudo no confeito do
dezelo social de um estado privado com máscara de público para enganar a
gregos e baianos.
As ruas fediam. Urina antiga, sujeira brotando, marreteiros suspeitos, óleo
diesel, asfalto podre, abandonos sociais de toda sorte. Esse era o cheiro
horrendo de São Paulo em tempos de globalização neoliberal, que,
antigamente, contemplando seu próprio umbigo, do alto de sua pirâmide de
mediocridade jocosamente existencial, nunca notara com vezo de ocasional
sensibilidade que fosse. Agora, ali, entre uns manés, uns borra-botas,
enxergava-se em si. Era mais um deles. Media-se. E, às vezes, auditava-se
muito menor que um pedinte com prótese. Quase que podia ler a sua própria
miserabilidade no livro dos dias que eram seus pergaminhos da mais pura e
primata existência de grande acervo divino, de grande lastro emocional.
Estava em si e mal cabia em si. Tinha um sorriso sempre inteiro, um abraço de
consolo, um ombro amigo, uma palavra doce, um entusiasmo vivo para um
desesperado, um suicida em potencial, uma mãe solteira alcoólatra, uma
prostituta soropositiva, uma criança procurando armas pesadas para se salvar .
Mas também sabia reagir, preciso fosse. Principalmente da vez que foi atacado
por um louco e o colocara no seu devido lugar, depois de uns necessários
sopapos para se fazer respeitar e ser entendido. Queria ser, de própria escolha,
um miserável entre comuns. Não um saco de pancadas. Lembrou-se,
finalmente e em tão estranho e precário estar, que sempre fora atacado por
loucos, a vida toda. Sempre fora procurado por pobres e aloprados pedintes,
como se tivesse cara de salvador da pátria, salvador da arcaica lavoura da
sobrevivência entrevada. Mesmo enquanto construia sua riqueza quase sem
repouso e sono completo, poupando, se matando de trabalhar e estudar, com
ajuda da namorada de adolescência e juventude, andando no meio de uma
multidão sem contagem, era inexplicavelmente e de forma imperativa
interpelado por pedintes e aloprados a lhe implorarem um zelo maior, a lhe
cobrarem benesses, como se ele, num gesto, pudesse transformar a escória
29
social da terra em gente feliz, como se ele fosse um anjo semeando caridade
por atacado, tivesse essa premissa no seu carma.
E ele sempre ajudava mesmo no pouco que tinha, quando tinha. Era seu
jeitinho. Já era seu mistér?. Parecia já ser um indicativo de sua missão que ali,
finalmente, aceitara no mais íntimo de si. Como São Paulo, o apóstolo, ele
serviria à Deus, pregaria o evangelho de Cristo com suas palavras de meio,
mais, com o livro aberto de sua vida: a caridade. Viveria por aqueles seres.
Em pouco tempo era mesmo fisicamente parecido com um deles. Em pouco
tempo era respeitado e conhecido por eles como um igual. E o adoravam por
não ter tristeza completa no servir-se., como se fosse um elo luzidio na
corrente suja e fétida da escória rueira.
Antes, era um farol, um lume. A rua sabe seu destino cruel, mas sabe seu
território marginal de reconhecimento mútuo. Quando passava com carinho
sua marmita de arroz e ovo frito para um menos afortunado. Quando
prestativo tirava de um cobertor ganho de uma beata e dava à um novo rejeito
social se entrincheirando entre pares. Quando, dos míseros trocados que
recebia de adjutório, não comprava algo somente para si, mas o que desse um
pouco para todos: bananas, bolachas, pães, balas, água pura, remédios. Tinha
sido assediado por mendigas assanhadas, mas polidamente rejeitava.
Não tinha interesse em prazeres da carne. Vivia um outro tempo agora. Seu
existir tendia a criar tessitura interior. Abraçara seu novo mundo não como um
desatinado em busca de respostas prontas, não um novo esotérico tantã em
final de século a ler livros e livros sem ser nada na prática, mas aquele que ia à
fonte do que era ser serviçal de Deus.
Não levava imagem, cruz, cantoria, toga ou liturgia explícita. Levava só seus
braços largos, sua força de estímulo e trabalho, seu empenho, seu
conhecimento, suas orações positivas e emocionantes. Salvou pobretões de
serem explorados por minorias sem escrúpulos, sorrateiramente anotou placas
de carros de policiais violentos da Rota, aprontou denúncias com nome falso e
endereço fictício visando indicar soluções, chegou a ser roubado no pouco que
tinha por um teens drogados, certa feita apanhou de um outro irmão de rua por
tomar-lhe o espaço como se houvesse um dono no dezelo do trato com as
causas sociais, mas restringiu-se, comedido, aceitou tudo. Fazia parte do
encontrar-se. Fazia parte daquele mundo cão e tentava sublimar-se com
denodo e enlevo espiritual.
30
Sabia que se morresse ali, por uma boa causa, viveria melhor nos braços de
Deus do que no altar social onde estivera se perdendo antes. Se morresse na
rua, seria enterrado como indigente e isso lhe bastava para estar aceito aos
olhos de Deus.
Se Deus era dos fracos e oprimidos, queria estar perfeitamente entre eles, para
assim ser finalmente selecionado, e ser escolhido, ser parte do rebanho de
Deus, estar no redil celestial dele. Na rua ouvia todo tipo de conversa, mas não
era um pagão ou um pervertido, tampouco um agnóstico ou um
neocarismático de embuste. Era alguém que tinha tudo e não aceitara esse
tudo que de nada lhe valera intimamente. Pois, aceitando não conter nada,
estaria pronto, limpo e puro para ser o pote da verdadeira fé, estaria pertinho
de Deus, pois Deus estava com cada ser humilde, e assim, poderia reconhecêLo, um dia; talvez um dia o encontrasse entre eles, pobres mortais, para então
poder dizer de como o sentira dias, meses, anos antes, quando ao olhar de
cima para baixo, vira o que vira. Mas, afinal, o que ele vira?
Um sinal dos tempos. Uma presença que em si batera cartão e dissera: -Eu
estou no meio de vós. Eis que presto venho. Volte para si mesmo e depois
volte para mim antes que eu volte...
De mãe zelosa católica, que se vangloriava de dizer-se “apostólica romana” –
e isso para ele não significava nada de estímulo o serventia social - pois sabia
que o rabi Jesus Cristo não viera para fundar religiões, templos com grades,
dogmas abismais, rituais de venerações; nem para serem seus descendentes
montados em império carregados com coroas de ouro em liteira vaidosa de
pompa secular. O Mestre viera para os aleijados, para Madalena, para Lázaro,
para cegos, loucos, leprosos, para as crianças que bendizia, para os coitados.
Estando entre os escolhidos, por sua própria vontade e desejo de aceitação,
seria escolhido um deles, e poderia, então, ver a face de Deus?
Mas, compreendeu, já vira a face de Deus quando saíra para jantar numa
madrugada e tinha sido fisgado pela contemplação.
31
CINCO
“Pequena é a força do homem, vãos os seus
cuidados:/Para ele, em vida curta, só exis
te/Fadiga após fadiga/faça o que faça, pen
de sobre ele/A morte inevitável/Que devem
partilhar, da mesma forma/Os bons e os
maus”
(Pequena é a Força do Homem – Simônides
de Ceos – 556/468 a C. )
Andou pelas ruas podres, enfeitadas de totens inúteis, de árvores queimadas
pela poluição, de pássaros cegos tossindo o desajuste do meio ambiente
desequilibrado. Os mendigos arrastavam-se, fazendo birras entre si, falando
sozinhos, armados de pedras e butins de pães secos, avarentos, infortunados,
entre idiotas, fantasmas, executivos, bêbados e risos zombeteiros. Sampa era
um embrutecido cuorador de almas ressecadas. As noites eram portais de
orgias soturnas, todos vegetavam no fermento do esgoto, entre ratos mortos,
larvas, horrores e devaneios como prenúncios de mortes. Pois perambulou seu
calvário, vadiou seu cálice como um debutante visitador, vagou ora feito um
“trecheiro” (São Paulo tinha uns cem lugares onde mesmo de forma precária o
assistiam), ora mais um pedinte, mais um rejeito, um pária, um roto e rasgado,
mas sempre vivendo mal, comendo mal, caçando o que comer em lixões, ou,
de vez em quando, quando a consciência apertava um cidadão passante, ou
quando havia uma promessa religiosa a ser paga (Santo Expedido, Virgem
Maria, São Judas Tadeu, etc) ele recebia um sanduíche, um marmitex
conhecido na rua como quentinha, um olhar, um aceno, um lampejo de toque
de civilizada enrustida no cabide da pose.
Mas a maioria era um misto de nojo coletivo, reprimenda, desqualificação
como ser. Compreendia finalmente que uma tecnologia que permitia viver a
revolução da informação na sociedade do conhecimento, não era entendida de
acordo com uma visão de cidadania e da consciência de que todos eram
sujeitos e não apenas elos numa engrenagem. E era isso que o país precisava:
ética nas relações de economia, de mercado, de oferta e procura, capital32
trabalho, para que fosse a médio e longo prazo permitido reconstruir a
identidade nacional, para que, finalmente, fosse “descoberto” o Brasil,
fundado um Brasil depois de 500 anos de exploração, de roubo, de predações
de todo tipo. As instituições estavam fragmentadas. A sociedade reclamava
que suas autoridades não eram santas, mas eram todos representativos de uma
sociedade também não santa. Era preciso consciência histórica para fazer
todos compreenderam que a unidade não podia anular a diversidade, impondo
o pensamento único.
Os filhos queridos de Paulo Trigueiro, no entanto, desesperados e não
acreditando numa fuga como válvula de escape de tensão, stresse ou
insanidade provocada por eventual baixa estima, tentaram desesperadamente e
de todas as formas achá-lo. Paulo mesmo leu propagandas caras em jornais
velhos catados em cestos ermos, viu colagens com sua imagem bonita no
poste de um farol quebrado (estava muito diferente, notou-se, cheio de barbas,
cabelos ralos e olhos inchados), viu sua foto e notícia a seu respeito num
aparelho de tevê de uma loja de departamentos. Estavam caçando-no como se
fosse um assaltante de banco, um perigoso fugitivo da sociedade, e da qual
trazia manchas, tristices, paradoxos. Mas jamais o reconheceriam humilde
entre humildes.
Estava diferente. Era diferente. Era outra pessoa. Mudara-se radicalmente
antes mesmo de se restar ali. Dormindo na rua, fazia parte de uma natureza
sábia que os homens corromperam. Mas se tinha que ser assim, assim seria.
Era propositalmente um excluído. Para ser aceito?
De qualquer maneira, foi entrevistado certa feita, sem querer, de passagem por
um viaduto, por um polêmico programa de tevê sensacionalista e inócuo. Mas
falara muito pouco e rasteiro, para não dar na vista. Aleijara-se de Ser? Os
dentes estava apodrecendo. Sentiu-uma fisgada feito cólica abaixo da barriga e
supôs que estaria com alguma hérnia, quando não com uma virose incômoda.
Porque uma diarréia já o assaltara, depois de uma acidez por causa de restos
de alimentos vencidos, além de intoxicações de todo tipo, já revelada na
epiderme virulenta. Mas aceitara aquilo também. Fazia parte da entrega.
Viveria entre ratos, entre monturos de lixo, entre esgotos, encostado entre
cortiços, ruelas, becos, guetos. Era um marginal agora, ora.
Mas, de alguma forma, paradoxalmente instintiva, apurando os sentidos da
própria sobrevivência, de alguma maneira sentiu-se de certa forma em perigo.
Tinha aquele dom apurado de novo. O bendito instinto. Havia gente
33
perguntando. Será o impossível? Seria algum escritório de detetive a procurálo de todas as maneiras? Estava assustado, inseguro, medindo situações,
consequências e limites espaciais, inclusive para fuga desesperada.
Certa manhã deitara sob um mostrengo viaduto sujo chamado popularmente
de Minhocão, lados do centro velho de São Paulo, sentido do Largo do
Arouche, área de rapazes de programa e prostitutas da pior safra possível.
Com sua sacola de restos de feira, jornais antigos, cobertores encardidos de
cerotos velhos e uma moringa de plástico cheia de água que catara numa
torneira externa de um consultório de dentista, certa feita caiu rendido de
cansado para dormir, mas quando acordou estava estranhamente atado no leito
de um hospital cheirando a pinho-sol, entubado de forma incômoda, amarrado
à uma cama de ferro do que parecia de UTI e ainda sob sonda e soro.
O que era aquilo? - O que estava fazendo ali.
Pareceu-se sedado. A cabeça zumbia. O espirito parecia refrigerado.
Ouviu choros baixos, conversas vindo do lado externo. Parecia que, ligado ao
aparelho, ao mexer-se ou se denunciar tecnicamente acordado, recém
desperto, chamara de alguma forma a atenção para si. Era a tecnologia cara de
bem montado aparato hospitalar, ao contrário do que tinham os hospitais
públicos e suas filas como se caminhos para matadouros.
Era só um pesadelo.
34
SEIS
“Amar o castigo imerecido/Não por
fraqueza, mas por altivez/No tormento
mais fundo o teu gemido/Trocar num
grito de ódio a quem o fez/As delicias da
carne e pensamento/Com que o instinto
da espécie nos engana/Subpor ao
generoso sentimento/De uma afeição
mais simplesmente humana/Não tremer
de esperança nem de espanto/Nada pedir
nem desejar senão/A coragem de ser um
novo santo/Sem fé num mundo além do
mundo, e então/Morrer sem uma
lágrima, que a vida/Não vale a pena a
dor de ser vivida”(Soneto Inglês
Número Dois – Manuel Bandeira, l886,
l968)
-Pai, o que o sr. fez de sua vida? O senhor quer nos matar de vergonha, é?
Pelo amor de Deus! Eu não acredito! Ai meu deus do céu!
-Pai, não é possível? O sr. está ficando louco? O quê está acontecendo? Onde
já se viu isso agora? Isso não pode estar acontecendo com nossa família!
-Vô, o que houve com o sr?. Por favor, fale conosco. Sonhei que o senhor
tinha virado lunático de carteirinha. O pai está fulo por causa disso.
-Pai, a imprensa inteira está lá fora. O psiquiatra ficou de vir hoje! O Dr. Israel
foi acionado num Congresso da Geórgia, Estados Unidos. Ficou de fretar um
bimotor e vir vê-lo. Está trazendo remédio testado num laboratório espacial da
Nasa.
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-Pai, o terapeuta recomendado pela Dra. Cidú ficou de passar aqui, junto com
os Diretores Social do Rotary e do Lions Club. Ligaram do Clube de
Pinheiros, da Gazeta Mercantil e da Rádio CBN Notícias. Um bando querendo
saber como o sr. foi encontrado, se foi sequestro, como o sr. acabou um
mendigo, se o sr. está de miolo mole ou se foi pagamento de promessa à Santa
Edwiges ou Santo Expedito, como correram alguns boatos marotos a respeito,
numa famosa revista de fofocas socais.
-Que vergonha, papai. O quê foi que deu no sr? Quase morremos de
preocupação. Tive que cancelar meu estágio em Haward. Será o impossível?
Paulo de Tarso não disse uma só palavra. Não precisava. Não queria nunca
falar mais com eles. Não queria estar do lado deles ou no meio deles. Tinha
outra oferta de vida. Era outro para sempre. Podia sentir isso dentro de si.
Vira, ouvira, descobrira - aceitara a rua da amargura para purgar-se e
preparar-se para estar no reino dos céus. Aquilo tudo ali de luxo e confeito
social era enfeite, vaidade, espetáculo, circo-horror-show, destempero, falta de
senbilidade plural, comunitária. Não tinha nada mais a ver consigo. Era um
estranho entre os seus descendentes de sangue? Depois de conhecer a triste
rua da amargura, sentiu-se um estranho no ninho. O luxo, a riqueza, tinha um
cheiro rançoso de mofo, de formol, de arrogância, de poses sem escrúpulos, de
lucro fóssil, de arremedos de seres. Fantoches, era o que via. Era o que
realmente todos eles eram. E tinha sido um por tempos, também. Pensou na
primeira e legítima esposa. Esta sim uma dama de primeira grandeza. Tinha
certeza de que ela aprovaria sua decisão; talvez o acompanhasse solícita e
eficaz nessa empreita a caminho dos braços de um Deus-Criador. Teve urdida
piedade de seu clã, um por um, como bem os mediu acostumados a enfeites,
poses, espetáculos sociais jogos de cena, maracutaias, embustes financeiros,
arapucas com verniz de parte atrelada de uma mídia tendenciosa. Teve muita
pena. Quase arrependeu-se de os haver semeado na tábua de carne da vida.
Era o legado genético de sua miséria íntima?
Mas não podia fugir do lugar que estava. Pensou mas remediou-se. Sofreu
perguntas, abraços, toques, gestos, injeções, recados, punções, inflitrações,
pingos de suor, lágrima e sangue próprio. Sofreu transfusão, lavagem,
curetagens. Mas era como se tudo aquilo ali não lhe dissesse respeito, como
aquilo tudo não fosse com ele; como se fosse alheio às formalidades de ser um
homem e sua circunstância. Compreendeu perfeitamente que para ele aquilo
tudo era passageiro, reles, trivial. Logo estaria de volta para os seus
verdadeiros irmãos. Era um estranho em sua própria familia.
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Ficou dias rendido ali, nunca respondendo nada, mal-e-mal tomando uma sopa
rica em vitamina e carbohidratos, fechado em si, como se caça e caçador de
seu próprio rumo. Antena ligada. Sem pregar direito o olho viciado em cair
fora, escapulir, sondar o devir para um anoitecer perto. Sondando.
Desanuviando o espirito atribulado de refém do circo-horror-show que sua
estadia provocara. Não atendeu telefonemas, emissoras de rádio, repórteres
com perguntas tolas ou jonalistas de tevê querendo um furo de reportagem,
mal grunhia um boanoitar inteiro, mal defecava quando imperiosamente
inevitável, e só tomava remédio porque vinha com agulhas e não tinha como
estapear, defender-se. Apenas grunhia, rompendo o silêncio de sua dor
terminal. Mas não era um homem de aceitar jugo ou vara. Saberia a hora de
sair-se de si. Avaliava o pulso crucial desse momento que montaria de forjar.
Compreendia que não importava como fomos criados, o que determinava o
modo de agir era a maneira como administrava sua vontade. Compreendia
que era um ser e suas circunstâncias; que deveria ser a soma de todas as suas
vontades, que assim regiria sua maneira de viver e de morrer. Compreendia
finalmente que a vontade é um sentimento, um talento, algo que entusiasmava.
A vontade era algo que se adquiria, nem que para isso levasse a vida inteira. E
ele a adquirira com um susto, um enxergar (há quem tem olhos e não vê), uma
quase visão terreal. Entendeu que, desde o instante que viera ao mundo, as
pessoas diziam que o mundo era assim ou assado, o que deveria fazer, dessa
ou daquela maneira. Por algum tempo acreditara num circo-horror-show
armado ao seu derredor, no seu convívio de todos os tipos. Mas tinha deixado
regras, normas, conceitos, tudo isso de lado, e descobrira sua maneira própria,
singular, pessoal, de ver a realidade E compreendia ali, uma frase da canção
do cantor cearense Belchior que dizia: “...Não se preocupe, meu amigo/Com
os horrores que eu lhe digo/A vida realmente é diferente - quero dizer/Ao vivo
é muito pior!” Ele sabia e tinha em si o peso dessa dura sapiência.
Na sua sua solidão-cangalha, com seus cadernos manchados de vida, de
sofrências e desespelhos, entre tantos outros despojos de sua lírica de vegetar
na boca de inferno da vida, escreveu um poemeto que dizia assim:
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Anos 60
Fugi do colégio interno
Fugi do quartel inferno
Fugi da ditadura de farda, gravata e terno
E assim, poeta do lixão capitalista pós-moderno
Finalmente me descobri:
Ser Humano com pedigree!
Assustou-se, no entanto, dias depois, ainda sendo pensado com exagero,
conforme considerou já com razoável noção de saúde recuperada, quando foi
procurado por um gordo espírita de mesa branca, cheio de verdades
empacotadas pra consumo frívolo, depois um padre tolamente neocarismático
e pegajoso com sua toga viciada em querer ser mais que o Mestre Carpinteiro,
depois um pastor loquaz e inconveniente, e, finalmente um psiquiatra que
mais parecia o próximo paciente da camisa de forca do que um especialista em
problemas mentais, que achavam que era o que ele tinha. Segurou o riso de
desdém o mais que pode. Controlou sua braveza. A estratégica tinha que ser
outra, entre pseudo-donos da verdade, intuiu.
Como não respondeu nada e à ninguém, foi dado como meio esquizofrênico,
fora de órbita. Um caso perdido. Demência e senilidade precoce, rotularam
uns. Até remédios possantes para esse fito de cura receitaram. Recomendaram
terapias alternativas, estrangeiros livros de auto-ajuda, tratamentos de choque,
“viagens” de regressão a vidas passadas, homeopáticos arranjos florais,
periféricos centros de macumba, sais arimáticos, viagem à um Hospital
Geriátrico de Genebra tão freqüentado por empresários comprometidos com a
realidade da cobrança do tempo e cheio de decadentes artistas ultrapassados
ou em fim de carreira. Aceitou esse diagnóstico como se fosse um véu, uma
bruma de honra. Mas como não tinha mais nada de bem ou de posses – os
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filhos pagavam os caríssimos tratamentos – mal teve um momento de
ocasional e oportuna chance, caçou o velho pente vermelho de plástico, um
lenço lavado com cavalos negros bordados em alto relevo, um par de chinelos
cor de abóbora – a Enfermeira Chefe ao dar-lhe obrigatório banho fora
descuidada - sua única nova roupa de grife nova comprada pelos parentes
nervosos, deu um jeito serelepe de parecer encorajado a ver o sol que
serpenteava lá fora, fingindo passeio distraído vagou corredores de
lavadíssimo mármore branco que cheirava a limpeza recente, disfarçou a
roupa esquisita que estava larga pois não tinha sido provada e nem lhe
assentara bem pois estava meio esquálido, entrou em lugares inacessíveis a
pacientes como ele, disfarçou nódoas de intenções, escondeu-se em
almoxarifados e lavados comunitários de funcionários de terceiro escalão,
depois a oportunidade deu uma chance brusca e ele lepidamente como um guri
de Itararé caçando sarna pra se coçar pulou a janela do primeiro andar da
clínica sediada no bairro do Brooklin. Fugiu.
Foi para a rua de novo. A rua era seu sagrado lar.
Mas, tinha, ao seu jeito, aprendido uma nova lição.
Poderiam achá-lo de novo. Sim, era isso. Poderiam caçá-lo como a um bicho
doentio. Da próxima vez – repugnou-se a pensar que houvesse outra chance de
ser pego - então seria internado talvez num sanatório fora do eixo Rio-São
Paulo, teriam-no com camisa de força e tudo, talvez num asilo de débeis e
imprestáveis, quando então nem pudesse mais ser o que era, ou sequer cumprir
a missão para a qual fora chamado e aceitara responder, se propondo a passar
por aquilo tudo, servindo ao próximo e amando-o como se à si mesmo.
Tinha que mudar as coisas. Fazer suas próprias regras. As normas ele sempre
as quebrara, quer com determinação, opinião própria, suborno, status ou
violência. Não deixara de ser muito pobre, para ser muito rico, por acaso.
Soube apenas, de ouvir-dizer, que a imprestável mulher Dagmar Marlene já se
envolvera naqueles meses em que ficara livre de papel passado e montada em
grana, com um ator de filmes pornôs de terceira categoria, e tivera dois filhos
de envolvimentos assim, no temo que ele vagabundeava pelas ruas da
amargura, tentando se encontrar. Em família, ganhara alguns netos novos, o
filho caçula sofrera um acidente de jet-ski numa praia da Grécia, o escritório
que vendera pegara bom preço e tinha agora a direção de mafiosos coreanos,
seus bens pegaram boa cotação no mercado de oferta e procura e todos
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ficaram seguros e ricamente satisfeitos. Como ele era adorado pelos amigos,
pela família, fora difícil achá-lo de novo, mas ele sabia fugir. Que lugar é o
esconderijo perfeito do nada?
Onde poderia ser útil e ao mesmo tempo ler sobre alguma coisa eu e lhe
preenchesse um vazio? Queria ler sobre tudo. Mistérios, filosofias, historias,
física quântica, Idade Média, Religiões, tudo. Queria saber do lado
Muçulmano, Islâmico, Judeu, Budista e tudo mais, de ver o mundo. O homem,
afinal, não era esse imenso ponto de interrogação pendurado à beira do abismo
de sua insegurança existencial?
Lembrou de ter sabido sobre um mosteiro de Capuchinhos Descalços num
sítio ermo lados da serra do Mar, sentido das primeiras curvas da estrada de
Santos. Onde lera alguma coisa a respeito? Devorava jornais, livros, mas
nunca os que tivessem a ver com o espiritual, o sensorial, o ser humano e suas
circunstâncias. Era bom em romances, clássicos, essas coisas.
Pois, ao invés de correr o risco de ser pego de novo, sedado e até sendo
inconvenientemente trancafiado num hospício até bater as botas, ganhou
rumo, à pé, com um novo peregrinar, em busca de uma ocasional reclusão que
se lhe permitisse servir a Deus mesmo que numa duvidosa forma de religião
ou campanário, além de o ajudar na recuperação física e preenchimento
espiritual, mas, pelo menos ali, ao seu modo, seu jeito, seu gosto, tentaria de
novo oportunamente ganhar as ruas e ajudar os pobres, com sopa, com
agasalhos, com remédios, com a palavra de Deus. Era uma decisão nova em
estágio seguinte de sua busca de si mesmo.
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SETE
O Mosteiro dos “Capuchinhos Descalços” ficava perto de um eito de mata
atlântica, à beira do lado ermo da represa Guarapiranga, perto do fim do
planalto paulista, bem adjunto de onde se precipitava o relevo e o geo-físico
entre neblinas ocasionais forçava abruptamente a descida da serra, sentido da
área beira-mar do litoral sul paulista. Um lugar calmo, verdejante, tranqüilo.
Um pedaço bonito de de terra. Um pedacinho do céu?
Na verdade, um Mosteiro antigo, segundo lendas de tempos coloniais,
fundado por um filho bastardo de Padre Anchieta com uma índia antropófaga
que tinha sido convertida às escondidas quando o engordava para proposital
abate em cativeiro, e que ministrava teologia, filosofia, e que também recebia
recrutados pobres jovens seminaristas de todo o Brasil, quando poderiam
numa ala fazerem ou não votos de pobreza e total reclusão (quando seriam,
então, levados para serem depositados em confinamentos peculiares), mas
com todos ali bem atarefados e totalmente reclusos, rezando estribilhos
decorados ou trabalhando na lavoura de subsistência, sem água encanada, sem
luz elétrica, apenas livros em quantidade enorme, começando as atividades
diárias ao mal arrebentar-se das avencas aurorais do sol, até a última luz do
crepúsculo baixo, quando todos rezavam uníssonos numa prece usual de
prática decorada e pouco útil, praticam cânticos religiosos ao som meio fanho
de um órgão antigo trazido do Vaticano e depois de uma sopa de fubá
engordada com nacos de peixe de água doce criados em eios próprios, quando,
finalmente, iam dormir com senso do dever cumprido, de terem sido ordeiros
servos de Deus e oradores vigilantes imperiosos das intempéries do mundo
Pois foi ali que um dia, um sr. de nome Paulo aportou com calça blues de grife
larga para o seu número, sandália havaiana cor-de-rosa (era de uma enfermeira
desprevenida que saíra fumar fora do quarto), a roupa de cima uma espécie de
camisa de pijama em listras de branco e azul-celeste.
O homem de jeito cândido mas bem maleixo de aparência tinha a barba
novamente por fazer, estava com os cabelos calvos na fronte mas longos e mal
cuidados de lado, tinha uma humildade no gestos seguros e foi bem notado,
pois naquele lugar nada acontecia de diferente, tudo era sempre chato, apenas
o barulhar diário da jandaia alvissareira querendo amendoim e alpista, o
surgimento de esquilos e lagartos serelepes, mais, aqui e ali, o aparecimento
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predador de uma onça pintada meio morta de fome a atacar o farto galinheiro
dos freis meio obesos de tanto se empanturrar de comidas com banha de porco
e falta do que mais fazer de bruto, pesado e útil.
Uma estradinha maleixa saía da beira da represa. Para chegar até esse início de
picada, só conseguindo carona com um pescador de bote inflável, ou,
alugando uma lancha para esse propósito ali no pier da represava. Pois Paulo
conseguiu uma carona com um boy que ia buscar o pai que cevava a bebericar
aguardente com losna numa ilha de areia próxima, onde se deleitava tomando
pinga macerada de ervas e pescando antes da mudança de lua quando a ceva
era mais fácil e a pesca régia e farta. Pois ali desceu o tipo estranho que mais
parecia um pedinte, um coitado doente, como intuiu o rapaz viciado em Coca
Cola diet com seu walk-mam cheio de musiquetas idiotas e cabeça vazia de
boas intenções a respeito da curiosidade que lhe atiçava o páreo do momento.
Mal o curioso Paulo desceu na espécie de chácara de ermitões, foi notado com
carinho, de longe, por um irmão, o esclerosado e doce Frei Joshua (ali os
internos escolhiam um novo nome, se quisessem) sempre de mente aberta,
instinto aguçado, coração abatido mas espírito de luz irradiando fim de vida
próxima. Quando chegaram outros internos, quando viram que o tipo
estranhamente não tinha sido anunciado por carta ou pelo precário
radioamador movido por bateria, chamaram o Monsenhor Frei Lázaro, o
superior mandatário ali entre eles, que veio saber de que curioso ocasional se
tratava, ou se era mais um perdido a se escorar ali.
Não haviam muitos à luz do dia nas imediações. O local recebia ladrões
noturnos, visitas inoportunas, pescadores bêbados perdidos, náufragos que se
salvavam por um milagre das profundezas da represa, ou mesmo alguma
autoridade religiosa trazendo um novo irmão querendo servir à Igreja (à
Cristo?), ou mesmo vinham em busca de dados clericais importantes, alguma
reportagem mística, ou mesmo algum remédio artesanal caseiro, quando não
gostosos licores, frutas sem química, ervas raras, legumes todos puros que
algum Cardeal, com saudade da terra caipira ou remota de origem, mandava
buscar com sua lancha possante ou mesmo com um helicóptero da Santa
Madre Igreja. O carismático Papa Dom Paulo Segundo, para ali fora certa feita
de noite, escondido da mídia, à sorrelfa, beijar os murchos pés dos
Capuchinhos Descalços, quando recebeu de presente mel silvestre de abelhatiê, licor de melissa cruzada com hortelã, rapadura de mandioca-brava, bagres
defumados e curtidos em salgo grosso e uma cruz média feita em cera de nó
de pinho, onde o rosto torto (e deformado pela veia e corte do entalhe) de
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Jesus Cristo Crucificado tinha o rasgo de dor mais triste que qualquer ser
humano vira em arte neorococó. Não era identificado o escultor talentoso
entre eles, pois tudo pertencia à Cristo, disse o Monsenhor, feliz com o
sentimento de aceitação tão pungente e agradecida, de tão importante
autoridade da igreja.
Pois, embaixo de uma amendoeira secular, o estranho no ninho, o esquisito
invasor Paulo sentou e esperou silente, cômodo, contemplando o casario a
menos de mil metros, com cães vira-latas presos e latindo sem parar, mutuns
ribeirinhos mordendo-o no branquelo calcanhar descalço, um sol já merreca
vestindo as calças curtas do horizonte enuviado, meio cor de fogo, mais o
ambiente carregado arrebentando um cheiro de pão caseiro, somando a todo
esse aparato natural com umas cantorias sacras de um coral mavioso e
plangente que punha céus na sua esperança de leigo procurando demão de luz
íntima.
Esperou pelo menos meia hora, como se fosse parte da natureza em paz,
quando viu aquele velho todo calvo, algo obeso, barriga saliente, descalço e de
pés grandes e chatos a pisarem a mal cuidada grama verde, entre jacintos sem
cuidado, vestido com um macacão marrom escuro que tinha uma touca, tudo
de um pano grosso, na verdade um hábito costumeiro ali, mais um cajado de
vara meio torta na mão direita, um crucifixo de arame farpado preso ao largo
peito peludo como se de um montanhês arfando por causa de ar rarefeito
caçando a ovelha perdida do redil dos céus.
Mal viu o idoso dirigir-se à si, quase pisando margaridas do brejo, restando-se
sem caminho de retorno (a lancha tinha se ido há tempo), os cães pararam de
latir no tropel todo, a ferroadas dos porvinhas de beira d’água calaram o
violino doloroso, e Paulo levantou-se sorriso completo nos olhos esbanjando
expectativa de felicidade pretendida, cuidando que aquele servo especial de
Deus lhe abrisse uma outra porta de necessária solidão sacrificial que fosse,
para que ali pudesse estudar as coisas de Deus e dar testemunho de sua busca,
em seu precário estado de necessidade.
O Monsenhor prudentemente parou a menos de dez passos, sondou o estranho
de forma calma, sorriu um sorriso novo e quase que desacostumado de sorrir
inteiro, olhou a água manchada de espuma verde e puxou conversa, sem estar
muito a praticar aquilo com quer que fosse de estranho naquele paraíso :
43
-Esse rio está cada vez mais poluído. E a cada dia piora mais seu estado. Que
tristeza me dá vê-lo assim desse jeito imprestável!
Paulo esperava um pito, uma reprimenda ou uma saudação de boatardar, não
um comentário assim, sem mais nem menos, como se encruado do contexto
todo. Achou engraçado.
Mas respondeu, na contramão da conversa já iniciada feito faca torta em mão
de bêbado ou em prumo errado:
-É o mal que o homem faz à si mesmo, destruindo as coisas de Deus,
quebrando o sagrado equilíbrio da natureza. Disse isso e o coração disparou.
Uma lépida tesourinha alvinegra cortou o horizonte na altura turva que a vista
curta, doente e cansada alcançou
Nem entendeu direito como aquilo soou, de improviso, sem pensar, sem mais
nem menos. Era Deus pondo lenha na fervura de uma maduração de encontro
e diálogo? Sondou essa hipótese.
Como se fosse uma senha divina, o pacato Monsenhor sorriu modesto,
disfarçando a surpresa. Mas gostou muito da resposta.
Prosseguiu – era um teste? – ao seu jeito esquisito de travar elo de conversa
fiada, fora de propósito que fosse:
-Se não chover hoje, chove amanhã. As chuvas abençoam os teréns de terra
vermelha. São os desígnios do Criador.
-Com sol ou com chuva, toda a terra louva ao sr.- disse Paulo, como se fosse
só um rebatedor de íntima voz do Espírito Santo o guiando na fervura do
encontro tão delicado.
-O sr. não foi convidado mas precisa ser benvindo. Temos essa fama de
agradar a todos que batem à nossa porta. Na casa do Pai há muitas moradas.
-Tantos são convidados para a ceia do Senhor, mas muito nem chegam a
atravessar os riscos de uma travessia para tentar. Paulo respondeu isso e, por
algum motivo, incomodou-se daquele diálogo sem eira nem beira.
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-Esse é um lugar de retiro, de privações, de escolhidos a dedo. Não é para
qualquer um...
-O dedo de Deus toca o coração por dentro?. O dedo de Deus toca no mais
íntimo e inimaginável de nós?
O Monsenhor brincou um pouco com o cajado, fez umas firulas com aquela
pedaço de pau envernizado de suor, depois deu, finalmente, tom de
formalidade central e peremptória ao inusitado encontro:
-Bem-vindo em nome de Jesus Cristo e da Sagrada Virgem Maria. Como o sr.
se chama? A que devo a honra dessa visita não anunciada?
-Vim buscar paz, irmão. E também tenho um pouco dela. Vim buscar
conhecimento de Deus, pois só tenho conhecimento do mundo vil. Vim buscar
luz para meu espírito, pois sempre vivi por invirtudes. Vim buscar a benção
para a minha alma, que quer a salvação, pois eu sou um nada na cumbuca do
nada mundo. Vim pedir leito, pão, fermento, sal, corote de fé e ainda dar-me
de serventia. Nada tenho para oferecer a não ser minha vida hoje feita uma
cumbuca vazia. Tampouco nem posso pagar, mas sei que posso ser de alguma
valia física...
E Paulo de Tarso foi falando, como se fizesse um discurso decorado muito
tempo, quase que declamando – gestual, verdadeiro, solene – para o rio, as
árvores, as borboletas brancas, as gardênias, as nuvens se fechando, a mata
atlântica, as formigas saúvas, as flores de pessegueiro, os pernilongos, os
pardais alvissareiros num laranjal próximo. Afinal, era um homem instruído. E
ali, mais do que nunca, com a graça de Deus, era também um abençoado.
O monsenhor serenamente ouviu aquilo por uns minutos. Quando Paulo parou
de falar, após dar o nome e se dizer um antigo mendigo, morador de rua, agora
um pedinte da graça de Deus. O religioso, macaco velho, viajado – mas
sentindo ali uma aura de luz, uma energia santa na voz, um halo diferente –
encorajador ao seu jeito, replicou cândido e já meio implicante:
-O sr. Paulo fala bem para ser só o que diz que é. Mas isso não importa.
Temos leite e pão, vinho e pão, água e pão, amor e pão, Deus e pão. O quê o
amigo deseja o meio de nós? Fique à vontade.
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Paulo não esperava aquela espécie de interrogatório esquisito e fora de
propósito. Não fazia sentido mas era ao mesmo tempo gratificante e
engraçado. Uma toleima? Calou fundo a pergunta, e deixou que a resposta
viesse como um pacote pronto do mais fundo de si:
-A graça de Deus me bastará. A graça de Deus será meu dínamo. A graça de
Deus fará meu cálice transbordar...
Quantos dias o amigo quer ficar, porque veio realmente e quanto quer de
estadia, qual o mistério que o trouxe com a mudança de tempo – o sol parecia
vestir um pulôver escuro de nuvem, relâmpagos parecia ferroar de flashs do
Criador mirando a terra - São Pedro parecia estar mudando os móveis de
lugar. Um vento de chuva varreu as árvores que parecia bater palmas para
aquele destino de encontro. Salvas anunciando tempestade?
Mal o Monsenhor foi dizer alguma coisa no improviso da situação, alguns
pingos pesados começaram a peneirar aqui e ali, no tabuleiro do beiço da tarde
e gola turva da noite. O Monsenhor estendeu a mão gorda e peluda ao
estranho, e, ambos, seguiram no sentido da segurança que o Mosteiro ali
naquela ilha de isolamento tendia a representar.
Por várias horas, aquela noite, à beira de um fogão de lenha sempre mantido
aceso por grimpas de pinheiros e lenha verde a crepitar o ranço do fogo, quase
cem capuchinhos, todos com o rosto coberto menos a face frontal, ouviram a
história daquele Paulo que, invertendo o papel do maior pregador dos
evangelhos de Cristo, queria vir ali para ser o Irmão Saulo, e assim achar seu
caminho. Espírito, alma e coração, precisavam da engenhosidade de Deus.
Explicou que, como Santo Agostinho, entendia que Deus falava com ele por
meio de sinais. E que era uma linguagem individual que requeria muita fé,
sentido tácito de compreensão e observação acentuada contínua, requerendo
até certa disciplina e radar sensorial para ser totalmente absorvida como
deveria. E ele tivera, para construção de sua alma, quatro forças invisíveis, o
amor, a morte, o poder e o tempo. E o tempo era seu fermento ali, até porque
compreendia que o Criador julgava a árvore pelos frutos, não pelas raízes. E
ele estava começando a criar seus brotos de nova floração.
Quando terminou, ninguém bateu palmas, claro – e era uma história e tanto –
mas o Monsenhor disse Aleluia e todos disseram um ensaiado Amém
uníssono, fizeram depressinha o sinal de cruz e, depois, em ordeira fila
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indiana se dispersaram, caminho dos aposentos quentes, com certeza de que
aquela história era sobre o mais belo “chamamento” divino que ouviram.
Estavam impressionados.
Monsenhor deu uma chave ao noviço e só disse: Quarto Dois, primeira
porta verde à direita. Intimamente abençoou-o, boanoitou sonoro com sua
voz de trombone contrabaixo, depois girou nos calcanhares e ganhou busca de
seu recolhimento em quarto especial. Não era acostumado recolher-se depois
das onze.
Paulo entrou no corredor vestido de silencitude e logo viu a porta próxima, de
imbuia torneada, envernizada à mão. Abriu-a e viu que mal era um cubículo
de dois metros por quatro, com uma cama de solteiro, de arame e capim, um
travesseiro de palha de arroz, uma janelinha que dava para o breu noturno,
uma espécie da prateleira onde havia um velho lampião Aladim movido a óleo
de cozinha de terceira categoria aceso com pavio curto, fogo baixo enchendo
de melancolia o ambiente humilde, um jarro de barro vermelho grande com
água potável fresca, uma toalha feita de saco de farinha de trigo com as
iniciais bordadas J.C. (Jesus Cristo), uma Bíblia de Jerusalém(*), um pote de
barro imitando cuia cheio com arroz-doce, um crucifixo de arame farpado
igual ao dos demais preso perto da cabeceira da cama, e, no chão rústico de
terra batida mas limpa – todo o casario era assim – um grande penico branco
usado com pequenas pinturas de desenhos de primitivas âncoras azuis.
Paulo ajoelhou-se ao redor da cama e chorando orou um pai-nosso. Estava tão
cansado que ali, reconfortado pelo cheiro de silêncio (foi assim que entendeu
de entender), adormeceu pesado sem mesmo se despir, sem fechar a porta,
sem fazer alguma espécie de asseio precário mas de necessidade, pois a cama
tinha lençol e fronha do mesmo material da toalha, e, além de um grosso
corta-febre, era o que lhe daria o calor naquela noite chuvosa que prometia
esfriar.
Pois dormiu como um bebê-cavalo. Parece até que desmaiou seu pesado corpo
feito um pacote de culpas.
De manhã acordou ouvindo sininhos e pensou que lhe soavam no íntimo.
Havia uma serenidade de imensa paz que vestia o ambiente de luz. Era a
sintonia fina de seu reencontro consigo mesmo.
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Acordou assustado – tinha baba no lábio inferior, remelas como goma arábica
seca abaixo dos olhos e uma vontade enorme de fazer xixi – com os
alvissareiros e curiosos irmãos de meio brincando com seu estado mal
assentado ali, cara de boi lambido, disse um, Soneca, comentou outro,
aludindo a um personagem anão da história da Branca de Neve. Paulo
levantou e bondiou alegremente a todos. Todos responderam mas um deles,
assomou-se, se adiantando, quando apresentou-se:
-Sou o Irmão Leonel, só quero ser Frei, não padre. Vamos tomar banho ou o
sr. prefere ir direto pro café quente com pão quente de torresmo e manteiga
caseira?.
Paulo não respondeu. Apertou a mão do simpático jovem seminarista e só
disse:
-Tenho que tomar banho, mas não tenho sabão e só tenho essa muda de roupa
que trago comigo. Eu mal tenho à mim mesmo, confessou, rendido às
evidências.
Um deles adiantou-se e lhe deu o mesmo uniforme padrão, capuchinho
marrom, tamanho médio, depois uma sandália de couro cru também – riram
um bocado de sua havaiana cor-de-rosa – e um outro tomou-o pela mão
dizendo que o levaria ao banheiro coletivo, dando-lhe meio sabão de cinzas.
Lá fora o sol ardia. Pássaros teciam a anunciação auroral. Havia um cheiro de
cedro no ar. O ambiente da casa era de estilo colonial por dentro, com janelas
largas de batentes de ferro torneados com arranjos artísticos. Enormes
girassóis lá fora pendiam como se anjos feitos de coalhos estéticos de sol.
Alguém começou a literalmente cantar um salmo conhecido em latim ou
grego. Um cheiro de chá de erva-cidreira com hortelã encorpou o ar. O
Monsenhor passou por ele com uma baita cesta de flores silvestres e só disse:
-Já acordou o homem que veio com a chuva? Bom-dia, servo noviço. O
Senhor esteja convosco. Está um belo dia hoje. O sol já mostrou sua crista
límpida.
Agora Paulo, ou melhor, o Irmão Saulo, não estava inspirado nem tocado por
obra do Espírito Santo de Deus. Mas não perdeu o estilo e disse:
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-Bom-dia Monsenhor Recolhedor de Flores para Deus. Toda graça de cor é
obra divina. Que a paz esteja conosco para sempre. Todos entenderam
perfeitamente que ali estava alguém especial.
Era o começo de um novo ciclo para Saulo e sua vontade de encontrar a
Deus.
-0-
49
OITO
Para cada um dos noventa e oito internos mais alguns serviçais leigos, contado
com o Monsenhor, havia uma própria captação inerente e entendimento
peculiar da “história” do Irmão Saulo.
Ele contara, sem reservas, a sua vida, os seus sucessos, os seus descaminhos,
as suas ousadias, tudo isso em rápidas pinceladas. No entanto, na parte que
contara o que vira do alto do edifício, montara sua versão limite para passar
adiante, de que vira, entre as almas caridosas que atendiam os carentes,
distribuindo comida, sopas, roupas, cobertores, vitaminas, Anjos “alados de
luzes” como se fossem eles que estimulassem, de alguma maneira, aquele
serviço de caridade e humanismo aos abandonado de toda sorte..
Também não deu a sua maravilhosa “versão própria” (conhecimento
exacerbado – visão total do que realmente estava inteiramente havendo ali, em
intenção e propósito divinal), o que poderia acrescentar horas mais de como
chegara àquele compreender exacerbado, imenso. E poderia provocar risos de
alegria, comoção em lágrimas, aleluias e até manifestações de línguas
estranhas entre eles, tocados pela magnifica esperança que poderia fazer a
todos compreenderem que a espécie humana estava salva, que as profecias se
cumpririam, finalmente, que aquilo era o maior Milagre da história da
civilização humana, da humanidade, dos descendentes de Adão.
Não, essa parte o irmão Saulo pulou. Eles não compreenderiam como ele. Eles
não estariam preparados? Precaveu-se em guardar sua versão estimulada pela
sensibilidade extrema então redesperta, depois que fora atrofiada pelo lucro,
pelo poder, pelo status quo institucionalizado sem ética. O que contara, sem
mentir, lhe bastara por enquanto. Se pudesse – e acreditava piamente nesse
hipótese – um dia contaria tudo e inteiro. Talvez num livro. Iria esrever um
com tantos arscunhos-despojos diários, tantas anotações garatujadas às
pressas? Talvez saíssem pelo mundo pregando a boa-nova. Talvez
glorificassem à Deus, talvez comunicassem ao Papa, talvez fossem em busca
do que ele vira, tentando um contato imediato, tentando benvidá-los à terra,
tentando fazê-los crer que contavam com a bendita volta, que o homem valia a
pena, que alguns se escolheram ser escolhidos e, fiéis filhos de Deus, dariam
testemunho da fé, dariam testemunho de vida, fariam acertos, talvez até se
encarregassem – quisessem ELES – os apresentariam às autoridades, seriam
50
elos de ligação e, então, graças à Deus, o mundo inteiro se converteria, seria
todo um planeta cristão, arrebatado nos ares, bilhões se ajoelhando à presença
angelical e sublimes deles , e então – e esse seria um outro grande milagre – o
mundo inteiro estaria salvo do limbo, convertido, o mundo inteiro estaria
resgatado, o mundo inteiro seria o Paraíso!. Todos por Deus?
Não, Paulo de Tarso não contou tudo e de forma completa. Sabia que não era
hora ainda. Podia compreender bem isso. Era muito saber que mal continha
inteiramente em si, mas, macaco velho na tábua de carne da grande lição que é
a Viagem de Existir, compreendeu que teria uma situação apropriada, um
momento positivo e definitivo para tudo isso. Precisava “limar” muito bem em
si, o que vira. Para que tudo coubesse dentro de si. E então poderia adaptar
tamanho ver à limitada compreensão da miserável e finita espécie humana e,
decodificada em palavras de uma hermenêutica entendível, então, em prosa
narrativa ou poesia prosaica, em versos, salmos, cânticos ou louvação, diria
aos seus irmãos da espécie o novo destino do homem. A nova saga angelical
da espécie humana. Tudo a seu tempo.
Diria ao mundo a sua versão pura e abrangente do que vira. E isso abalaria os
pilares do universo. E isso tocaria o coração mais rude, mais bruto, mais seco.
Porque a graça de Deus é milhões de vezes mais forte do que o corte de um
imenso e potente diamante-nuclear. E isso precisaria ser elaborado com jeito,
com prudência, com importância.
No entanto, por outro lado, cada interno seminarista ali, tinha certamente a sua
própria interpretação peculiar da pessoa exata do noviço. Para alguns era só
mais uma historia como tantas outras. Para alguns desconfiados, um mero
burguês querendo salvar a pele. Para outros, mais serenos, um santo que se
escondera em cargo, diploma e grana feito um imposto PHDeus.
O grupo era heterogêneo, a maioria de sulistas, poucos paulistanos (a religião
em Sampa era o lucro, o levar vantagem em tudo) e raros tipos do nortenordeste do Brasil. Alguns assexuados, outros afeminados, com explicita
homossexualidade recalcada pela religião ou Fé (o que era menos pior),
quando outros também na situação de, usando um termo do sociólogo Gilberto
Freire, propensos ao meio-sexo.
Havia um tipo que se destacava dos demais, pela cara grande, nariz grande,
olhos grandes, cabelos oxigenados, jeito de animal querendo adiar o bote,
gestual molenga de maricas recalcado, que, pelo jeito, não tinha ido muito
51
com a inoportuna notoriedade dele, não tinha ido com a fachada do invasor
do reduto. O nome dele era Walter Bello.
Mas todos tinham sua visão, de acordo com a bagagem, o conhecimento
intrínseco do que trazia, do que era, do que de suporte íntimo tinha, o recém
ingresso entre eles. Mas, no geral tinham boa impressão e o receberam muito
bem, simpáticos que eram e aceitadores de imperfeições, fugas reveladoras e
desajustes íntimos e sociais. Só que haviam normas, regras, usos e costumes,
ditames usuais e comportamentais, claro, entre eles.
O que pouco a pouco iria aprender, na sua breve estada ali, Paulo ou Saulo, foi
registrando na medida do possível em seus cadernos. Era a Soma. Como um
ritual, toda ponta de noite, com um lápis preto número dois, escrevia e
contava, registrando, arrolando. Registrava tudo que fosse importante. Era
essa a sua missão? Sim, o mundo saberia, por intermédio de um livro, se fosse
possível, a partir de tudo o que relatasse – a partir do que vira – que o mundo
tão em pecado, tão triste, tão violento, amoral e injusto, tinha grandes chances
de escapar de uma hecatombe, de uma explosão vinda do espaço, de uma nova
Guerra Mundial.
O amor de Deus era infinitamente maior que o monturo dos pescados até
histórico dos insensíveis humanos. Tinha que registrar tudo. Iria registrar. Só
esperava não encontrar inimigos, não ser tripudiado, não sofrer o crivo
precípuo de um sistema e seus meandros, seus totens.
Pois ele contaria, custasse o que custasse. Sua vida era ser arauto de fé e dizer
ao mundo de que a Esperança era o verdadeiro sinal de inteligência da Vida.
Aquele dia ainda ouviu atento (e tocado por um noviço como ele) tirar uma
canção de Ivan Lins no violão, que era um sinal divino de sagração dentro do
mais íntimo de si. A música dizia: “Depende de nós/Quem já foi ou ainda é
criança/Que acredita ou tem esperança/Quem faz tudo para um mundo
melhor/Depende de nós/Que o circo esteja armado/Que o palhaço esteja
engraçado/Que o riso esteja no ar/Sem que a gente precise sonhar/Que os
versos cantem os galhos/Que as folhas bebam os orvalhos/Que o sol
descortine mais uma manhã/Depende de nós/Se esse mundo ainda tem
jeito/Apesar do que o homem tem feito/Se a vida sobreviverá...”
-0-
52
NOVE
Quartos para uma Pessoa: Noviço.
Quarto para duas ou três: parentes, mesma origem (região, lugar) – ou
ainda concumitantemente até, em fase adiantada de estudo ou por acomodada
salutar convivência.
Quarto com quatro beliches de até três camas. Pessoas de meia idade,
maduros. Uns e outros se cuidando: pensar plural-comunitário.
Enfermaria: todos por todos – velhos amigos, na maioria anciãos. Um
em cada quarto deste, era o votado líder sempre de prontidão, um plantonista.
Atendimento, socorro, desdobrando-se, dirigindo, tomando decisões
emergenciais, pedindo ajuda superior ou paredemeia, auxiliando também a
área pertinente e ao derredor, num associaçonismo recíproco.
Horário de comida certo. De banho, à vontade. De dormir, vale o voto
coletivo, na intenção do que falar, do que trocar, do que valesse a pena largar
o sono e o descanso de lado para o diálogo. Mas, e isso era grave, agressão
até, se alguém cochilasse uma queda só de pálpebra no foro de monotonia, de
gesto, de queixo ou gestual identificador de desdita ou falta de atenção do
assunto rendido ao diálogo, era acabada a reunião e o “culpado” lavaria roupa
de quem estivesse falando por um mês, também obrigatório por voto de
silêncio total durante um ano.
Quem produzisse mais, ganharia pontos, na matéria Ação Comunitária.
Ajudaria na soma para a média da nota final do semestre e depois anual.
Repetindo-se apenas uma das vinte matérias, teria que fazer tudo de novo.
Terminado o ano, depois os outros quatro ou cinco de estudo, de acordo com o
estágio peculiar, característico, de básico (os comuns), intermediário (quase
perfeitos) e avançados (estes eram os verdadeiros escolhidos de Deus, quase
mitos, tocados, adorados, quase que idolatrados), poderia o irmão capuchinho
descalço continuar na casa, mas já como Monitor Diplomado (haviam sete
deles ali), professor auxiliar (do Monsenhor – se este deve sua benção de
endosso para tanto – haviam dois apenas), ou ir embora – era isso o mais
importante, para a Seara de Deus, diziam – quando se tornariam teólogos,
53
filósofos (da igreja), diáconos, freis, presbíteros, mas principalmente e quase
na sua maioria PADRES. Ou ficarem para sempre Capuchinhos reclusos no
bem-bom cômodo do mosteiro bancado com fundos da Ordem dos
Franciscanos, uma sede com ramo para a América Pobre com domicilio na
cidade de Paula, na Itália
Estes, teriam tratamento tratamento especial no Conselho de Regência
da Direção informal. Podia ficar. Mas ficar pode redundar em tédio. Pensava
em oração com ação.
Os melhores oradores (falando), os melhores oradores (rezando),
contavam pontos bons na matéria de Dialética Religiosa.
Não se fumava, não se bebia – a não ser um delicioso Licor de
Jabuticaba (adoçado na fermentação e preparo com rapadura de coco, junto
com rapadura de cravo, canela e laranja – era um deliciosa especialidade única
da casa).
Assédio sexual, homossexualismo, masturbação constatada, contato
íntimo com denunciada má intenção mesmo que implícita, EXPULSÃO Perda total de direitos, pontos, tempos, diplomas.
Há jogos: porrinha (palitos), futebol (grama – cinco ou seis contra),
baralho (só pif-paf, vinte e um ou paciência), dama, xadrez. Além de
exercícios como canoagem (caiaque), natação, ciclismo, pular corda,
brincadeiras como pular carniça, bolinha de gude (havia torneios). Soltar
pipas. Aliás, estimulavam “brincadeiras de crianças” – queriam despertar o
angelical da “infância” no Ser que iria assim, repurado, redepositário da mais
magna essência de si, ser um verdadeiro e bravo Servo de Deus.
Primeiros Socorros – Paramédicos – Matéria obrigatória, constando na
grade curricular. Teriam, todos, que saber verificar focos de doença, sinais,
manifestações, além de aplicar injeções, medir pressões, fazer compressas,
engessar, lidar com essências, fórmulas químicas, florais, homeopatia, um
pouco de acupuntura, análise da íris do doente (e suas expropriações),
problemas psicológicos (estudavam pela postura gestual, etc.)
Leitura: Tudo – do bom e do melhor. Eram ratos de biblioteca.
Aprender a ler os filósofos, os clássicos (tinham a lista dos dez, dos cem, dos
mil melhores livros do mundo), além de terem que aprender noções básicas de
54
espanhol, inglês, aramaico, italiano, latim, hebraico, noções de grego e árabe,
iídiche (não entendeu por que) e, é claro, português, na maioria gramática,
redação e literatura em todas as suas fases, da fase colonial ao pós-moderno.
Canto (matéria própria dentro da área de música): De cirandas, folclore,
até sertaneja, brega, pop, pagode a cantorias de cantos gregorianos até partes
de árias de óperas ou mesmo trechos murmurados de música clássica, de
barroca ao Mozart, Bethoven, Lizt ou mesmo Wagner, o louco, como
rotulavam esse gênio.
Brigas: Há – Se os dois resolvessem partir para as vias de fato, entrar no
tapa, deixavam. Quebrava a rotina. Mas delegavam “fiadores” de embates
inevitáveis. Quem perdesse a briga (num momento grave apartavam, antes de
acontecimentos fatais ou que tendessem a render seqüelas físicas), repetiria de
ano, tudo o que estudara ou que iria estudar no ano letivo, não valia nada, não
valeria nada. Perdia o tempo e teria que fazer tudo de novo, obrigatoriamente.
Quem ganhasse a luta, lavaria os banheiros todas as madrugadas, uma hora
antes do costume, o ano todo, para aprender que na vida não havia nem
vencidos nem vencedores, apenas uma apurada “convivência”. Ou seja: brigar
era estar no mato sem cachorro, montar num porco, em português vulgar, uma
“fria”.
Louvavam mais a Virgem Maria do que Jesus ou mesmo Deus.
Rezas repetidas ao êxtase. Ladainhas sósias. Quase que uma doentia
catarse coletiva apurada pela obrigação, silencitude e ambientação ajudando.
O Papa quase que um DEUS, imaginem. Muito mais importante, no
contexto todo, do que o próprio filho do marceneiro José, Jesus Cristo (que
nunca andou em liteira de ouro, não obrigava que se ajoelhassem aos seus pés
de sandálias de pescador, nem deixava que beijassem suas mãos, não tinha
pompa, vaidade, nem nunca usou coroa de ouro – a não ser uma de espinho
que com fortuito espirito de glosa lhe pregaram no alto da cabeça de
crucificado.)
Mortes: Notificavam o arcebispo mais próximo ou de contato direto e
imediato, que legalizava a justa causa (tráfico de influência junto aos órgãos
competentes). Depois os cadáveres eram levados de helicóptero (propriedade
da Santa Madre Igreja) com Certidão de Óbito, bandeira do Vaticano, duas
autoridades referenciais de Cristo, mais os eventuais precários bens do de55
cujus. Os parentes recebiam dez salários mínimos a título de ajuda-de-custo e
indenização pela serventia do familiar oferecido à causa dos Evangelhos, da
Fé, de Deus.
Drogas: Não há – é proibido. Ou, há: lições repetidas (decoradíssimas à
exaustão ou histerismo de se acreditar que aquilo era peremptório, única
verdade), na chatice de catecismos ainda mais velhos do que os dos tempos
dor credos bizantinos. Os CDFs caiam maduros e alienados. Causavam
estragos íntimos para sempre. Quase que um open-doping de “igrejismo”
apostólico romano, em benefício da Santíssima Madre Igreja de São Pedro. A
Bíblia valia pouco menos que os prelados papais.
Virtudes: todas e mais algumas.
7 pecados capitais. Teorizadas. Metáforas, figuras de linguagem.
Teatro, Festival de Piadas (valiam algumas picantes), Exposição de
Artes, Feira de Doces, Churrascos de salsichas, hambúrgueres, peixes
defumados e costelas de porco. Bailes de homem com homem. Transvestir-se
era cavar expulsão.
Exorcismo: aprendiam alguma coisa. Tiveram que exorcizar um
Monsenhor abalado mentalmente, senil, esclerosado, ponte de safena,
imputável juridicamente, que foi salvo por um milagre de um velho "ancião”
do Conselho que o curara de forma irremediável, ao final matando-o. Tornarase Monsenhor no lugar dele, e, após apaziguadas as memórias,
estrategicamente foi promovido a Assessor de um Professor Universitário de
Direito Romano no Vaticano. Nunca mais se soube dele.
Perfumes: sabão de Coco. Tudo cheirava a isso, em reuniões, rezas,
banquetes, festins. Haviam alguns outros perfumes florais, como jasmim e
outros, naturais.
Cuecas e Pijamas (ceroulas). Feitos com sacos usados de farinha de
trigo, doados – uma promessa de família – por uma clã de muçulmanos árabes
que tinham negócios no mercado da CEAGESP de São Paulo. Trocavam de
cueca e a lavavam incontinenti.
56
Suicidas? – Um (inexplicado – arquivo sumido – autoridades
subornadas – era um usuário de cocaína que ali se refugiara, diziam uns com
voz baixa, na surdina, por baixo dos panos das aparências)
Direitos e deveres: Deus versus Deus
Café amargo (açúcar cristal ralo), pão artesanal (às vezes pão de
lingüiça ou torresmo), mais manteiga caseira feita com leite fresco, de cabra
ou vaca, que criavam para consumo.
Vacas, cabras, porcos, perus, pavões, frangos garnizés, galinhas de
angola, patos, criações de peixes e variedades de pombais (não os filhos do
Marquês de, claro)
Flores e frutos. Belos canteiros, hortas, bosques e áreas de árvores
frutíferas. Bananeiras, laranjeiras, goiabeiras, pessegueiros, amoreiras,
limoeiros, e outros frutos.
Autoridade máxima respeitada: A verdade (em tese)
Mentira confirmada/denunciada: catação de lixo por cinco anos, todos
os dias. Todos os lixos.
Medo do escuro? Mijão.
Medo da morte? Cagão.
Medo de Deus? Benção! (Estranhei)
Fofoca: Maricas – lavava e passava roupas (ferro a carvão/brasas) do
lote semanal do citado em lorota infame.
57
DÁDIVAS
-Tempo de casa
-Puxar o saco
-Primeiro prato (a servir-se – comia-se bem e melhor, nãos os refugos
finais de um picadinho movido a salitre coletivo)
-Direito a expedir uma carta por mês (as demais, uma por ano, no Natal
ou Ano Novo, só. Ou em situações excepcionais.)
-Escolher o time (capitão): futebol, cozinheiro, faxineiro, colhedor,
extrativista. Os mais craques, apesar de algo obesos, valiam ouro, eram
disputados em porfias especiais ou sorteios concoridos para campeonatos
internos
-Dirigir o ritual litúrgico da missa diária, matinal
-Cota extra-dia de Licor de Jabuticaba (pode dispor o que quiser, até
reserva para consumo íntimo, próprio, em quarto particular com todos os
arranjos do melhor que tinha), inclusive para venda, troca, presente, tráfico
para fora do lugar, cessão.
-2 Cobertores, 2 lápis, 2 colchões, chinelos especiais: direito aberto de
uso para entretimento do Rádio-Amador
-Podia trazer parentes e amigos (curiosos tratados como príncipes – mas
ninguém jamais vinha ou se propusera a vir ver aquilo tudo, pois estar ali, para
pessoas janotas e boçais era quase que um castigo, não um prêmio de
aventura, e viam o convite com desdenha, humilhação.
-Raspar toda a cabeça (sinal de limpeza, dignidade, sabedoria, grandeza
aos olhos de Deus também)
-Direito a uso do Telescópio do Mirante do lugar
-Direito a voto extra em decisões que envolvessem o grupo, ou
exigissem um voto minerva final para decisões cabais
-Direito a viagens anuais ao Vaticano, depois de cada ano de mérito.
58
MORTES:
Morrer de velhice: beatificado de imediato. Nome no Livro
da Glória. Ligado na terra, ligado no céu. Com testemunho
bispal, sacerdotal e papal.
Morrer noviço: Anjo recolhido primeiro
Morrer de acidente: protetor do meio. À vitima era
acendido uma vela de sete dias todo Domingo, depois da
missa obrigatória na Hora do Angelus
Morrer ausente: Símbolo da exterioridade de Deus que ali
cultuavam em três concorridas orações obrigatórias por dia
Pior crime: peido público (flatulência sonora explicita)
Pena: ir embora por livre e espontânea vontade, levando os
pontos, os certificados, as conquistas educacionaisreligiosas. Poderia continuar o curso num outro seminário,
ou aproveitar os documentos para prosseguir em concursos
(ou cursos) técnicos ou de terceiro grau.
Melhor membro do clã dos Capuchinhos Descalços.
Morrer Capuchinho descalço por velhice (sabedoria,
conhecimento, divindade)
(Diário de Bordo – Data ilegível/borrada, talvez por café e-ou chá com
mancha/nódoa de licor de jabuticaba)
.
****
-
59
E os poemas, arrolados nos cadernos como se butins recolhidos da rua, por
intermédio de seu espírito criativo e acessado por sofrências e sensibilidades
revisitadas à flor da pele, verdadeiros resgates de vida:
-01)=EU, TU, NÓS
Bati em tua porta
E perguntaste: quem és?
Tolo, eu respondi
-Sou eu – E limpei os pés
Mas disseste: -Aqui
Só cabe UM – Fiquei a sós
Pois eu amadureci
E voltei a ouvir tua voz:
E disseste: -Quem está ai?
Então eu respondi: -Nós!
Então me deixaste entrar
E juntos somos um lar!
-0-
-01)=VIVEIROS
60
são tantos os canteiros
que venho semeando
pelas lavras do caminho
que às vezes me esqueço
e dou-me chorando
tão pobre de mim sozinho
são tantos os luzeiros
que venho acendendo
na minha vida pergaminho
que, às vezes me encontro
tal frágil, horrendo
sangue do meu próprio vinho
são tantos os viveiros
que venho encontrando
dentro do meu serzinho
que, às vezes, abandono-me
ser tão nada: Passarinho
-0-
61
-03)=HAVIA UM TEMPO
Havia um tempo muito distante
Em que se falava pouco de amor
Porque todos se amavam
Não teorizavam
E o amor era de pai pra filho
Entre amigos, parentes, vizinhos
Ninguém era de si mesmo sozinho
Havia um tempo, muito distante
Em que se falava pouco em honestidade
Porque todos eram honestos
Não apenas de palavras
Mas de ações – eram honestos naturalmente
Entre irmãos, conhecidos, parentes
E ninguém de si mesmo era ladrão
Havia um tempo, muito distante
Em que se falava pouco em Deus
Porque todos os amavam
Tinham-no presente
E o amor de Deus era realmente
Uma conseqüência de uma soma de valor
De honestidade, convivência e amor!
-0-
62
DEZ
O engenheiro e agora circunstancialmente noviço-residente estava já com
ótima aparência, bem recuperado, com cem por cento de tranqüilidade serena
e paz na vida que o ambiente permitia, e isso – para quem não tinha nada de
butim de vida entregue a rumos de improbabilidades lógicas – era lhe até
muito eficaz, fazia bem, dava êxito íntimo, estrutura, embasamento de
pertencimento interior. Ajudava-o, sobremaneira. Dava-lhe chão; um tapete
voador imaginário na perspectiva de luz, de um sonho de divinização
presencial. Mas entendia que só o coração era clarividente, só ele sabia, só ele
sentia, só ele via e previa. Entendia que, ainda que a inteligência se servisse do
cálculo – ainda mais no seu caso – não era calculadora, mas uma certa
palpitação divinatória do coração organizado pelo cérebro, que, de per-si, nada
tinha de cerebral. Ali, auto rendido em si mesmo, tinha seus insights, flashs de
errôneo cotidiano trivial, banalizado, com a consciência entre dividida entre as
imagens solares de fora e as imagem simbólicas e líquidas de dentro, que
implicavam até com sua marginalização do mundo real, quando chegou até a
compreender precariamente que sua consciência apurada podia ser uma
espécie de “doença”. E a espreita mimetizava um processo de oclusão de sua
persona. Era quando sentia vertigens, alguma espécie rápida de distonia que
mal controlava. Estava “possuído” naquele estágio de “chamado”?
Questionou as coisas de Deus, as coisas dos homens, os sete pecados capitais,
as dez virtudes até, que descobriu serem a Disciplina, a Compaixão, a
responsabilidade, a Amizade, o trabalho, a Coragem, a Perseverança, a
Honestidade, a Lealdade e a Fé. Achou que, observando ali todas as dez,
fazia-se melhor. Apenas ficou com dúvida no “quesito” Fé
Foi quando indagou-se: -E as ações somadas, fazendo uma dupla dinâmica
com as Orações? Tinha esse questionamento feito quirera de dogma em seu
intimo. Para ele, catecismos não substituíam a Bíblia Sagrada. Terços não
invocavam divindades. A Virgem Maria era tão humana (debaixo do céu tudo
era vaidade) e maravilhosa mãe, mas não era mais importante que Jesus Cristo
como notara em alguns exemplos templários ou divinizados por exageraos de
extrema veneração. O Papa era simpático, digno, um peregrino da Fé
(pregando o mote Todos Por Um), mas ainda era um homem finito como
todos os homens. E representava todo um aparato com o qual não concordava.
Por que as igrejas inventavam regras, dogmas, normas, cassinos, se Cristo era
outra coisa? Por que o Império Romano valera-se de um Cristianismo de
63
Igreja para dominar os pagãos, atrair fiéis? Por que a Igreja criara a triste
Inquisição, depois apoiara o Nazi-facismo, abandonara a África à própria
sorte, mais: o FBI confirmara que Banco Ambrosiano era um ramo da Máfia
mano-negra da Sicília. Isso era a Santa Igreja? Claro que não tinha sido coisa
do Brasil, mas da história da velha Europa. Mas tudo era dúvida. Era a pessoa
certa no lugar errado?
Era um cristão à moda antiga, como um último romântico. Sentiu-se algo fora
de uma realidade que deveria ser divinal pela presença do “amor ao próximo”
Não, não queria um missal-circo, uma igreja-banco, um saltitante (e janota,
boçal) padreco-cangurú num circo-horror-show de mídia estética televisiva, as
vendas (Ltda. - S/A) de bonecos, posters, cedês, cruzes e espúrios terços
bizantinos (e bisonhamente bizarros), além, de montadas imagens retocadas de
vaidade e retórica chinfrim; fúteis neocarismáticos como cópias pioradas de
seitas neoevangélicas, tampouco bobas histerias religiosas de araque dando
lucro às partes das quadrilhas (de fundo falso) envolvidas, atrelada à espúria
mídia ganhando espaço de neoconsumistas que, com um suspeito aval de tipos
artísticos demodês e de qualidade duvidosa, feito sepulturas mal-caiadas,
vendiam o sangue de Cristo para engodar o açodado mercado de vendas sem
limites de probidades confiáveis, mais camelôs da economia dita informal
ganhando dinheiro sujo com venda de fotos de personalidades desabonadoras
da fé posando ao lado de padrecos querendo ser artistas de ocasião, mas sendo
maus pregadores, incompetentes críticos sociais, nefastos à verdadeira causa
manifesta nos Evangelhos, dentro da própria ótica crítica do “ orai e vigiai”.
Queria orações mas com preces politizadas (todo homem não é um animal
político? - como dizia o filósofo Sócrates; tudo na vida não é mesmo política?
- como pregou Bertold Brecht?.) Queria preces com obras, com os religiosos
verdadeiros pegando no breu para produzirem mudanças, pondo a mão na
massa para mudar estruturas oligárquicas, acumulativo capitalismo inumano,
visando alcançar objetivos lícitos e imediatos em favor da maioria da
população pobre e oprimida, a gama maior da população mundial, vivendo na
miséria absoluta. Captou que os seminaristas noviços eram moles, frágeis,
ovelhas de certa forma tosqueadas, e mais queriam sombra e água fresca, não
arregaçar as mangas e se juntarem a favelados, sem terra, sem tetos, sem
empregos. Sem Amor.
Uma igreja verdadeiramente de CRISTO, com senso crítico na fala e postura
social de Dom Hélder Câmara, do qual era ídolo, e que quando falava de
64
Amor aos coitados, era chamado de Santo. Mas quando ensinava os coitados a
pensar (e se mobilizarem, votando melhor, agindo criticamente, argüindo por
direitos até mesmo Constitucionais ou humanitários) era tachado até por
membros de parte da diocese alienada (ou comprometida com coronéis do
arbítrio ou arautos da mesmice vulgar) de “Comunista”. Também lembrou-se
de ter conhecido o Padre Lancelotti, aquele sim, um verdadeiro mensageiro de
Deus, um homem de muita fé e inquestionável prática cristã de caridade. Um
homem de ação. Um humanista de valor. Pois, brincando, os irmãos do Padre
Júlio Lancelotti, o chamavam de “Madre Teresa” de Batina, pois envolvia-se
com as crianças com Aids depositadas em repartições públicas, um homem da
rua, um padre de rua, um servo de Deus de rua.
Compreendeu melhor aquilo tudo, no “estar” que se restava de certa forma
rendido de agir, promover, produzir, criar, que era seu modus operandi, seu
estilo de vida, sua vontade e característica.
Era seguro de si, mas não estava inteiramente satisfeito. Estava mal
completado ali. Tinha que avaliar melhor, medir a situação toda
Ali tudo era muito cômodo. Calmo e, paradoxalmente, no seu entender crítico,
vazio demais. Era tranqüilo apesar de, de certa forma inútil como fito
precípuo, primordial de Soma. Queria movimento por justiça social,
mobilização da maioria da população. Ali não fazia muito sentido. Aquela boa
turma retida a só caprichosamente rezar ali, se fosse para uma das favelas do
alto da Serra do Mar, perto do gaseoduto que subia de Cubatão, seria muito
mais humana e cristã, ajudando, construindo, dizendo de Cristo e mostrando
obras feitas com as mãos de todos, leigos e pastores. Estava errado? Como
Cristão sabia que não estava.
Precisava passar sua delicada opinião crítica para o Conselho que reinava ali,
que regia o local.
Destemido, consciente, seguro e inteirado de boa intenção até sacrificial, iria
requerer uma Reunião Extraordinária do Conselho Regente, para expor suas
dúvidas, sugestões e insatisfações de foro íntimo. Seria considerado? Seria
expulso?. Tinha direito à isso, compreendeu. A palavra que, estranhamente
(quem a colocara ali no seu “pensar” imediato?) era Ombudsman
Ombudsman?
-065
ONZE
“Nós olhamos com perplexidade a parte mais
alta da espiral de força que governa o universo.
E a chamamos de Deus. Poderíamos dar
qualquer outro nome: Abismo, Mistério,
Escuridão Absoluta, Luz Total, Matéria,
Espírito, Suprema Esperança, Supremo
Desespero, Silêncio. Mas nós a chamamos de
DEUS porque só este nome - por razões
misteriosas – é capaz de sacudir com vigor o
nosso coração. E, não resta dúvida, esta
sacudida é absolutamente indispensável para
permitir o contato com as emoções básicas do
Ser Humano, que sempre estão além de
qualquer explicação ou lógica...”
(Nikos Kazantzakis – Escritor Grego)
Enquanto o Conselho Regente do Mosteiro dos Capuchinhos Descalços, em
Reunião Extraordinária votava as três opções decisórias que a si seriam
aplicadas, Irmão Paulo ficou em seu quarto, ajoelhado, jejuando, esperando
que, o que quer que fosse decidido em seu favor, para o seu destino, ele teria
que aceitar como desígnio de Deus. Só esperava não ser enganado, nem estar
fazendo alguma besteira. Era puro em seu buscar. Queria retornos limpos.
Deixou nas mãos do Criador do mundo, o passo seguinte. Sua vida tinha sido
assim: ele a conduzira com suas próprias mãos, passo a passo, e agora, ali, lhe
dizia respeito de espiritualidade e humanismo. Queria morrer fazendo o bem,
não ganhando milhões e torrando em cassinos, cruzeiros, bastidores políticos
de corrupto liberais e obras inúteis, superfaturadas e mais totens de mídia para
um grupo de ladrões e corruptos com trânsito municipal, estadual, federal e
internacional, regido pelo maior corrupto do Brasil, o turco corrupto
66
maquiando o estilo político- eleitoreiro com o mote sem-vergonha do, “rouba,
mas DIZ QUE FAZ!”
Veio-lhe à mente, segundo a segundo, quadro a quadro, ajoelhado que se
restava com as mãos em forma de oração, segurando um crucifixo de pedrasabão feito pelo irmão Emanuel que se tornara seu melhor ombro amigo ali
naquele confinamento cristão, o momento em que, de cima do Edifício Aurora
(soubera o nome depois), olhara para baixo e vira.
SIM, ERAM ELES:
Ao lado de pessoas santas, preocupadas com os coitados, altas hora da noite
fria, úmida, distribuiam Amor em forma de comida quentinha, cobertores,
remédios, sanduíches, cartões para que depois agendassem atendimento
gratuito, ou que os acionassem quando precioso.
Pois, e isso era o mais incrível – jamais esqueceria a visão de 360 graus do
momento quase que de várias dimensões:
Entre os coitados, excluídos sociais, entre os verdadeiros cristãos, serviçais de
Cristo, o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro VIRA ESPÉCIES DIFERENTES DE
ENTES-ANJOS!
Sim, Anjos enormes, quase dois metros de altura, com magníficas asas
sinuosas em prata-neon luzente que pendiam das omoplatas até quase abaixo
da parte traseira dos joelhos, em tons lilases que refletiam como se um fulgor
de gás palpável, um esplendor divinal. Pareciam estarem a supervisionar a
caridade ali notória, como se estivessem, de alguma forma também, na mente,
nas mãos, nas intenções daquelas pessoas meigas e práticas. Sim, eram Anjos.
Pareciam membros de uma orquestra, mentores de alguma mudança que
imperiosamente se fazia necessária.
Mais não era uns quantos apenas. Sim, eram vários, muitíssimos, aqui e ali,
onde alguém ajudava alguém, um anjo acendia-se presente, com sua
magnitude, talvez auditando valores humanos, talvez registrando a presença
de Deus no mais íntimo de cada um. E ele vira – vira e sentira – o que aqueles
anjos ali na verdade representavam de implícito até.
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Sendo uma falange deles, aqui e ali, deveria haver uma missão própria,
antecipando alguma coisa?. Seria? E foi isso que seu sensorial captou inteiro,
cabal e completo. Evacuação? A Igreja arrebatada nos ares?
Então estavam preparando caminhos, trilhas, hangares. Uma evacuação no
silêncio da noite. “–Eis que virei como o ladrão de noite”, disse o mestre. Um
resgate? Ele sorriu-se na lembrança. Queria estar no meio dos escolhidos. Sim,
era isso o que queria. Sim, era o seu desejo mais grandioso, Queria estar entre
os que seriam salvos. E se Deus era dos bem-aventurados fracos e oprimidos,
ele era do rol de Deus. Queria, assim, ter seu nome no registro da terra que o
ligava aos céus de sua busca.
O que mais sentira totalmente - tinha até medo de pensar - lembrar-se, para
não conspurcar com a blasfêmia de seu novo sentir edificante. Era muito para
conter-se em si. Tinha que administrar bem AQUILO QUE SABIA, para que
purgasse em si, não o demonstrasse tresloucado.
Um dia daria testemunho do que compreendera, afinal. Escreveria algo a
respeito? Teria o tempo necessário? Tinha até certo medo de registrar isso.
Não caberia em palavra crível, pronunciável, entendível ao precário
compreender humano limitado. Era quase uma senha só sua. Alguém mais
notara? Einstein com sua teoria da relatividade fora visitado? Leonardo da
Vinci também? Jorge Luis Borges? Quase chegou a cogitar que Stephen W.
Hawking era um ANJO! Temeu-se por admitir consideravelmente isso.
Sentiu-se, de alguma forma, vigiado. Estranho. Sentiu-se alertado por um
interno “detector de mentira” (foi isso que "entendeu” de sentir). Corria risco?
Haviam pessoas erradas ali? A espécie humana podia permitir isso. Quem ali,
no Mosteiro era passageiro, vigia, denunciador, espião?. E espião, se fosse,
ESPIÃO DE QUEM? POR QUÊ? Temeu-se. Temia também pelo sentido
sócio-plural comunitário daquele silos de cândidos beatos.
Seu instinto apurado (mais o lado sensitivo-sensorial readquirido), mexeu com
estruturas íntimas. Aguçou um medo que bateu na mente. Tremeu. Orou mais
forte. Orou alto. Chorou. Tremia, suava frio. Parecia acuado de alguma
maneira.
Enquanto isso, na soma ao que lhe tinha sido Revelado (só ele entendia
aquilo), seu destino era decidido numa sala a duzentos metros dali.
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Seria expulso?
Ou sairiam com ele, pregar o Evangelho de Cristo, ajudando favelados dali
pertinho mesmo? Ou pensar assim era muita pretensão, incompreensível
sonhar?
Seus estudos bem adiantados valeriam alguma coisa, para o caso de querer
voltar ou prosseguir os estudos bíblicos num outro local? Ou, se precisasse
trabalhar, poderia lecionar Teologia, Filosofia?
Ou iriam “sumir do mapa” com ele?. Tudo era possível.
Enquanto orava alto, chorava copiosamente, aos soluções, as mãos trêmulas e
enfebres, o terço rústico a lhe grudar as nervuras palmas das mãos como os
cravos de uma tentação, ele ouviu a claríssima sineta que anunciava o fim do
problema. Mas não era o fim do mundo. Aquele era o toque costumeiro de que
a reunião em seu propósito tinha sido encerrada, finalmente. Sua sentença
presencial, táctil, iria aparecer ali, na porta aberta, e ele seria inteirado do que
tomaram decisão por si, oficialmente em nome de Deus.
Teria que aceitar? Aceitaria?
Quando abriu os olhos, infinitos segundos eternais depois, o Monsenhor já
estava serenamente sentado em sua humilde cama, com a sua arranjada mala
de couro preto, uma sacola branca de juta com alguma coisa que cheirava bem
e dava água na boca, uma pasta de papéis oficiais e um sorriso maduro, bonito
e cheio de orgulho do lado.
Era o seu passaporte para o céu.
69
DOZE
Paulo de Tarso lembrou-se de sua infância de Itararé.
Seus avós caboclos por parte de pai, velhos arigós, ao venderem uns bens,
umas terras no distante sul do Paraná, deram parte a um filho e parte a um
sobrinho e primo-irmão do filho único, criado em família por causa da morte
precoce dos pai deles, num acidente ferroviário lados do Porto Paranaguá,
litoral do Paraná. Um, logo pegou o quantum herdado e saiu de casa, em busca
de seu destino. Nunca mais foi visto e nem deu notícias. Desapareceu.
O outro, meio manteiga derretido, caseiro, restou-se por ali em Itararé mesmo,
vendendo bananas num boteco que alugou em ponto de embarque e
desembarque de jardineiras que faziam trajetos rurais.
Pois esse sr. com o dote de partilha, muito trabalhador e poupador, depois
ainda recebendo a herança dos pais, ficou muito rico, casou-se, tornou-se
empresário, pouco ligando para igreja mas freqüentando-a por um desencargo
de consciência (nunca se sabe o dia de amanhã), e, poupando cada vez mais,
passando-se à pão e água, além de quizilento e unha de fome, mão de vaca e
miseravelmente recluso socialmente, em décadas ficou ainda muito mais rico,
casou, divorciou-se, casou-se outra vez, perdeu a mulher, ficou viúvo. E numa
das tantas aventuras extraconjugais, entre um casamento e outro, ele nascera
de uma empregadinha da empresa comercial do pai que era a sua mãe jovem e
algo inocente, filho bastardo desse empresário rico, só que nunca reconhecido
de papel oficial pelo pai, chutando essa enganada caixa de supermercado que
fora seduzido com a promessa de um anel, uma promoção, uma viagem.
Essa mãe precoce, rendida as evidências, no seu núcleo de abandono, filha
única e órfã de pai e mãe também, sem parentes ou amigos para ajudar, foi
despedida, quando avisou que não iria calar a boca. De origem humilde
originária de Cerro Azul, lados rurais do Paraná, foi dada no desemprego, caiu
na vida, passou fome grávida, viveu necessidades cruciais. Mal deu-se por
passando fome, ajudado por uns maçons de antepassados suecos, mal
alfabetizado e com curso primário, Paulo resolveu ajudar a mãe que com a
idade, saindo das primeiras crises, mal virou uma pobre lavadeira de roupas
pra fora, a tentar sobreviver com um mínimo de dignidade, criando juízo e se
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segurando no seu lugar, intimidada que foi para não abrir o bico, não dar com
a língua nos dentes, ficar na sua.
Paulo, então Paulinho, comprou fiado um carrinho de mão torto e enferrujado,
e resolveu de vender bananas nas ruas de cacau quebrado (paralelepípedos) e
nas descalças ruas periféricas e cor-de-rosa também de Itararé.
Era o Paulo Banana que ia, carrinho de mão enferrujado, de bar em bar, de
casa em casa, de rua em rua, gritando sua mercadoria, seu preço, suas
qualidades – pintadinhas, amarelinhas, caturras – com dez ou doze horas de
trabalho, mais poupanças (tinha a quem puxar pelo lado do genitor), ajudando
à mãe que continuara solteira e infeliz depois dele, a sobreviver. Tivera uma
infância difícil. Sua mãe dissera que passara fome com ele na barriga. Depois
ela sentira a fome na primeira infância também. Então ele teria que ser forte. E
ele o seria. Sentia que poderia enfrentar a barra pesada que era o verbo Viver.
Só quem passa fome uma vez na vida, e tem um mínimo de brio, de vergonha,
de caráter e de determinação, pode compreender inteiro o baixio rés do chão
da miserabilidade, da finitude humana. Não há sensações no esquecimento.
Mas começou a vender banana caturra que comprava na coragem, a preço de
atacado, de um cidadão amigo e bondoso que confia muito nele, depois
revendia a preço de varejo, com boa margem de lucro (e com bom papo, bom
tino, ótima visão de negócios e comércio, insistência, determinação), puxando
o pai que o renegava, começou a se aprumar na vida. Foi aos poucos, claro.
Foi muito difícil. Foi um longo trajeto até pôr os pés na estrada e ganhar vôo
próprio, rumo limpo, a bendita estrada de tijolos amarelos, como um sonho de
realizações pretendidas.
Mas, afinal, se tudo fosse fácil, seríamos fáceis.
São as coisas difíceis que produziam heróis, vitoriosos? As grandes batalhas
produziam grandes pessoas. Cada existência tem seu preço. Algumas pagam a
difícil cota de sobreviver com dignidade e lisura. Outros se dependuram em
terceiros, em parentes, em amigos, em sortilégios, fugas, mentiras, igrejas,
vaidades ou proselitismos disformes do real.
Tendo pego a mochila que lhe deram de presente por gratidão de companhia,
uns trocados para as passagens e um lanche gordo e suculento numa sacola
encardida de juta, o Irmão Saulo (fora autorizado a manter o nome de fé), mal
71
entrou num ônibus intermunicipal sentido da periferia de São :Paulo, lado
contrário à saída da Anchieta, lados do acesso à serra do Mar, no ônibus
sacolejante foi relembrando seu passado como se um retrato fiel de sua
galhardia, sem perder a ternura jamais, sem perder as raízes, os símbolos de
origem, o quem, certamente, o levaram a avaliar melhor a vida, e tomar as
atitudes que tomara de corpo aberto.
Ainda, quando rico, sonhara em voltar para Itararé, apresentar-se ao pai de
nome Gaudêncio Marin. Mas agora, pobretão por força da opção, o que o pai
acharia dele? Um louco, com certeza. Ele tinha sido um sonhador mesmo, a
vida inteira um plantador de sonhos.
Foi quando, rapidamente e a grosso modo, sem querer até, viu uma placa, lado
de uma estradela de terra branca, sentido de um matagal em aclive, que dizia:
Precisa-se de caseiro. E havia uma seta, indicando o lugar de subida, sentido
do local de procura e necessidade, mais um número de portão e também um
telefone para contato. Era um aviso? Tocou-se.
Acreditou que era um sinal dos céus.
Deu um toque ostensivamente abrupto na campainha, de tal forma repentina
que o motorista que mal o pegara três pontos atrás murmurou um palavrão
cabeludo, o ônibus truculento e cheirando à merda velha refugou um
esparramo de breque, e ali ele jogou-se fora do veículo, ainda ouvindo um
precário sermão do motorista nordestino e um olhar vesgo de um cobrador
bronco e metido a sebo. Havia um cheiro de polenta frita no ar das
imediações. Cedrinhos do brejo punham moedas amarelas num raso corguinho
perto da estradela e da pista asfáltica por onde viera.
Estava na estrada de terra de areia finíssima e branca. Longe um trem apitava
repetidamente. Andou-se por ali. E isso era melhor: sim, era melhor o estar
caminhando. Do que o próprio chegar ao fim da linha, o próprio conseguir, o
que quer que fosse.. Pediu que Deus o ajudasse. Intuiu que, sendo caseiro por
ali, pelas redondezas, perto de uma periferia pobre e abandonada, quem sabe
seria mais útil, falaria de Deus e trabalharia também. O trabalho era a sua
honra. Gostava mais de mostrar-se em Cristo do que só falar, falar, falar.
Andando com o número da Chácara anotado (o nome era Cantinho das
Rosas), foi lembrando outras coisas.
72
De como Deus o vinha preparando. Como não reparara antes? Da vez que,
passando fome – quando chegara em São Paulo, a título de pedir dispensa do
exército por ser pé chato e também arrimo de família, filho único – foi
interpelado por uma senhora idosa que, mal sabendo seu nome, mal se
identificando, deu-lhe uma cópia da chave, dizendo: Você está passando fome,
pode ir comer lá em casa todo meio-dia. O quê Deus fazia acontecer, sempre,
em sua vida?
Nunca soube o nome da mulher. Quando melhorou de vida, e quis ir lhe levar
um presente, conversar inteiro com ela, sabê-la, foi que soube por terceiros
que tinha se mudado e, no novo endereço que dera de procurar, um vizinho
dissera que, ela mal mudara, teria morrido de um ataque de asma crônica. Aí
então disseram, o que mal sabiam da vizinha nova, o nome: Dona Maria.
De outra feita, morando numa pensão no Bixiga, indo jantar tarde da noite,
fora avisado (intuição?) que iria ser assaltado. Cuidou-se. Pois se livrara,
fazendo um novo percurso extraordinariamente maior. Tinha tanta história de
estranhos diminutos “milagres” para contar, que, trabalhando sempre,
estudando muito – nas férias, nos feriados, nos finais de ano – foi poupando
até fazer os cursos regulares em escola pública à noite, cursos complementares
e cursinhos em escola particular, depois de alguns anos e vários vestibulares
ruins conseguira a sorte de entrar na Universidade de São Paulo, a famosa
USP.
Depois, pagando cursos de especializações, extensões. mais outro curso caro
de pós-graduação na Universidade Mackenzie e um outro de Economia e
Administração na PUC. Depois – como o melhor aluno que a Universidade de
São Paulo já tivera - com um currículo especial, fora de série, sério, pontual,
orador da turma, acabara num escritório de engenharia, contratado para
estágio e com promessa de efetivar-se com carteira assinada e tudo. Pois ali
conhecera a secretária e filha do dono e diretor, uma solteirona pela qual se
apaixonara perdidamente, apesar dela ser seis anos mais velha do que ele.
Afinal era um homem e tinha suas carências afetivas e fisiológicas.
Pois casou-se com a moça meio encalhada mas idônea, amiga, prestativa e
séria. Ela ajudou-o Tinha poupado grande parte da herança materna falecida à
poucos anos, juntos guardaram mais grana, até que finalmente, com a
concessão estimada do velho patrão já entrando em idade e sem herdeiros,
compraram parte da firma, Paulo finalmente dera um final de vida digno à
mãe (o pai que o renegara era riquíssimo empresário dono de vários pontos
73
comerciais, latifúndios e imóveis na região de Itararé), a esposa com a partilha
da herança recebida do pai que morreu anos depois partiu para um doutorado
na USP eu era seu sonho, sua lenda pessoal, dera lhe filhos corretos e
perfeitos, todos varões, largando-o como sócio majoritário na empresa pois
confiava nele e queria fazer carreira acadêmica que tinha sido sempre seu
sonho e agora o realizaria com ajuda do marido de boa índole, um caipira
oriundo de Itararé, cidade que conhecia de viagens turísticas com amigos do
Diretório Acadêmico de quando fizera curso em escola particular.
Daí para a inteligência, o faro para negócios – dons geneticamente adquiridos
do pai? – foi um pulo. Seu sogro tinha antigos laços, desde os tempos que era
diretor da Universidade Mackenzie, desde que era ligado ao CREA, desde
que, como coronel, tornara-se um membro do CCC e caçara esquerdistas,
torturando, matando-os, valendo-se disso para galgar cargos, atingir posições,
valer-se de tráficos de influências.
Pois ao morrer deixou também um ranço, um mafioso legado de vínculo a
corruptos, radicais, reacionários, todos bem envolvidos no desvio de erários
públicos, valendo-se de um estado público na verdade privado, pregando,
como desculpa estúpida, um exagerado e bobo medo do comunismo, dos
ateus. Pois ele ali nesse antro se desenvolvera, crescera, ficara muito rico,
forte, poderoso e admirado nessa espécie “capitalista” (e selvagem, amoral)
de mar de lama, esquecera dons e instintos, se enturmara ao seu jeito pouco
alvissareiro, crescera, ligara-se ao Lions, ao Rotary, a outras associações,
ficara importante, colunável, fazendo montadas caridades promocionais e com
fins escusos, mas sempre inexplicavelmente sentindo um vazio dentro de si,
com o eterno questionar de seu ídolo, o cantor de MPB, Caetano Veloso, que
o levara a adquirir aquela frase inquisidora "Existir, À que será que se destina?
Pois ele vira o que vira – OS ANJOS, OS ANJOS! – e soubera identificar tudo
isso, de forma abrangente e maravilhosamente divinal.
Pois aceitara a missão que captou no íntimo e ali estava. Mal ouviu um
cachorro latir no mato, viu o número e a plaquinha indicativa, entre hibiscos
murchos: Chácara das Rosas, Número 333, Bairro das Virtudes. Viu um
campônio magro e velho carpindo perto de uma cerca verde. Bateu palmas. O
cachorro latiu alto. Umas árvores de acácias amarelas sopraram acenos ao
sabor de um alísio primaveril. Um sabiá de peito marrom comia grãos no
estrume largo de uma vaca que pastava pertinho. Um rio murmurava sua
sanfona lânguida nas imediações.
74
O velhote veio vindo e Irmão Saulo sentiu a presença de Deus ali. Sem
entender porque, lembrou-se alhures de um colega de seminário, o mais
afeminado de todos, cabelos louros, oxigenados, sorriso maroto, que parecia
temer-no. Ouviu comentários que o tal tipo de nome Walter Bello volta e meia
blasfemava entre pares absortos em trabalhos árduos, que Deus era Mãe.
Não entendeu o que o fato desprezível ligara com a paz que trazia em si.
Parecia uma revelação de que aquele louro era o pecado, o mal em pessoa.
-Deseja alguma coisa, senhor?, perguntou o tipo de cara amarrada.
Era o velhote. Saulo então foi desperto, assustou-se. Estava misturando
coisas. O bem e o mal duelando dentro de si? Cristo e o demônio lutando?
Mas não fora sempre assim? Quem fosse limpo, se limpasse mais. Quem,
fosse sujo, se sujasse mais ainda. Quem quisesse se salvar, olhasse para os
céus, buscasse a Deus.
E ele, o que era? Ainda um ponto de interrogação à beira de um abismo?
-O sr. está passando bem?
O velhote abriu a tramela do portão grande preso por pedaços de lonas de
pneus, gritou severo com um cachorro jaguara que ficara nervoso de repente,
pediu que o estranho sentasse num toco de tora de madeira feito improvisado
banco, mostrando doçura na voz, insistiu, ressabiado: -O sr. veio por causa do
anúncio?
Quando reparou - Saulo parecia fora de si (talvez um desvario de
questionamentos pessoais entre as cartas e o jogo de poder do bem vencendo o
mal no vulcão silente que era seu corpo, tabernáculo de Deus que não podia
ser profanado) - estava com a carta de apresentação do Monsenhor na mão
direita, já que a mochila estava pesando às costas e o saco de juta com capa de
chuva, frutas e um virado de ovo pendurara num galho de pessegueiro florido
que pendia rente pro seu lado
Foi um erro. Lembrou-se disso muitos anos depois, enquanto conferia o
apanhado do livro que o rascunho de mais de trinta cadernos redundara.
75
O caseiro era crente e não via com bons olhos os reclusos homens barbados do
convento a pouco mais de dez quilômetros, sentido serra do mar.
Quase não quis aceitar a continuação da conversa. Fechou-se. Parecia
transido. Era meio emburrado, fechado em si, introspectivo, pois sempre
vivera só e recluso a cuidas de terras dos outros.
O cachorro cheirou o visitante e o seu tempero de carne de capivara e banha
de porco no virado. Um bando de periquitos azuis e amarelos fez estrepolia
perto, a menos de cinco passos. As nuvens andaram lentas no céu como se
altas membranas de espuma do sol ardido. Alguém passou na estradinha ao
longe, pedalando uma bicicleta amarela assobiando uma toada mateira de
Tonico e Tinoco.
-Abandonei o Mosteiro, disse Saulo. Aquilo soou como se pela voz do alísio
que beliscou o espaço derredor.
Isso fazia sentido. Isso mexeu com a simpatia nova do velhote fechado de
nome Aarão.
-Vamos lá dentro, tomar uma água fresca da bica, conversar sobre o emprego,
os afazeres, disse o caseiro velho que estava aposentado e só morava ali de
favor, mas já não dava muito no couro da empreita completa pretendia pelo
dono do lugar, cujo terreno quase dava certinho um alqueire de terras
devolutas, parte legalizada de forma bem suspeita, parte com mata virgem
protegida pelo IBAMA, parte com criações, plantios, hortas e tudo mais.
Era o fechamento de um ciclo e um novo estado de serviços e serventia.
Saulo compreendeu que, nas horas vagas, dissimulando se fosse preciso, iria
levar alguma coisa para casebres próximos, fazer preces, ajudar a rebocarem
humildes e precários barracos, aceitar denúncias verídicas, fazer vistorias
como meio paramédico (aprendera depressa, tinha interesse), aprontar
denuncias e rastreá-las sendo averiguadas, grosso modo, de abandonos sociais,
chamar a imprensa, preciso fosse. E ali, naquela chácara, era um bom lugar
não apenas de observação, mas de pisar a terra, saber, ler, ajudar, construir,
crescer.
76
Olhou o velhote e sentiu que ele lhe poderia ser muito útil, pois conhecia bem
o local, parecia honesto em que pese meio arigó, no sentido bom da palavra.
Seria um amigo e tanto, mal sabia ele.
Sim, fariam um bom trabalho ali.
-Aceito o emprego, disse ao homem, estendendo-lhe as mãos firmes, resoluto.
-Não sei porque, disse o homem, mas, ao mesmo tempo em que gostei do sr.,
em que me simpatizei, fui com a sua fachada, vamos dizer assim - acho que
dará conta do trampo todo - ao mesmo tempo uma voz que não soa diz que eu
vou me arrepender de estar lhe confiando esse lugar. Que barbaridade,
exclamou, puxando uma toada rústica num assobio de taquara rachada que
soou algo desafinado.
Fazia sentido, compreendeu Saulo. Que apenas respondeu – já tinha sido
testado antes, a vida toda, aliás – e vencera os percursos:
-Se Deus é por nós, quem será contra nós?
Um trem apitou ao longe. Um tiro de espingarda de caça se ouviu alto e forte.
Uma chaminé ao pé do serrote a quilômetros punha rolos de fumo no céu da
tardinha. Umas cigarras começaram o matraquear e Saulo sentiu uma vontade
enorme de dormir, de sonhar, de fazer uma roçinha. Pensou na mãe já falecida
há mais de vinte e dois anos. Pensou no homem que seria seu pai e era o
segundo ou terceiro maioral da economia Itarareense e da região. Foi conhecer
seu quartinho perto de um paiol.
Compreendeu que iria adorar trabalhar ali.
-0-
77
TREZE
Sofreu pra cachorro, tentando aprender alguma coisa de útil, já algo velho que
era. Estava desacostumado de pegar feio no batente. Foi dura a fase entre o
que tivera no confinamento a engordar do Mosteiro, e aquele novo serviçio
braçal e pesado ali. Mas suportou. Negar-se era queimar ou pular etapas.
Os serviços todos ali eram muitos, cansativos e difíceis, quando não
emergenciais, não previstos até. Era barra pesada pra seu costume de.
estudioso, de escritório, de bon vivant. Infinitamente pior do que no convento,
e do que supunha. Plantar. Cuidas das cercas. Verificar animais, vigiar, arar,
aguar. Ficara ali anos, sem nunca ver o dono, só o velhote Aarão que ia até um
mercadinho próximo, a menos de dez quilômetros, onde ali recebia os
envelopes de pagamento, alguma instrução escrita, pilhas pro rádio, jornais
velhos, algumas sementes ou mudas e tudo mais que poderia servir.
Foi numa edição de um diário paulista que leu um texto do Jornalista Casoy
que tinha a ver com seu compreender a vida e as relações humanas, e que dizia
mais ou menos isso:
“A solidariedade não está vinculada ao fato de você precisar. A Solidariedade
com o próximo, que não se realiza ou sofre com as barreiras das grandes
cidades, onde as pessoas não se cumprimentam, não se tocam, evitam se
aproximar, especialmente é um sentimento que independe de religião. Acho
eu, quando você realiza um ato solidário, se aproxima de Deus e sente
recompensas. É como um bumerangue. Ocorre um retorno que nos energiza,
capacita, impele, tange e reforça no sentido de nos tornar mais presentes, mais
fraternos. Extra-religião, extra qualquer tipo de critério, provoca uma sensação
extremamente boa, quando você se comunica, se confraterniza, auxilia e é
ajudado por outra pessoa. Pode ser de qualquer crença, raça, convicção. Seres
Humanos são Seres Humanos em todos os locais, etnias ou pontos de vista.
Merece esse pensamento de aproximação, de Fraternidade, de altruísmo, de
ajuda. E isso faz bem para todos nós. O que faz mal é o ódio, a desconfiança.
É mortal para a saúde, o organismo, a mente. E, do mesmo modo que a
Fraternidade traz novas energias, bons fluídos, alto-astral como dizem os
jovens, a raiva, o ódio e a desconfiança só podem atrair, por questões até
psicológicas, resultados semelhantes.”
78
O Irmão Saulo fez um bom trabalho nas redondezas. Sem se dizer católico
praticamente (e o era, tinha sido algum dia?), ajudava todo mundo. O velho
Aarão dizia que ele podia ser crente, daria um, belo exemplar de “irmão” tinha
feitio para isso, confessou encantado, até tentou convertê-lo, pois ele não
bebia, não fumava, não dizia impropérios, lia muito a Bíblia (o crucifixo que
passara a usar, só se valia em lugar discreto, na intimidade).
O velhote ficou adorando-o, pois era quinze anos mais moço e bem sabia lidar
com as coisas, era bom de papo, sabia tratar bem a criação, e o que não sabia,
logo queria saber, aprender, tal como afiar faca, pegar peixe, fazer cabo
artesanal de martelo ou enxada, afiar serrote, capar porco, tirar leite, fazer
lavoura de feijão, época de colher o milho, saber ler ventos, luas – identificava
chuva do mar, geada, neblina, temporal. Empirismo? O velhote era um sábio
ao seu jeito.
O homem do campo era um sábio?
Com seu empirismo, tinha muito o que passar. E ele sabia aprender com a
vida, as vicissitudes, as pessoas. Sempre soubera. Sabia ler angustia demorada
nos olhos turvos da mãe pregada dia e noite no tanque ou no ferro de passar
roupa cheio de brasas. Sabia ler grandeza nos gestos da primeira mulher com
quem se casara por amor. Apenas ficara vendido quando tornara-se em vicio e
tivera, provocado na sua virilidade latente, uma amante – erro de avaliação e
percurso – que o laçara, com ameaças de fazer arruaças, denúncias, cair na
má boca do povo ou virar refém de manchetes de jornais, pelos negócios
escusos que o escritório herdado lhe deixara de mau lastro, de empresariado
fundado em mau-caratismos e outros jeitos nefastos, inidôneos. Agora ele
sabia avaliar bem, avaliar melhor, avaliar tudo. Aquele velho era uma mão na
roda. Ombro amigo, confidente.
Não tinha obrigações, vivia ali de favor, como se um encostado, mas servia-o
e muito bem. Era pau pra toda obra, como diziam em Itararé. Precisavam um
do outro. Só implicava quando o velho falava de sua religião como absoluta.
Então ele falava de um Cristianismo puro, sem placa de igreja. O companheiro
não compreendia cem por cento, mas ainda assim admirava-o, respeitava-o, e
assim viam bem. Paulo tinha lido sobre Islamismo, judaísmo, janismo e
marxismo no Mosteiro.
O velhote gostava ainda mais, quando ele recebia a pouca grana do salário e
sem medir tempo de reter o parco valor, doava quase tudo, além de levar
79
laranja, couve, remédios, roupas e palavras de amparo para os coitados das
imediações. Com isso, com o passar do tempo, o local logo ficou concorrido,
manjado, famoso, como se um pronto socorro para tudo.
O velho crente até pensou em botar uma baiúca ali, para vender quitutes e
guloseimas caseiras, mas depois temeu sofrer reprimenda do patrão que não
sabia de nada pois em vinte anos apenas dera as caras por ali umas poucas
vezes. Parecia que era ligado ao ramo de cimento, da empresa Votorantin, mas
que vivia mais no Texas, Estados Unidos, do que no Brasil. Devia ser filho de
gente fina, importante. Gente cuidando de ficar mais rica do que já era, e os
pobres mais pobres do que tinham sido.
Pois o Seu Saulo ganhou destaque, alguns barracos foram sendo construído ali
por perto, arredondando de gente carente nas imediações, gente simples foi
recorrendo à ele – quando precisava, acionava o Mosteiro (chegou a passar
alguns domingos por lá, levando doce de abóbora que aprendera a fazer com o
velho bom de forno e fogão), quando vinham remédios, problemas jurídicos
ganhavam aparato de um Bispo mais aberto, enfim, tudo se resolvia na santa
paz.
Notou, ocasionalmente e de passagem – esse fato viera-lhe à memória altas
horas da noite, como se um registro de fluxo de inconsciência – que parecera
ter visto de novo um companheiro de Mosteiro, um capuchinho meio
afeminado e olhar suspeito (Walter Belo era o nome dele?), cabelos
oxigenados, que lhe vivia sondando entre irmãos, e que, talvez passara ali em
seu novo habitat para sondar situações novas, bisbilhotar, quem sabe espiar
sabe-se lá para que fito ou mesmo propósito escuso. Tudo era possível.
Saulo passou a morar num paiol que pintou de verde, depois de limpá-lo,
arejá-lo e fazer uma varanda que rodeava o lugar de sombras por causa das
samambaias que dependurou por perto. Adorava flores e pássaros. . Dali
despachava diariamente com dezenas de pessoas que faziam fila para uma
consulta rápida. Não benzia, não orava, nem rezava ou falava de religião – não
era isso exatamente o que queria – nem deixava em hipótese alguma que o
tomassem por beato ou santo. Era um com um, dizia, humilde. Tocava as
pessoas com feridas, doentes, picadas de bichos, com amarelão, varíola,
AIDS, dava remédios caseiros, indicava raízes e ervas para chá. Era mais um
atendimento espiritual?
80
E para rodas de convívio e explanação, tinha uma palavra de fé, de
encorajamento, um ombro amigo, um consolo. Lia a Bíblia, pedia que as
pessoas buscassem à Deus, só adorassem Jesus Cristo, nem imagens,
símbolos, retratos, e nem se preocupassem com ele que era só de si mesmo
mas era inteiro e feliz sendo útil entre eles. Só se lembrassem dele nas preces.
Mas as pessoas iam e vinham, trazendo problemas, galinhas de doações, doces
cristalizados, alguns pares de roupa usada (ele vivia com uma única roupa
quase uniforme, uma calca jeans surrada, chinelo de dedo preto, malha
branca.) E isso lhe bastava. Tinha à Deus no coração e nas benfeitorias.
Do mesmo modo que era admirado, querido, é claro que despertou olho gordo,
inveja e maledicência. Tinha sido intimado por um delegado, a titulo de
indiciá-lo por falso beato, curandeirismo. Deu um telefonema demorado, o
delega pediu desculpas e deixou de pegar no pé dele.
Aarão, que não era bobo, ficou impressionado com Seu Saulo. Aquele homem
daria um pastor e tanto. Daria um missionário, um padre, um, professor, um
belo e magnífico servo de Deus. Mal compreendeu que Saulo o era. Era uma
ovelha escolhida a dedo. Dedo de Deus.
Tudo ali caminhava bem, até que o Saulo conseguiu ajuda de
companheirismo, empreita e serventia social. Um casal sem filhos adotou a
sua causa social. Como eram de família honesta, moravam bem ali nas
imediações, passou-lhes um pouco a causa social, a maneira gratuita e
transparente de ajudar. Um advogado veio pagar uma promessa e ficou
fazendo parte da turma para serventia e precisão. Seria muito útil em querelas
jurídicas. Uma viúva enfermeira apareceu também, toda solícita, oferecida.
Quando deu-se por ter uma equipe inteira, séria, objetiva e de variadas
religiões (católicos, crentes da Assembléia de Deus, um obeso e solícito
espírita de mesa branca – confidenciara que estava ali porque fora inteirado
que aquele Irmão dos Pobres era uma nova reencarnação do Apóstolo Paulo –
um casal de budista descendentes de chineses, um ateu comunista mas com
um coração de ouro, e um soropositivo que tinha sido rapaz de programa e
morava de favor no porão da casa de uma tia caseira dali perto. ) Afinal, tudo
fechou-se num movimento social único, plural, comunitário, ecumênico de
ajuda objetiva.
Acordando numa madrugada que um galo estrupício cantara – e ainda cantaria
mais duas vezes – foi que Saulo entendeu que ali já tinha feito a sua bendita
parte naquele lugar. Causa encerrada.
81
Queria voltar para as ruas de São Paulo. Tinha muita coisa a fazer. Tinha se
passado cinco anos que saíra de casa, fugido, estava ficando velho, queria
experimentar novamente a sensação de ver o que vira. Queria saber se ELES
estavam presentes ainda. Queria identificar-se entre eles, achara que tivera um
bom treino e fizera por merecer sabê-los. Sim, era isso, voltaria para as ruas.
Ninguém mais o reconheceria do jeito encardido e mais calvo que estava.
Estava maduro, pronto. Mudara. Pela face era puro outra vez, simples, limpo.
Pareceria mais com os pobres do que da primeira vez. Estava seguro disso.
Seria inteiramente um deles agora. Tinha a linguagem dos pobres nas mãos,
nos gestos, nos olhos, nas palavras. Ettão haveria de estudar, pesquisar e
compreender – também com a Bíblia que bem lera tantas vezes; com os
excelentes cursos (e uma nova visão filosófica, teológica conceitual-religiosa)
que aprendera no Mosteiro, saberia entregar-se mais, de corpo e alma, à causa
que abraçara como se punho e pulso do seu se sentir vivo. Achara a resposta?
Viver era lutar? Cristo era caridade? Amar ao próximo como se à si mesmo?
Estava bem encaminhado.
Um dia anoiteceu e não amanheceu.
E deixou, nomeadamente, em seu lugar, de papel registrado e tudo,. o jovem
aidético de nome Carlo Bolam. Designou-o, se isso fosse possível. Saberia que
aquela missão delegada manteria o pobre coitado vivo por muitos e muitos
anos. Sabia, não sentia como, que o mundo estaria por pouco. Logo - ele se
apresentaria presente e todo estruturado – a palavra dos Evangelhos teria que
ser ouvida em todo mundo, em todas as línguas, como era profecia. Para que
todos tivessem o livre arbítrio de aceitá-la, não importa em que forma de
religião ou placa de igreja, mas pelo menos sabiam essa opção crível,
maravilhosa.
Ele ali tornara-se comodamente inoperante e inútil.
Durante uma semana foi se despedindo secretamente das pessoas, das coisas,
do ambiente, dos animais. Foi se despedindo a prestação, escondido, silente,
até que, de repente, de uma hora pra outra, simplesmente sumiu de circulação.
Os sem terra, sem teto, sem salário, sem emprego, sem Deus, sem Amor, das
ruas de São Paulo, ganharam seu peso em ouro: o irmão Paulo de Tarso que
82
assumiu o nome de seu documento, já que não despertava mais atenção e
suspeita, achou isso.
Com nada de si, mal que um saco de estopa, alguns trocados, uns papéis
(cadernos e cadernos), mais um carrinho velho de supermercado (comprara
num lixão – vira tipos destes na televisão andando pelas ruas dos Estados
Unidos e mesmo em países da velha Europa, dito berço da civilização) e
resolvera de chegar ao seu povo, a arraia miúda, os borra-botas dessa maneira,
pois era inteiramente um deles. Voltara à luta. Estava de novo entre os
humildes sem terem onde cair mortos. Que bem-aventurado fosse. Que Deus
tomasse tento de sua grandeza. Era ele de novo, em estrada nova, em
proporção e grandeza. Queria ver à Deus na pessoa do mais próximo e
desesperado que houvesse.
Resolveu desembarcar desse jeito no centro velho de São Paulo, numa ruela
onde vários mendigos se amontoavam dormindo, e onde, pertinho, num canto
ermo regado de sombras, crianças de tudo usavam craks e policiais passavam
mais batendo e surrupiando do que prendendo, identificando, levando para
hospitais ou casas de repouso, talvez algum lugar que ajudasse a recuperar a
fauna da noite enferma de São Paulo.
Arrumou seu saco de estopa, sua caixa de papelão (cobria a cabeça do sereno),
seu cobertor, sua chaleira (aprendera com caminhoneiros a fazer café de um
jeito fácil, rápido e comum), e assim daria o resto de sua vida a servir, ser útil.
Foi quando viu de perto o que estivera até então se preparando (e como se
treinando) para VER.
Foi três dias depois que retornara que se deu isso
83
QUATORZE
Era uma madrugada extremamente fria de julho, não tinham jantado – já era
reconhecido, admirado e bem aceito no local cheirando à urina velha e esgoto
rente – quando chegou uma senhora trazendo - tirando de dentro de uma velha
brasília amarela já queimando óleo ruim - uns latões enormes de sopa quente e
gordurosa de macarrão cortadinho com feijão-jalo.
E ele viu.
Por ali, como se “guardas” vestidos de alguma roupa iluminada de prata, coisa
radioativa, os ANJOS davam segurança (a velha e o parceiro de óculos de
fundo de garrafa sabiam?) e supervisionavam a obra de Deus manifesta além
de orações, mas de assistencialismo imediato, direto e objetivo aos seres
largados nas sarjetas da vida, prestes a morrer de fome, na miséria absoluta.
Então Paulo levantou-se resoluto, sem medir risco, sem medo de ser feliz.
Não para comer um pouco e suprir sua fome de pão, mas levantou-se e
caminhou para um amigo que dormia o porre de horas antes. Queria
testemunhas. Queria fazê-lo documento de registro.
E mostrou. Feito louco, loquaz, estupefato mostrou:
-Veja aqui, Dito Baleia; veja ali; veja no alto do prédio da Polícia Federal,
veja ali perto da porta com corrente do metrô. Veja, parado no ar, perto da
Igreja de São Cristóvão, veja! veja!
O mendigo acordou, olhou para o nada ainda aturdido de susto e medo, recém
desperto, teimou o reparo apurado (e forçando o ímpeto de assomar-se) mas
não viu nada, sentiu o cheiro da comida – cheirava a azedo de vômito, baba,
remela e cachaça ruim vencida – e faminto largou o amigo ali, apressadamente
ganhando rumo da fila para a sopa, onde tomaria sua porção de ração de amor
numa enferrujada latinha velha de leite Ninho.
Então Paulo caminhou para AQUILO que certamente só ele via.
Chegou perto.
84
O “anjo” maravilhosamente brilhava uma “radiação fria”. Quando olhou nos
olhos daquele ver que não imaginava ter coragem para assimilar em todos os
sentidos (o tanto), sentiu uma dor – no cérebro, na retina, no coração, na alma,
no espírito (um choque) e caiu, DESMAIANDO (COMO SE SOFRENDO
UM DESMANCHE DE OSSOS, PELE, MÚSCULOS, VEIAS E NERVOS) –
Quedou em átomo, sons, palavras, sentidos vitais. Vazara o globo ocular?
Estava cego de ver a maior obra de Deus, muito melhor e imensamente acima
do ser humano.
-0-
(FIM DA PRIMEIRA PARTE)
85
CAPÍTULO SEGUNDO – SALMO (ARREBATAMENTO)
86
concha oval, quase um útero de
placa-mãe. E dentro de onde agora
eu estava – parecia uma placenta
lilás da natureza – eu “via” (não sei
se esse é o exato verbo) sons
dodecafônico não decodificados. E
sentia o toque presencial ( como se
o dedo do Intocável!) vindo em
formato
de
uma
espécie
desconhecida de som magistral,
arrebatador, e esse Som, pelo que,
aturdido, busquei compreender
quase insano de alguma maneira ou
por alguma arrebentação no todo
sensorial-sentidor
de
mim,
FALAVA-ME!.
Quereria
um
veredicto? Pedia assento para
inédita lavra? Livre arbítrio?
Nenhuma
das
alternativas
anteriores? Falava dentro de mim
naquele estágio-estado, como se eu
fosse metamorfoseado espécie de
mutante hospedeiro de algum
altíssimo Elo-lume genético-sideral
adquirido. E onde eu estava, eu não
me compunha completamente em
mim, mas dentro da partículaláctea-cosmonal de um outro novo
espaço-tempo-(existencial), talvez
tocando a nau de ícaros do
improvável, talvez silo de alguma
presença terreal para muito além do
que podia residir e assim
representar como um Ser-Ente. E
nesse presencial eu era tornado
finalmente um novo semeador, não
entendi bem do quê, de quem, para
quê, quem, quando e como. Tudo
era confuso, mas, sem paradoxo, ao
UM
“Creio na prática e na filosofia do que se
convencionou chamar de magia, e no que
devo chamar de invocação dos espíritos,
embora sem saber o que são, no poder de
criar ilusões mágicas, nas visões da
verdade nas profundezas da mente
quando os olhos estão fechados(...). E
creio que as fronteiras da nossa mente
mudam-se constantemente, que muitas
mentes podem fluir em outras, e criar ou
revelar uma mente única, uma única
energia(..). Creio que as memórias são
parte de uma grande memória, a memória
da própria natureza.”
(Ideas of Good and Evil – W.B. Yeats)
.........................................................
(Eu estava dentro de uma Bolha, e
essa “bolha” feito nebulosa binária
nutria-se-me sem aparentes dutos
ou drenos. E haviam dois sóis, e eu
tinha dois corpos, dois espíritos,
duas almas, duas mentes, dois
corações. Tudo era duplo etéreo em
mim. Eu saíra de um vazio infinital,
caminhara para dentro de uma
espécie de túnel de luz – zilhões de
olhos de todas as dimensões-chaves
acompanhavam minha queda para
aquele vôo abissal – e me quedara
ali naquela bolha em formato de
87
dentro do mais sublime ACIMA
DE MIM, de um deserto onde
purgaram-se todas as minhas
divindades – e não me cabia no
assento sacrificial do meu duplo ser
entre “Euses...” -Era geleia
cristalíssima num quartzo-neon de
um gomo do sagrado em meu
próprio deleite. Quem era eu ali?
Fragmento-pó de átomo de folha
corrida de Existir? Um não-lugar
me fora dado para a travessia do
descanso; a vacância entre o
passado e o estágio profano
seguinte? – Não sou: estou a
procura de. (Será que morrer era
como ser tirado de um peito da mãe
vida, abrir-se em choro, até ter um
outro seio à mão para continuar
linhagem nova em seio de degrau
seguinte?) Eu tinha pré-morrido e
estava naquele gomo vivencial.
(Todos estão perdidos no seu
século, o século está perdido no
tempo, e o tempo está perdido no
incompreensível?) - Eu não me
lembrava de nada que me ocorrera
ou tinha sido dado antes. Só pedia a
Deus para não sofrer muito, caísse
onde caísse, qualquer que fosse
minha sentença adquirida, meu grau
de polimento maturando inusitadas
lógicas até incompreensíveis ali. Eu
só sabia que era algo-coisa, porque
a própria Bolha era também uma
espécie de gaveta côncava de
manuscritos pertenciais que me
davam cunho neural. Talvez eu
fosse uma célula de pertencimento
ulterior, e eu, fosse quem fosse,
mesmo tempo magnificamente,
magistralmente confuso. Surpreso
mas estranhamente calmo (e
“aclareado” de alguma maneira)
dentro daquela imensa bolha-bolsa(nau?) - convenci-me feliz a
identificá-la assim – eu via-criava
espécies de totens neobarrocos de
luzes cujos sons eram senhaschaves (códigos legados). E eu “lia”
(isso foi o que senti naquele estar
extraordinário como se num
refluxo-eixo de ser sugado como se
fosse todo poro; cevado para um
funil) toda uma rampa invisível do
meu cérebro, o meu paraespirito (ou
metaespírito), a minha alma-nuvem
naquele estojo de pelica de meu
paradeiro talvez de alguma forma
supraestrelar. Por um momento
(ácido-nucleico) veio-me à mente
uma frase que lera de algum
cientista (cujo nome não me era
inteirado ali no mosaico de fulcro
do fluxo quase inconsciente com
meu conscienciar pinçando alhures
palavras-coisas) que uma bigorna,
um poema, um sopro de vento, uma
abóbora ou uma vaca eram formas
diferentes de uma mesma energia e
então submetidas às mesmas leis
cósmicas que regem o infinital
universo (e suas dobras de buracos
negros da espécie), mas possuíam
características comum: não existem,
não são matérias, e, reduzidas às
suas
essências
quânticas
primordiais não passavam de
energias
concentradas.
Eu
divagava? - Eu estava nos ares –
88
alguma fonte de áccua fidedigna,
energética, sideralmente águacomposta de espírito-Luz! Eu mal
me cabia em mim de contentamento
imedível, e no entanto eu era puro e
simplesmente um NADA. Eu
estava dentro do in loco do tudo
que era um outro “mundo ? Era o
trono do carpinteiro/marceneiro do
universo? Recebi a resposta
afirmativa com nãos e sins, e
positiva como se um punho me
socasse a interação da postura.
Então seria ELE – o Sem Nome –
que no pouco era o Verbo, que fezse Criador no caos do inexistente, e
que me produzia, como a bilhões,
um fruto em miserável & ente?
Então eu tinha visto permanente
para ser chamado O Escolhido. Era
um estado de Salmo Arrebatador?
Sim, ouvi sem ouvir, a inflexão, o
impulso possante do silêncio
indizível tocar respostas no gene
primordial da ilha do meu genomacentro de condenado a voltar a
Existir. Era um “enter” para eu
escolher estojo, mas eu me queria
de mim em mim, sempre
descansando naquele colo do maior
Pai
Abrahão,
silêncio
sem
documento. Tinha escolhido ser
oferta? Tinha estado com os
miseráveis, e, sim, lembrava-me,
queria voltar ao compromisso de
ser Ser Humano perante eles, até
ser definitivamente plugado para o
arrebatamento final nos ares dos
quatro cantos do mundo, como
estava escrito no livro das profecias
vivia ali (depois de cego? – morto?
- Como captei isso?) mal me
cabendo de contentamento perene e
extremamente
essencial,
dinamizado por estar daquela forma
inusitada e incrível “morto” para
outras dobras da Vida como um
todo. Eu estaria no paraíso? Aquilo
era o único céu de todas as crenças?
Aquele “lagar-lugar” então era o
verdadeiro
verbo
“religare”?
Pareceu-me estar ouvindo (o
silêncio espiral do meu dentro era
só espirito-alma) palavras num
misto de hebraico – tudo em braile
epidérmico-sensorial
meio
sânscrito, meio aramaico antigo,
meio
língua
estranha
nesse
liqüidificador-mistura; sim, tudo
isso
num invólucro sensorial,
tamanho, inexplicável. Senti como
se uma verruma de arco-de-pua
invisível mas de certa forma táctil,
abrindo alguma cavidade nevrálgica
de algum pomo de adão do meu
cérebro anterior. Houve um curtocircuito feito orgasmo mental
eletrizante que durou a eternidade
inteira de alguns micro-milésimos
de átomos de segundos, feito flash
de relâmpago contido na minha
limitação,
depois
senti
o
psicossomático
somatizar,
pontilhando de bisturis, gruas,
zíperes, ignições, irrigações e
correntes de gambiarras de energia
atomal com o vácuo de uma luzmatriz, sem rótulo-nome. Que curso
de não-círio aquilo me daria, ainda
ali um Sem-nome, a beber de
89
fracos
e
oprimidos,
os
abandonados, os descamisados, os
rejeitos sociais, e ser, com eles, um
excluído do livro dos homens
notáveis, mas, com certeza que
estaria registrado no Livro dos
Céus. Que lugar era aquele – ah a
maldita aventura da curiosidade (e
imaginação) humana! – em que eu
me restava hospitaleiro? Quem era
eu de presencial ali? (O Ser
Humano não podia suportar tanta
realidade?) Parte de uma grande
fala pluridimensional? Pois deleiteime. Não sabia se estava vestido de
vida, de pé, espírito, voando (eu me
sentia assim), para experimentar o
desfrute da vagação e deixei-me ir,
mesmo sem sair dali, sem sair-me
do Eu de mim. Que emissor e
receptor eram aqueles, num
entendimento
parapsíquico,
abrangente, sofisticado, baseado na
descoincidência vígil dos veículos
de manifestação de consciência?.
Eu ali deixava de me existir
sozinho, começando a participar de
uma grupalidade que poderia
chegar às gestações conscienciais?
Antes eu era indeciso, ali nem mais
tinha tanta certeza assim. Precisava
elaborar
essa
experiência,
transformar em palavra. E eis que
aturdido vi meu corpo entendido no
chão do retorno. Era uma calçada
suja, feia e úmida, perto de um breu
humanídeo, noturno total, perto da
Estação da Luz do metrô, fétido
centro velho de São Paulo, e uma
horda de mendigos se preocupava
de João. (“Agora vejo por espelhoenigma. Mas verei face a face”) -O
que se cumpria em mim era
referencial de aceitação, o chamado
libre arbítrio da engrenagem da
roda da vida, mas eu não queria sair
mais do potássio/oxigênio/ácido
laico/sais de minha sozinhês no
estofo daquele estágio peregrino e
sonhador que eu era. Queria
continuar caminhante e ser o Saulo
que ali estava da trilha da Estrada
de Todas as Decisões. Se era uma
avaliação oxigenal, eu aceitava o
crivo de. Se era um purgar-se, eu
faria o teste da estadia. Senti-me
num hospital feito UTI, mas tudo
ao meu presencial simplório e
imediatista
se
resumia
na
contemplação-pincel-scanner
de
uma bolha que era minha primeira
pele, na tessitura de uma capa de
resto. Pior: Eu era uma bolha antes
de ser um Ser número um com
vestimenta-pele qualquer? Minha
voz não se soava. Ainda não a
tinham escolhido para a minha
estética compleição finalizadora. Eu
era todo – espírito, corpo, alma,
mente – um espécie de almacatamarã: sintonia fina da Vida
Eterna? Tive medo de mim sendo
isso, o que quer que “isso” fosse.
Eu queria – como lera de um poema
espanhol – era mesmo subir numa
escada e tirar os cravos da cruz do
Mestre Rabi sofredor, para tirar do
seu rosto a sofrência, e deveria
(precisava – intimamente, devia
isso à mim mesmo) estar com os
90
comigo (ou do que me restava
menos do que posta humana ali) –
eu estava acima deles todos; 360
graus acima! – ou, pelo menos a
bolha invisível de onde eu acabara
de apear num desembarque
dolorosamente podre para o retorno
de
ser
novamente
o
Eu
miseravelmente simplório e finito
de volta.)
.........................................................
91
DOIS
“Que é o homem? – Pergunta a Esfinge à
Cruz. E a cruz responde à Esfinge,
perguntando-lhe: - Que é Deus?”
(Eliphas Levi)
Policiais azedos (pareciam alterados quimicamente – pela aura estavam
roxos, podres, como se com culpas tácitas somatizadas no halo) pediam aos
berros, feito loucos desesperados (com armas pesadas nas mãos nervosas) que
todos se afastassem, abrissem caminhos, fossem circulando, dessem no pira.
Pareciam ter medo daquele monte de inúteis pertencentes à ralé, à escória
daquilo que, como autoridades mal representavam. Faziam isso quase babando
histéricos, aos sopapos e aos sopetões em um ou outro pobre coitado que
encontrassem pelo caminho; um bando de simplórios sem eira nem beira, a
maioria que nem tinha direito onde cair morto.
Uma oxigenada repórter frila que, de faro fino cheirara mais do que a simples
e triste rua do crack por ali, por ser área de infrações de rotina estava pensando
em montar um documentário sobre os “pais de ruas” de menores infratores,
subitamente passou a filmar o amontado todo do ocasional entrevero, e,
parece-me que um reator inexplicável qualquer - preso por uma grua no
gerador da picape com canhão de luz informatizado - como que
circunstancialmente “varreu-me”, de certa forma com um certo chamativo do
Eu de mim à dura realidade corpórea e terrenal, atiçando meus pontos
positivos de vivacidade que o instintal acessa, que, finalmente, numa espécie
de soco-sopro (à seco) fui-me despojado inteiro e completamente para fora da
“bolha” (bolha?) e, de forma abrupta (susto, medo, sangue humano – Ai
podridão de ancestrais!) dei-me de novo comigo ali (cacos de espelho
quebrado no íntimo pela descida de novo ao “inferno” da crosta terrestre),
novamente redivivo, pobre e finito serzinho a mendigar novamente agora a
textura do oxigênio do mundo insano, fluxo de necessária consciência, algo
quebrado como arroz de terceira, rompido de uma estadia inexplicável (eu
estivera numa dobra dimensional de um outro mundo?), ganhando nódoas de
movimentos parcos, parecendo que, de certa forma levara, de alguma maneira
sem entendimento de palavra explicável que seja numa hermenêutica
coloquial, um tremendo choque (de dobra de algum “campo do espaço”), e, de
novo algo consciente ali, por impulso imediatista levei a adormecida mão
92
direita aos olhos dolorosos, procurando como que, a qualquer custo romper a
pupila que parecia ter uma remela vítrea, a íris não vindo-me como deveria –
senti-me desesperado, numa estranha distonia – quando finalmente percebi
(pelo toque algo abrupto do dedo indicativo) que eu tinha uma espécie rústica
de gaze com crosta a cobrir os olhos como se, de certa forma, vazados
internamente. Muito tempo depois é que soube que eram grossas feridas com
pruridos (e larvas de cogumelos de infeção), mais o meu precário cérebro
atiçado a disparar estilhaços de luzes em ritmos estranhamente hexagonais na
mente. Ficamos de alguma maneira “cegos” quando não compreendemos o
que vemos?
Estava na expectativa do que se me viria, entre burburinhos e murmuros de
medo, batidas de portas e coturnos, cochichos esquisitos, cuspes, alertas
sonoros que não captei inteiros, quando, finalmente então senti-me levantado
de repente por broncos braços duros de tipos mal-cheirosos que diziam
repetidamente palavras de ordem para terceiros ao derredor (Vamos
circulando! – Vamos circulando! – Vamos circulando!). Finalmente, grosso
modo, arrancaram-me violentamente do meu estar em mim - do caminho
humilde concorrido por mendigos e moradores de ruas curiosos - arrancandome como se um pacote ruim do chão frio, um rude estrupício inoportuno
cheirando a febre-terçã, e então fui conduzindo na marra e aos safanões para
algum lugar. Fui levado meio arrastado, aos trancos e barrancos.
Ouvi uma porta de aço ser rompida, destravada. Depois jogaram-me no que
deveria ser o chiqueirinho de um carro com grade e chão cheirando a sangue
seco – ouvi um mendigo de voz conhecida dizer para alguém anotar aplaca
daquela carro cinza da polícia - quando compreendi que eu voltara à dura
realidade de Existir. Estava eu de novo ao rol do baixio chão da existência
humana. Humana? Eu não estava passando bem. O coração disparava um
bólido dentro. As mãos tremulavam. A mente tinha disritmias. Eu respirava
com enorme dificuldades, o peito arfando chiava, a pressão subira a mil, mais
algum atiçado instinto de sobrevivência animal tocando-me de forma feroz,
voraz.
Tinha medo do escuro que me restava fendido, vexado e sem prumo, não me
sentia inteiramente em mim. Pois que finalmente aquele precário meio de
retenção fez-me voltar-me à mim, e me fazia mal, muito mal. Eu estava com
espasmos, tremendo, nervoso quase com diarréia. Uma grudenta coriza
atrapalhando a respiração, enquanto o carro policial cheirando a sangue e
urina velha rodava corcoveando com sua sirene feito vaca louca aloprada a
93
abrir caminhos tortos e inacabáveis, revirando-me mais ainda o estômago
azedo. Quase vomitei água ácida na borracha com cheiro ruim da viatura. Eu
estava mal, principalmente pelo choque do antes, do depois e do agora, nas
medidas da dicotomia do haver; ainda mais em se considerando o
arrebatamento, o resgate, que eu vivenciara de forma estranha, inusitada e
inexplicável. O “vácuo” (pós-mortis) de onde eu me restava depositado,
residente (e depois feito “hospedeiro” de algo, alguma coisa), sofrendo uma
inesquecível “avaliação” - que poderia ter sido treino para algum rito de
passagem - que eu não compreendera totalmente, talvez jamais viesse a
entender, no voltar provocara um refluxo de ambientação e eu, para usar um
termo técnico, não tinha entrada em nenhuma câmara de despressurização. Se
é que havia uma entre o antes da morte, a morte, depois da morte e a pior
parte: a “volta dos umbrais da morte” que eu acho que é onde eu estava.
Onde eu estivera? Por quê? Com quem? O que eu sofrera? Ali onde eu
estivera era um dos labirintos do jogo profano da morte? O que era morrer?
Acordei muitos dias depois num hospital
Infelizmente, a primeira pessoa que tive o desprazer de ver e vi – eu nunca
mais queria vê-la em minha vida! – era Dagmar Marlene. Só que
estranhamente bem mais velha com tez de um rabecão antigo, com a seca pele
facial com jeito de noz, parecendo uma empacada fera ferida, irreconhecível
flor murcha, com o rosto apresentando uma espécie de escamas de peixe (ou
traçados de casca seca de abacaxi), e que – pobre de mim – ao me ver
repentinamente pôr um pingo no i do respirar completo e inteiro, fez um
pandareco exagerado, gritou histérica feito uma aloprada macaca de auditório
(ela nunca tivera nota boa em bom comportamento na vida), chamando o
pessoal da equipe médica da UTI que em sala adjunta estaria em palestra com
uma montoeira de parentes meus, dizendo que eu saíra do Coma induzido para
desintoxicação e restava-me mais sadio com chances de total recuperação e
ampla sobrevivência. Notei Dagmar-Marlene algo humilde, não entendi como
captei isso.
(Sobrevivência?)
-0-
94
TRÊS
“Você merece, você merece/Vai ganhar
um fuscão no Juízo Final/Você merece!”
(MPB – Gonzaguinha)
________________________________
Num dia extremamente ruim, difícil, com baixa estima, Saulo pensou
realmente em se matar. Sim, acabaria com tudo.! Seria o fim do que era a
estrangeira tragédia de sua vida arrebentada nesse plano. Atirar-se-ia nas rodas
de um caminhão de feira e pronto, estaria tudo acabado!. Que Deus tivesse
compaixão. Chorou um pouco. Chorou escondido. Chorou por dentro como
uma pedra trincada internamente. Depois mediu bem a situação. Refugou o
ímpeto. Já se levantara da calçada para tomar a decisão, atentar contra sua
própria vida. Por um segundo de melancolia diferenciada pensou na finada
mãe para quem era tudo. Ele teria orgulho de vê-lo rico, posudo, famoso e
com posses, cursos superiores, depois ter largado tudo isso que conquistara de
forma difícil mas determinada e ter se- dado inteiro ao estranho ninho dos
pobres e miseráveis. Ponderou. Um átimo de juízo varreu-lhe a medula: não,
não faria esse mal à memória dela. Por algum motivo – e isso vinha-lhe à
torna em situações desgastantes, constrangedoras, além de uma resiliência
inerente - sentia que tinha uma outra parte de si vagando pelo mundo – NÃO
SABIA EXPLICAR DIREITO PRA SI MESMO - talvez um irmão, talvez um
espírito, talvez uma outra alma, numa outra dimensão. Estaria morto? Morrera
no parto difícil? Era só uma vaga lembrança perdida no inconsciente algo
falho? Nunca tivera coragem de inquirir a triste genitora a respeito dessa
mácula, dessa perda ou entrega, dessa geração de instinto maternal
provocando rupturas. Segredo maternal?
Depois reconsiderou os pensares que entendeu como se fossem sinais de
depressão, de demência. Se se matasse, a ignorância e a insensibilidade
venceriam. Mas se ficasse forte, sensível, fino e cortês, a Sensibilidade de sua
parte venceria. Sim, era isso! Lembrou-se de ter ouvido um poeta de Itararé
dizer num programa da Rádio FM local que os inteligentes do mundo
precisavam se mobilizar, pois os imbecis estavam no poder. Era isso. Teria
que sobreviver à si mesmo, e isso era o mais difícil. Contudo, faria o possível
para dar testemunho de sua vida. Compreendia que, quem tinha coragem,
95
podia dá-la aos outros, menos afortunados, assim como a chama de uma vela
por pequena que seja, ainda pode acender outras.
Depois de ter esse momento difícil de baixa estima, sentiu uma fisgada no
baixo ventre. Alguma doença, talvez. Outra vez? Sentou-se na calçada, seu lar
a céu aberto, já que sua casa era seu corpo como um todo. Quase desesperouse. Aquele problema vinha lhe incomodando há tempo. Uma hérnia? Problema
na próstata?. Ouvira o galo cantar mas ainda não negara-se à si mesmo. Era
um filho de Deus e ninguém teria que passar por ele, o que ele teria que
passar, pensou.
Depois garrou o caderno de rascunhos e despojos poéticos diários, e começou
a responder à um chamado do seu lado “Sentidor” (como dizia a sensitiva
escritora Clarice Lispector) e escreveu, escreveu, escreveu feito um
condenado à vida. Escreveu muito.
96
QUATRO
“De repente levanta-se o homem pela
manhã/Sente que é povo e começa a
caminhar/Observa que a primavera
voltou/E que os galhos começam a ficar
verdes..” .
(Admir Guilboa – Poeta de Israel)
_______________________________________________________________
Nos cadernos deixados por Saulo/Paulo, haviam alguns textos de natureza
incompreensíveis, além dos depoimentos claros ou até de forma explicita,
quando não realista ou sob ótica próxima do proselitismo literário, mais
alguns com lucidez extremada, fora do comum, quando aproveitamos, na
medida do possível, sua grande narrativa pessoal de diversos registros e
diferentes momentos e enfoque técnico-descritivo (ele mesmo escreveu que
era um relato limitado e no apuro imediato dos momentos, grosso modo), às
vezes fora si ou bem próximo disso, quando não à beira da morte (ou, “dentro
da morte”), num estágio onírico quando se julgou na presença dos céus,
tocando o altar próximo do sagrado, nas palavras do autor que vivenciou tudo
isso ao seu jeito, estilo e compreensão.
Ele era famoso pela boa memória, pelo Q.I. alto, pela facilidade de declamar
textos inteiros de Shakespeere, belos poemas de Bertold Brecht, crônicas
maravilhosas de Rubem Braga, árias de Wagner e até cantava seu repertório
predileto que era o do artista Caetano Veloso. Ele adorava Caetano Veloso,
que considerava a maior cabeça pensante do país em 500 anos.
Como logrei pesquisar a vida toda do personagem central, coube-me essa
tarefa para fins do que seria somente uma reportagem jornalística que depois
virou esse “romance”, os relatos (ouvi testemunhas, em São Paulo, na família,
na favela, nas ruas, no Exército da Salvação, nas Igrejas, no Mosteiro – até
cheguei a falar com quatro filhos da velhota Dagmar Marlene - e que
relataram-me o que sua mãe lhe contara do que o Dr. Paulo de Tarso lhe
confessara como desabafo, ou mesmo doente, passado, sob tratamento e
dependência química pesada, quando falava dormindo, em devaneios...
97
Ela tivera de início, dois filhos de pais diferentes, depois que largara o Dr.
Saulo, antes de voltar para ele, e tentou esconder as crianças, filhos de alguns
acidentes de percurso sexual, num Educandário São Vicente de Paula em
Itararé. Depois que ele a largara, após ser espancada na favela, resolvera ir
morar em Itararé e lá tivera outros dois, novamente com fecundadores
diferentes pois tinha parceiros sexuais às pencas, isso muito antes de ficar
velha, louca e morrer num Asilo da cidade, abandonada pelos próprios
rebentos que não viam a mãe com nos olhos, não a querendo por perto pois
tumultuava as relações deles, atrapalhava-os com a má fama e os destemperos
irracionais..
Impressionou-me também, os relatos de lavra poética, quando, amargurado,
com baixa estima ou resquícios de depressão despojava, e que aqui arrolo
antes de encerrar esse capítulo intermediário, até a narrativa final que
compõem a experiência toda, quando darei no próximo tomo denominado
(sugestão de rascunho do vivenciado) de Apocalipse.
Lendo os poemas, além do livro como um todo, o leitor poderá ter uma justa
idéia da cabeça, da personalidade, da cultura, da sensibilidade do Dr. Paulo de
Tarso Trigueiro, que ao morrer confiara os relatos à um membro do
Departamento de Letras da USP, e que por um canto qualquer largara os
papéis, até conhecer-me conterrâneo dele, e resolver fazer uma cópia e mandar
para a Prefeitura do Município de Itararé, terra de origem do mesmo, e que lá
os despojos ficaram largado num canto de uma biblioteca de um inacabado
Centro Cultural da Rua XV de Novembro.
Ao me saber professor de história e geografia, Itarareense, além de escritor,
sugeriu, talvez blefando, que eu poderia coordenar a publicação do que
achasse por bem em formatar, indicando-me o que tinha e o que enviara para
Itararé.
Os trabalhos todos, apesar de, de certa forma precariamente datados e não
necessariamente em ordem de acontecimentos seqüenciais, aqui são postos
nessa ordem, portanto, o tempo em si tornou-se desnecessário.
Deixo ao critério do leitor a crítica, a avaliação.
98
POEMA DO MOSTEIRO
O homem era larva de estranho magna gélido
Numa cratera de cometa viajador de órbita irregular
Pousando em fragmento feito meteoro na terra-mãe
Virou cavalo-marinho de profundezas náuticas
Quando, enorme lesma-cavalo-marinho
Deixou sua gosma-láctea no tapete lama da terra
Anfíbio se restou de rabo rendido
E habitou as ribeirinhas com medo de ser predado
Por enormes galináceos dinossauros
O ente-ser esse bicho quase símio-rex
Feito mutante na cadeia genética hereditária
Criou pêlos (as radiações vulcânicas)
Depois perdeu o rabo (a fome terrestre depois de milhões de anos de
chuvas)
E encavernou-se à subsistir, subterrâneo, rupestre, primata
Dúbio tumor da espécie erectus laica
Houve um acidente abismal vindo do buraco negro do espaço
Feito nebulosa sentença de quasar binário
E metamorfoseou o cérebro diferente do bicho homem
Com as fêmeas deles, ao fincarem-se em pé
(A sobrevivência açodando ritmo sequencial)
Expeliu o ser com o cérebro grande, atrofiado
Mas marcador de etapa seguinte na cadeia de mil elos naturais.
Para um novo céu e uma nova terra.
E o gênese fez-se verbo vivencial
E os frutos fizeram-se rasteiros
E cada macaco no seu galho, o homem
Ofereceu-se aos deuses vindo da labirintíca dobra espacial
E, numa cadeia derivativa de códigos legados
O homem-larva-cavalo-marinho-E.T.
Deu-se à haver descobrindo estupefato e táctil:
O fogo fátuo – a roda – o som – a lavoura arcaica
(Não necessariamente nessa ordem)
99
E dividiu-se em nômade trilha bering intercontinental
Mesmo vindo do pomo de barro do adão sósia que o precedeu
Quando um anjo caído traiu o Deus Criador
Incentivou o homem e sua sosinhês pra fora
E a sua costela de tripa utilizável pra dentro
Porque o anjo expulso sabia o que sabia dos prazeres da carne
Oferecida a fruta gostosa do pecado
(E perdida a sutra da divindade boi-de-piranha)
O ser atravessou o mar da tranqüilidade da cratera existencial
E deu no que deu: bicho-grilo, porra-louca
Baby babel (Ai do big bang!)
Depois Sodomigomorra
Inquisição, nazismo, nagazaki-hiroshima
Até o intergalático ser sideral pós-tudo
O homem-larva no nada quantum - do espaço guerra nas estrelas
Procurando a cratera láctea de sua dúvida existencial
Seu enorme jugo - ponto de interrogação
À beira do abismo de sua solidão presencial
Na nave-terra vagando no espaço
Túmulo de larvas.
-0O SÉTIMO SELO
Os segredos das pirâmides
São um só:
Vermes – pó!
(divindades terrestres – não tem nada a ver
com o existenciar-se)
-0-
100
SE
Se, isso, Se, aquilo
Tudo própolis
Se, isso, Se, aquilo
Tudo fermento
Se, isso, Se, aquilo
Tudo metamorfose
Uns se acreditam deuses
Outros se creditam reses
Outros pertencem-se
(Eu pelo menos sei ler cactus secretos
E círios reveladores no escuro do haver)
-0-
101
DEUS
Deus
Para poder merecer-me ser Ser
Tenho que amadurecer-Te
Em mim
Como um átomo conduzido à reflexão
Hospedeira, de ser inteiramente nulo, não-lugar
Deus
Para poder fazer-me Teu
(Como convém a um átomo do tomo)
Em mim
Tenho que te decifrar-me teu à exaustão
Parte de Ti, em Ti – Universo e Hangar
Deus
Para poder pertencer-me como Ser
Tenho que revelar-me Te
E assim
Como um nada dar-me à exatidão
De revelar-se-me paradoxo práxis.
-0-
102
POEMA DA CHÁCARA
A noite
É só um dos gumes
(cumes)
Do corte:
Viver é puro esporte
Sorte
Absorver-se com alguma
Coisa
Causa
Carma
(Totem)
Xote
Dote
Mote
A morte é só isso mesmo:
AVESSO
-0-
FLASH
Os relâmpagos conversam entre si
São sinos do Código Morse de Deus
E até trocam figurinhas carimbadas
Com o fogo fátuo de almas penadas
(Os relâmpagos são canhões com flashs de choque
De Deus querendo dar ao mundo um novo retoque
-0-
103
GOZO ETERNO
Zíper – purpurina
(A melhor morte
É a Poesilha)
-0-
CONCHA ACÚSTICA
O pior
Da enorme concha do mar
É quando você começa a escutar
Não pedidos de socorro
Mas seu próprio suór e sal
Choro e ranger de dentro
Sete Pecados Capitais
Visitador e Esqueleto
Poesia no plural
Do seu próprio naufrágio urro
-0-
104
Ancoradouro Mártir
O pior medo
É o reflexo
-Piér!
-0-
METÁFORA
posso precisar de ti, para um crime
posso precisar de ti para um creme
posso precisar de ti para um cromo
posso precisar de ti para um carma
posso precisar de ti
para o habite-se
a grife
e então aceitarei o jet-ski
para navegar o mal de lama com pedigree
de quem não se aceita sendo o que não é
pangaré
por próprio desvio de conduta
e acabar sendo o que realmente é
filho da puta
-0-
105
POEMA DAS RUAS
Se o paraquedas não abrir
Você pode sorrir
O derradeiro espanto audacioso vácuo-vôo
Entre a exacerbação
Contemplação
E o inesgotável filé do próximo finito chão
Se o paraquedas não abrir
Você pode existir
Àquele infinito segundo à segundo exato
E aceitar-se então
Interação
Entre o horizonte e o fortuito rápido chão
Se o paraquedas não abrir
Você pode partir
Com o seu próprio mistério e sagração
Entre a estupefação
(comiseração)
E ser só o vôo ali, na derradeira extinção
(Melhor é você não sair do chão)
-0-
106
POEMA DA CONTEMPLACÃO
(O medo
Da pronúncia)
-0-
107
CINCO
“O olho com que vejo Deus/É o mesmo com o
que Deus me vê...”
(Eck Hardt)
Esses são os primeiros poemas achados garatujados em calhamaços de papéis
nodosos, sendo que um outro montante encaixo no capítulo seguinte, para dar
testemunho da cabeça e sensibilidade de Paulo de Tarso Trigueiro, o Irmão
Saulo ou o Beato Saulo.
Pelo que pude verificar dos rascunhos garatujados pelo Irmão Saulo, ele tivera
crises de saúde, de consciência, de baixo-estima, até mesmo fora tentado a
largar tudo e voltar para casa, voltar à cruel sociedade de onde era originário
com toda sua variação de personalidade e mesmo sensibilidade atrofiada pelo
lucro, pelo poder, pelo status.
Entre os textos que eu achara do mesmo, havia um que era uma carta a filhos,
netos e amigos, e que, depois de bem decifrada (parecia um rascunho feito em
estado de dor ou quimicamente alterado), e que diz, depois de decodificada,
assim, menos no que traduzimos de compreensível:
Meus Queridos:
-O que para vocês pode parecer loucura e até permitir alguma vergonha
socialmente falando, para mim não é uma seqüela, nem tampouco o curso
de uma fuga. Antes, é uma necessária e inquestionável Busca. Bendito
seja o ser Humano que seja convidado a passar pelo ritual todo dela. Não
é, como podem pensar, um neoesoterismo tantã de fim de século, nem por
causa de frustração social da falência das ideologias marxistas, tampouco
sou membro desse banco de lucro que é a chamada Nova Era, para
enganar a pessoas com problemas de vivência e mesmo psicológicos.
-O que me fez sair da falsidade de casa, além, da busca sacrificial (que o
seja) de mim mesmo, é o desejo de experimentar a vida com os
abandonados pela sorte, com os fracos e oprimidos, como falou o Mestre
Jesus.
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-Não, nunca fui um religioso da carteirinha, nem, de carnê de dízimo. As
caridade que vi, nos meios que habitei, eram tolas, inócuas, promocionais,
supérfluas, além de terem o ranço de fariseus: fazendo propaganda do
que faziam. E, entendo, que o que uma mão faz, a outra não deve saber.
-Nasci pobre filho bastardo de pai rico que ignorou minha própria
existência, lutei muito, trabalhei feito um espeloteado, passei fome, vi
minha mãe morrer com o pouco que eu lhe pudera dar, no entanto, vim
para Sampa e aqui carreguei meu fardo, combati o meu combate, fiquei
rico, casei bem, tive filhos maravilhosos, tinha status, dinheiro, poder,
força, a influência política, no entanto
-NUNCA FUI FELIZ!
-O que é ser feliz? Tudo e nada ao mesmo tempo. No entanto, sentindo
que o luxo, e luxúria, o poder e o mando, o dinheiro e a grife não me
davam personalidade de espirito, resolvi cair na ruas. Não foi um gesto
impensado. Antes, fui um “gesto” revelado. Quando Deus toca o seu
ungido, só resta dizer sim ou morrer pela ignorância dos credos.
-Sim eu estou bem. Na rua, estou em casa. Sinto-me dentro do meu
próprio coração. Fone, asseio, violência, medo? O que somos? Tiramos
tudo da natureza para comer, beber, vestir e habitar, e, no entanto, que
mal fazemos à nós mesmos? Que mal fazemos ao próximo? Que mal
fazemos aos pobres e desamparados? Vocês sabem que sempre adorei o
discurso do Pastor Martir Luther King, quando dizia que tinha um sonho
e morreu por esse sonho. Eu amava a música Imagine de John Lennon,
aquele que disse que há pessoas que são aleijadas por dentro. Gandhi foi
um outro que admirei, além de Betinho, Florestan Fernandes, Vladimir
Herzog que tive o prazer de conhecer na TV Cultura e tantos outros,
Mesmo sendo rico, lia obras importantes, de Sócrates e Paulo Freire, de
Kant a Fernando Henrique Cardoso, até que este deu no que deu: um
traidor de si mesmo, um seqüestrador de sonhos de uma nação de maioria
absoluta pobre.
-E assim vim apreendendo lições nesse difícil viagem de existir. Os nossos
problemas são os nossos mestres? Ouvi isso não sei onde. E acredito que
de certa forma era verdade. Traí a mãe de vocês e só fui sentir remorso
aqui no baixio chão da rua. Nem sei se fui um bom pai, se criei vocês
109
direitos. Hoje, tenho tempo para pensar, até questionando-me. Dei-lhes
poder, nobreza, dinheiro, mas, acredito, que poderia dar-lhes mais amor,
passar mais tempo gracioso com vocês, não em reuniões ou em clubes,
quando perdi-me de mim em diretórios de partidos liberais feito antro de
escorpiões, ou em viagens que não nos levavam a lugar nenhum, já que
nunca podermos fugir de nós mesmos, do lugar em que estamos. E depois,
compreendi, a única forma de me livrar da tentação era cair nela. E foi na
rua que compreendi que a alma nasce velha e com a nossa vivência,
também de conhecimentos que advém de problemas e conflitos, torna-se
jovem. E que só o corpo nasce jovem e depois envelhece. E que é essa a
tragédia da vida.
Não tenho agora, medo de ninguém na face da terra. Temerei apenas a
Deus. Não terei má vontade para com ninguém. Sou eu mesmo agora, um
Eu inteiro e consciente, pleno. Não aceitarei injustiças de ninguém, para
com os humildes. Vencerei a mentira pela verdade, e na minha resistência
à mentira aceitarei o jugo de qualquer sofrimento. E agora, como Luther
King, eu também tenho um sonho onde o lobo e o cordeiro pastarão
juntos, onde não haverá ricos e pobres, mas somente SERES HUMANOS.
-Adorei os netos que tive. Penso neles todo final de tarde. Foi num
desespero ocasional desses, que pensei em largar tudo, quase traindo-me
comigo mesmo, quase questionando a minha fé. Uma andorinha só não
faz verão, conclui então. Mas depois lembrei que poderia fazer uma
minúscula parte, e que assim seria meu quinhão íntimo de serenidade,
fora de uma vida vã, sedentária. Outros fizeram uma minúscula parte, e
foram testemunhos de verdadeiros filhos de Deus. Feitos à imagem e
semelhança.
-Não peço que tenham piedade de mim, nem me procurem jamais, por
favor. Não me criem esse constrangimento. Peço que tenham piedades de
vocês mesmo. Não adianta buscarmos o lucro fácil, a mão de obra barata,
a matéria prima fácil, se passamos os finais de semana enjaulados em
nossa própria casa, ou, depois de sairmos com a Secretária, viajamos para
Miami para estarmos em segurança com nossos familiares. Que país é
esse? Que capitalismo de araque é esse?
-O Brasil é a nona ou décima economia do mundo hoje, mas, pergunto,
para que? Para quem? Só para os ricos. Como ouvi, dia desses, numa
música que tocava incessante da kombi de um feirante, que “o de cima
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sobe/E o de baixo desce. Acho que é isso. Que raio de neoliberalismocâncer social é esse? Margareth Tatcher a bruxa do “capitalhordismo’
bem sabia, insensível, bronca e inumanamente amoral que o é. Que Deus
tenha piedade dela, quando o diabo ficar arisco para não perder o lugar
para ela nos quintos dos infernos.
-Eu não estou frustrado, tampouco um janota boçal arrependido.
Perdoem esse velho gagá, se ele achou um jeito de servir. Sou mais
contente e humano quando dôo, do que quando recebo. Isso faz sentido
para vocês?
-Não tenho que ouvir discursos pomposos, chatos, cheios de falsidade.
Não tenho que apertar a mão de um ladrão e chamá-lo de “colega”
quando são espertos e não experts, mesmo sabendo de superfaturamentos
de obras, de obras públicas inúteis, de quadrilhas de doutores, bacharéis,
liberais e "autoridades".
-Frustrei-me com a vida social.
-Só me entendo como gente aqui. Aqui, pelo menos somos todos iguais.
-Quando caí pela primeira vez na calçada, com fome, sem comer nada, fui
que senti o primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro desdém visto
debaixo, da ótica do coitado.
-Para os ricos, eu era mais um inútil, um pária.
-Para os pobres, a satisfação de me saberem iguais,.
-Para a maioria apressada da população – a maioria dos paulistas anda
sozinha em bandos – eu era um marginal, um zé-mané. Uma negação de
ser.
-Mas me senti melhor assim. Existo ou vegeto? Que Deus tenha
misericórdia dos que vegetam em cargos, em fachadas, camuflados, com
posses. Muitas autoridades deveriam estar presas, de ex-prefeitos, exgovernadores, ex-presidentes, para não dizer ex-ministros, secretários,
senadores, deputados, vereadores, juizes, delegados, desembargadores
até.
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-Muita gente da rua não merece estar na rua.
-Ouvi histórias e sofri muito. Traições, mágoas ódios encruados. É isso
que move essa gente? Ver um dia uma horda de miseráveis de um
holocausto rueiro atropelar autoridades, invadir palácios, fazer farra e
pilhar pessoas finas nas mansões, nos faróis, nos totens públicos?
-Não quero viver para ver esse dia.
-Sei que tenho muito pouco tempo de estadia aqui na terra. Preferi dar o
meu exemplo de dedicação, saindo de casa. A rua é um lar a céu aberto,
onde vemos melhor as estrelas perto do esgoto. Onde passamos fome para
sentir o valor do pão. Onde fazemos bicos para valorizar o trabalho, onde
somos reles para valorizar a grandeza de Deus. Onde os puros rastejam e
ainda têm que sofrer o crivo dos olhares duros e impiedosos dos que
passam rápidos e com nojo, em seus carros importados, em suas poses
falsas, em suas posses conquistadas com riquezas injustas e impunes,
como bem pregou São Lucas...
-Se a minha vida vale alguma coisa assim, que lhes sirva de exemplo.
-Não sei quem de vocês mais se parece comigo, nem o que mais odeia pelo
que faço agora. Mas algum de meus descendentes há de ser pintor, poeta,
artista.
-O tempo é o melhor juiz.
-Dia virá que todos os lares serão molestados pelos homens pobres das
ruas, que os campos não produzirão nada, que a violência generalizada
como a corrrupção endêmica hoje institucionalizada em todos os níveis –
atacará a brancos e mestiços, a pobres e ricos. Então será o fim.
-O fim do homem é um fim em si mesmo?
-Não me procurem agora. Não me procurem nunca, pelo amor de Deus!.
Não datei essa carta porque, algum dia, se me sobrar alguma coisa do
esmolar rotineiro, comprarei um selo.
-Esse selo lamberei com minha boca mole, murcha, com dentes ruins, com
algumas doenças que contraí na rua da amargura,
112
-Esse selo será meu testemunho, como uma metáfora.
-Comuniquem a amigos que agora sou eu mesmo, estou em mim. Digam
que os loucos herdarão a terra. Contem que agora estou em paz com
minha consciência. Que eu passei fome na barriga de minha mãe e
quando era criança, mas não odiei a humanidade por causa disso, nem me
fiz rato social para parecer que era o que não era, para pensar que
pensava.
-Do pó vim, ao pó voltarei,
-Que Deus tenha piedade de mim.
-Que Deus abra os olhos insensíveis de vocês.
-Salvem-se por suas próprias obras, e assim poderei dizer "até qualquer
dia desses..."
-Amo-os.
-Mas, acreditem, meus filhos, irmãos – minha verdadeira família – são os
que estão agora dormindo em bueiros, em favelas, em cantos. São os que
não comeram, os que estão doente, os que de certa forma estão mortos
por dentro. Os que estão sendo visados pela Morte.
-Paulo, agora Saulo, num lugar qualquer da vida, do mundo.
-Num lugar qualquer do coração de vocês.
-0-.
113
SEIS
“Neste momento terno e pensativo/Aqui
sentado a sós/Sinto que existem noutras
terras/Outros homens ternos e pensativos...”
(Walt Whitman – Poeta Americano)
Não se sabe quando, nem como, sequer por qual parente (sobrinho, neto,
nora?), mas o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro começou a ser procurado no Brasil
todo, novamente. A família tinha lá seus lapsos de ignorância e esquecimento,
depois parecia que a consciência pesava em algum membro novo do clã e tudo
recomeçava. Era uma sina ser caçado em sua fuga para dentro de si mesmo?.
Em horários nobres de programas de tevê, em programas populares de rádio,
até mesmo alguns investigadores de polícia foram contratados para fazerem
bico nesse sentido, mas o fato é que cartazes começaram a aparecer em postes
procurando o homem que era Dr. Paulo, na rua transformado no Beato Irmão
Saulo.
Quando os moradores de rua o viam em fotos de quando era posudo, jovial,
olhos brilhantes, e, quando o reconheciam naquele que houvera passado por
eles, e até mesmo fugira depois de ser filmado num fato de seu mistér, os
comentários eram generosos, edificantes, magnânimos, dignos de serem
registrados:
-Olha só a cara do Irmão Saulo. Como ele era muito diferente quando era
doutor!
-Isso é que é Ser Humano. Vejam que pose deixou para estar conosco?
-Um escolhido de Deus, isto é o que ele era. Deixar tanta riqueza para estar
nos ajudando, servindo, ser ombro amigo...
-E ainda dizem que não existe santo aqui na terra!
114
-E as igrejas querem ser o que são, inúteis. Esse Beato é que era verdadeiro e
feito à imagem e semelhança de Deus-Pai.?
-Por onde é que ele anda, afinal? A recompensa pela dica é boa.
-Deve de ter morrido, o coitado. Ter uma vida de rico, e depois se enlamear
conosco, não foi fácil. Deus tenha piedade da alma dele.
-Deve estar à direita de Deus.
-Benza-Deus.
-Foi o melhor Ser Humano que eu conheci.
-Certa feita deu-me o pouco que tinha e ficou feliz ainda sem nada, sem
comer, morrendo...
-E da vez que apanhou comigo, quando fui atacado por um fiscal semvergonha da Regional da Sé? – Participamos graciosamente juntos, de várias
passeatas cívicas na Avenida Paulista. Ele gostava de passeatas...Para ele
aquilo era alegria (ao contrário do medo que a ditadura impõe), era gente junta
buscando um mesmo ideal, todos por todos, unidos - o povo, a razão de ser do
Estado...
-Não era exatamente um de nós, mas era o melhor de todos nós!
-Deus o tenha! Deus o tenha! – disse um seboso mendigo que se dizia chamar
Dorival Abreu, e que costumava repetir tudo duas vezes, por um problema
talvez de insanidade.
-Fui operada espiritualmente por ele. Estava com tuberculose e ele fez com
que eu tossisse um dia inteiro, ficando roxa, até expelir tudo. Quase morri,
mas salvei-me de apodrecer na rua!
-Salvou minha vida uma vez também, lembra-se Fuinha? .
-Era um verdadeiro servo de Deus. Nunca mais haverá outro igual. O céu por
testemunho.
-Nunca mais haverá um cidadão de rua como ele, nunca mais!.
115
-Nunca houve um Ser Humano como ele. E nunca mais haverá.
-Dizem que estava escrevendo tudo sobre o que se passou em sua vida, sua
cabeça, desde os tempos de pobreza, de riqueza, até se escolher parte de nós.
Era meio metido a Poeta também.
-As ruas de Sampa nunca mais serão as mesmas depois dele.
-Pelo menos tivemos um bendito exemplo de vida.
-Temos que pedir à Deus por ele. Temos que guardar a memória dele.
-Deus? Ele é amigo do homem. Teve ter crédito e tanto lá em cima.
-Acha que ele já morreu, Camurça?
-Um homem como esse nunca morre na lembrança da gente, Zé Goiaba.
-Era um verdadeiro santo!
-Era um magno exemplo.
-Quem nos defenderá agora? Pobre de nós.
-Quem nos arrumará Sopa, Remédio, Agasalho e Internações, agora?
-Estamos órfãos. Estamos todos órfãos de alguma forma.
-Estamos abandonados. Benza-Deus.
-Precisamos nos mobilizar.
-Quem tal fazermos um sindicato de moradores de rua
-Você está sonhando, Azeitona?.
-Irmão Saulo era o maior plantador de sonhos.
-Sim, podemos nos mobilizar, temos força, somos muitos.
116
-Sim, podemos parar o trânsito, invadir palácios, pedir moradias. Poderíamos
nos juntar aos Se Terra, Sem Cortiço. O que você acha, Centopéia?
-Seremos tachados de subversivos, de comunistas, de agitadores, radicais. Não
sacou que somos o lixo do lixo do lixo, Gasolina?. Vê se se enxerga, cara!
Tome tento, se assunte, ora essa!
-Estamos sozinhos agora. Somos o Vietnã do Brasil, cada cidade uma espécie
de Saigon tropical
-Mas o Brasil não tem vulcão, não tem terremotos, não tem geleiras, não tem
furacões
-Nunca tivemos uma guerra; não aprendemos a dar valor. Parece que tudo cai
do céu.
-Temos um terço de água do mundo, somos o segundo lugar em terras
plantáveis
-Não temos essas coisas todas, mas tivemos o militarismo incompetente,
violento e corrupto no processo histórico. Temos os empresários corruptos,
uns ricos podres, umas autoridades sórdidas...
-Fomos colonizados por prisioneiros, depravados, pervertidos e ladrões do
velho mundo...O país hoje é um grande barraco continental...
-Valha-me Deus. Nem me fale!
-Deus estará conosco! Minha Nossa!
-Deus?
-0-
117
SETE
“Fechados em casa/Os homens escoram as
paredes/Com
os
corpos/O
mundo
sem
estrelas/Totalmente
negro/Não
permite
que
vejamos/A mão posta diante dos olhos”
(Fragmento - Adonias Filho)
Algumas anotações do Saulo/Paulo não foram possíveis conferir, talvez por
estar em estado onírico, de devaneio ou situação excepcional semelhante. Mas
procurei considerar alguma coisa, de alguma maneira crível e essencial a esse
projeto como um todo.
Mas o que me impressionou sobremaneira, foi ele narrar com riqueza de
detalhes, a existência de uma vida não apenas do submundo paulistano, mas
uma “existência social” no subterrâneo na cidade de São Paulo, onde parecia
haver uma cidade de párias, doentes, viciados, marreteiros e moto-boys
comandados por uma gangue de motoqueiros aliados de máfias e traficantes.
No texto algo incompreensível, borrado (marcas de catarro, restos de cascas
de frutas acridoces e sangue humano, inclusive), Saulo dizia de uma subcidade em Sampa. Como isso era possível? Dizia que tudo começava nos
subterrâneos da própria Avenida Paulista toda garbosa, mas haviam subramificações nos buracos do Metrô, no Anhangabaú, onde quase um milhão
de pessoas viviam escondidas, praticando pequenos crimes, infrações, furtos
rápidos, e depois se escondiam nesses buracos de ratos, de tatus. Eram os
rejeitos da escória da rua da amargura. Eram os inferiores aos moradores de
rua, porque subjugado por condições difíceis e, de certa forma, a serviço do
mal que ainda, de alguma forma, os dava estrutura.
O preço de viver ali, com uma sopa rala à noite e um café com pão e banha de
manhã, era servirem de pequenas “mulas” intermediárias dos narcotraficantes,
abastecendo toda a grande e populosa cidade. O lugar como um todo era uma
terra de ninguém, onde a dor jamais era ouvida e as lembranças duras de dias
inglórios se perdiam sepultadas nos curtumes das sombras tenebrosas.
Constou que a entrada para esse acesso vigiado, ficava perto da Estação
Paraíso do Metrô, e que funcionários de áreas de serviços terceirizados da
118
empresa estariam mancomunados com a gangue toda, desde o portal até outras
entradas e saídas furtivas, como passagens secretas estratégicas. Fingindo-se
de mais doente e em situação precária que estava, caído na Avenida 23 de
Maio, o corpo do Beato Saulo (para eles) foi socorrido ali, onde uma prostituta
que tinha sido professora universitária de medicina prestava serviços, valendose de altas doses de heroína.
No pouco tempo em que perambulou por esse lugar estranho, incrível,
rodando-o como um se um labiríntico rocambole de monturos entre canos
expostos (gás, esgoto, água, luz, fibra ótica) entre bases de prédios e raízes
expostos de árvores centenárias, no submundo de uma Sampa subterrânea,
Saulo viu o que de pior podia conceber de existir. Leprosos, aleijados, pessoas
sumidas de circulação – dadas como desaparecidas ou “justiçadas” – ali
estavam de uma forma ou de outra rendidas ou mesmo acomodadas (quando
não reféns de alguma maneira). Havia também um Banco de Órgãos. Bastava
uma pessoa do exterior, via máfia asiática ou européia, pedir o órgão, o tipo de
sangue (davam até característica), e eles tinham no depósito - ou então futuras
vitimas devidamente cadastradas pelas ramificações ligadas ao PAS
(Programa de Assistência à Saúde) que era uma cooperativa de corruptos
tachada nos bastidores de “programa de assalto à saúde” - onde eles
conseguiam até mesmo em hospitais públicos os pacientes, os doentes, os
repositores vivos que precisavam. Os jornais mesmo, sempre noticiavam
pessoas que apareciam "achadas” em lixões sem os olhos, sem algumas veias
ou alguns ossos, quando não sem rins, fígado ou coisa assim. Era o tráfico de
partes de corpos humano, num mercado paralelo escabroso.
Essas pessoas visadas, cadastradas ou mesmo já catalogadas (mesmo sem o
saberem) desapareciam do percurso rotineiro (lar, escola, rua, clube, viagem),
depois apareciam mal, aleijadas e “operadas” (clandestinamente) num
hospital, normalmente com cicatrizes de costuras ou suturas de cortes, quando
tinham sido extraído rins, ossos, havendo até casos de pessoas que apareceram
cegas, porque os globos oculares tinham sido tirado para exportação
clandestina via porto de Santos, com a benesse dos olhos subornados dos
chamados podres poderes, principalmente elementos da Policia Federal e da
Alfândega de Santos. Havia casos também de turistas estrangeiros que vinham
em busca de menores – era um ramo da prostituição infantil – havendo um
ramo que atendia a pederastas que vinham ao Brasil fazer programas com
menores de rua e mesmo guris e meninas bonitas tirados dos lares para esse
exercício. Depois de abalados pelo que sofriam, os que perdiam membros,
órgãos, ou sofriam estupros e toda sorte de sevícias, então eram alojadas ali no
119
submundo subterrâneo de São Paulo, quando a troco de alguma ração para
sobreviverem ainda prestaram serviços rápidos, quando não eram treinadas
para serem vigiadores de cativeiros, pequenos furtos rápidos, assumirem
infrações de adultos pois que eram imputáveis, fazerem serviços manuais
primários, e coisas assim.
Os miseráveis, mais os marginais de certa elite, no local, de vez em quando
saiam dali e iam lá em cima, na cidade, seqüestrar um riquinho, um
empresário, um doutor, uma autoridade metida a sebo, para fazer dinheiro
(que chamavam Caixa Preta) que os mantivessem mais ou menos (ou quase
seres) ali, sobrevivendo como subseres, quase ratos dos subterrâneos.
Um relatório específico dele, dizia:
“A Sampa do subsolo, undeground, subterrânea,
é algo parecida com a superior, da superfícies,
também tem sua desorganização disfarçada (pelo
Quinto Poder que era o crime organizado), também
às vezes caótica e muito ocupada, para não dizer
explosiva. Na verdade é mesmo uma terra de
ninguém, um paliteiro com pontos de fuga,
buracos, túneis, poços, esgotos, fios soltos, formado
oficialmente por perto de 100 mil metros quadrados,
segundo me disse um elemento viciado em
cola de sapateiro com lança-perfume. Encanamentos,
galerias de águas fluviais, cabos de alta tensão, de
TV, de telefone, além de perigosa rede de distribuição
de gás, tudo isso com gambiarras, com fios roubando
energia, com cabos e tubos desviando informações
em redes paralelas, clandestinas. Toda soma das linhas
num sentido reto, daria o equivalente a altura do Monte
Everest, em torno de 8,8 mil metros, e quase doze mil
Vezes o Aconcágua, de 7 mil metros de altura, e cerca
de 500 vezes a própria extensão do canal de Suez que
tem 163 quilômetros. A promiscuidade de redes antagônicas
podem ser desastrosas, além de crateras que cabem vários
carros populares dentro, além de áreas com corrosão e
solapamento do terreno interior. Há muros de contenções
de água erguidas com alvenaria, muitas com
infiltrações vulneráveis a produtos químicos. Há derra120
mamento combustível e outros produtos corrosivos
nas galerias de águas pluviais, com risco de algum ramo
de esgoto ser perfurado por causa disso. O tráfego pesado
também provoca tremores, com barreiras aqui e ali
vindo abaixo, túneis a dentro. A chamada “intercorrência”
(aquilo que se mete no meio em termo técnico de
engenheiro) pode vedar galerias, acabar com saídas
estratégicas, matar pessoas que, estaticamente,
oficialmente não existem, estão na clandestinidade,
a margem de dados oficiais. O próprio ar, roubado de áreas
de ventilação externa, é sofrível, pegajoso, num ambiente
escuro, abafado, aqui e ali com um reflexo de luz ou
com uma velha lâmpada única, roubando fraca energia,
amelando ainda mais o sombrio ambiente, principalmente
quando não há recebimento das vazões exteriores da
luz do sol. Quase tudo é coberto de entulho, de toda
espécie. Há areia e pedregulhos. Há lugares que, em se
apoiando numa mureta de risco, numa parede com cheiro
de óleo díesel e perigosamente lisa, sem querer dá-se com
fileiras de baratas gordas, quando não a galeria se afunila
e é preciso caminhar com jeito, agachado, quando
não desviado de gordos ratos que as vezes servem de pastos
por menos privilegiados, doentes, tipos viciados
procurando o que comer sem medir conseqüência.
No lugar, ainda além de dutos, os gases inflamáveis
como metano, hidrocarbonetos, monóxido de carbono
e cloro sujo de uso. De vez em quando um tampo de
bueiro explode, voa exterior acima, mas o pior é quando
ele, por força do asfalto ter cedido (efeito estufa que amolece
a composição), sai de uma boca de lobo, e desce buraco
abaixo, fazendo um estrago, provocando explosões,
matando, rasgando paredes, destruindo barracos,
tendas, pessoas miseráveis que morrem rasgadas,
e depois os corpos são tirados dali, largados em
qualquer lixão ou aterro sanitário da superfície.
Também há regiões que as escavações para aumentar
espaços subterrâneos, ferem lençóis freáticos,
e é aquela correria para salvar roupas, comidas,
sobras de munições, material de refino de drogas(...)
121
Quem tentava fugir (e isso era raro), ou dedurar, era simplesmente morto,
eliminado, e seus órgãos traficados. Também, ali num ermo subterrâneo
fétido, úmido e cheio de ratos de um canto na Avenida Paulista com a Estação
Paraíso do Metrô, havia um Banco de Sangue que supria – a custa de doadores
forçados (principalmente as instruídas vítimas do rol dos miseráveis) – os
bancos paulistas, brasileiros e mesmo latino-americanos, pertencentes à
chamada iniciativa privada. Enquanto nos hospitais públicos, faltava sangue,
ali havia o bastante para venda a dobro do preço aos coitados catados na rua e
que cediam a troco de banana. Quando alguém morria por seguidas doações –
eles estimulavam algumas quimicamente – eram simplesmente desossados e
os ossos vendidos como se de animais para fábricas de goma arábica, ou
exportados. O maior mercado de pele e ossos (e pedras de rins humanos),
além de cabelos e unhas, eram, os Estados Unidos. O que era bom para os
Estados Unidos eram bom para o Brasil?
Havia ainda os bem montados micro-laboratórios de refinos de cocaína,
pertencente a uma turma ligada a policiais de Campinas, tendo como
assessoria jurídica “competente” em Sampa, o filho de um Desembargador,
que, estranhamente, sempre era o mesmo a decidir em instância superior
contra o maior corrupto do Brasil. E mesmo assim, ou deixava vencer prazos,
prescrever situações, dando sempre pelo arquivamento dos processos, sem
saber que já tinha sido visto com o Turco Ladrão em Campos do Jordão, no
Exterior, e que estando o corrupto sendo investigado até pelo FBI, certamente,
cedo ou tarde, ele iria cair na armadilha, em que pese as suspeitas leis
brasileiras só protegerem os ricos e poderosos, e valessem apenas para quatro
pês, como se dizia: Pretos, Pobres, Prostitutas e Petistas.
Pois esses laboratórios itinerantes com alta tecnologia de ponta, era sustentado
pelo crime organizado de Sampa e do Rio de Janeiro, mais dinheiro lavado da
Colômbia, e as máfias de todo tipo, juntando ainda a grana alta de políticos
envolvidos com traficantes e ligados a partidos chamados liberais do nortenordeste brasileiro, mais alguns “terroristas” falsos de países que faziam
fronteira com o Brasil.
Uns boys motoqueiros disfarçadamente armados faziam a ciranda de vigia
rotineira no local, acompanhando entradas e saídas, dando retaguarda para os
negócios escusos, sendo os seguranças e vigias da ordem marginal
imperiosamente mantida ali. Era uma subcidade que respirava pelos buracos
122
de cimento armado, que tinha água furtada em subterrâneas torneiras internas
das entranhas da terra, onde tinham toda sorte de estrutura arrancada dos
porões dos prédios e ainda com ramificações estratégicas em garagens e
edifícios de serviços públicos atrelados...
A “entrada de serviços” (por onde era reposta a muamba toda) chamada Portal
A, era um bem disfarçado buraco de esgoto com capim-gordura perto na
Marginal Pinheiros, ao lado de um viaduto novo superfaturado, mais
parecendo enorme boca de lobo, feito escoadouro falso de águas sujas, mas
tinha sua vital importância pois era área próxima da rodovia marginal e com
fluxo de trânsito (saída de emergência e receptação, pouco policiada) para
aeroportos clandestinos e mesmo as rodovias Raposo Tavares, Castelo
Branco, Bandeirantes e Anhanguera.
Ali, entre monturos de pedras, lixos hospitalares e químicos, alguns tipos
disfarçados montavam guarda, passando por bóia-frias, sem terras ou mesmo
ciganos em sujas tendas improvisadas. A outra saída ficava num respiradouro
de ar do metrô, lados da Praça do Correio, num buraco disfarçado que dava
entrada por um estacionamento pouco usado, mas onde camelôs guardavam
carrinhos, e onde, vigiados por falsos guardas municipais, os seres do
subterrâneo de subcidade saiam para a vida, o sol, para o ar puro, longe
daquelas entranhas putrefatas.
Só que nessa subcidade os pobres viviam até melhor do que muitos no chão
paulistano. Ali tinham uma espécie de “merenda” diária, água (roubavam de
canos), luz (roubavam de prédios públicos), além da segurança de ladrão não
roubando ladrão, antes sendo solidário, multiplicando as munições, dividindo
os pontos de desovas e de passagem de maconha e crack, além de se ajudarem
em doenças, quando todos sabiam que o falecido apenas tinha ido primeiro e
que, cedo ou tarde, outro iria, até o fim de uma época, uma turma, pois logo
outra vinha,. Outra era recrutada, sendo que os chefões tinham ali seus testasde-ferro de confiança, pois disfarçavam-se em bacharéis, doutores, milicos,
empresários, isentos microempresários da lavagem do dinheiro sujo, bem nas
barbas dos totens do capitalismo, que eram os bancos de lucro fácil, pois o
teatrológo Bernard Shaw bem dizia que não havia muita diferença entre
assaltar um banco, e montar uma agência bancária, tudo era a mesma forma de
roubo.
Além de tudo, destilava-se bebida ali, mas como era de pouco monta, acabava
sendo usada como moeda de pagamento entre os próprios moradores, pouco
123
era vendida fora. Mais: falsificavam ali, desde tickets refeições, vales
transportes, passagens, carteiras de identidade até diplomas de cursos em
gerais, virgindades recuperadas e outras tantas transações ou operações
ilegais.
Alguns moradores-depositários eram severamente controlados, não podiam
entrar e nem sair, Outros sabiam muito para dar as caras fora,. Quando viam
que pelo menos tinham um canto para morar, porque a rua estava lotada de
lixo humano. Em resumo, todos eram fichados em desconfiança, só os
subchefes dos grupos ou os do alto escalão entravam e saiam das entranhas
fétidas de São Paulo, mas sempre em ocasiões especiais, de assaltos a bancos,
de mudarem cativeiros, de promoverem sequestros, de interferirem em
passeatas para tumultuar (normalmente essa era a ala nazista).
O resto podia roubar tranqüilamente. Era a corrupção que sustentava o
precário capitalismo brasileiro, de forma sórdida bem manifesta ali em Sampa.
Afinal, na América Pobre toda, haviam cinqüenta milhões de indigentes, dos
quais a maioria no Brasil, com seus mestiços da uma periferia sem dono, sem
estado, apenas o medo enraizado, o alheio tomando conta, o embuste, a
empulhação.
Terra brasilis.
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Pois ainda assim, foi nesse local incrível, que o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro
conseguiu de um louco que passava maconha e artesanato de couro falso para
uns ilegais imigrantes chilenos que naquele reduto eram discriminados e
considerados a escória de uma ‘latrina américa” de tantos Pinochêts e que
vendiam a erva e os trabalhos na Avenida Paulista, um desconhecido trecho de
Olavo Bilac que dizia:
“O dinheiro é uma força tremenda, onipotente, assombrosa,
Todos o amam, todos o procuram, e, entretanto, todos dizem mal dele.
O maior crime do Dinheiro é este:
124
Ele é o grande corruptos, o grande envenenador das almas, o grande
prostituidor das consciências.
É o seu crime formidável e terrível.
Portas, que se conservam fechadas resistindo ao duro embate de um aríete de
ferro, abrem-se ao seu tímido e quase indistinto bater de uma moedinha de
ouro...
O dinheiro alucina as almas e dá-lhes ambições que não obedecem a nenhum
freio.
O primeiro milhão possuído excita, acirra, assanha a gula do milionário.
É um declive fatal e terrível, um despenhadeiro em que o especulador não
pode parar.
Essas grandes fortunas, essas realezas do milhão, essa plutocracia brutal, em
que há o rei das estradas de ferro, o do petróleo, o do ouro, o dos diamantes, o
da navegação, e até do trigo – essas grandes fortunas, mantendo e
desenvolvendo cada vez mais a ambição, acabam por converter os milionários
em novos reis Midas, desejosos de poder transformar em ouro tudo quanto
suas mãos tocam”
Mas Dr. Paulo de Tarso Trigueiro tinha aprendido bem a lição da viagem de
existir. Compreendia ainda que a felicidade era como uma borboleta, quanto
mais a perseguia, mais ela fugia. Mas que se voltasse a sua atenção para outras
coisas, ela viria mansamente, serenamente, pousar em seu ombro, em seu
coração, em seu íntimo...
Também foi ali, tentando escapar sem deixar rastro, como uma lesma cega,
que compreendeu que só o fim da vida dava sentido à vida como um todo, e
que Deus estava mais próximo dele do que a sua própria jugular.
E ainda escreveu, num rasgo de papel de pão com nódoa de haxixe velho:
-“Não sei se o que transcrevo, passo, arrolo, registro, torno assento, por
metáforas, parábolas, despojos quase diuturnos, de alguma maneira
transtextual (ou mesmo pantextual) pode apontar alguma coisa, além de só
sugerir. Pareço-me às vezes estar num delírio místico, sempre perplexo,
125
sedento, talvez míope ou louco de algum modo, tentando com esse garatujar
obsessivo pôr ordem da desordem. Afinal, os seres humanos gastam a maior
parte do tempo e do dinheiro parecendo o que não é. Eu, onde estou, como
vegeto, quase escondendo-me de existir, colho lições dessa longa viagem que
é a travessia da Vida, nem fantástica nem rala. Mas, graças a Deus,
compreendi, que o momento de partir, não é o momento de se preparar para
partir, e assim eu pude ser servidor do homem, não explorador dele. Que o
bom Deus-Criador tenha piedade de mim. Afinal, a caridade é sofredora mas é
benigna, não é invejosa, não se trata com leviandade, não se ensoberbece, não
folga com a injustiça, mas folga com a verdade, pois a Caridade tudo sofre,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta, pois a caridade nunca falha, como disse o
Apóstolo Paulo aos Corintios(...)”
.
-0(FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO, SALMO)
126
CAPÍTULO TERCEIRO – APOCALIPSE (FINAL)
“...as pessoas marcadas são perigosas, pois
sabem que podem sobreviver”
(Josephine Hart – Perdas e Danos)
127
UM
“Se não houver frutos/Valeu a beleza das
flores/Se não houver flores/Valeu a sombra
das folhas/Se não houver folhas/Valeu a
intenção da semente”
(Henfil – l944/l988)
Qual a verdadeira geografia exata do espírito incontido do homem? O homemanimal-racional é um ser sozinho no espaço? Qual o estranho mapa do tesouro
da alma desse ente entrevado em si mesma? A alma é o depósito-crédito da
salvação? Qual o sentido de nos reconhecermos irremediavelmente perdidos e
ainda assim prosseguirmos como lesmas lerdas deixando a nódoa de nosso
vagar na crosta epidérmica da havência terrestre? Como estar na pele – dores,
sentimentos, misérias (fome, violência), - de um pobre coitado e miserável
abandonado pela sociedade inumana que o ignora presencialmente e o rejeita
socialmente falando também?
(Como é dura a dor de uma liquidação existencial!)
Quem protege o mundo dos desafortunados, os excluídos sociais do
acumulativo capitalismo selvagem e suas oligarquias de feudos que legam-nos
convulsões camufladas e holocaustos silentes de ódio legado? Qual é a
chance de nossa salvação em alma-cor-sombra-dor-espírito por causa dessa
ignorância causal da realidade sofrível que nos permitiu fundar os chamados
“povos de ruas”? Qual é a nódoa moral que mascara o sentimento de um
mundo todo em desvario, de raciocínio precário, eticamente obtuso? Qual é o
sinal que não podemos nunca deixar de enxergar, de ouvir, de sentir – como se
um aviso contra nossas trincheiras de lucros injustos, lucros impunes – feito o
brado silencioso de horrendas hordas de infelizes?
(Como é amargo o cálice da existência impacífica do homem garrote do
homem!)
O quê a sobrevivência extremamente difícil faz ao espírito dos injustiçados da
vida? Que triste passaporte de angústia futura, em nosso seio social (de
128
descendentes) carimba uma dor fatal e odiosa de estruturar, paulatinamente, a
cada dia, a tempestade social que se prenuncia a partir da ignorância pública
no imperativo curtume dessa vasta gente humilde no subsolo infinito do nada?
Que marca (para sempre) é a histórica insensibilidade política de cinco
séculos? História de fracassos (e perdedores) não são contadas com facilidades
nos becos, guetos e cortiços abertos das ruas. Os livros dos dias têm os
destinos dos abandonados por aventados filhos de Deus? Não, nem todos os
livros foram escritos, nem todos foram abertos, nem todos foram aceitos, nem
todos têm a vileza do homem escrita com sangue.
(Como é fácil medir a consciência pelo peso da insensibilidade lacrada com
limo de lucro-fóssil)
Domesticação e camuflagem de realidades-nódoas fazem, do acerto coletivo
da elite dominante (no sentido de fingir e ignorar históricos contrastes sociais)
uma eliminação da verdade lactente que bate à nossa porta diariamente, de
diversos modos e maneiras, e nós, totalmente insensíveis, como totens,
fechados em grades, alarmes, grifes e consumismos, pensando que varremos
para baixo dos tapetes das etiquetas, toda miséria, toda fome, toda
subvivência, todo ser social circunstancialmente inferiorizado, isso somado de
forma camuflada que fica por isso mesmo?. Somos o que pensamos que e
somos? Ou pensamos que pensamos? Ai de ti Planeta Vida!
Que vítimas de revés no cálice do devir somos nós, num tédio adquirido,
insanos que nos tornamos (e broncos) para não ver a realidade óbvia da
insensibilidade patriarcal que rege os podres poderes? Clamam por justiça, os
miseráveis, mas fazemo-nos de surdos. A dor devora o espírito dos
desgraçados e mancha a sociedade que os ignora de forma inumanamente
radical. Que confinamento é o da falta de sentido plural-comunitário de uma
vida em prol dos descamisados? Até quando essa mancha na história dos
povos com rótulos de “civilizados”? A dor e a fome geram lucro. A dor e a
fome têm estruturas ricas por trás.
Empresas mandam funcionários embora, têm mais lucro e suas ações sobem
no mercado das bolsas de valores. Que raio capitalismo é esse? É isso que
queremos, que resultou do chamado fim das ideologias sociais? Oferta de
injustiça e procura de posses? Terceirização de subviver? Mais valia de
exercícios efêmeros de poses? Exercício de maldição como legado permitido
recíproco? A esperança é a inteligência de um instinto de sobrevivência,
mesmo que amaldiçoado pelas altas classes sociais. Viver é tão pouco.
129
Vivemos em média sessenta anos, setenta, oitenta anos, se tanto. Somos bons?
Se o somos, para quem? Para quê?
Não confiamos nos estatutos da desgraça que o descaso social sem limites
preconiza, apontando-nos eliminação vários tipos de agressões de retorno,
seguranças supérfluas e caras (pagas com o desvio de salários justos), armas
poderosas e inúteis mas que só matam, não matam a fome, e perdas humanas
irreparáveis (de todas as classes sociais) para o futuro de nossos descendentes,
fundando um futuro mundo de conflitos, com sérias perspectivas de
desastrados retornos em tragédias e vinganças abarcadas geneticamente.
Meu coração foi apunhalado pela realidade cruel da vida dos povos de rua, a
maioria, a massa de manobra, os povos de rua, furacão humano, vulcão de
quase irmãos.
Os Sem Amor – frutos dos Sem Terra, Sem Salário, Sem Emprego, Sem
Pátria, Sem Teto, Sem Nada. Frutos do Modelo Globalitário, o totalitarismo
da globalização neoliberal. Marginalizamos os pobres, ignoramos os
desesperados. Nunca viajamos para dentro de um Brasil real? Que país é esse?
Que povo catolaico é esse?. Que soma é essa que divide, multiplicando
dezelos;? A população de rua é um ignorado holocausto de retirantes, de
desesperados, de fugitivos da fome rural, de lixo pós-moderno do neo
liberalismo cão, neo liberalismo câncer. Um holocausto de crianças alienadas,
de jovens sem saída, de velhos apodrecendo em filas, de migrantes, mestiços,
negros, quase pretos, pardos e outras sub-raças sub-viventes, desse planeta que
em nome de um amoral modernismo reformador internauta globaliza a
miséria absoluta, a corrupção endêmica institucionalizada em todos os níveis,
tornando a violência e a mentira irmãs, a prostituição infantil e política
baseando tudo.
A ignorância dessa realidade emergente que brutaliza o sentido mágico da
vida, na verdade dá-nos passaporte de insurreições silenciosas, concedendonos atestados de vilezas e disparidades existenciais, além de nos figurar como
desumanos primatas, débeis e irracionais. O fim do mundo? O fim da espécie?
O desmundo?
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Ao fazer essas anotações de desabafo doído, lembrei-me de Jesus Cristo
falando aos seus discípulos. Pois eu tinha lido uma oração-salmo quando bem
jovem ainda, em Itararé, no verso de uma folha-dia da famosa Folhinha do
130
Sagrado Coração de Jesus que ganhara de presente de natal da Dona Doquinha
da Santa Casa de Misericórdia, e a guardara numa carteira de couro que,
depois de puída, rota, foi largada num canto qualquer de tarecos com seus
pertences pessoais desprezados.
Pois, ao resolver ganhar a rua dos abandonados, a rota de fuga dos que não
tinham saída de emergência, lembrei-me daquela publicação graciosa e
edificante, e, foi com grande prazer espiritual que achei tal página arrancada
de um antigo dia passado de minha vida sedentária de lobo caminhante, e lá
estava a pequenina folha com a bendita mensagem universal, papel amassado,
amarelado, mas ainda sendo uma espécie de oração de honra da espécie.
Quase um tributo à vida. Consegui que um amigo de escritório de fotocópias
me aumentasse aquele “texto-talismã” abençoado pela expressão do único
filho de Deus.
Não havia preces outras, promessas de venerações pecaminosas, crendices
arcaicas, simpatias-logros, santos de pompas e vaidades montadas em trevas
inquisitórias, sequer mensagem dita neo-esotéria do embuste Nova Era - que
dava muito dinheiro para espertalhões e estelionatários de espúrios
curandeirismo com trânsito na própria mídia internacional – que substituíssem
uma linha sequer do Mestre Rabi, que pregou, e que dizia:
Bem-aventurado os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia
Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de
Deus.
131
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o
reino
dos céus.
Bem-aventurados
sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos
perseguirem e, mentindo, dizerem, calúnias e maldades contra vós.
Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois
assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós.
(Evangelho Segundo São Mateus/Capítulos de Um a Doze – da Bíblia de
Jerusalém – tradução trilingüe direta do hebraico para o inglês, espanhol
e português/Edição limitada/l.997/Publicação da ONG Cristo Não é
Religião/Cristo é Caridade, Sede para as América, Arizona/Novo
México/Estados Unidos)
132
DOIS
“Um sistema de desvinculo: boi sozinho
se lambe melhor. O próximo, o outro,
não é seu irmão, nem seu amante. O
outro é um competidor, um inimigo, um
obstáculo a ser vencido ou uma coisa a
ser usada. O sistema, que não dá de
comer, tampouco dá amor; condena
muitos à fome de pão e muitos mais à
fome de abraços..”
(Eduardo Galeano)
Paulo ou Saulo, as mesmas pessoas na dubiedade de um sendo cristão,
humano, ético, outro sendo um burguês de classe dominante a auferir lucros a
qualquer preço, a qualquer custo, somando suas riquezas impunes às riquezas
injustas como prego São Lucas, para o contexto de seu meio e suas seqüelas
de seus históricos contrates sociais. Por isso, Saulo, O Irmão dos Pobres, tinha
vergonha de registrar tudo o que vira na rua, um holocausto desconsiderado
pelos órgãos governamentais do mundo, mas, pior do que as guerras, o
nazismo, o fascismo, porque, desses ainda houve contestação, denúncias
explícitas, resposta de uma parte horrorizada da humanidade. Mas os cidadãos
de rua – Paris, Nova York, Moscou, Lisboa, Londres, Rio, Berlim, Buenos
Aires; países chamados Tigres Asiáticos (e seus neoescravos) e outras áreas
subdesenvolvidas de justiça social com piores condições ainda, davam o
volume do holocausto de abandono social sem precedentes da história da
civilização terrestre. até o extremo da situação contemporânea.
Saulo tinha seu carrinho de supermercado roubado de um estacionamento
enorme deles, e era tudo o que possuía. Aquele pertencimento era seu lar,
armário, muleta, carrinho de mão, estoque, quase parte do seu todo corpóreoespiritual. Um quase filho de arame e alumínio, rodinhas e comando direto e
imediato. Dentro desse baú de restos, as sofrências de seu butim das ruas, um
balde velho manchado de tinta seca, sacos de lixo de supermercado, roupas
133
velhas encardidas de cerotos e manchas de sangue, poluição, miséria e suor,
cobertores (puídos corta-febres) comido por ratos e baratas, lampião que mal
funcionava de velho e defeituoso, latas de mantimentos, papelões, trecos
inúteis, alguns poucos documentos que nunca davam identidade alguma, tocos
de vela, cascas de frutas para chá, uma esperiteira enferrujada, tocos de lápis e
uns cadernos, além do acervo básico: arroz, açúcar, sal, óleo, aspirinas
roubadas de um camelô de rua, uma foto velha de um Jesus de costas sob
enfoque de Salvador Dali, um punhal pequeno sem cabo, uma faca comum,
uma colher, um garfo de três dentes e um pente velho já desdentado. Era tudo
(só isso) que possuía de bem, de posse.
Quem era a maioria dos cidadãos de rua, naquele holocausto de “trecheiros”
(onde estavam as ONGs e seus sociólogos – onde estavam os marxistas de
dialética pura sem moedas podres e bandas sociais de pés na cozinha do
FMI?). A maioria de nordestinos e descendentes deles, pretos, pobres, crianças
largadas (com ou sem abusados “pais de ruas”), traficantes de baixa categoria,
devedores de pensões, bicheiros e traficantes, velhos atirados fora de casa por
filhos canalhas, fugitivos de prisões ou arapongas do crime organizado, expagadores de penas que foram recusado no retorno à casa (ou à sociedade),
cafetões, prostitutas cerzidas, pedintes rastejantes, aleijados (de toda sorte – há
pessoas que são aleijadas por dentro, disse John Lennon), fugitivos da lei com
paradeiros desconhecidos, fiscais corruptos querendo tirar vantagem de tudo,
cabos eleitorais prometendo vantagens e exigindo mais do que davam,
viciados sem escrúpulos que dormiam onde passasse a ressaca ou a depressão
pós-dependência. Mercadores de todo tipo, desde contrabandistas informais, a
traficantes de fundo de quintal, desde camelôs de quinquilharias inúteis a
varejadores de fabriquetas (de falsas grifes – cabritadas) de periferias ou
favelas passando de pobres, ex-favelados fugindo de matadores ou traficantes
que, por eles denunciaram o juraram de morte, desempregados de estúpidos
planos econômicos que, de alguma forma, covardes ou não, vítimas das
circunstancias, largaram a família não apenas por não terem competência para
reação, mas porque não havia luz no fim do túnel mesmo, a não ser que se
matassem para formar-se de “justiceiros” de ocasião. E as coisas ainda iria
piorar mais, diziam.
Eram sub-seres pedindo para morrer; uma bala perdida seria o reino dos céus;
um atropelamento seria a muleta de um hospital; um linchamento seria o
pagamento final; um filho de papai, milico ou deputado, a lhes dar fim com
álcool ou gasolina seria sair do fogo do inferno terrestre para o céu de uma
esperança limpa; uma doença ruim poria fim à desgraça, um pedaço de
134
comida deteriorada do lixão geral que era a cidade de São Paulo era o filé do
comer sem medir risco. Sim Sampa um verdadeiro esgoto a céu aberto. Ratos
do tamanho de coelhos, baratas enormes, sarna, malária, amarelão, cólera.
Esse era o símbolo vulgar e amoral de uma cidade que conduzia o testamento
de uma sub-raça, os miscigenados de três cores, branco, preto e vermelho. As
cores da bandeira da cidade de São Paulo. Uma cidade de milhões de
habitantes oficiais, sem estatísticas para os coitados. As máfias governando os
governos.
Uma pústula social de terno, gravata, farda e toga. A fina flor da espécie?
Igrejas-circos. Igrejas-bancos. Máfias chinesa, japonesa, paraguaia, russa,
italiana, norte-americana, coreana, vindo fazer estágio em São Paulo. Belas
catedrais cercadas de grades, alarmes e câmaras de segurança, enquanto ao pé
do desamparo total, pessoas expunham suas varizes, seus traumas, suas
doenças, seus desesperos, esperando um milagre, sim, um milagre, mesmo que
por uma fé com horário nobre, com agenda lotada, com catraca para regular o
funcionamento, com um religioso celebrando seu ritual decorado bonito de
pompa e vaidade, depois fechando o pão e o vinho em cofre com tantas
senhas, tirando o hábito, batendo a porta, pondo os cidadãos de rua para fora
dos templos que deveriam ser enfermarias, refeitórios, escolas abertas,
franquias puras de Deus, bolsões de recuperação, áreas de atendimento médico
ou de doação de sopa.
Mas o seu país continental de tantos Contrastes Sociais era – e não tinha sido
sempre? - uma ignótica. Para algumas potências (ou potentados do oriente)
uma republiqueta de canalhas. Rotas de fuga da escória social de qualquer
resto de sociedade decadente. Tinha sido assim desde as primeiras caravelas
de degredados que trouxera seu câncer europeu confinado nos grilhões
brancos das primeiras naus de despejos. A escória jogada no continente
invadido. De Gaulle dizia que o Brasil não era um país sério. A tachada
“descoberta” pelos portugueses que extinguiram milhões de índios e
destruíram sua cultura nativa, fundando declamadores de latins, bastardos,
mestiços, filhos sem pais ou pátria. Nascera aí o tristemente famoso “jeitinho
brasileiro”.
Depois a sórdida escravidão inumana, a inquisição amoral(a idade das trevas
dos cruzados no velho mundo atingira o novo mundo e seus cristãos novos),
depois uma libertação de escravos que “libertou” mas não indenizou, largando
os membros das senzalas no mato sem cachorro, fundando aí os morros e
favelas. Pior: uma "indenização” que indenizou os ricos escravocratas. Depois
135
uma Reforma Agrária em tempo mais que hábil, que João Goulart pretendia, e
o golpe militar canalha de Primeiro de Abril de l964 recusou (tachando de
coisa de Comunista), mas que ao seu cabedal de arbítrio e regime de exceção
privilegiara um sul maravilha e seu mercado agrário-exportador, em
detrimento dos coronelatos do nordeste preterido nesse modelo econômico,
fundando agro-rurais bolsões de miséria e pontos de partidas de êxodos rural
sem precedentes, migrações em massa, inchamento populacional nas grandes
metrópoles da região sudeste. Depois, enfim, a democracia de araque (não era
para ser uma democracia social?), pois nem todos eram iguais perante a lei,
uns eram mais iguais que outros. E era um capitalhordismo internacional
financiando o selvagem capitalismo tupiniquim com suas dívidas sociais
impagas por 500 anos.
E o que era São Paulo nesse contexto todo? A capital econômica da América
Pobre. Corria mais dinheiro num quarteirão da Avenida Paulista, do que em
todo o resto do país mais o resto da própria América latina toda. Mas haviam
as riquezas injustas, as riquezas impunes, as periferias Sociedades Anônimas,
a grife versus o crime, os contrates sociais. São Paulo era um tétrico modelo
que não deveria ser um exemplo de civilização, cidadania, sustentação social
pública. O Estado Público na verdade era privado. Agiotas do capital
estrangeiro mandavam no pais e suas privatizações roubos, suas reformas
modernas que não reformavam nada, mas davam vernizes novos a oligarquias
velhas.
São Paulo era uma cidade que, quando morria um filhinho de papai, rico, carro
importado, relógio de grife, branco, aluno da USP, uma perua apresentadora
demodê de programeco da TV fazia campanha (chorando histérica em frente
às câmaras) do tipo “Reage São Paulo”, promovendo delegados torturadores
de inocentes e fazendo coro com os cupinchas do arbítrio, políticos do tipo
“rouba mas diz que faz”. Era uma “rica a qualquer custo” que se pregava
contra imoralidades, mas tinha sido candidato pelo partido desse estilo de
engodo, de amoralidade de meio. Era só uma perua bregamente maquiada que
dizia ter bom senso mas era a pior ignorante políica, pois era falsamente
metida a moralista só para aparecer e ganhar dígitos no ibope?
Mas, quando morria todo final de semana, mais de cem pretos pardos,
mestiços, nas favelas ou periferias pobres da grande São Paulo (mais de dez
milhões de pessoas), ela não fazia nada. Um delegado torturou inocentes para
arranjar culpados e ser promovido. Um juiz, tempos depois deu sentença pela
libertação dos suspeitos de ocasião (suspeitos de sempre, pretos, pobres,
136
favelados) e chamou a sociedade de Sampa de hipócrita. Será que a tal
apresentadora de TV, uma perua velha, poderia alegar ignorância disso? Tinha
visão ampla para entender a malha turva da mídia, da qual era fantoche e ao
mesmo tempo reprodutora de injustiças?. Demagogia de uma típica ignorante
política atrelada à mídia, apoiadora de políticos corruptos e ladrões. Quem
sorri para o ladrão que o rouba, é ladrão de si mêsmo, ladrão de sua cidadania,
de sua ética.
São Paulo era uma cidade onde um professor universitário de Direito
(Constitucional, Filosofia do Direito, Direito Tributário, etc.) declarava em
meio acadêmico sua preferência por um candidato a prefeito tido como o
maior corrupto do Brasil desde 1550, e que, em país de origem de seus
antepassados, teria as duas mãos cortadas. E ainda diziam que a grande massa
de manobra dos corruptos no poder (sofrendo open-doping) da mídia eram os
nordestinos, gente pobre, arraia miúda.
São Paulo era um estado onde um promotor matava uma esposa grávida e não
perdia o cargo. Onde dez por cento dos crimes apenas eram apurados, com os
delegados (ser incompetente é uma forma de roubo?) continuavam existindo
com salário de marajás, quando deveria tal classe ser extinta e não iria mudar
muito. São Paulo era uma cidade onde um juiz trabalhista superfaturara os
gastos com um palácio de justiça, e continua no bem bom de sua lida. São
Paulo era uma cidade que criara um esquema para acabar com a prostituição
infantil no norte-nordeste, mas verificou que as maiores ramificações desse
tipo hediondo de crime eram na grande São Paulo mesmo. Um modelo
econômico que financiava o sul maravilha, agravara os problemas sociais
(mais a seca) do norte-nordeste.
Se aquela era a maior cidade do Brasil, e era um esgoto a céu aberto, imagine
o resto do país? O Brasil, afinal, como cantara Caetano Veloso (seu ídolo) era
mesmo um enorme Haiti? O Haiti era o Brasil e São Paulo era a cloaca do
terceiro mundo.
E os moradores de rua sentiam o reflexo disso, eram o reflexo disso.
Ninguém cai na rua porque quer. E depois que se cai na viela do anonimato
social, sobreviver não tinha preço, risco ou medida.
Eram sub-gente transformada em pobres hienas esquálidas que mal riam de
sua própria desgraça, comendo o pão que o diabo amassou, comendo merda e
137
não tendo nenhum prazer em amar, existir, no significado que a palavra
deveria expressar de conteúdo e filosofia.
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TRÊS
Dagmar Marlene foi conhecer Itararé, a cidade de seu amado, e se encantou
pela cidade como bela jóia incrustada no sul paulista, quase às Barrancas do
Paraná vizinho. Presumia que, entrando em idade, o querido Saulo (primeiro
homem que a suprira , compreendera, respeitara e sendo cavalheiro e gente
fina nunca a magoara) voltaria para a terra natal de origem. Como ele
demorou a compor o quadro de sua interioridade, custou a voltar, e ela, que
não era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, logo ganhou a noctívaga
fauna boêmia de Itararé (famosa por seus bares, serestas, artistas, forfés,
quermesses e gandaia generalizada), que ali se aprumou, ao mesmo tempo que
arrumou sarna pra se coçar, já que era uma tipa “caliente” da pá virada em
noitadas na peleja sexual que era sua fuga.
Um dia, sem querer, em casa, sarando de uma noitada de sábado no Biribas
Blues Bar, point de guaiú máximo da cidade, com MPB ao vivo, viu uma
reportagem rápida a respeito dos moradores de rua de Sampa, e reconheceu de
soslaio e de passagem, o acabado homem de sua vida, ainda pagando o preço
na caridade, se acabando na rua, fazendo milagres aqui e alia. Teve muita pena
dele. Comoveu-se. Como levou um susto, voltou-se para si mesma, mediu-se.
Teve-se pena, bem maleixa, com quatro filhos que criara, dois de extraviados
pais paulistanos rebeldes, e dois de pais Itarareenses que mal identificava
quem fosse realmente, tal a sua inescrepulosa variedade de parceiros, na
oxigenação de seixos íntimos. Sentindo-se desiludida, os filhos pinchados
fora, trabalhando ou estudando, deu-se de beber ainda mais. Dizia que não era
de trabalhar de carteira assinada, que não suportava ordens nem patrões, que
ninguém mandava nela, que tinha sido poderosa e voltaria a ser. Alias, brigara
com os pais, os irmãos, os amigos, os amantes, os vizinhos, seus
relacionamentos eram doentios, ela sempre fora nariz arrebitado problemática,
achando que o mundo que estava errado, mas nunca se aprumara de arrumar
serviço sério, com horário para cumprir, fazer seu pé de meia. Quando o calo
apertava, no entanto, apelara para uns e outros, quando era novamente
inutilizada. Não era racional para enxergar um palmo além do nariz, mas se
achava a santa, enquanto o mundo todo estava errado. Quando apanhava da
vida dava-se de desculpas falsas.
Ela era a errada. Errada? Os seus caminhos: a idade. Os dentes amarelados: os
vícios. A pele escamada de noitadas: a doença. Estava novamente sem
recursos, os filhos escolheram a longínqua fuga de estarem longe da mãe
139
desnaturada e ainda metida a ser o que não era. Acabou por passar mal, caiu
em absoluta e perigosa depressão, passando necessidade, quando foi acudida
por vizinhos que a desprezavam, achavam-na uma puta rameira (os pai
também profetizaram ou intuíram isso décadas atrás), e ficaram com medo de
uma tragédia envolvendo as imediações, além de com nojo do mal cheiro, e a
levaram para o Asilo São Vicente de Paula de Itararé, onde ficou largada, sem
ninguém de si para dar carinho de retorno ou prece de empenho. Ali foi
definhando aos poucos, apesar de ter algum remédio ocasional, companhia de
pessoas mais velhas e até certa comida regular.
Mas a infeliz mulher, apesar de não ter estudo, profissão, não ser nada e nem
ninguém, por incrível que possa parecer. não gostava de obrigações, de
cumprir regras, julgava-se independente e livre para pintar e bordar. Começou
a ficar louca, ver fantasmas no armário. Começou a falar sozinha. Remédios
aplicados na marra eram inúteis.
Uma noite de natal, de um ano qualquer, muitos anos depois de ir mirrando
paulatinamente, num dia frio e com chuva, vestiu-se de palhaço, situou-se um
pouco – tinha uma bendita mania de limpeza – e ajudou todo mundo se
arrumar para a festa que nem era promessa ou pertencia-lhe, parecendo até
meio esquisita, da esquizofrênica e quizilenta que realmente, no íntimo,
mesmo disfarçadamente o era. Pois agitou, desmontada da pose anterior, fez
festas como se louca varrida, mentiu-se que era feliz sendo ali a Rainha dos
Miseráveis, a Dama da Noite, a Missa Nada – não tinha sido sempre assim a
vida inteira? - alegrou com a balbúrdia toda os mais velhos somada a remédios
que continham álcool, cantou, bebeu, dançou, estrebuchou (boca murcha,
olhos fundos, dentes podres, mãos trêmulas) fez firulas, como se se dissesse
presente no circo da vida e do meio. Mas haviam as varizes da alma, do
espírito, da mente e do coração.
Quando acabou o improvisado forfé todo, motivo de chacota e regalo para
funcionários e visitantes surpresos que a sabiam casca-grossa, quando todos
foram em busca do sono ou dos lares como se prenuncio da morte, e da
realidade chocante, Dagmar Marlene não se deu por vencida. Não era disso,
onde já se viu? Não era feliz? Ora, ninguém pode perder o que nunca teve.
Catando uma antiga cinta com fivelas de couro de javali que guardara como
parte do butim de áureos tempos em que era feliz e não sabia, tempos de vacas
gordas em que o belo e esbelto corpo era sua arma de sedução e conquistas,
arramou o pobre souvenir no cano enferrujado do chuveiro do banheiro
140
coletivo do asilo, e, ainda pintada de palhaço, nariz de bola de plástico
vermelho e tudo, e finalmente enforcou-se.
141
QUATRO
“Quantos filhos esperam a chegada de seus
pais/Tantos deles não vieram – não chegarão
nunca/A calçada não é casa, não é lar, não é
nada/Não é nada mais que um caminho que se
passa tão estranho para quem fica/As palavras
no asfalto – nessa vida/São tão duras/O
carinho não consola, apenas alivia/A calçada
não é cama, não é berço, não é nada/Nada mais
nos faz humanos sem afeto/E o medo é um
abraço tão distante de quem fica/-Onde vai? –
Nós estamos de passagem/Onde vai – Onde a
rua nos abriga/Onde vai? –estamos sempre de
partida/Onde vai? –Onde a rua nos abriga
desse frio/(As pessoas que se enrolam nos
jornais/Não são mais notícias/Elas não
esperam de um papel de duas cores/Nada mais
que um pouco de calor/A calçada não é pai,
não é mãe/Não é nada mais que um abrigo, um
refúgio/Tão estranho pra quem passa....)
(Música “Jornais” – Thedy Corrêa
– Banda Nenhum de Nós, in, Jornal Zero Hora
20.02.2000)
Nas ruas as histórias tinham somente um final: sobreviver até onde posse
possível, e que Deus tivesse piedade de todos. O instinto falava mais alto, o
instinto de sobrevivência era o único eixo terminal que movia o sub-viver puro
e simples, sem qualquer mais valia que o respirar por respirar, o existir por
existir. Aliás, Viver era quase um crime. Alguns tinham medo desse subsistir.
Sabiam que, a qualquer momento, por algum motivo (ou motivo nenhum),
seriam atacados, atropelados, presos, inutilizados. Uma chacina, um erro, na
forçada doação de órgão.
A rua era a filial do inferno, descaminho, ponto de fuga para a baixa-estima e
a degeneração. Para alguns, era o inferno da terra. Poucos compreendiam que
142
estar vivos era graça de Deus. Deus? Para alguns, Deus, Sinal Fechado, Sopão
Comunitário, Esmola, Segurança, Sono, Porre, Morte – tudo era a mesma
coisa. Estavam mortos espiritualmente. E essa é a pior morte que existe.
Porque é uma “morte” que não abre canais de comunicação, não funda canais
de esperança, não acessa o toque de Deus. A morte espiritual era quase um
anulamento da essência de Ser.
E as histórias dos moradores de rua, eram escabrosas, tristes. Algumas quase
inacreditáveis. Só estando na rua para compreender os códigos-chaves dos
miseráveis e porque desceram tanto. A maioria pedia, implorava piedade. Um
tanto, mais pessimista-doente do que só abatido em todas as formas, ao
sentirem piedade explícita de alguém tornavam-se mais que restos de bichos,
mas monstros horrendos, partiam para a violência com as mãos, quando
arrancavam olhos,. Rasgavam com dentes, pisavam o peito e a genitália das
pessoas piedosas como se pisassem a alma do mundo. Eram furiosos até
extremos. Por isso as histórias das ruas eram dantescas, anormais.
Havia um homem idoso e com dentes podres, que chegara em casa e vira a
mulher na cama com o vizinho seu velho amigo de infância. Com medo do
que poderia virar, ou não ter forças para ousar tanto – uma espécie de medocoragem evitando o doloroso gume da fatalidade trágica – como um camaleão
saiu escondido e furtivo como entrou, sem avisar, ganhando, com a roupa do
corpo somente, a rua da amargura, seu ilhar-se de inútil fugitivo. Não matara
os desgraçados, dizia ele, pois já estava morto com o que vira, e com o que
sentira do que vira. Matara a paixão de sua vida no íntimo. Filhos largara, não
os queria sabendo da baixaria da mãe. E da ocasional impotência do pai para
lavar a honra. Honras? O abandono íntimo, a rua da amargura, era uma honra
que mentia pra si mesmo.
Era a fuga para o nada. Era o purgar-se, o vegetar-se, até que os dias seus
fossem consumidos. Era na rua que punha sua baixa-estima, sua depressão,
catando restos de lixões. Disputando espaço com ratos, baratas. Queria morrer.
Mas a morte só escolhe os despreparados, os vivíssimos. Ele praticamente
vegetava.
Ou um outro que, cansado de subviver, passando fome, sede, tendo sarna,
chato, convulsões, um dia caçou o cantinho garantido sob uma marquise do
Irmão Saulo e lhe pediu, com carinho mas com postura resoluta e coragem de
firmeza:
143
-O sr. poderia ajudar-me a me matar?. Sei que o sr. sabe como. Sei que o sr.
pode. O senhor me ajuda a morrer e, por certo, Deus me encaminhará com a
bondade do préstimo, da intermediação de sua benéfica ajuda.
-Havia um outro, que tinha um escritório em Curitiba, mas cuja mulher, em
tramóias de meio, traíra-o com o sócio da empresa, fazendo-o assinar
documentos vários, depois o fizera perder a firma, largara-o para juntar-se ao
parceiro do marido em negócios de imóveis. Pois ele caíra na rua, bebera,
peregrinara e Sampa era seu reduto fechado, com medo de fazer a maior
besteira da vida: tornar-se um assassino.
-Um outro, baiano, me contara que seu pai perdera terras para um político
baiano, um coronel sempre ligado ao poder, principalmente desde a funesta
ditadura, quando aumentara em mais de mil por cento os bens, adquirira vários
canais de Tevês. Quando o pai o acionara na justiça, matara o velho. O rapaz
então intercedera ao juiz, mas não adiantou nada. O juiz foi morto antes de dar
sentença contra o político baiano. Já pensando em atocaiar e acabar com a
vida desse reacionário elemento nefasto à sociedade brasileira, fora posto por
familiares, na marra e sedado, num ônibus e embarcado para Sampa, e então a
rua era seu exílio de uma dura realidade.
Eram todos classificados (às vezes até entre eles mesmos) como uns filhos da
puta da vida, disse uma louca que tinha estudado filosofia, se envolvera com
tráfico de drogas na USP, dedurara uns tipos, fora perseguida, policiais
envolvidos montaram contra ela um flagrante, e acabou perdendo emprego,
status, amigos, parentes, só escapando das grades por sorte. Pois rendera-se às
evidências: os imbecis estavam no poder. Sabia do que regiam os calouros de
Medicina na USP, todos despreparados para o trato com vida humana, como
eram quando assediavam calouros. Sabia o que os veteranos faziam
(julgavam-se se impunes com professores na retaguarda), e, porque nunca se
identificavam culpados, no corporativismo de meio, os Diretores faziam vistas
grossas, despistavam porque não podiam investigar inteiramente nada.
Haviam riscos. Se fossem mexer em águas turvas, teriam lama nos pés, na
carreira, na própria estruturação do curso e do meio. E bem sabia das coisas da
rua, quando dizia seus palavrões em várias línguas, prostituía-se com
mendigos aproveitáveis, querendo pegar uma doença grave e morrer podre,
com seus restos sendo comido por larvas, vermes, escorpiões, pois estes eram
melhores do que os seres com os quais convivera em corporativismo irracional
de meio acadêmico
144
De outra feita soube de três crianças que sobreviviam de pequenas infrações e
da catagem de `restos de lixões. Um dia viu os coitados, filhos de uma mãe
alcoólatra favelada que fora pego por engano por justiceiros, fazendo uma
sopa numa lata de tinta, onde algumas bolas eram fervidas sem sal mesmo.
Acharam aqueles pacotes congelados de coisas redondas e pensaram que eram
frios ou mesmo carne comestível. Quando Irmão Saulo viu, mal conteve um
grito. As crianças estavam para comer glóbulos oculares de seres humanos,
que tinham sido inadvertidamente jogados num lixão hospitalar porque
estavam com o prazo de aproveitamento para transplante vencido
Ficou sabendo de outras coisas. Vira acidentes, assaltos, tramóias, golpes,
gangues, racistas, assaltos falsos, crimes de colarinho branco, tudo.
Mas em qualquer ocasião, para as vítimas, os prejudicados, os bobos, os
usados, as massas de manobra, as buchas de canhão, sempre tinha uma palavra
de consolo, de fé, de esperança. Benzia, ao seu jeito, sem batina e sem
crucifixo. Para uns, era um abençoado. Para outros, um louco, Para outros, um
alcoólatra. Mas para a grande maioria de pessoa humilde era mesmo um
Santo. E ele só queria o que todos deveriam ser: Seres Humanos.
Bebia, sim. Para tornar as realidades mais aceitáveis. Comprava algumas
cervejas que tomava quente mesmo. Chegara a roubar – na rua a ética de
sobrevivência é irmã do instinto tribal que anima o ego atiçado. Fumara
também. Mas não maconha.
A dura realidade não era sobreviver, era o medo de estar vivo.
Ganhou amigos e inimigos. Com todos aconteciam isso.
Quando voltou à si na UTI, os filhos estavam emocionados mas
paradoxalmente bravos. Queriam o pai de volta. Netos, parentes, ficaram de
devolver o que dele receberam. Mas ele não queria nada, só sumir dali.
Dagmar Marlene, ainda antes de ir para Itararé, atirada que era, ao se envolver
com rapazes de aluguel – tinha grana alta para pagar por prazeres carnais aos
montes se contaminara. Não era soropositiva por pouco, por um milagre. Mas
engravidara de um traste. Ao saber – fuxicos, fofocas – do retorno do inferno,
do retorno da merda da sociedade, o homem que lhe dera um sobrenome, um
145
lar, uma herança. fora em busca de um apego do seu ex, tentando o paliativo
da reconciliação.
Mas o encontrara pior que ela, pelo menos no aspecto estético.
Pois ela, escondendo-se de ser o que realmente agora era, disfarçando-se e
dando uma de alma caridosa, sem a rejeição explicita e imediata de seu amado
– descobrira que o amava; que tinha sido o único e verdadeiro amor de sua
vida – o ajudara a fugir, bem na barba dos segurança reforçados que
subornara, dos parentes e dos caros médicos especialistas que o estavam
desintoxicando menos do que comia e bebia, e mais da pobreza que Saulo
queria como legado ou canga que fosse, mas como carimbo de passaporte para
salvar sua alma no reino dos céus.
Pois ali estavam, num barraco podre da Favela Real Parque, adjunto ao bairro
do Morumbi, entre o Palácio do Governo e o rio pinheiros, entre o palácio do
Estádio do Morumbi e uma área de riscos, o barraco do casal Saulo e Marlene.
Eles eram a ajuda dos cantes, dos pobres. Eram mal vistos pelos traficantes,
ladrões, justiceiros, pois atraiam gente. Sim, a fama de Saulo tinha descido
entre os desafortunados. E ele passou a ajudar, dar sua benção, orar pelas
pessoas, como paramédico até ajudá-los no que fosse possível.
Como ele era sensitivo (a rua apura o extraordinário sensível das pessoas),
sempre acertava nas previsões. Ora malária, tuberculose, tifo, gonorréia,
leptospirose. Quando não um fígado podre, um coração arrebentado, uma bala
perdia, um vazamento de gás, um barraco atropelando deslizamentos de terras.
Sabia causas e efeitos. Encaminhava para hospitais, igrejas, ONGS, ou mesmo
para cemitérios, asilos ou sanatórios.
Dagmar Marlene era sua palpável realidade com o mundo lá fora.
Servia de elo de contato. Tinha perdido a vaidade e ganho uma porção
humana. Parecia até compreender melhor os pais que morreram de mal com
ela. Era um pouco mais humana, ainda que tivesse um fogo nas ventas, uma
volúpia para o pecado. Mas Saulo era uma espécie de seu Id, seu guardião
moral. Desdobrava-se. Sentia que não iria para morrer, queria conhecer
Itararé, Ter filhos, queria compreender melhor a loucura do milagre de um
tipo rico e poderoso, que trocara o luxo e a riqueza para servir à causa dos
pobres e oprimidos. Parecia um milagre a vida daquele homem. Tornou-se
146
mais do que apaixonada por ele. Tornou-se fã, fanática por aquele “beato”,
aquele anjo terrestre, como contou-me anos depois seu filho.
Milagre?
Pois Saulo começou a realizar “milagres”. Afinal, sua escolha em nome de
Cristo já não tinha sido um?
-0-
147
CINCO
“-Há um tesouro na casa ao teu lado!
-Mas...não há casa nenhuma ao lado!
-Então precisamos construir uma!”
(Diálogo dos Irmãos Marx)
______________________________
A primeira vez pareceu estranhamente mais uma coincidência. Uma
professora de Escola Pública viera ali ser benzida pelo Irmão Saulo,
reclamando de sua solidão de infeliz, de relacionamentos tumultuados, de
problemas de convivência amorosa, à tudo isso somado uma enxaqueca e uma
vontade de morrer. Pois, depois de abençoado – uma palavra de conforto, um
ombro amigo, alguém que escuta vale ouro em Sampa – ao despedir-se, num
arremate o beato disse:
-Adeus. Boas férias, feliz Natal! Cuidado para não voltar grávida das férias.
A professora Rosalinda morreu de rir. Estava há mais de ano sem se envolver
com ninguém. Estava com medo de amar.
Pois voltou do recesso escolar apaixonada e grávida.
A segunda vez, uma aluna já entrada na promiscuidade com amigos do alheio
que rondavam as imediações da favela Real Parque – ali meninas de mais de
onze anos estavam na primeira ou segunda gravidez, às vezes não sabendo
quem era o pai - passando mal num barulhento jogo de pôker com cerveja das
imediações, foi levado a Saulo, como recurso presto e rápido. Que quando a
viu entrar, sentiu uma repugnância,. Vira sobre a aura dela, uma caveira lhe
estendendo os ossos dos braços, como se seguindo-a, querendo tocá-la, não
querendo perdê-la.
Saulo benzeu-a assustado. Comentou com Marlene esse “ver” esquisito.
148
Dias depois, no ir e vir dos comentários do lugar, ficara sabendo que a moça
tinha feito aborto na manhã daquele dia que depois de um primeiro gole de
cerveja preta tivera um siricotico espumoso e fora levado até ele.
De outra feita, avisou um rapaz para que deixasse de fazer e tremenda besteira
que estava para fazer. Pois o rapaz deixou a gangue que iria assaltar um banco,
e depois ficara sabendo que todos os bandidos da quadrilha tinham sido
mortos, que o assalto fora um tremenda furada.
Ainda outra vez, ao benzer uma criança, notou que ela conversava com o
nada. Sim, falava sozinha, como se estivesse com alguém ao lado. Saulo não
sentiu quem era, mas, inteirado (ao seu jeito de entender a redondeza terreal
das coisas) avisou aos pais do menino que ele seria recolhido. Os pais ficaram
preocupado, pensaram em fazer macumba, coisa assim, mas doas depois, ao
chamarem o filho único de manhã, para levar à creche, viram que ele tinha
morrido dormindo, mas conservando no rosto um sorriso sereno, os olhos
brilhando (como se pétreos por uma visão cristalizada de luz), e ainda tendo
nas mãos um gracioso bilhete de despedida, escrita com letras miúdas,
dizendo que iria fazer uma viagem, que os encontraria depois.
Coincidências? Milagres?
Marlene assustou-se. A vida tinha limado o lado meio paranormal de seu
amado?
Outras coisas aconteceram.
Um tipo de alta sociedade, ligada à família de corruptos que tinha uma
universidade na Avenida Paulista tinha sido seqüestrado, e a policia fora
sondar ali na favela, quando encontraram o Irmão Saulo indo à feirinha
comprar peixe e banana.
Um deles, de passagem puxou conversa:
-Como vai, Irmão Saulo? Tem acontecido alguma coisa diferente por aqui? O
sr. tem visto algo de novo? Alguma movimentação diferente.
Saulo olhou aquele tenente da Rota e, na bucha respondeu, sem mais nem
menos, sequer sem ser inquirido. Falou pelo seu lado sensitivo:
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-O cativeiro do refém é numa pensão da Rua Aurora.
O policial, assustado a princípio, depois mediu-se, mediu-o, e, sem pestanejar
um só instante, passou via rádio a informação pretendida quente, mas o que
aconteceu foi que era verdade o pressentimento do velho. O resgate não fora
pago, o seqüestrado ficou de pagar promessa, os bandidos foram
desmascarados.
A imprensa veio alvoroçada. Irmão Saulo resolveu dar um tempo, sair daquele
lugar, indo morar uns dias com uns restos de índios da tribo Pankararu que
tinham se mudado da favela – um de seus lideres fora morto por engano –
indo passar uns tempos lados da periferia menos violenta chamada do Embu
das Artes.
Quando voltou, depois de uma enchente – tinha havido mortes, deslizamentos
na favela, o projeto Cingapura apoiado por mídia e dinheiro escuso, suspeito,
era apenas mais um totem, não servindo mais que para mídia eleitoreira, não
resolvendo nem um por cento do problemas de moradia daquela cidade de
mais de 600 favelas e mais de dez mil cortiços ou condições sub-humanas de
localização e moradia.
Na favela, continuou a prestar serviços. Dagmar Marlene depois de muito
exigida fizera um curso de enfermeira no Hospital Alberto Einstein e lhe era
de mais valiosa ajuda.
Só que Dagmar Marlene não tinha sido picada ainda, pelo mosquito da fé. E
resolveu, numa decaída de convivência humana e pacífica, tentar ganhar
algum dinheiro, como se estivesse em poder do velho Dr. Paulo. Deu uns
telefonemas, exigiu resgate – queria fazer caixa para o caso do velho morrer
de doença, de velho ou assassinado, quando teria seu pé de meia para
continuar sobrevivência, pois a AIDS ainda não se manifestara, e tinha medo
de não poder ter o máximo de filhos que imaginara. Incubada, não a tinha
atacado inteiramente, talvez escapasse, quem sabe.
Foi quando foi pega por uns policiais da Garra, dando uns telefonemas. Os
favelados, vendo a mulher de seu melhor irmão de meio sendo atacada por
quatro tipos, um soldado raso, dois sargentos e um capitão, movimentaram-se
em paus, tocos, tijolos, cabos de vassoura e atacaram os soldados. Dois
escaparam com vida. Dois morreram. Não sem antes comentarem
150
desesperados quem eram e o que estava fazendo a tal Dagmar Marlene, que
não era boa bisca, e que eles, tolos, manés, defendiam.
Então a turba furiosa se voltou contra Dagmar Marlene, e como a cascavel
peçonhenta e traiçoeira que ele finalmente se revelara, e,. após surrarem-na
com paus e pedras, lincharam-na no mais alto e seguro ramo de uma goiabeira
poluída com folhas secas. Dizem que depois disso, a árvore que sempre dera
frutos de polpa branca e depois quase que bichara pela poluição, sujeira e mau
ambiente, depois voltou a dar frutos. Só que polpa vermelha e muitos bichos.
Um milagre?
Milagre foi seu corpo ainda ser achado com vida, mesmo depois de alguns
segundos pendurado ali como um espantalho horrível preso por uma corda
frouxa. Vieram uns policiais de reforço e a levaram para um pronto socorro
popular das imediações. Com certeza se salvaria, talvez tomasse jeito. Só que
o seu cheiro e sangue ficou muito tempo por ali, atraindo urubus, com pessoas
vendo fantasmas (consciência pesada?) entre e cachorros mortos, ratos do
tamanho de lebres, entre monturos levados pela correnteza de um rio após
inundações, enchentes, quedas de barracos. Dagmar Marlene teria que pensar
melhor sua visão de vida. Foi quando, pensando em encontrar seu amado na
terra natal dele, pensou em ir morar em Itararé, e ali esperar pelo seu amado,
sem saber que jamais o encontraria de novo, que decairia, que seria internada
num asilo, que feneceria primeiro do que ele, mais acabada do que ele que,
apesar de mais velho, ainda viveria por muito tempo entre os fracos e
oprimidos, os excluídos de toda sorte.
Saulo, que nesse ínterim, estava com malária – tinha sido picado, tinha sido
contaminado – não soubera de nada nem pudera providenciar enterro digno
para sua traidora.
Quando foi inteirado de tudo, era tarde demais e estava desprotegido. Um dia
foi acusado de curandeirismo ilícito e preso, sofrendo processo, encaminhado
ao Carandiru.
Poderia ter alegado ser portador de crime superior – no Brasil, qualquer
pessoa rica, com ramo de influências e formada mesmo por uma faculdade de
fins de semana em áreas longínquas, técnico-juridicamente poderia matar até
três pessoas continuaria livre (haviam alguns que até pregavam que todo rico
tinha direito a matar três pessoas). Mas Saulo não quis cadeia especial, sequer
que dessem curso público de sua prisão, para não atrair a mídia e, pior,
151
envergonhar, de certa forma, seus parentes que pelo jeito agora o tinham
ignorado definitivamente e de uma vez por toda. Era isso o que pensava, pelo
menos.
Pois foi cair num pavilhão horrendo da penitenciária do Carandiru, Zona
Norte de São Paulo. Foi quando descobriu que, se o preço de viver nas ruas
era uma carteira de acesso ao inferno, sobreviver no Carandiru era mesmo
estar na filial da casa do diabo.
Ali ele seviciado, roubado, agredido, condenado de meio. Primeiro porque era
branco, segundo porque comentários maldosos de funcionários corruptos da
repartição disseram que ele era doutor e de família cheia da grana. Para os
presos, humilhar alguém diferente e metido a sebo era um prazer. Ele aceitou
aquilo como se uma coisa que tivesse a pagar. Aos poucos foi sendo aceito,
foi levando ao seu jeito, até que viram nele um melhor do que eles todos.
Os anos que Saulo passou ali, não mudaram seu caráter. Ao contrário.
Ninguém o podia atingir, se ele não quisesse ser atingido. Depois que
passaram de odiá-lo, viram, com a consciência pesada – e um medo dos
infernos – que aquele pobre ser na verdade era um verdadeiro servo de Deus.
Uma igreja evangélica que prestava assistência religiosa e jurídica no local,
conseguiu que ele saísse para ser albergado, trabalhando durante o dia e
dormindo na prisão a noite. Mas ao saberem que ele só um amigo dos pobres,
tentaram, depois da pena que lhe deram pelo suposto conluio na morte dos
policias, o abrandamento da pena e, cumprindo um terço em liberdade, foi
posto sem lenço e sem documento na rua.
E a rua, para quem sai de uma prisão daquele potencial medonho, era quase
que um paraíso. Afinal, o Carandiru era uma filial do inferno.
Na cadeia tinha deixado seu testemunho de resistência. Se passara entre
condenados e não se igualara a nenhum deles, também ganhara amigos e
defensores, além dos, por ele, escondidamente convertidos, curados, salvos.
Novos milagres que um aparato todo tentava dissimuladamente sondar, fazer
vistas grossas, não o querendo mais no foco na mídia, pois ele posai fazer mal
a seitas, crenças, ideologias, á própria Nova Ordem Mundial e uma falsa Nova
Era que engodava (e obtinha lucros) com amebas que a buscavam de falso
consolo, principalmente depois da queda da fase ideologia que tirara muita
esperança dos que pensavam socialmente, no coletivo.
152
..............................................................................................................................
Das tantas pesquisas que fiz, havia uma interessante.
Constava que o Irmão Saulo fora pego por um delegado que tinha amigos na
Academia da Policia que tinham métodos supostamente “modernos” (de
Primeiro Mundo civilizado, diziam) de saber investigar crimes e pessoas, e
que tinham se valido de um chamado ultra atual Soro da Verdade para
arrancar alguma confissão do Irmão Saulo, visando deixá-lo em dificuldades,
gerar motivos para extorsões. Fiquei sabendo disso meio que em of, por um
tenente da Rota que estava para ser expulso da policia, por estar envolvido
com Matadores de Aluguel de Guarulhos, e que tinha medo de também ser
eliminado como queima de arquivos, pois sabia muitos podres entre políticos,
empresários e membros da alta sociedade local. Tentou conseguir com a
Polícia Federal um tratamento especial ligado ao Serviço de Proteção à
Testemunha vinculado ao Ministério da Justiça e ao Congresso Nacional, mas
nada conseguira de objetivo dada à burocracia que emperrava a máquina
tucana-liberal, depois roubara uma empresa alemã de jóias raras e, largando a
família iria fazer uma operação plástica e sair do Brasil. Tinha intenção de ir
para Miami, juntar-se a bandidos, prostitutas, corruptos, vagabundos e
traidores da pátria (a curriola que restou dos tempos sujos da ditadura sórdida
de Fulgêncio Batista) que o Comandante Fidel Castro estrategicamente tinha
expulso de Cuba e que ali, com o apoio de braço armado da CIA, ainda
covardemente postavam-se de forma mal intencionada (e dirigida) como se
confiáveis anti-castristas.
Confesso que, a contragosto tive que subornar o tipo, que me conseguira a
muito custo copiar a mão alguns dados do depoimento do Irmão Saulo. Ele
dissera muitas coisas, desde a frustração do berço pobre, do pai que o
renegara, da mãe que soube por uma época de miséria caindo da vida, mas o
que mais me impressionou disso tudo, não foi a visão que o mesmo tivera ao
largar o ônus de rico podre entre pobres limpos, ou de que ao morrer viraria
uma espécie de homem-pássaro, mas de que sentia, de alguma maneira, por
alguma vaga lembrança de pequenino ainda – guardara no fluxo da
inconsciência essa dúvida, essa quimera de relembrança? - de que tinha um
irmão gêmeo e esse de alguma forma o ajudava num outro lugar, outro plano,
outra dobra de dimensão terreal que fosse. Não pude compreender inteiro isso,
mas era uma questão importante a ser observada e eu teria que correr atrás do
153
prejuízo dos fatos, com aquilo tudo me dando nos nervos, abrindo meu faro de
questionador, de repórter enxerido e entrão.
No mais, os depoimentos, tirando as partes emocionais, de meio (onde se
corrompeu por causa do sogro, membro da chamada tradicional família
quatrocentona de Sampa), as buscas desesperadas de si mesmo, haviam ainda
algumas espécies de “revelações” que fizera aos atônitos policiais que ficaram
surpreso com sua tão apurada paranormalidade desviada, sua intuição
quimicamente dirigida, mais: sua lucidez extremada que lhes dera tento de que
o Beato era realmente muito especial.
ALGUMAS REVELAÇÕES (Outras, quero crer, ficarão melhor em livro
próprio):
-Os novos tempos do Brasil, tentando descobrir os podres históricos dos três
poderes, poderiam atingir interesses cooperativistas de militares, autoridades
judiciais e mesmo bandidos com imunidade diplomática ou imunidade
parlamentar. A corja deles estava entre os chamados políticos de direita, todos
bem encastelados, confiantes a continuarem mamando nos cofres público. Era
a corrupção municipal, treinada com a corrupção estadual, enquanto a
corrupção federal financiava devidamente maquiada (papéis escusos com
rótulos de vernizes novos) o sucesso da economia norte-americana.
-Ou seja, o sistema todo era podre. O país desde o golpe de 64 vivenciava, dia
após dia, no trânsito, nas chacinas, nas brigas dos campos com grileiros e
latifundiários, uma verdadeira guerra civil disfarçada, bem disfarçada. As
estatísticas oficiais e, por isso mesmo camufladas da grande mídia, atestavam
que o Brasil tinha uma “guerra dos balcãs” em suas terras, onde os pobres
eram eliminados pela fome, pela miséria absoluta.
-Revelou também que, por questões de brigas de egos em zonas de fronteira
no chamado Cone Sul, poderia haver riscos de uma sangrenta tentativa de
golpe militar, bem como entreveros de divisa. pois certa caterva de marajás
alojada em quartéis não queriam perder as benesses adquiridas quando
estavam surrupiando o poder, em regime de arbítrio.
-Revelou ainda que a miséria ainda iria aumentar ainda mais no Brasil, na
América Latina (muitos países teriam terroristas aliados a capos traficantes no
poder), o terrorismo tinha tomado um caminho social paralelo e bem lucrativo
– a globalização da miséria e violência sem fronteiras também - e iria dar o
154
que falar no continente pobre da América que era mesmo uma latrina de
interesses das grandes potências insensíveis e com grande poderia bélico.
-Revelou também de guerras civis em países da África, violência essa,
generalizada, provocada por hordas de miseráveis – sem fronteiras inclusive
de armas e princípios tribais – todos tentando sobreviver à seca, às minas
terrestres, aios interesses de ex-colonizadores e descendentes de
colonizadores.
-Falava de atentados que alguns políticos corruptos sofreriam, para que não
tentassem levar de roldão, nas apurações de ilícitos, outros membros do crime
organizado que sustentava o Brasil Real e seu tucanato (balaio de ideologias e
muito nhennhenhen), de suspeitas privatizações-roubos, de duvidosos
pedágios doados a amigos do alheio, de erário público saindo pelo ladrão da
gangorra econômica espúria e suas bandas podres, moedas podres, planos
econômicos com fitos eleitoreiros. Afinal, com mais de dez milhões em áreas
atrasadas vivendo em miséria absoluta, tinha ainda o povão trocado seu
dinheiro pau a pau pelo dólares, depois de eleito, FHC desvalorizou a moeda e
tudo passou a valer a metade. Era uma empulhação com endosso dos três
poderes. Quem iria pagar por isso? Qual era o verdadeiro nome do sócio do
Brasil? O engodo estatal baseado em uma prostituição política também?
Mas o que me chocara das revelações arrolei bem:
-Algumas figuras feito corvos do arbítrio, eminências pardas, tinham revelado
ao estagiário Dr. Paulo, quando ainda no começo de vida social em Sampa, ao
lado de juizes eleitorais facilmente manuseáveis, desembargadores de bolso,
militares babaquaras de alta patente, autoridades atreladas a certos antros de
escorpiões ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) que Juscelino
tinha sido propositadamente morto, que tinham colocado cocaína no uísque de
Elis Regina porque ela falava muito (verdades), e que se Lula (ou algum
membro do PT) fosse eleito eles saberiam como agir: reteriam matérias
básicas de consumo comum (leite, açúcar, óleo, carne, trigo – como fizeram
em tempo de Jango financiando atentados, greves e tudo mais), e, com uma
montada convulsão geral bem arquitetada, o eleito seria deposto a título de se
recuperar o equilíbrio social e da balança econômica. Parecia que o Brasil era
apenas uma questão de lastro financeiro para o FMI e o Grupo dos Sete. Não
interessava, aos Estados Unidos, uma grande potência em seu quintal. Por isso
financiava a corrupção que sustentava o “capitalismo” amoral brasileiro. São
Paulo inteiro – famílias, sociedade, instituições, meios, mídia, etc – estava
155
entregue às mesmas moscas que cresceram desde a colonização exploradora, o
escravismo, a ditadura e o neo liberalismo de FHC e amigos do alheio.
Só que, para Saulo, com sua sensibilidade excepcional, bem como a artistas,
pessoas sensíveis, geniais, questionadoras, críticas, o esforço para
compreender o universo (e o ser humano no contexto, claro – de onde veio, o
quê é, para onde vai?) era uma das poucas coisas que elevavam a vida
humana muito acima da comédia bizarra (que era o verbo Existir) e de certa
forma conferia um pouco de dignidade na tragédia.
156
SEIS
“Desde a mais tenra idade/Inicia teu filho no
amor/Aos horizontes largos(...)/E ensina-lhe/A
criar amplos interiores/Precisos – sobretudo/Se
a vida reduzi-lo/A uma nesga de céu!
(Dom Hélder Câmara)
..........................................................................
No Jardim Ângela, a maior e pior favela do mundo, a mais violenta, a de pior
índice de vida e de sobrevivência, Irmão Saulo foi sondar seus parceiros de
desgraça. À eles levou um pouco de si, um pouco de Deus, um pouco de sua
prática de amor e caridade. Para alguns, pobres coitados, era somente mais
uma espécie de marginal disfarçado a se esconder de existir ali. Para os
traficantes e seus nichos de armas e drogas, era um risco. Ele era perigoso.
Pois passou a ser visto com exagerada desconfiança, depois seguido não
apenas por miseráveis que não tinham nada a perder, mas também por luzes de
improvisados repórteres e até mesmo alguns correspondentes do estrangeiro.
Foi gentilmente convidado a se retirar, ir cantar noutra freguesia, com a
promessa de erguerem um Posto de Saúde com a retaguarda básica dos
chefões dos narcotraficantes. Como o Estado era incompetente, eles passaram
a fazer isso também: dar assistência social – um remédio caro, um caixão de
defunto, uma ambulância, uma operação, um tratamento, uma vingança que
resolvesse um estupro, uma ameaça, uma dívida impaga. E, da maneira como
Irmão Saulo e seu séquito foi “convidado” a dar no pira, só restava mesmo
aceitar a retirada estratégica, ou morrer, quero dizer: aparecer atropelado,
“suicidado” ou em montado em algum flagrante propositalmente arquitetado
para acabar com a raça dele.
Preferiu ceder. Ao menos poderia ver seus coitados amigos terem alguma
coisa de assistência, em que pese, pelo abandono do governo, das mãos dos
marginais. O Quinto Poder - a Violência – dando ao povo o que o governo
com seus altos impostos desviava para banqueiros que financiaram sua
157
campanha de eleição e reeleição, para continuarem mamando nos juros das
eternas dívidas externas, ou desviando verbas para cobrir cofres de corrupções
herdadas do regime da incompetente, corrupta, violenta e senil ditadura
militar.
No Braz, bairro da zona leste de Sampa, conheceu um Chefe de Camelôs
ligado ao esquema das propinas, que lhe confessara estar para ser atocaiado e
assassinado, por estar revelando os podres da máquina pública municipal,
envolvendo Administradores Regionais, Secretários Municipais e até uma
penca de Vereadores da Situação. E no Braz o Irmão Saulo conviveu com a
maior gama de moradores de Sampa: os Nordestinos. Com suas barracas de
comidas típicas, feiras concorridas e barulhentas, quermesses caipiras com
bumbos e triângulos, shows populares de forrós e repentes, cantigas
folclóricas de roda, tudo, ao melhor estilo sertanejo de fugidios do agreste
sertão e suas fomes programadas politicamente para a Indústria da Seca. Os
nordestinos, discriminados, aprenderam a discriminar. Não votavam em seus
colegas de região, mesmo que mestres, doutores, sociólogos, bem
desenvolvidos.
Pior: servem de massa de manobra para corruptos e ladrões, eram usados em
seu miserê. Coisa para sociólogos estudarem. Por incrível que possa parecer,
no entanto, têm os melhores humoristas, palhaços, artistas de circo que fazem
troça dos problemas, sendo até considerados os melhores humoristas do
Brasil. Milhões de nordestinos sobreviviam em Sampa, sob viadutos, cortiços,
pensões com uma marginália toda. Mas bebiam, dançavam baiões, cantavam
sua Asa Branca, rezavam pro seu Padre Cícero e Nossa Senhora. Eram
tementes à Deus mas abandonados pela sociedade que via Deus somente em
orações inócuas não em práticas políticas.
Sob o Viaduto chamado Elevado Costa e Silva, conheceu gangues de travestis
que atacavam curiosos e clientes; conheceu narcotraficantes cobrando dívidas
de prostitutas; ficou sabendo de bandos de matadores de aluguel fazendo
contratos escusos por ali; viu camêlos sendo apertados para pagarem propinas:
viu feiras rápidas surgirem e sumirem; viu turistas estrangeiros serem
depenados, viu ladrões infames roubando marmitas e vales de refeições. Viu
velhinhos madrugando para ganharem lugares em filas enormes em busca de
um atendimento primário gratuito. Viu assaltos, roubos, furtos. Compreendeu
que o inferno tinha chegado. Que o inferno era ali. Ou, pelo menos, uma filial
do inferno.
158
Pela ocasional cobertura de cimento armado, pela segurança dos prédios ao
lado, pela companhia de turbas de carentes, Irmão Saulo fez estadia demorada
sob o Minhocão. Ali passou dias e noites entre fracos e oprimidos. Conheceuos na alegria e na dor, na pobreza e da riqueza, na fome e na pequena infração.
Com seus dons, pensava as pessoas certas nas horas incertas. Quando não
evitava uma situação mais grave e fora do contexto do tempo de milagre, tinha
uma palavra de paz, de conforto, de amparo. Como se um Antônio
Conselheiro dos Pobres, logo sua presença ganhou uma legião de mendigos,
fiéis admiradores e discípulos, a quererem beber de sua esperança-luz, das
migalhas de fé que caiam de sua mesa de sonhador, de plantador de sonhos.
Sua passagem aqui e ali, era um séquito. E dos prédios velhos daquele lugar
abandonado pela estética arquitetônica, caiam pétalas de aplausos, lágrimas,
flores, papel picado. Era adorado pelos sensíveis. Era um Beato, para os
menos desafortunados. Mas estava ficando velho, a idade batera, a barba
crescera muito e ficara grisalha, um improvisado cajado do que era antes um
cabo de guarda-chuva grande lhe dava apoio. Tinha varizes, labirintite,
problemas do músculo do coração pressionando as veias internas e o pulmão
já com a marca terrível da rua.. Para uns, era um místico, para outros, um
vidente, para tantos um filho de Deus no presépio do abandono social.
Uma vez, madrugada de lua cheia e frio de junho cortando, foi procurado aos
berros por uma velha da classe média alta, bem vestida, jóias, olhos azuis, que
pedia uma ajuda pela sua dor. Era a otosporose fazendo mais uma vítima, sem
medir credo, pose social, idade ou vaidade.
Saulo mal tinha despertado para ir mijar num vão de construção, tomara um
resto de água tônica quando foi alertado sobre a presença da velhota àquela
hora da noite, que insistis em vê-lo. Parecia louca e estado lamentável de
desespero e dor crucial.
Saulo prontamente se cobriu, envolvo numa manta velha, pediu que a senhora
sentasse num banco feito com dois botijões, um tampo velho de mesa e uns
cobertores encardidos.
Pois colocou as mãos peludas e trêmulas no punho direito da velha, que era o
que mais apresentava deterioração epidérmica – e fedia carne podre – depois,
com as duas mãos, subiu e desceu, do punho até o alto ombro daquela sra
Parecia rezar. Parecia em transe. Suas palavras nessa hora eram egnimáticas.
Podia ser uma prece, um murmuro, uma oração vertida intimamente.
159
Na primeira vez que fez a espécie estranha de “massagem”, a velha urrou de
dor, como se estivesse sendo atravessada por uma lança. Na Segunda vez a
mulher segurou o ímpeto, mas as lagrimas cairam aos borbotoões. Na terceira
vez foi que se deu o bendito milagre: a pela de mulher como se foi cerzida
pelas mão de Saulo, como se estivessem sendo fritadas no osso, recompondose na vermelhidão quente dos toques severos, diretos. Então ela sentiu que a
dor a deixara, que os ossos receberam alguma energia, e, antes de desmaiar de
“tocada”(o dedo de Deus?) murmurou um lânguido agradecimento demorado.
Enquanto seus amigos a levavam dali, Saulo foi cercado por uma repórter e
um cinegrafista de um Canal Pirata de produção independente, que filmara os
uivos desesperados da mulher, filmara a operação de limpeza epidérmica o ou
coisa que o valha, e agora o queriam entrevistar. Aquilo valeria uma nota
como trabalho de frila (free-lancer) nos principais noticiários do país.
Mas Saulo só queria dormir reconstruir a pegada do sono, descansar, Só que a
velha (foi identificada depois), tinha vivido um milagre e ele estava na mídia.
Mas a mídia tinha seus donos. Pelos padres foi acusado de charlatão Pelos
crentes de falso profeta. Pelos espíritas de curandeiro. Pelos macumbeiros de
débil mental. Para as bruxas, videntes, feiticeiros, videntes, paranormais,
esotéricos, sensitivos, acusando de ludibriar a boa fé dos incautos.
Mas ele estava onde estava. Não era um ignorante jogado ali entre
escrecências sociais. Ele escolhera estar ali, e isso fazia sentido. Ele era
politizado. Ele tinha estudo, cultura, lera muito. Ele sabia muito mais do que
os pobres miseráveis que o assistiam.
E sabia do holocausto das ruas pobres do mundo todo, mas da situação ruim
também no continente africano, com 766 milhões de habitantes, expectativa de
vida em torno de 53 anos, com 0,3% apenas de terra cultivável, oito países
atrasados envolvidos em guerra (que interessavam às grandes potências), mais
de 200 mil crianças lutando como soldados, o continente todo coberto por l8
milhões de minas terrestres, 3,5 milhões de pessoas fora de casa, fugindo ou
em busca de trabalho (a sobrevivência), além de pelo menos 22 milhões de
pessoas contaminadas com o vírus da AIDS, Isso o fazia tremendamente
infeliz. Sampa tinha seu holocausto imediato e presencial.
160
Ele era ainda um irmão de sonhos, um irmão que, nas sombras, levava sua luz.
Não queria ser uma mera autoridade religiosa, nem preocupar-se com dogmas,
dízimos, rituais, nominações,, ou filosofias de baixo calão, sem um fito
precípuo e imediatista de ajudar, amparar, salvar vidas.
Ganhou inimigos declarados ao permitir descobertas em flagrantes de
subornos e extorsões oficiais de um espúrio estado paralelo corrupto, além de
alguns judas disfarçados na sua horda de miseráveis. Alguns queriam seu
posto, mas não tinham sua estatura mística. Onde acampava com sua modesta
trupe, era motivo de festa, de repórteres estrangeiros, de fanáticos por religião,
de doentes em cadeiras de rodas, aleijados, loucos, leprosos, seres
irracionalmente atacados pela vida ou largados de Deus. Ele era a única
esperança que restava. Ele então sem mais alarde, pose ou sem querer
aceitação de santificação (que isso era vaidade estúpida, dizia), então se
prontificava a atender gratuita e com respeito. E dizia de curas, promovia a
cura, profetizava a cura ou indicava o lugar exato para tanto, quando não dizia,
no ouvido do cliente-paciente, a morte, a ruptura, o final, e o que a pessoa
vitimada tinha que fazer para salvar-se. Muitos pacientes morriam em seus
braços nessa hora, e ele os abençoava em nome de Jesus. Muitos , após
morrer, tinham um sorriso nos lábios doentes, um olhar brilhando como se
realmente, ao deixarem essa vida, estivessem, vendo a gloria de Deus.
Como era época de eleição, sua imagem de ancião beato quase santo (cabelos
brancos com cãs da cor da flor de algodão) foi usada aqui e ali, sem
autorização. Quando procurado por um político que era ex-ateu, ex-sociólogo,
ex-marxista, não viu ali ninguém especial, mas um tipo doente do ego, doente
de má companhia, doente da mentira que a vida o fizera, doente de várias
maneiras, Mas não viu cura para aquilo. O ser que à ele se apresentara entre
fotógrafos e comitiva palacial, saíra como viera: doente para sempre. Uma vez
foi procurado com a promessa de recursos financeiros por um tipo que
promovia de cara lavada o mote de “rouba mas faz”.
Mas ali o Irmão Saulo só viu o câncer de uma metamorfose ambulante, Não
achou que ia ouvir o que teve que ouvir na teve, no horário político eleitoral.
Todo mundo o queria perto. Todo mundo dizia que iria fazer pelo povo o que
deveriam estar fazendo. Quase vomitou de nojo ou ouvir tanta mentira. Mas
nenhum daqueles políticos, avena da rapina liberais, conseguiu uma só palavra
dele, sequer profecia ou sinal de cura do mau-caratismo. O triste foi quando
esteve sendo sondado para embarcar para uma capital do nordeste, para fazer a
161
campanha de um político corrupto, violento, irascível e ladrão que o queria em
campanha de um parente. Ele, ao ser visitado por esse tipo, viu que o homem
já mandara matar autoridades, juizes, promotores. Que aumentara em mais de
mil por cento a grana da família; que perdera uma filha lésbica, viciada , poeta
e comunista, mas que nem assim tinha sido tocado pela consciência. O moça
tinha sido devidamente forçada a se suicidar. Muitas décadas depois, por
continuar ainda insano, despreparo, foi lhe colida outra parte de si: um filho na
flor da juventude. Mas nem assim aquele homem gordo, já condenado a
morrer, se arrependera do enorme mal que fizera ao país, nem tinha sido
sensibilizado para triplicar o valor do salário mínimo, ajudar os pobres. Era
um homem que encarnava o próprio satã em terras brasileiras, pensou Saulo.
Como estava velho, Saulo passou a valer-se de um par de muletas, pois não
queria liteira, nem ser carregado. Aquele par de prótese lhe bastava. Punha-o
em alerta, se movimentando, ouvindo, sabendo das coisas.
Foi quando começou a ter certos “ataques” somados com estranhas distonias e
sudoroses. Levado a um pronto-socorro, ali ficou horas sem ser tratado. Os
serviços públicos estavam abandonados. Como passou o problema, pediu para
ser levado de volta para o seu canto. Na fila de espera, sofria mais do que com
o arrebatamento em si. Os serviços públicos estavam sucateados de propósito.
Uma cooperativa de.saúde, além de inconstitucional era amoral e roubo
oficial. Haviam interessem de bancos e agiotas do capital estrangeiro,
interessado em venderem seguro-saúde de previdência privada por trás.
Mas ele sabia mais do que podia dizer, do que podiam compreender os seus
amigos tão solícitos admiradores. Nesses estados de “ataques” seu cérebro
“voava” e ele como que recebia pensares novos, diferentes, que passou a
escrever em um caderno especial, que só foi achado muito tempo depois, entre
suas bagagens ruins, imprestáveis. Quase que as anotações importantes todas
foram atiradas num lixão hospitalar ou mesmo incineradas.
Em profunda crise espiritual mais o avançado estado da idade, marcado por
certo niilismo inexplicável, tinha um sentimento de estrangeiro no mundo.
Talvez os estudiosos pudessem explicar nisso um parentesco distante com a
náusea do existencialismo pregado por Jean-Paul Sartre, como a agonia da
esperança. Nesse estágio transcendental não cabia paralisia. Era um certo tipo
de ascese que implicava na mortificação da carne e do isolamento, com a
finalidade de buscar uma prática para a plenitude de uma nova vida espiritual,
cujo ápice seria a união com o Deus-Pai-Criador.
162
Era como se uma caminhada mística para dentro de si.
E haviam os estágios que ele, sem o saber, de certa percorrera bem ou aos
trancos, e que eram:
Primeiro, a Preparação com três deveres, sendo o primeiro a aceitação, sem
revolta, dos limites da mente humana. Compreendeu ao seu jeito, ao seu
modo, que não existia a possibilidade de libertação se conferirmos à mente um
poder que ela não tem, o de ser ilimitada. Ao contrário, a grandeza residia
exatamente na sua limitação: ela só aprende a relação existente entre as
aparências e os fenômenos da matéria que são energias concentradas. E ainda
assim tais relações não são reais, pois dependem do homem por ser ele mesmo
quem as gera, e não são as únicas possíveis, mas as mais convenientes para as
suas necessidades práticas e teóricas. A soberania da mente decorria de aceitar
esses limites, e, ao aceitar a incapacidade de mente em ir além deles, estaria se
preparando para ir ao encontro da própria libertação que sonhava feito um
louco.
Em segundo plano, como dever, precisava viver intensa e profundamente a
agonia de não aceitar esses limites, de tentar e não conseguir apreender o que
se esconde por trás dos fenômenos, de desvendar o mistério da vida e da
morte, de saber se existe uma presença invisível escondida além do rocambole
do tempo, do funil do tempo, do espiral do tempo e suas dobras abismais. Se a
mente é impotente para a tarefa de transpor os limites, cabe ao coração
atribulado essa espécie de “sexto-sentido” fazê-lo da forma devida: E era do
coração que se lhe vinha o grito – Não reconheças nunca os limites do
homem, rompe esses limites, negas o que teus olhos vêem, morre até mas diz
’Á morte não existe!’ É do coração que surge a esperança da fraternidade
universal e de aplacar a terrível angustia de saber que a terra viveu e viverá
sem o homem para muito além do fim do homem. Vencer a maior das
tentações: a esperança é um dever primordial. O palco dessa tentação é a
mente que delibera, e o coração que é todo alegria no afã, no mister de romper
as amarras para alcançar e essência do verdadeiro conhecimento. A liberdade
consistindo em libertar-se de ambos. Nada a temer ou a esperar quando se
alcança esse magnifica liberdade. E nada existe então, nem vida e nem morte.
Em terceiro lugar, a Marcha, com os quatro estágios-degraus em que ela se dá
inteiramente.
163
O primeiro é o Eu. Imobilizado pelas trevas da sua insignificância e total
desamparo, o Eu procura o seu senhor e o encontra: ele é o grito – seu
companheiro de armas – É o Grito que arranca o Eu do imobilismo
petrificante, na angústia-vívere de sua nulidade. E o tal Grito determina: “Ama
o perigo...aprende a obedecer...aprende a comandar...ama a responsabilidade
de pensar...ama cada um de conformidade com a sua contribuição para a
luta...Sê sempre inquieto, descontente, inadaptado, crítico, provocador,
radical. É o grito que agarra o Eu do nada sideral-abismal, que lhe mostra ser
um fragmento do universo infinital.
Precisa também, o espírito, nesse estágio, sair da dominação da raça, um ouro
avanço-degrau, porque ela, por meio de antepassados, fala em seu nome, e
com isso torna-o prisioneiro de um passado imemorial. Só se liberta dos
grilhões da raça genético-espiritual quem sente dentro de si todos os seus
antepassados, ancestrais, para em seguida acalmar-lhes o ímpeto, e finalmente
passar para o filho a missão de superá-lo. O outro degrau é a Humanidade.
Libertado da raça, o ser humano deve empenhar-se em “viver a luta do
homem”. Que luta é essa? Iniciada nas auroras dos tempos, ele narra a
história do homem ereto entre os símios dos quais descende, momento
primordial e primevo de uma corrida que termina com a inexorável e terrível
consciência da Morte! E como nenhuma luta contra ela é vitoriosa, o seguidor
da estrada dos caminhos é exortado a enfrentar a vida, como seu espantoso
turbilhonamento e buscar aventuras – dar sentido à difícil lição da Viagem de
Existir – pelejar ser tréguas, crescer, com-viver com os homens, os deuses, os
animais, porém sem se livrar do medo-senha porque a escura subida parece
nunca Ter um fim. A terra é o quarto e último degrau nesse estado de
“trecheiros”: Ela, inteira, com suas águas e suas árvores, seus bichos, seus
homens e seus deuses, grita no coração de todos os sensíveis. A Terra, subida
do caos, fez o homem e o homem lembra-se e sente piedade pelas gerações
que o sucederam e que, amando e morrendo, abriram-lhe caminho. Cumprida
essas etapas, surge a terrível visão: a terra inteira juntou-se a ti, tornou-se
corpo teu, grita dentro do abismo. Depois surge outra visão: Deus!
(Senhor, por que ruges como fera? Teus pés estão sujos de sangue e lama; tuas
mãos também. Pesadas como pedras de moinho são as tuas mandíbulas
trituradoras....Aonde vais? Choras, te agarras a mim, te nutres do meu sangue,
alentas e bates o meu coração)
164
A Luta: É a partir dela e dentro dela que os impulsos de Deus se manifestam,
entre eles o que o homem pode perceber é a dramática ascensão da matéria
inanimada às plantas, destas aos animais e deles para o homem-Ser. Degraus
que Deus criou para poder pisar e ascender-se?
A última parte é a verdadeira Prática:
São relações de cosmogonia. Uma relação entre Deus e o ser Humano. Nesse
percurso pré-final de configuração, os sentidos são renovados, reviçados e
purificados por excelência, e nem cabe mais explicar o ritmo da marcha de
Deus-Pai-Criador, mas sim fazer com o que da nossa fugaz existência com ele
sincronize. Não importa o nome que damos ao círculo supremo as sagração
das forças turbilhonantes, mas nos acostumarmos a chamá-lo de Deus porque
desde as infinitais dobras dos tempos ele nos comove, nos toca, nos supri, nos
intui, nos exercita em caminhos e descaminhos, com desvarios ou não, de
nosso rebuscá-Lo.
E aqui Deus é definido em nós tanto pela via negativa como pela afirmativa;
não é onipotente, não é onisciente, não é de todo bondade, é homem e mulher,
é moral e imoral, é excremento e espírito, é naufrágio e âncora, é balaio e
tampa. E em nossa carne efêmera corre perigo: ‘ ” Não poderá salvar-se se
nós, com nossa luta, não cuidamos disso; e não nos poderemos salvar se ele
não salvar-se em nós.
A última fase é a relação entre o homem e a natureza.
O mundo que nos chega aos sentidos de duas forças prodigiosas: uma que
desce e busca a imobilidade e a dissipação e a outra que sobe, procura a
liberdade e a imortalidade. Essas duas forças aparentemente contrárias, se
entrechocam sempre, perpetuamente, reconciliam-se e voltam a guerrear por
todo o Universo, desde o torvelinho de uma gota de água até a infinita torre
binária de astros da Galáxia.
Afinal, constata-se que o homem e o mundo são um, que formamos um só
exército, que anêmonas ou quasares combatem à esquerda e à direita, não se
conhecem mas lhes acenamos intimamente até. Nem por isso o homem está
livre da condenação ao niilismo, a um projeto inútil de vida, a um absurdo de
conceitos, filosofias ou empreendimentos.
-0165
SETE
“Vive-se nessa dimensão de tempo e espaço convivendo simultâneos com
outras dimensões do Existir. Próximos, ao mesmo tempo infinitamente
distantes. Exigir-se numa densidade da matéria que, exceto em raras exceções,
nunca consegue ultrapassar os limites intransponíveis en-tre-mun-dos”
(Decio One)
Um dia, perambulando pela Rua Augusta sentido da Paulista – ele adorava
passeatas; para ele era o movimento do povo se empolgando a procurar
direitos e mudanças era sinal de viço democrático - Irmão Saulo, fugindo um
pouco do assédio de seus amigos rueiros, deu-se frente à uma velha loja de
móveis usados. Foi quando se viu num espelho com detalhes em bisotê de alto
relevo. Não acreditou. Ficou muito impressionado. Meu Deus!
Assustou-se. Teve-se medo. Não se reconheceu “naquilo” que se via
entrevado.
Quem era aquele? O quê era aquilo?
Não, não, certamente que não era mais o posudo doutor, tampouco apenas e
tão somente um rueiro. Era pior ou melhor do que antes? Que medida há no
cárcere à céu aberto das ruas e suas situações escabrosas, mórbidas?.
Parecia transfigurado. Mal coube em si. Foi como se estivesse frente a um
pelotão de isolamento da realidade cruel.
Curvo, velho, enrugado, barbas longas e grisalhas, curvado (o peso do que
sabia somado) cabelos compridos e brancos, muletas toscas, sapatos rotos,
olhos fundos e tristes, tinha o jeito mesmo de um matuto feito beato do
agreste, só que em petição de desacorçôo. Sentiu isso: era um misto de louco,
de mendigo. Pior: era um misto de nada elevado ao cubo, pensou, abalado.
166
E notou-se ali com o par esquisito de muletas poluídas, com ceroto,
encardidas, maleixas, que passara a usar por causa das varizes, dos problemas
de articulação, de uma dor que surgira no joelho após um entorse de percurso.
As muletas lhe machucavam o sovaco, lhe puxavam uma velha hérnia, lhe
davam caimbras e tristes dores musculares, lhe macetavam os músculos sobre
os sovacos suados e com escamas de feridas velhas.
Pior foi o notar que, com o uso das muletas, parecia que as omoplatas estavam
crescendo. Não entendeu por que. Parecia ser-lhe uma metáfora, esse aludir.
Mas, de alguma forma, instintivamente até, sentia isso? Seria má impressão
pelo fato de ver-se em tal estado? Um ponto de fuga?
Irmão Saulo anotou isso e, logo em seguida, num outro caderno, alguns
poemas que aqui são relatados:
POEMAS DAS RUAS
Poema Um - Esgoto Gótico
No esgoto fétido das rua transversal
O cachorro atropelado na semana atrás
Sorriu-me com lágrimas nos olhos melancólicos
Enquanto a perna direita aos poucos apodrece.
Poema Dois – Donos
Passa o pastor distribuindo versículos bíblicos
Passa o padre distribuindo hóstia e sinais da cruz
Passa o espírita falando em chacras, karmas e livre arbítrio
Passa o ateu falando em revoluções ideológicas
Mas também passa o contrabandista obeso e calvo
O traficante, o gigolô e o guarda-noturno corrupto
E à eles pedimos bençãos, segredos, naus de sobrevivências
Pois eles são os verdadeiros donos da miséria
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Poema Três – Os Velhos Herdarão a Terra
Uma velhota de oitenta anos apareceu morta
De fome e frio
E seu corpo foi recolhido por um caminhão de lixo
Clandestino
Poema - Quatro – Éramos Blues
Os camelôs matam, roubam, traficam, bebem, amam
Jogam baralho
E sobrevivem assim, em suja paz química
Com suas consciências pesadas
E saudades de quando eram só trabalhadores
Não membros do informal crime terceirizado
Poema Cinco – Para Não Dizer Que Não Falei de Flores
Na igreja vazia
O mendigo dorme de dia
E de noite rouba toca-fitas
Para trocar por injeções de café com leite
E gordurosas marmitas
Poema Seis – Chiqueirinho
Quando passa o carro da policia
De madrugada
Com a sirene vaca louca ligada
Todos acordam assustados
Como ratos desconfiados
Apenas eu, com a lua caipira de companhia
Na sarjeta bebo cerveja quente e faço poesia.
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Poema Sete – Sampa Revisited
na fila do hospital
na fila do banco
na fila do correio
na fila do cinema
na fila do restaurante
na fila do estacionamento
na fila do cemitério
na fila do motel
na fila do açougue
na fila da hóstia
na fila do sopão
na fila da morte
Poeta Oito – Rota
Um dia um policial militar
Pediu-me documentos
Parei de comer um pedaço
De pizza que achei no lixo
E dei-lhe meu mais triste olhar
Nunca mais me apareceu ali
(Acho que se recolheu a um quartel
Para chorar)
Poema Nove – Sinal Fechado
Um dia vi minha neta Isabela Trigueiro
Na fila de um caixa rápido de supermercado
Que, quase a chorar, eu corri para ela
De onde estava pedindo esmola no final fechado
Mas depois com medo (e seqüela)
Sentei-me no chão e chorei desacorçoado
(Um guarda veio me tirar dali, armado)
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Poema Dez – Sudário
Dormi na chuva hoje
Não por gostar
Mas por não ter outra opção
(Mas havia estrelas no meu coração)
DEUS SABE ONDE PÕE A CRIAÇÃO)
Poema Onze – Anticorpos
Achei um rato morto, envenenado
Na marmita que deixei restos, ontem
E eu se estou vivo é por milagre
Poema Doze – Love Story
Apaixonei-me pela florista do supermercado
Mas ela não sabe, nunca saberá desse coitado
Que a amo demais, por mim e por ela, dobrado
Poema Treze – O Câncer
Acho que estou com tuberculose
Ou câncer da próstata
Mas pior é Sampa que está com Maluf
Poema Quatorze – Hino Nacional
Deus é brasileiro
Mas está com passaporte carimbado
Pra ir morar na Somália ou no Haiti
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Poema Quinze – Sede
Um vigia-noturno de um estacionamento
Matou um amigo meu, pedinte, por erro
Pensou que ele ia roubar um dos carros
Mas o pobre coitado só queria pegar água
Poema Dezesseis – Limonada
Hoje eu faria meus oitenta anos
Como pobre não faz aniversário, dura
Comemorei comigo mesmo a data
E tomei um porre de tubaína de limão vencida
Achada num depósito clandestino de uma rua sem saída
Poema Dezessete – Núcleo de Abandono
(hoje eu chorei escondido/Ninguém deve Ter percebido/Até ouvi um tiro
perdido/Mas guardei-me de dor comigo)
Poema Dezoito – Lição
Uma menina bonita
Vestida pra escola
Deu-me um real
E seu olhar de esmola
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Poema Dezenove – Piscina
Uma borboleta azul-piscina
Pousou no corpo de um cadáver irreconhecível
Que veio boiando na enchente
Poema Vinte – Vão
o mendigo alcoólatra do Vão do Masp
vomitou o jantar recolhido no lixão
mas veio um cão sarnento e comeu tudo
além de lamber os lábios do mendigo
Poema Vinte e Um – Mãe de Rua
Há um travesti com sífilis, silicone e lentes de contato
Que faz ponto sobre a marquise onde vende o corpo
Onde arrecada grana de militares, juízes e office-boys
E depois deixa um copo de leite para cada pedinte
Poema Vinte e Dois - Bandeira do Brasil
No monumento do Ibirapuera
Um louco pichou em verde-amarelo
Uma verdade: Radical é a fome!
Poema Vinte e Três - Bicho Homem
Um cachorro sarnento e com bernes, quem diria
Dormiu ao meu lado uma madrugada de um longo dia
Mas fiquei com pena de vê-lo em tão má companhia
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Poema Vinte e Quatro – Lei da selva
Olhos fechados
Ouvidos fechados
Bocas fechadas
A lei do sil6encio das ruas
É como um código legado de sobrevivência
Poema Vinte e Cinco – Modus Operandi
Meu asseio matinal
É uma torneira esquecida sem cadeado
Meu banheiro ocasional
É um monturo, uma sombra, um vão
Minha penicilina
É um cogumelo chamado sobrevivência
Minha fé ou religião
É medo de ser um corpo entendido no chão
No mais, sobrevivo, pobre, ermitão
Exilado em meu próprio chão
Em decomposição
Poema Vinte e Seis – Subvivente
Todo Dia de Natal
Eu penso em me matar
Depois descubro consolado e já nem tão triste
Como posso matar o que não mais existe?
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Poema Vinte e Sete – Mãe
Pensei muito em minha mãe, certo Domingo de Páscoa
E em depressão atirei-me nas rodas de um caminhão
O motorista brecou a tempo e eu escapei por milagre
Não sem antes anotar a placa da cidade: Nova Aurora
Poema Vinte e Oito – Madrugada com Fome e Frio
Hoje eu acordei
Com vontade de morrer
Depois recebi uma carta anônima de amor
Que tive vontade de fugir, ter prazer
Resolvi tomar um porre
Pois de amar também se morre
-0-
174
OITO
Walter Bello, o seminarista afeminado do Convento dos Capuchinhos seguira
Saulo em todos as idas e vindas dos percursos em tantas andanças, vigiando-o
aqui e ali, pois temia que, com o aparato de uma mídia interesseira e fora de
contexto, o pobre coitado intrometido fosse não apenas uma espécie de
Antônio Conselheiro, um novo Chico Xavier, um Zé Maria, um Padre Cícero,
mas até mesmo considerado um santo, e isso que ele sentira daquele rico boçal
se metendo a pobre, ele não podia aceitar nunca. Era inadmissível.
Ele sim, era um verdadeiro santo católico, pois dera toda sua vida, desde
pequeno, à santa madre igreja. Ele merecia ser motivo de rezas, promessas,
simpatias, novelas, um dia. Ele, Walter Bello, só ele, mais ninguém
Desviando sua tendência homossexual latente desde que nascera, prometido
que fora de forma precipitada à igreja pela mãe uma beata discípula de São
Pedro a quem atribuía vários milagres e resposta de pedidos cruciais, fazia mal
à si mesmo, à fé, ao meio, à religião, escondendo o seu meio sexo, cobrindo-se
de capuchinho para esconder o que os gestos não disfarçavam em inteireza de
revelação. Era limitado, mas, na sua vivência de discrespâncias, nunca
enxergara isso. Seguiu, como pode, os passos andarilhos da peregrinação de
Saulo, na periferia das chácara perto da descida para a Serra do Mar, nas ruas
anônimas da grande São Paulo, nas internações provocadas e fugas
inevitáveis, além de que, nas aparições ocasionais via ‘midia" (chegara a
subornar profissionais de imprensa para evitar maiores manchetes
espalhafatosas a respeito), intrometia-se contendo variações de fanatismos
explícitos, supervisionando espaços, intenções e maiores predicados de
aparições ou mesmo fanatismos de meio.
Tinha ciúme, inveja. daquele homem puro que não fora, não tinha conseguido
ser, nunca seria. Era um nada cansado do nada, mas, não tinha competência
afetiva para ter conhecimento inteiro disso. Ser o que não era o limitava.
Pensava em melhorar os ensinos, os estudos, o currículo, mas não iria
simplesmente virar mero frei ou padreco de paróquia provinciana nos
cafundós do judas. Queria, isto sim, desembarcar no Vaticano, conhecer os
famosos rapazes de aluguel iugoslavos que abundavam em Roma fazerem a
vida entre bordéis de luxo e saunas de turcos banhos públicos. Pois aprontou
de todo jeito, maquiavélico e tresloucado, desviou intenções, montou teatros
de absurdos, que, a certo tempo, as autoridades do lugar, cansados de tê-lo
175
como professor interesseiro e atrapalhando a sagração tranqüila do lugar, já
que não podiam afastá-lo ou mesmo cassá-lo de ser o que era para desgraça
própria, que, finalmente montaram caminhos, estruturais e administrativos,
conseguiram uma promoção-castigo, e, finalmente mandaram o mal
intencionado servo de Deus para estudos complementares visando o bispado
no Vaticano em Roma. Livraram-se dele, claro..
176
NOVE
“Conversamos futilidades. Nada temos a dizer, mas não podemos ficar calados. Quando
encontramos alguém fazemos festas, recordamos os bons tempos, sentimos algo agradável;
ma não sabemos ao certo definir. Nem sempre somos sinceros nessas ocasiões.
Desenrolamos o fio de Ariadne. Enrolamos o fio novamente. Quando alguém faz um gol,
gritamos gol. Não ficamos nem alegres nem, tristes. Vivemos numa zona de sombras.
Vultos. Não queremos morrer, não queremos viver. E trabalhamos. Não podemos ignorar o
que todos sabem. Nossas vozes se confundem. Temos a nítida impressão de que nossas
palavras não são nossa. Durante anos perdemos a memória. NO entanto, isso não nos
prejudicou. Ao contrário, a amnésia nos protegeu das culpas e dos aborrecimentos. É certo
que também levou nossas melhores lembranças. Mas, o que se pode fazer com lembranças?
À noite, quando o universo é mais belo, quando a vida revela seus segredos, nos
acomodamos em silêncio em frente à televisão. Em geral, não assistimos aos programas.
Ligamos porque apenas não suportamos a solidão. Nunca vamos além do permitido. Por
vezes, um de nós solta um peido. Sorrimos. É uma senha. Afinal, estamos vivos. A cidade
tem 150 salas de cinemas, 90 de teatro, 800 bons restaurante, zoológicos, museus, casas
noturnas, clubes. Se queremos ser diferentes, temos que ser iguais. Temos vergonha de
nossa nudez, nossa barriga, nossa calvície, nossas roupas. As incertezas nos desesperam.
Não sabemos mais em quem acreditar: na psicanálise, na astrologia, nas seitas orientais, na
terceira onda, no fim iminente por uma guerra nuclear, nas profecias de Nostradamus, na
velha e tão nova igreja católica. Matamos Deus. Ressucitamos Deus. E, a todo minuto, nos
injetam mais dados, mais informações. Não nos recordamos mais quem foi Hitler. Vamos
vivendo, vamos morrendo. Temos sempre desculpas prontas, na ponta da língua, para cada
ocasião. Pedimos socorro por olhares, mas quase todos estão cegos. Somos vitimas e
inocentes. Desaprendemos muitas lições. Desajeitados, constrangidos, preferimos o escuro.
Fazemos amor já sem alegria. Não estamos preparados para a alegria. Não temos tempos
para os irmãos. Não temos tempo para nada. Mas dançamos. Em breve, muito breve,
teremos um filho. Ensinaremos a ele tudo o que sabemos. E o que não sabemos...” (Casais
– João Anzanello Carrascoza)
_________________________________________________________________________
Um dia Saulo sonhou que tinha outro irmão. Era uma obsessão intuitiva que
vinha-se-lhe de tempos em tempos, como se um inesperado desvio de conduta
mental. Um resquício de paranormalidade em vezo inferior? Sonhou ou foi só
um mero fluxo de inconsciência, revestido de memórias parcas guardadas
desde a primeira infância?. Era só uma nódoa de legado íntimo?
Por muito tempo teve que carregar ainda essa cruz, feito enorme ponto de
interrogação nas paredes das reminiscências. Pois certa feita sonhou que
estava com esse irmão já bem crescido e muito parecido com ele, e, ambos,
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crucificados junto com o filho do Marceneiro José, com Jesus Cristo já
transpassado dizendo que ambos estariam, com ele no paraíso. Saulo acordou
assustado, trêmulo, pálido. Chorou. Era então mais um ladrão, um corpo na
Quarta Cruz do Calvário?
Ladrão de si mesmo?
Ladrão de sua cidadania?
Que mensagem complicada e indecifrável era aquela?
Tudo foi um mero sonho, mas esse sonho-lembrança marcou-o
Nunca ganhou tanta esmola como aquele dia difícil, quando comprou leite,
pão, manteiga e mortadela, e, como o fazia quase sempre, distribuiu a comida
rápida e simples aos seus semelhantes, largados ali entre uma oficina
mecânica e um depósito de ferro-velhos, numa travessa da Avenida Faria
Lima, no bairro de Pinheiros. Escreveu muito aquela noite fria de junho.
Ouviu conversas de mendigos sobre uma tal Confraria Miosótis, também
ouvir lascivos sussurros de mendigos se amando e fez força para não se
destemperar em impropérios.
Cuidou-se.
A lua vinha de Itararé e era inteira, branca , linda e nua como dizia a canção
de Caetano de música Lua de São Jorge.
Depois acalmou-se. Bobagem, pensou.
Uma coruja beliscou a camurça do silêncio em seu íntimo transido.
Um sapo-martelo barulhou identificador nas sombras
Uma cigarra triscou a tábua do breu.
Um grilo anunciou chuva e ele teve medo de alguma coisa.
As estrelas tinham se recolhido numa gaveta secreta do infinito, e um ventocoisa com cheiro de chuva do mar trouxe ainda mais melancolia e angustia pro
cárcere privado de sua reclusão, como se lhe espetasse um punhal de cidra.
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Ouviu barulhos e medrou-se. Tinha havido uma outra fuga no cadeião de
Pinheiros, ali perto, na marginal, e a policia ia a vinha nervosa, pondo todo
mundo ali em risco, pondo as adjacências em polvorosa.
Xingou a mãe da esperança.
Um retrós de sombra pesada cobriu- o em sua insignificância pré-auroral.
Dormiu como um cutelo.
-0-
179
DEZ
Uma outra bendita noite sonhou que fazia o caminho de volta para casa, para
sua aldeia Itararé. Que tinha que se preparar para voltar às origens e entregar
seu estandarte de vivência ao julgador da espécie humana
Mas não havia mais mãe. Tampouco conhecidos ou amigos que o
reconhecessem naquele feição em desacorçôo. Só havia um pai passando de
cem anos que o renegara, e que se mantinha rico e importante membro da
sociedade. Queria ver como o ancião ainda na ativa reagiria ao sabê-lo
mendigo por opção. O velho era dono de tantas coisas, que por certo mal cabia
em si de vaidoso, orgulhoso, enorme camelo difícil de passar no buraco da
agulha da salvação para os reinos dos céus.
Ele era um mero bastardo, um renegado.
Pois uma manhã tomou a decisão, saiu de fininho do canto rueiro dos pobres e
coitados, escondido deu no pira furtivamente, quando, a partir da Rodovia
castelo Branco demorou meses na trilha do sol, a caminho de casa. Ganhou
Sorocaba, depois Itapetininga via Raposo Tavares, até Capão Bonito, depois
garrou uma rodovia vicinal sentido Taquariavai, Itapeva e, finalmente
adentrou Itararé, sul do estado de São Paulo, seu rincão amado.
Quando chegou em Itararé não acreditou.
Era como se entrasse dentro de si mesmo. Há quanto tempo não se sentia em
paz consigo mesmo? Havia ternura naquela volta, emoção naquele reencontro.
O povo, os lugares, as lembranças guardadas. Itararé continuava linda,
verdejante e acolhedora.
As ruas em que vendera banana-caturra, os prédios centenários e novos, as
andorinhas bentas, as árvores de ipês amarelos coroando as calçadas centrais.
Desceu pela Rua São Pedro e seu tapete de lustrados paralelepipedos como se
cacau quebrado, passou a praça da Igreja São Pedro e garrou rumo do
Supermercado central do velho genitor, que ficava no chamado centro velho
da cidade, perto do calçadão.
180
Apesar de ser um sábado qualquer na vida rotineira da cidade, seu pai exigente
e unha de fome como era, mesmo algo curvo e lento no gestual, estava
conferindo pessoalmente um caixa que não batera, com medo de estar sendo
ludibriado.
Vendo-o, nem conhecido e nem freguês, pior, um mendigo esquálido de
cabelo e barba grisalhos, desdenhou-o, quando a repugnar-se. Saulo fedia a
suor, a falta de asseio. Como o velho empresário não o identificou conhecido,
enxotou-o
Saulo pensou em simplesmente dizer – quantos anos ensaiara o reencontro
todo - “Pai estou aqui”. Depois temeu-se. Temeu-o - Como a falta dele tinha
sido crucial em sua formação humana. Era tudo um reflexo disso? Não há
sensações no esquecimento.
O velho empresário alto, vermelho, cabelos ralos, braços compridos, em furia,
vendo-o entre uma prateleira de tubaina de limão e um balcão com sandálias
havaianas em oferta, atacou-o:
-Fora daqui, seu estrupício. Não atrapalhe meus negócios, seu filho-da-puta.
Saia já daqui ou eu chamo a polícia. Quem o deixou entrar? Não se enxerga?
Sai! Sai! Sai! Vá feder assim nos quintos dos infernos!
Saulo não se reconheceu filho “daquilo”.
Recuou aturdido, lágrimas nos olhos tristes, frustração completa e dolorosa no
peito. Girou nos calcanhares, entre fregueses atônitos e seguranças bravos.
Ganhou a rua com sua tristeza multiplicada e o peito azedando um curtume de
sublimação temporã. Voltou para sua família rueira em Sampa.
.............................................................................................................................
Uma noite, deitado sobre umas tábuas, no largo de Santo Amaro, depois de
ganhar algum adjutório e de apanhar algumas frutas parcialmente
aproveitáveis numa feira nordestina própria, perto do Largo do Socorro, tendo
problemas nas articulações, talvez um reumatismo ou problema de hérnia,
resolveu tomar uma aspirina para ver se passava. Estava ficando velho,
181
concluiu. Logo, a sua hora chegaria. Ansiava por isso. Iria descansar o espírito
atribulado. Por isso foi dormir e nem eram duas da tarde, com um sol ardido
queimando a pele do dia. Escolheu um canto de obras ao lado de um prédio
abandonado por estar com problemas nas estruturas, e ali adormeceu entre
sarnentos cachorros vadios e um esgoto correndo fétido.
Quando acordou já era perto da meia noite, pelo que observara de um relógio
de banco num alto prédio ao longe.
Súbito foi tocado por um tipo que, certamente não era dali e nem mendigo, e
que pediu que o seguisse. Era um estranho no ninho. Quem seria?
Como teve medo de ficar empacado ali, numa recusa fora de propósito ou mal
explicada, entrou numa kombi (seria daquelas que distribuíam alimentos aos
neessitados?) e viu que o carro queimado óleo rodou por mais de hora, saindo
daquela zona sul de Santo Amaro para o outro lado da cidade.
Foi levado até uma instituição de caridade, cuja senha de entrada, ouviu, era
Operação Miosótis, lados do bairro de Santana, zona norte.
Era um prédio velho e simples, mas onde parecia ficar sediada uma
administração de empresa caridosa ou coisa assim.
Ali, chamado às falas com um sr. de nome Carlo Magmo, foi inteirado de que
poderia deixar a rua, poderia ir servir ali, como empresário, como filantropo,
como doutor, como caixa administrador. Seria de ótima valia. Quando Saulo
indagou como eles adquiriam recursos para manter a operação toda, um tipo
que vigiava ao lado disse que a organização era uma espécie de Robin Hood
moderna. Tiravam coisas de quem tinha muito, para dar aos pobres. Disseram
que era uma ramificação nova de uma ala de maçons do leste europeu, com
trabalho ali em Sampa. Tomavam dinheiro conseguido por bandidos em altos
resgates, desviavam contrabando roubados, enfim, na contra-mão dos fatos,
agiam bem estruturados para roubar ladrões, traficantes, ricos, poderosos.
Com isso, aplicariam dinheiro lavado do narcotráfico, dinheiro sujo de
contrabando, na ajuda humanitária. Era a Operação Miosótis e os fins
justificam os meios. Saulo até achou interessante aquilo. Será que o mundo
globalizado sofreria um revés a partir de pobretões do terceiro mundo? Era a
terceira via contra a Nova Ordem Mundial com suas injustiças também
terceirizadas?
182
Mas também era suficientemente esperto para perceber que estava com
alguma virose, que não duraria muito na tábua de carne da terra, que logo
bateria com as dez, como diziam seus amigos de Itararé, e não poderia
empatar tempo ali num escritório, do qual fugira quando era rico, como se
fugisse de uma cruz montada em pose .
Queria voltar as ruas. Precisava.
Com todo respeito foi levado de volta, sabendo que, pelo menos, alguma coisa
os desafortunados estruturados para terem algo de melhor.
-0-
183
Pré-final
“Para nós, surdos do coração/Tudo é
Código-Morse” (Marcelo Ferrari)
.................................................................
O melhor lugar pra se fazer passeata em Sampa, é na Avenida Paulista. Ali,
em alamedas largas, de duas pistas concorridas, centrada sob totens de ricos
empresários, multinacionais, bancos estrangeiros, e ainda sob o foco
imediatista e constante de milhões de trabalhadores (além do trânsito insano e
diários congestionamentos que afetavam toda a malha viária da cidade), os
desfiladores alvissareiros, barulhentos, altivos, críticos e com personalidade
de sindicatos ou mobilizações sempre tentavam tocar a sensibilidade dos
executivos e boys que iam e vinham colecionando jargões, frases de efeito,
críticas por atacado, mais fanfarras, fogos de artifício, carros de sons, apitos,
bandeiras, estrelas, pencas sonhos, cachos de esperanças inócuas.
Era quase impossível atingir aos ouvidos de mercador da classe média alta (e
principalmente da classe dominante, claro), mas, fazer passeata era um
desabafo, uma demonstração de força (ah se o povo soubesse o poder que
tem!) e desfile de protestos ali era muito bonito, não apenas um mero jogo de
cena, mas com certeza viraria manchete de jornais, atrairia a atenção da mídia,
verdadeiro exercício democrático de cidadania, participação e conhecimento
da dura realidade que atingia as veias do país.
Fazia bem a todos, à causa de todos. As autoridades austeras e despreparadas
proibiam, os estúpidos policiais desqualificados faziam cercos de entradas e
saídas, extorquindo, querendo vantagens, apreendendo instrumentos, carros de
sons, placas, faixas, mas, quem é que queria ser policial nesse mundo? Todos
logravam até com extrema facilidade os homens de farda, cassetete e cães,
principalmente em países subdesenvolvidos e atrasados como o Brasil.
Quem os levava a sério? Eram ocasionais pobres filhotes órfãos de uma
ditadura culpada por todos os tipos de falências do país, herdeiros do abuso
de poder, do arbítrio e sempre mal treinados para bater, torturar, matar, não
para pensar, serem lúcidos, serem profissionais, dinâmicos, experts. Era uma
moleza. Eles ameaçavam com olhos tortos, beiçudos e com cassetetes
importados do Chile da ridícula hiena com dolmã-de-tala chamada Pinochet,
mas todos escapavam lisos e caçoadores, pois o direito de greve é permitido
na Constituição, e nesses casos o povo é melhor do o que representa o povo..
184
Pois foi aquele dia véspera de seu aniversário, final de agosto (era do mesmo
signo de Jesus - lera pequeno ensaio de um astrônomo israelense a respeito)
que, saindo de fininho do Largo de Pinheiros onde se achava fazendo nova
temporada (dizendo que ia ali perto num monturo fedorento, disfarçar para
fazer um xixi), e, pedindo carona de graça para um motorista (de vez em os
deixavam entrar pela porta de trás, ou, pela porta da frente desde que
passassem por debaixo da catraca) e, finalmente deu-se ali no começo da
Avenida Paulista, esquina com a Avenida Consolação, área toda enfeitada, em
balbúrdia, lotada de policiais sisudos. Para confinar o povo a policia prestava.
Para prender bandidos de terno, gravata e farda – os ricos eram imputáveis –
não! O famoso vão embaixo do MASP estava lotado. Ambulantes
adundavam. Punguistas, curiosos, pedestres apressados também. A Praça
Trianon e o edifício Gazeta era um carnaval só. A democracia é barulhenta?
Por motivo que ninguém descobrira, nem desconfiava, Saulo resolvera se dar
de presente estar naquela passeata. Era sua maneira de pertencer-se, valorarse, ser elo numa corrente, acreditar no sonho impossível.
Era uma maneira de somar, de deixar de ser um ilustre anônimo e se dizer
também em soma. Era mais um cooptada, entre um grupo de professores que
iria protestar contra a corrupção municipal, estadual e federal, pressionando
para que uma CPI em Sampa cassasse o prefeito que nada mais era que um
fantoche do mandatário anterior, uma vaquinha de presépio no lucro das
operações ilegais enraizadas na Prefeitura, desde as administrações regionais
até as tétricas trincheiras do inútil Tribunal de Contas do Município, um antro
de marajás despreparados e comprometidos com os corruptos, legalizando o
ilegal de forma torpe....
Antes não tivesse ido. Bem cedo, quando perdera o sono com fome a
contemplar a estrela vésper, ouvira num roufenho radinho chato de um
morador de rua uma canção dizendo de picaretas em Brasília..
Mas não teria tempo para me arrepender.
Era, finalmente, o ultimato crucial do seu destino, foi.
E ali estava, ao lado dos mestres (que em Sampa, a capital da Corrupção do
Terceiro Mundo, ganhavam menos do que motoristas de ônibus urbano),
sentiu-se orgulhoso deles, achou-os bonitos e jeans e fome de justiça nas
185
palavras, como disseram alguns professores que tinham reparado em sua
alegria, sua boa vontade, sua determinação de marchar, apesar das muletas, de
seu jeito de ancião já mais pra lá do que pra cá.
Mais de dez mil pessoas amontoadas com fervor e palavras de ordem. Como
se marchassem para lugar nenhum, mas ainda assim seguiam em frente. Como
se conduzidas ao matadouro das resignações, mas altaneiras, firmes, resolutas,
assumidamente confiáveis e politizadas com verve de meio e propósitos.
Súbito, de uma hora pra outra, mal uma pomba voou baixo a procura de restos
de pipoca doce, mal um sol vazou o alto edifício da FIESP, e ouviram-se
gritos espantados, salvas de tiros, cocos voaram para cima de cavalos, pedidos
de calma de um aparelho de som, e um chiado espoucou no ar rente. Um
flanco de gente correu, outros abortaram a fileira em marcha, Saulo
inconsciente mas lento e cansado apressou seu par de muletas rústico para
ganhar a segurança do vão do prédio da Gazeta, quando ouviu um zumbido
curto, todo mundo correu buscando cuidar-se, depois imaginou-se com uma
pontada de água gelada no lado direito da cabeça (como uma gota de chuva
ele murmurou, antes de fechar os olhos aturdidos), e caiu para dentro de um
buraco que certamente sabia que ali não existia.
Não existia?
Pisou em falso? Qual era o Calcanhar de Aquiles de sua miserabilidade?
Tombou como vara verde na serra elétrica de sua circunstância.
*******
186
Seu corpo coberto de crisântemos e pequenas dálias japonesas foi enterrado
em Itararé, na guardação e féretro mais concorrido que a região de luto tivera
notícia.
O mais interessante, no entanto, foi que compareceu ao velório – e identificouse emocionada – uma senhora de nome Pietra Halcskic, descendente de
húngaros que morava em Santa Catarina, e que contara ter adotado o mal
recém-nascido irmão gêmeo de Saulo, pois a abalada mãe deles estava
passando necessidade num canto piorado da zona de meretrício da Vila Osório
de Itararé. Como que comprara uma das criança, dando-lhe o nome de Felipe e
criando-o com todo zelo, todo amparo. Pois esse alma gêmea de Saulo, irmão
de sangue (mas não de leite) dele, casara-se, formara-se em Filosofia pura (era
doutor em dialética social) tornara-se excelente maçom e filantropo – era
paranormal também, com linha homeopática e também ligado à cura
alternativa aplicada com base na medieval acupuntura budista – tendo três
filhos que chamara Pedro, André e Thiago, sendo que os três meninos,
gêmeos, tinham se convertido ao judaísmo e estavam entre saibras num kibutz
rural de uma área de colonização perto de Jericó, em Israel.
Esse irmão de Saulo, Felipe, o identificara trecheiro após uma reportagem na
revista de Sociologia Política da USP que lera no consultório de um amigo de
boemia de Joinvile, lá pelas tantas, escorado de idêntica frustração, sentindose para morrer, internara-se num seminário a título de aprender teologia laica e
ali fora achado morto por problema de angina, ajoelhado num confessionário
cheio de lírios amarelos e uma imagem de Jesus Cristo agonizando na cruz.
Era igual ao irmão?
Aquilo era um sinal de que a missão do falecido seguiria adiante?
Afinal, finalmente Saulo compreendera - e passara isso de forma firme e
convicta - aos outros, como uma mensagem completa e traduzida entre teoria
e prática, de que viver não era, necessariamente, ser um chato de galocha, ou
simplesmente ser um chato. Viver era enternurar cada momento de sabedoria
presencial, estimado em amor e luz (conhecimento da fé), para que as águas
de nossas vidas conduzissem energias, gerassem árvores e alimentassem
sonhos e perspectivas de evolução natural, intima e comunitária naturalmente,
em todos os sentidos vitais de inúmeras pluralidades existenciais, como
espécies próprias a serem construtoras de somas como paz e justiça para
todos.
187
A mão de Deus tem vários dedos, e, mesmo às vezes escrevendo certo por
linhas tortas, ainda sabia tocar feridas existenciais, apontar caminhos,
amparar, plantar sonhos no coração dos sensíveis.
-0-
188
FINAL
“Bem-aventurado
os
procuram, porque acharão”
que
(Fragmento de texto apócrifo em
aramaico antigo, escrito em papiro
de
estranho
material
desconhecido, atribuído a parte
perdida do Evangelho de São
Mateus, subtraído por Napoleão
Bonaparte da Torre do Tombo em
Portugal e encontrada num palácio
perto de um castelo que fica num
desvio geográfico da Serra dos
Pirineus, numa área considerada
adjunta ao sagrado caminho de
peregrinos do Campostela)
Quando Saulo capengou e caiu, ainda na correria louca da Avenida Paulista,
de súbito foi tomado de um soco seco – já tivera aquilo antes, aprendera o
entremundo – e rendeu-se à evidência. Tinha sido atingido, sentiu. Era
chegada à sua hora. Pensou da mãe. Pensou em Deus. Pensou no pai ingrato.
O tal filme inteiro de sua vida difícil passara-lhe pelo cérebro em questões de
segundos, como se um raio atingisse sua descarga de neurônios em hora
sacrificial. Estava dentro do Nada e encontrara a beleza desse lado de dentro?
Não ficou triste por, finalmente ter chegado a sua hora. Esperou por aquilo
desde que se deu por gente? Quase suspirou de contentamento. Tinha feito
bem a sua parte: tinha vivido da melhor maneira possível. Quase que
agradeceu à Deus, dizendo “obrigado meu Deus” por ter me livrado desse
inferno, ter me tirado desse castigo de existir. Quase que sorriu inteiro, como
nunca houvera sorrido na vida inteira, a agradecer a Deus por o ter ferido de
tal fim. O fim da dor, o fim da fome, o fim de tantos desencontros. Sim. Era
isso mesmo o que queria, como se um alienígena na vida estrangeira da terra.
Estava em paz pela primeira vez desde que nascera?
189
Olhou para o céu.
Estava lá. Estava no caminho de volta.
Olhou-se e não se enxergou. Sentiu-se atingido por uma espécie de anestesia
supra-terreal. Foi quando pensou que não fora ele quem criara o caos...ele
estava ao redor e a única chance, a única saída era deixá-lo entrar (ou entrar
nele?). A única chance de renovação consistia em abrir todos os olhos e ver,
mesmo sem compreender, se sentir inteiramente. Só que ali era um caos
verdadeiro que tinha tudo a ver com a vida eterna...
Que mundo era o mundo? O que era o outro lado, o lado de dentro? O que era
o não-mundo?
190
..............................................................................................................................
Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas
Em que existir dura apenas um instante em que cada instante
Verte no vazio no esquecimento de Ter existido
Sem esta onda em que no fim
Corpo e sombra juntos se tragam
Que faria eu sem este silêncio abismo de murmúrios
Ofegando furioso direção do socorro em direção do amor
Sem este céu que se eleva
Sobre a poeira de seus lastros
Que faria eu eu faria como ontem como hoje
Olhando por minha vigia se não estou só
A errar e a virar longe de toda vida
Num espaço títere
Sem voz por entre as vozes
Encerradas comigo
..........................................................................................................................
.
No interior de cada introvertido
Há um extrovertido e vice-versa
191
_______________________________________________________________
(Carl Jung)
..............................................................................................................................
Onde estavam as muletas?
Quem era ele ali?. - VIU que seus ombros eram mais largos do que sabia que
eram. Seus chatos pés descalços e inchados de andarilhar vestiam a pantufa do
ar. Cadê as suas dores musculares, as varizes - as omoplatas dolorosas? Cadê a
angústia, a melancolia, a depressão, a pele velha, a mente com disritmias? Em
que estojo se restava despojado da vida nua e crua?
Finalmente compreendeu porque às vezes intuía que as muletas de certa forma
o estavam aleijando, alterando, deformando também internamente, de alguma
maneira ou de insabida mutação íntima.
POR DEUS! Estava voando! Tinha saído do mundo infame, vil. Asquele era o
outro lado do maldito mundo?
Sem que se autorizasse interiormente, sem que esperasse ter chegado a honra
da hora – uma bala perdida, um tombo de escada, um ataque fulminante do
coração – estava sem corpo podre, finito, nojento – ai do podre sangue
humanus! – e agora era nu nos ares de um altar que ficava na sagração de
muito além do sol.
Pela última vez contemplou seu corpo ali no primeiro degrau do edifício da
Gazeta Esportiva, com um policial assustado guardando o cassetete, pessoas
parando para recolherem-no ao vê-lo caído longe das muletas, repórteres
feridos espoucando flashs como se pequenos relâmpagos de sintonia fina.
Estava morto na terra e o barulho de uma ambulância (e gritos, correria,
pancadaria, palavrões) invadiam o ambiente varrido de medo e correria
generalizada.
Ao mesmo tempo estava vivo no céu de todas as honras?.
192
Subindo, tragado por uma dimensão (paralela?) sendo finalmente reveladome, pode finalmente compreender que tinha sido aceito:
SIM, ERA DELES, FINALMENTE !
Mas não estavam promovendo resgates, evacuações, arrebatamentos. Era,
finalmente, como tantos outros, uma prova de que
HAVIAM SERES HUMANOS NA TERRA
PARA QUE O CRIADOR – que nos fez à sua imagem e semelhança – não se
envergonhasse do que criara e não abandonasse a esfera global a própria sorte
de vagar para sempre no desgovernado curso do universo cosmonal.
E os viu aos montes. DEUS ESTAVA NO MEIO DE NÓS – não fora feito à
imagem e semelhança, não era um elo como parte do todo em Soma - E ELE
ESTAVA ENTRE ELES!
Eram muito mais do que podia imaginar. Estavam em todos os lugares. Uns
tinham-se tornando de alguma espécie terrestres – um novo céu e uma nova
terra? – alguns tinham cargos públicos, outros descobertos curas de doenças
terminais, um monte deles tinha trazido a invenção de um tal disco-voador ao
campo da ciência terrestres e agiam com outra face numa área desértica perto
da fronteira com o México, numa sede clandestina da Nasa.
Cada pessoa habitava um campo de energia multidimensional. Cada vida ou
morte era uma dimensão.
Todos eram campos de mais ou menos energias. Aos poucos os seres ruins da
terra seriam substituídos? Então todos seriam, cedo ou tarde, SALVOS
PELAS OBRAS?
Era isso que eu pensava que era?
Meu Deus!.
Tinha imaginado, intuído, sofrido para enxergar mas era exatamente. A
intuição e a criatividade, a imaginação, a abstração, traziam o verdadeiro
conhecimento
193
O dia da vinda do Criador já tinha começado.
ENTÃO DEUS, EM SUAS MÚLTIPOLAS FORMAS JÁ ESTAVA NO
MEIO DE NÓS!
Ele tinha dado Noé, Elias, José do Egito, Moisés, Abrahão, Jesus Cristo
Maomé, Buda, Leonardo da Vinci, Santos Dumont, Pablo Neruda, Gandhi,
Luther King, Madre Teresa de Calcutá e tantos outros.
Éramos todos um só como se “limados” pela mesma energia? Todos em Um?
Sentiu-se calmo e tranqüilo, em paz interior, pela primeira vez, finalmente.
5Tinha o que queria: a verdadeira felicidade espiritual, a paz na alma.
Finalmente estava dentro de si. O cálice da limitada vida terrestre tinha sido
afastado de sua angústia-vívere interior.
Estava no rol sagrado paraíso.
Estava finalmente, feliz, completo, eterno, descansando nos braços sagrados
da paz celestial , no paraíso celeste que era a magnífica e extraordinária
contenteza do
D E S M U N D O !
-0-
(FIM)
194
(*1)-Dr Paulo de Tarso Trigueiro foi atingido por uma bala perdida de um
policial da Rota atrelado ao governador insensivel com os problemas da
educacão e Violência, seu corpo reconhecido por familiares. Foi enterrado no
cemitério Centenário de Itararé.
(*2)-Dagmar Marlene deixou quatro filhos de pais diferentes, todos eles
moram na região de Itararé. Um tornou-se padre, um outro é pastor
protestante, um terceiro estuda Espiritismo. Mas um quarto é comunista,
excelente ser humano que ainda acredita num socialismo de resultados.
(*4)-O Frei Walter Bello que andou sondando o irmão Saulo, ao seu jeito
afrescado (de meio sexo), cabelos oxigenados, gestos moles, é o pervertido
novo Chefe dos Capuchinhos descalços. Por ter aprontado entre irmãos, foi
recomendado para fazer curso (retirada estratégicamente legal) de Direito
Romano no Vaticano. Sonha em ser o primeiro papa latino-americano e já
teima nos bastidores essa intenção maquiavélica.
(*5)-O velho Aarão da Chácara das Rosas fez noventa anos e arrumou ainda
mais o lugar. O dono do terreno ao saber de seu trabalho, passou o lugar para
seu nome, ajudando, transformando o local num centro de Atendimento
Social, chamado Fundação Sócio-Cultural Irmão Paulo de Tarso
(*6)-Os filhos do Dr. Paulo de Tarso são todos aliados de corruptos e ladrões,
a maioria de políticos liberais. Dirigem clubes, universidades, instituições,
ONGS, têm cargos públicos bons, já aumentando as posses em mais de
quinhentos por cento. A vida do pai não foi lição suficiente. Nem querem
saber dos sobrinhos, filhos do irmão gêmeo do pai. Mal sabem o que sabem.
(*7)-São Paulo continua um esgoto a céu aberto, com o seu prefeito envolvido
em rede enorme de corrupção, que começou com seu anterior prefeito e
mentor político, Paulo Maluf. É mais um ramo da Máfia chamado Pau-Brasil
agindo, apesar de já investigada até pelo FBI. Mas têm 30% de chance de ser
eleito o político do estilo “rouba mas faz”, o mais corrupto do Brasil. Uma
pesquisa da Folha de São Paulo estatisticamente descobriu que pelo menos
vinte e dois por cento dos paulistanos aceitam um ladrão no poder.
195
(*8)-Caetano Veloso ganhou o Troféu Imprensa (Programa Silvio Santos) por
ter o melhor cedê de MPB gravado no ano, estourando nas paradas de sucesso
com a música Sozinho do cantor-compositor Peninha.
(FIM)
196
SAMPA-ELE está no meio de nós
Um homem de poder, realizado financeiramente, mas que não é feliz com todo
o status que tem. Ao contrário, é infeliz e, secretamente busca um sentido
para a vida, para a pergunta que cantou Caetano Veloso: “Existir, a quê será
que se destina?” Pois esse paulistano de Itararé, sul do Estado, certa noite de
passeio e gastança como tantas outras fugas inúteis, ao lado de uma bela e
fogosa mulher que tinha sido sua amante e agora desposara, vê uma resposta
excepcional para o que procura, enxergando então, muito além do
costumeiramente comum. É quando vê - com uma antiga e atiçada
paranormalidade de sensitivo novamente redesperta (passou décadas com esse
dom mascarado em si, pois ganhava dinheiro, crescia, estudava com a vida
sedentária de rico que levava). É quando esse TAMANHO VER mexe com
suas estruturas íntimas, espirituais, sensoriais. O quê era exatamente VIVER?
Valia a pena a sagração da infinita Viagem de Existir, sendo o que era?. Era
bom, sim, mas, para quem? Para quê? Então toma partido de sua vida pessoal,
readquire novas e puras convicções, tem inteira clareza do que realmente de
extraordinário (e de inusitado presencial) acontece nas ruas de abandono
social de São Paulo, onde ocorre um incrível holocausto de rejeitados por
causa do dezelo social público, os chamados excluídos, descamisados. Gente
simples, pobre, humilde, carente.
Moradores de ruas entre pedintes
subviventes, mais velhos largados pelos clãs, fugitivos de êxodos rurais e
periféricos (e suas injustiças explícitos), E ex-favelados atirados na rua da
amargura dos contrastes sociais. E lembra-se do que de mais belo lera de
Cristo, sobre o Sermão da Bem-aventurança que São Mateus dos Evangelhos
resgata. Então toma sentido de si, toma tento de mudanças que se fazem
necessárias. Tachado de louco, extravagante, passa a buscar grandeza de
espirito. Quer lavar sua alma na causa dos desafortunados. Esse foi o primeiro
milagre. Existem outros. É quando cai na rua, estuda, aprende, é tripudiado –
quer orações com a Soma de obras sociais – e sofre, até que, tocando o
intocável, tem-se aceito em sua missão, com o aval do “Dono” da falange que
vê de maneira clara e cristalina. O quê um homem só, com sua esperança e
luz, pode fazer contra um mundo globalizadamente amoral, insano e pouco
preocupado com os Sem Teto, Sem Salário, Sem Amor?. O livro
(neoexistencialismo?) prepara caminho interior para a releitura da existência
sob uma ótica ética, humanista, nesses tempos tenebrosos de muito ouro e
pouco pão. Não estamos sozinhos quando fazemos caridade? A força do amor
move moínhos... 197
personagem principal aos poucos se
tornara) o próprio Paulo de Tarso
do caminho de Damasco. Dos
relatos incríveis que ouvi, dos
cadernos de rascunhos que achei
em Itararé, procurei entender na
medida do possível (e dentro do
meu imaginário pequeno para a
grandeza sensorial do vivenciador
da história), tentando deixar o mais
verdadeiro relato de uma vida
maravilhosa recuperada em tempo
para a obra suprema da caridade.
Não inventei nada, nem enfoque
ideológico ou religioso. Apenas
formatei um relato do que de inteiro
e crível entendi. Cada leitor avaliará
melhor do que lhe for de serventia
em fé e amor. Mas, com certeza,
depois de ler sobre a vida de quem
largou as páginas em branco de
uma existência vazia, e foi em
busca de se postar como um Ser
plural, comunitário, será outro.
Então ainda há esperanças para a
espécie humana? Nem tudo está
perdido. Muitos são chamados. O
quê pode o amor gratuito e serviçal
numa sociedade insensível? Eis o
resultado dessa busca. O interesse
de passar uma vida a limpo,
transformando-a num registro, é o
testemunho de que tudo na vida é
um “milagre”. Os nossos problemas
são os nossos professores?
A
imaginação é mais importante que o
conhecimento? “A mente que se
abre para uma idéia, jamais voltará
ao seu tamanho normal”, disse
Einsnten. A história desse Paulo de Tarso
fiquei sabendo inicialmente de
ouvir-dizer, entre tantos causos e
lendas de Itararé, com sua gama de
histórias, inclusive representativa
do rol da história brasileira. De
início não me fiei muito. Mas,
coincidentemente em São Paulo, de
um
grupo
de
Psicólogos,
Assistentes Sociais, Sociólogos e
pesquisadores dos problemas de
rua, bancados por uma ONG com
base social na FAO (ONU) soube
mais e busquei sondar melhor
aquilo tudo de inusitado. Fui a
creches,
sopões
comunitários,
igrejas, hospitais, sempre buscando
dados dessa vida magna. Conheci
parentes do personagem – disseram
ser verdade mas não quiseram se
identificar – conheci mendigos
recuperados que confirmaram (com
lágrimas nos olhos) muitos fatos.
Até fiquei sabendo de dados
oficiais, como se um fio de luz
terreal tivesse atravessado a
insensível soma de problemas que
fundam os feudos, becos e favelas
periféricas de uma cidade insana
com milhões de pobres entregues à
própria sorte. Não é um livro triste.
Antes, é um livro que relata uma
vida.
Parafraseando
Walt
Whitmam, quem toca esse livro,
toca o Ser Humano na sua mais
pura plenitude. Omiti dados
escabrosos, de fundo político ou
socialesco, mudei sobrenomes – um
sr. até muito respeitoso confessoume ser esse “Irmão Saulo” (que o
198
Para os vivíssimos:
Julio Lancelotti, Dom Agnelo
Rossi, Cardeal Arns, Jânio de
Freitas, Elio Gaspari, Bispo
Crivela, Caetano Veloso, Roberto
Carlos, José Nêumanne Pinto,
Rabino Henry Sobel, Sebastião
Salgado, Maria Bethãnia, Roberta
Rizzo,
Clovis
Rossi,
José
Nêumanne Pinto, Chico Xavier,
Milton Santos, Paiva Neto, Pastor
Nehemias Marien e Carlito Maia
Para os eternais:
Betinho, Florestan Fernandes, Dom
Hélder Câmara, Pastor Jaime
Wright, Vladimir Herzog (Vlado),
Martin Luther King, Mahtama
Gandhi, John Lennon. Madre
Teresa de Calcutá, Orlando
Bandoni e Poeta Cecília Duarte
Fogaça (de Itararé-SP) todos
imprescindíveis
E a todos os meus irmãos Lili,
Luis Antonio, Claudia, Zé (in
Memoriam), Neusa, Sirlei, Erzita,
Sueli, Clarice, Cristina, Joana,
Jacira, André, Paulo, Everaldo,
Marco, Jair, Ricardo e, Celio Ely.
À minha Mãe, Eugênia, que
com sua voz de clarineta, alongou
orações por meus sonhos.
À memória de meu Pai,
Antenor Corrêa Leite. Quando a
morte matar a morte nós nos
encontraremos de novo.
COMENTÁRIOS DO AUTOR
Esse projeto de livro tantas vezes
começado, adiado, inúmeras vezes
abandonado, foi de parto realmente
difícil. Tomei-me de inteireza para,
finalmente pesquisar o necessário e
concluí-lo, na ocasião em que
recebi o belo livreto chamado “VisLumbre” do excelente Poeta
Alessandro Marino Lima (São
Caetano do Sul), quando, ao final
da obra, artesanal, o mesmo
esperançoso,
valera-se
muito
apropriadamente da frase “Um dia,
enfim, todos os livros se abrirão”.
Bingo! Esse mote belíssimo parece
que lavou-me por dentro, abrindo
em mim portas de entusiasmo e
busca inconstante e impertinente,
até que, finalmente, recolhi os
dados, ganhei as ruas, bati em
portas – “batei e abrir-se-vos-á?” –
cobrei dados oficiais (assustei
pessoas), e, finalmente, eis a obra
que fala por si mesma. Ë a história
de um ser humano que viveu
intensamente.
Caso
passasse
despercebida essa entrega, a
partilha de seus altos e baixos, não
haveria lição alguma, a não ser para
os que o conheceram, dependeram,
foram
ajudados
pela
bemaventurança da tenacidade dele.
Livro pronto, entrego-o ao público
leitor, feito inventariante de uma
vida especial e depositório fiel
desse legado de emoções e buscas.
Que façam bom proveito dele, da
mesma maneira como me fez
enormemente bem escrevê-lo
“O futuro não nos traz nada e nem nos
dá nada. Nós é que, para construi-lo,
devemos dar-lhe tudo“ (Filósofa Simone
Weil – França)
199
O AUTOR – Foi criado em Itararé desde os seis meses de idade – nasceu no
bairro Harmonia da cidade de Monte Alegre-Pr no dia l9.08.52. Seu pai foi
perseguido por grileiros de Lupion e voltou à terra de origem, onde tinha
sido, quando moço, primeiro acendedor de lampiões de gás da cidade. Em
Itararé passou a primeira infância e correu nas descalças ruas cor-de-rosa da
pequena periferia da cidade. Começou a escrever precocemente ainda no
Grupo Escolar Tomé Teixeira, em Itararé, no Curso Primário. Poemas pueris
sobre o Dia da Pátria, da Árvore, do Índio, da Bandeira. Com 16 anos
escrevia para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado,
além de ter sido aprovado em concurso para locutor na Rádio Clube de
Itararé. Em shows populares (prata da casa) cantava paródias e fazia
imitações da nata da Jovem Guarda. Era um rapaz que amava Os Beatles &
Tonico e Tinoco. Em Itararé, quando se iniciava nos estudos, também
trabalhou como bóia-fria, engraxate, vendedor de picolés, garçom de bar e
marceneiro, onde aprendeu essa profissão e ajudou a família, primeiro filho
homem depois de cinco irmãs. Em finais de 70, bandeou-se para Sampa, para
inscrever-se para servir a pátria. Por ser arrimo de família, foi dispensado.
Voltou a estudar, terminou os estudos no salesiano (de Dom Bosco) Liceu
Coração de Jesus onde foi medalhado, fez Direito, foi perseguido pela
ditadura, ganhou ficha nos porões dos podres poderes do regime de exceção,
a ditadura militar. Trabalhou oito anos na área de Pessoal e depois na
Contenciosa, quando foi demitido por ter escrito texto para o Jornal da Tarde
contestando as falcatruas da banda podre do Plano Cruzado de Sarney. Fez
então Geografia e foi aprovado em concurso para professor da Rede Pública
de São Paulo, além de ter feito várias oficinas, extensões e especializações
(redação publicitária na ESPM; relações raciais, literatura e jornalismo na
ECA-USP, além de inteligência emocional, filosofia para crianças, etc.). Fez
pós-graduação em Educação (Mackenzie) , onde especializou-se em Didática
de Terceiro Grau. Sempre escrevendo para jornais de Itararé, produzindo
muito, começou a participar de Concursos, quando teve a sorte de vencer
alguns, inclusive na USP, na Unioeste (Universidade do Oeste do Paraná –
Concurso Paulo Leminski de Contos), e outros bancados por Bibliotecas
Públicas de renome e Fundações Culturais idôneas. Em 1995 teve um livreto
de Poemas (Trilhas & Iluminuras) bancado pela Coleção Prata Nova da
Editora Grafite do RS. Começou a participar de mostras (inclusive no
México), congressos, palestras (Faculdades Campos Salles), (exposições
(Centenário de Itararé), feiras culturais (Faculdade Pinheirense – Grupo
Teresa Martin), eme também a colaborar com várias revistas literárias,
jornais e Suplementos Culturais, escrevendo sobre literatura, artigos,
resenhas críticas, sobre teens, Terceira Idade, educação, Cidadania, Política
200
e Ética. Passou a constar em diversas Antologias Literárias, inclusive no
exterior como Itália (Antologia Multilíngue de Poetas Contemporâneos),
Portugal (Instinto Piaget/Concurso de Poesia) e Cristhmas Anthology
(Estados Unidos), entre outros, além de ser incluído em alguns cadastros da
nova poesia brasileira. Teve seu trabalho elogiado, entre outros, por Elio
Gaspari(Folha de São Paulo), Crítico literário Erorci Santana (Jornal O
Escritor da UBE-União Brasileira de Escritores), Solon Borges dos Reis
(Educador e Poeta), Jamil Snege (Escritor de vanguarda do Paraná), Ricardo
Ramos (filho de Graciliano Ramos),Senador e Jornalista Artur Távola, Jornal
O Estado de São Paulo (quando ganhou prêmio na USP), Professora Maria
de Lourdes Luciano Nonvieri (Jornal Tribuna de Itararé/Elos ClubeComunidade Lusíada Internacional) e Revista Literária Aldéa, da Espanha,
entre outros. Em abril de 2.000 teve seu livro O Rinoceronte de Clarice,
contos
interativos,
literatura
virtual,
bancado
pelo
Site
httpp:www.hotbook,com,.br da Jornalista, Professora e Escritora Roberta
Rizzo (Rádio CBN Rio de Janeiro), lançado na rede mundial da Internet,
como trabalho pioneiro, único, de vanguarda, com ficções ao estilo “você
decide”. Por duas vezes foi selecionado pelo Mapa Cultural Paulista
(Secretaria de Estado de Cultura) como um dos dez melhores contistas do
Estado, representando Itararé. Recebeu o título oficial de Cidadão
Itarareense e é autor do Hino ao Itarareense, escrevendo ainda para o jorna
Gazeta Regional de Itararé, onde é diretor cultural de clube e mantém
atividades e família. Pode ser contado pelo e-mail [email protected] reside
em Sampa à Rua Tucambira,44-Apto.2-Pinheiros-São Paulo-SP, atendendo
pelos fones: 211.7l64, 9l08-6352 ou recados 289.4333(hor.comercial). É
compositor inédito de rocks, baladas toadas & blues, tendo ainda vários
livros inéditos, como romances, uma novela, dois livros de microcontos, um
de haikais, vários de poemas temáticos, um de poesia para a juventude e um
inventário sobre a Prática Educacional Vivenciada. O autor, como Manuel
Bandeira, não acredita em arte que não seja libertação, acredita-se um
plantador de sonhos, um eterno aprendiz da alma humana, acha que o mundo
estaria melhor se tivesse mais mulheres no comando, além deter sua poesia
rueira, descalça, como se uma espécie de respiração da alma, e a sua ficção
classifica de ficção-angústia. Tem livros inéditos sendo prefaciados por José
Nêumanne Pinto (O Estadão) e Bernardo Adjzemberg (Folha de São Paulo) e
dois outros (um de auto-ajuda e um romance) em poder de editora de SP para
serem avaliados. Um poemeto seu diz ”Ser Poeta é a minha maneira/ De
chorar
escondido/Nessa
existência
201
estrangeira/Que me tenho havido”. Teve a idéia desse livro muitos anos atrás,
começou a parou várias vezes o projeto, até ter tempo para pesquisa e acabar
esse projeto de livro. Pensa em traduzir alguns de seus trabalhos e lançá-los
no exterior, como fez com sucesso Ignácio de Loyola Brandão. Ainda um
sonhador, acredita na utopia de um neosocialismo de resultados,
envergonhando-se do “capitalhordismo” praticado no Brasil de muito ouro e
pouco pão, de tantas riquezas injustas, de suspeitas riquezas impunes, onde os
excluídos sociais fazem parte da miséria absoluta globalizada, da fome, da
prostituição infantil e da corrupção endêmica institucionalizada em todos os
níveis, com um estado público na verdade privado..(*)
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202
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ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS