DE RECURSOS A SERES HUMANOS O desenvolvimento humano na empresa Ruy de Alencar Mattos INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 4 CAPÍTULO I A AÇÃO HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES..................................................................... 6 1. O SER HUMANO TRANSCENDE A ORGANIZAÇÃO........................................................................ 6 2. VARIÁVEIS DA AÇÃO HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES ............................................................... 9 2.1 PRODUÇÃO....................................................................................................................................... 9 2.2 POLITIZAÇÃO ................................................................................................................................. 12 2.2.1 AS TRANSFORMAÇÕES DO PODER NAS ORGANIZAÇÕES .................................................... 13 2.3 SAÚDE.............................................................................................................................................. 21 2.3.1 STRESS .......................................................................................................................................... 25 2.3.2 HÁ LUZ NO FIM DO TÚNEL ....................................................................................................... 30 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 31 CAPÍTULO II ORGANIZAÇÃO SOCIAL E RH ..................................................................................... 34 1. A CONCEPÇÃO DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................................................. 34 2. A CONCEPÇÃO DE RECURSOS HUMANOS .................................................................................... 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 37 CAPÍTULO III TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO: O MODELO DEMOCRÁTICO ........ 39 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................................... 39 2. ORIENTAÇÃO DO TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO ....................................................... 40 3. A ORIENTAÇÃO DEMOCRÁTICA DO T & D ................................................................................... 43 4. TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO E SISTEMA GERENCIAL ............................................ 45 5. A ORGANIZAÇÃO COMO SISTEMA DE APREND@GEM E DESENVOLVIMENTO .................. 47 6. A CO-GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NAS ORGANIZAÇÕES ............................ 49 7. QUADRO COMPARATIVO DOS MODELOS DE T&D. .................................................................... 52 8. APLICAÇÕES DO MODELO DEMOCRÁTICO DE T&D .................................................................. 53 8.l A Experiência do Ministério da Justiça............................................................................................. 54 8.2 A Experiência do Ministério da Saúde.............................................................................................. 55 8.3 A Experiência do Ministério da Educação e Cultura ....................................................................... 57 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ........................................................................................................ 58 CAPÍTULO IV CAD - A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO ............ 60 O QUE É A CAD?....................................................................................................................................... 60 O que dá origem à CAD?........................................................................................................................ 61 Metodologicamente, quais são as bases da CAD? ................................................................................. 63 Quais são as Instituições e Empresas que vêm adotando a CAD como estratégia de educação permanente e transformação cultural?................................................................................................... 64 CAPÍTULO V CAD - A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO.............. 67 1. USOS E ABUSOS DA EDUCAÇÃO ..................................................................................................... 67 2. DA ESCOLA PARA A EMPRESA ........................................................................................................ 68 3- A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO................................................ 70 3.1. Qualificação..................................................................................................................................... 72 3.2. Engajamento .................................................................................................................................... 72 3.3. Organização..................................................................................................................................... 73 3.4. Articulação....................................................................................................................................... 73 4. PROCEDIMENTOS PARA A IMPLANTAÇÃO DE COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO.............................................................................................................................. 74 4.1. Fase 1: Sensibilização ..................................................................................................................... 75 4.2. Fase 2: Contratação social.............................................................................................................. 76 4.3. Fase 3.- Diagnóstico de necessidades ............................................................................................. 77 4.4. Fase 4: Diagnóstico de potencialidades .......................................................................................... 78 4.5. Fase 5: Planejamento das ações de aprendizagem e desenvolvimento ........................................... 78 4.6. Fase 6.- lmplementação ................................................................................................................... 78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 79 CAPÍTULO VI ORGANIZAÇÕES EM MUDANÇA ................................................................................ 80 1. AS FALSAS PREMISSAS DO DESENVOLVIMENTO....................................................................... 80 2. COMPREENDENDO O FENÔMENO DA MUDANÇA ...................................................................... 85 2.1. Concepção Sócío-Psicológica.......................................................................................................... 86 2.2. Concepção Estruturalista ................................................................................................................ 87 2.3. Concepção Evolucionista................................................................................................................. 87 2.4 Concepção Teleonômíca ................................................................................................................... 89 3. UMA TENTATIVA DE INTEGRAR AS DIVERSAS CONCEPÇÕES SOBRE MUDANÇA ............ 90 4. RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS NAS ORGANIZAÇÕES ................................................................. 93 4.1. O Fenômeno da Resistência às Mudanças....................................................................................... 93 4.2. Fatores Dificultadores do Desenvolvimento das Organizações Públicas Brasileiras..................... 95 4.2.1. Um Pouco de História .................................................................................................................. 95 4.2.2. Análise de Fatores Dificultadores da Mudança nas Organizações Públicas. .............................. 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................... 109 INTRODUÇÃO Quando há cerca de 2.300 anos atrás Aristóteles afirmou que precisava ser criada uma ciência do senhor e uma ciência do escravo e que a primeira teria como finalidade ensinar os métodos e procedimentos de como os dirigentes, chefes, lideres, enfim os dominadores, deveriam dirigir a força de trabalho escrava, tornando-a aplicada no desempenho das tarefas e dóceis no seguimento das ordens, certamente não imaginou o quão fortemente determinaria o futuro das relações de trabalho, transformando as empresas e instituições em espaço de uso, exploração e opressão dos seres humanos por outros seres humanos. A pretensa diferença entre senhor e escravo, manteve os laços de autoritarismo/submissão, antes pela força física e pela fome, agora pelo medo (da perda do emprego) e pelas exigências metodológicas e tecnológicas dos "modernos" procedimentos organizacionais. Quando nas primeiras décadas desse século o engenheiro americano Taylor, em nome da economia de custo e do aumento da produtividade, fragmentou o trabalho em micro-operações ele, de fato, conseguiu concretizar o sonho aristotélico, e a "ciência" do senhor foi prontamente transformada em modelo de produção nas linhas de montagem da Ford e de tantas outras fábricas. Na esteira desse paradigma hediondo, o escravo da antigüidade cedeu lugar ao homem-recurso, homem-instrumento, nas fábricas e empresas de um modo geral. Ainda atualmente, às vésperas do 3o milênio, seres humanos recrutados no mercado de desempregados são compelidos a se ajustarem a regras que subjugam a vontade, a métodos que oprimem o pensamento, a procedimentos que amortecem a motivação e entorpecem as emoções e as estruturas hierárquicas que aniquilam a liberdade humana. Este é o cenário empresarial, onde o ser humano investe sua energia, seu conhecimento e seu tempo de vida. E é nesse contexto que precisamos encontrar novos caminhos, construir novos modelos de ação e conceber novos paradigmas que realmente contribuam para que o processo de Desenvolvimento Humano seja um direito do Trabalhador (gestor e operário), coerente com a necessidade de modernização da empresa e de melhoria da qualidade dos serviços e produtos que gera para a sociedade. Este livro reflete um compromisso com estas diretrizes. O autor. CAPÍTULO I A AÇÃO HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES 1. O SER HUMANO TRANSCENDE A ORGANIZAÇÃO A história que o ser humano vem traçando, ao longo de gerações, apresenta uma trajetória sinuosa, delineada por decisões antitéticas do tipo: conformar-se em coletividade ou manter a individualidade, como forma de responder às exigências ambientais; associar-se a grupos de interesse ou isolar-se, em ações autogeridas, para empreender novos rumos; submeter-se a hierarquias ou tornar-se marginal, para construir sua identidade; prender-se a costumes e tradições, cultuando o passado, ou soltar-se a cada dia, preparando o futuro; alienar-se, massificando-se em troca de segurança e conforto ou, criticamente conscientizar-se, arriscando-se a sofrer privações, embalado por utopias. A própria noção de liberdade, ao ser analisada sob as perspectivas orientais e ocidentais, apresenta-se com duas faces: "No mundo ocidental experimentamos a liberdade como expressão individual; no oriente, por outro lado, a liberdade é experimentada como participação. Vive-se mais no contexto da comunidade e a liberdade de cada um deriva da participação no grupo." (1) Apesar das contradições e dilemas que o condicionam, o ser humano, enquanto sujeito político, histórico e cultural, transcende o âmbito das organizações, tornando-as partes de sua totalidade pessoal. O homem, ao caracterizar-se como ser multidimensional, constrói-se na relação com outros, sem perder, no entanto, sua singularidade. Dentre as dimensões que lhe dão identidade, ressaltamos: a física, que lhe provê forma e suporte para inserir-se no espaço; a fisiológica, que lhe permite sintonizar-se com os fluxos e cicios das vidas vegetal e animal; a psíquica, que lhe dá referência e meios para sentir, compreender e atuar em seu cenário; a social, que lhe permite construir-se culturalmente, projetando-se no futuro, por meio de suas obras coletivas; a econômica, que o habilita a transformar os recursos da natureza e da sociedade em instrumentos, bens e serviços para sua sobrevivência e seu bemestar; a política, que lhe permite superar limitações decorrentes de sua natureza bio-psico-social, lançando-o nos níveis simbólico e axiológico de sua existência. Nesse sentido "o anseio supremo do animal político é a dignidade humana, o auto-respeito /... /" (2) a mística, que o torna transcendente e passageiro da viagem rumo ao atemporal e aespacial, dimensão onde se fundem, em síntese, a energia, a matéria e a informação. Este estágio faz com que: "Matemáticos da mais alta expressão, como Göedel, assumam uma atitude meio mística em relação à fonte de sua percepção em matemática. Não sabem que fonte é essa, chamam-na "misteriosa". Assim fizeram Poincaré e Einstein".(3) Para melhor situarmos o ser humano ante os fenômenos organizacionais, precisamos ter sempre em mente, a origem das organizações. Historicamente, tanto a organização da produção coletiva (empresas) como a organização das ações coletivas de controle social (Estado, instituições governamentais ou não) foram criadas tendo em vista a satisfação de necessidades, natural ou artificialmente provocadas, emergentes no âmbito da sociedade. As primeiras surgiram como meios agregadores de recursos financeiros e materiais, de tempo e energia humanas, para que, uma vez coordenadas sob certos requisitos, viabilizassem a produção de serviços e a transformação de recursos da natureza em bens de uso e consumo, com menor dispêndio de recursos, tempo e energia e maior retorno final do esforço produtivo. De acordo com Karl Marx: "A cooperação permite estender, na superfície, a esfera do trabalho; assim, certos trabalhos reclamam-na por causa de sua própria extensão, como a irrigação, a construção de diques, canais, rodovias, estradas de ferro. Por outro lado, aumentando a produção, ela permite localizar o processo de trabalho num espaço menor. Esse duplo efeito, localização mais estreita com intensificação concomitante do trabalho, permite suprimir uma quantidade de gastos inúteis: isso resulta da aglomeração e da concentração dos meios de produção".(4) As segundas (Estado e demais instituições de controle social foram criadas no embate político-econômico-simbólico entre classes sociais e grupos de interesse, durante a disputa pelo controle dos meios de dominação. Nesse sentido, estas organizações reproduzem no espaço micropolítico das relações de trabalho, as contradições que lhes deram origem, ao invés de constituírem instrumentos neutros a serviço da sociedade. "Compreender o Estado como a condensação de uma relação de forças entre classes e frações de classe tais como elas se expressam, sempre de maneira específica, no seio do Estado, significa que o Estado é constituído - dividido de lado a lado pelas contradições de classe".(5) Desse modo, sob a perspectiva da realização e do desenvolvimento humano, é crucial que percebamos as organizações como meios, instrumentos a serviço do Homem; e não o inverso, como vem sendo impingido ideologicamente por grupos de elite, detentores do poder econômico, político e/ou simbólico e que precisam, para sua própria manutenção, que os indivíduos não pertencentes a seus círculos acreditem, ou mais, tenham como dogma de fé, que as organizações constituem o fim último, a entidade que transforma os seres humanos em recursos dos quais lança mão, para alcançar "seus" objetivos. A combinação da alienação com a reificação é condição indispensável para que essa absurda antropomorfização das organizações ocorra, fortalecida pelo seu complementar reducionismo mecanicista que transforma o ser humano em recurso, criando uma nova lógica, responsável, em última instância, pelo estado de coisas que hoje estamos vivendo. É fato que algumas das dimensões humanas manifestam-se no ambiente organizacional, por meio do desempenho de papéis funcionais. A pessoa, porém, enquanto totalidade, transcende à organização ao fazê-la instrumento de sua satisfação, de seu desenvolvimento e de sua criatividade. Não será nesse microespaço sócio-laboral, portanto, que o ser humano realizar-se-á, irradiando todas suas potencialidades. Iludirse com isso é tentar enfiar o todo em uma de suas partes. Inúmeros profissionais ligados às chamadas ciências comportamentais têm insistido na miopia de seus enfoques, tentando ingenuamente modelar, com boas intenções, o homem organizacional - um ente ideal surgido após a revolução industrial, identificado com os objetivos e aculturado aos valores produtivistas dos patrões e dirigentes da empresa - um ser miniaturizado, qual um sofisticado transistor de um avançado sistema eletrônico, porém, manipulável, ajustável, substituível. Em conseqüência, não é demais alertarmos para o fato de que o estado de vida infra-humano encontrado em muitas organizações constitui um flagrante desrespeito à dignidade humana. É verdade que os castigos físicos foram abolidos, porém psicotecnologias foram criadas para substituir a chibata e, a serviço do lucro, conseguir motivar aqueles indivíduos renitentes que teimam em não colaborar na execução de tarefas que lhes parecem desprovidas de significado e relevância. Como educadores, devemos assumir nossos papéis de crítico e de agente de mudança desse status quo, mesmo que seja no âmbito restrito de uma Unidade Administrativa, independentemente de seu tamanho relativo. Não nos podemos esquecer de que um processo de mudança consistente, mesmo que concentrado num foco setorial, pode repercutir por toda a organização, abalando as estruturas do status quo e criando condições para sua reconstrução em bases mais adequadas ao desenvolvimento dos seres humanos, sejam estes seus atores internos ou seus clientes finais. 2. VARIÁVEIS DA AÇÃO HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES As dimensões da vida humana (física, fisiológica, psíquica, social, econômica, política e mística), realçadas anteriormente, expressam-se nas organizações, de um lado, por meio do desempenho de papéis e, de outro, mediante atitudes e comportamentos assistemáticos, fundamentados em emoções, valores, expectativas, necessidades e características pessoais que compõem a personalidade. O desempenho de papéis é definido, estruturalmente, pelos estatutos, regimentos, normas, manuais e outros instrumentos jurídicos que visam a sistematizar o comportamento do indivíduo (fatores estruturais). Por sua vez, todo o conjunto de expressões individuais e coletivas não prescritas e, até mesmo, reativas aos papéis, atribuições e competências, constitui os fatores estruturais. Um terceiro grupo de fatores organizacionais denominados por Guerreiro Ramos de "estruturantes", que constitui as decisões, assume a função de regulador, mediador dos fatores estruturais e estruturais ensejando o delineamento da cultura e do padrão de desempenho de cada organização, nesse processo dialético. Num outro nível de análise, a ação humana expressa-se nas organizações por meio de três variáveis: produção, politização e saúde. 2.1 PRODUÇÃO Esta variável tem-se destacado em todas as teorias administrativas, desde a clássica, que se orientava explicitamente por pressupostos produtivistas, passando pela chamada Escola das Relações Humanas, que pregava, camuflando sua ideologia produtivista, a melhoria das relações interpessoais no ambiente de trabalho, e finalmente alcançando os enfoques contingencial, sócio-técnico e sistêmico. Ademais, a bem da verdade, essa visão do ser humano como recurso ou fator de produção, não é exclusiva da lógica capitalista, pois as economias estatizadas (URSS, China, Cuba etc.) têm na produção a variável principal da administração de suas empresas estatais. Essa ênfase na produção normalmente respalda-se em valores estabelecidos nos primórdios da organização coletiva do trabalho humano. Não nos esqueçamos de que, não apenas na Grécia antiga, o trabalho produtivo era atribuído aos escravos, ficando aos senhores o tempo livre para filosofar, deleitar-se com os prazeres da vida, guerrear, caçar e descansar. "Nessa época a valorização do trabalho é relativa, pois se era importante o desenvolvimento de uma tecnologia a ser aplicada aos assuntos práticos, a atividade em si não chega a granjear notoriedade, preferindo os nobres, e os que possuíam posses, viver sem trabalhar. O trabalho era valorizado na medida em que garantia a imortalidade do sujeito, quer por meio de uma obra arquitetônica, quer por meio de um texto poético ou literário".(6) Em Portugal e Espanha, os mosteiros foram as primeiras organizações a assumir o trabalho produtivo sistemático como forma de suprir as necessidades imediatas dos seus membros e dos moradores das cercanias, mas principalmente como forma de manifestar o voto de pobreza, de penitenciar-se na Terra pelo pecado original e de garantir créditos para a conquista do reino dos céus. Gradualmente, a partir de meados do século XVI, o trabalho produtivo foi subindo na escala de valores da sociedade, impulsionado, principalmente, pela ética puritana. Centrando-se cada vez mais no mercado, com a divisão dos indivíduos em produtores e consumidores, ela foi deixando de lado valores até então prezados, tais como o lazer, a expressão criativa, a reflexão, a interação simbólica, a participação nos destinos da cidade, do país etc. Em lugar destes, passou a enfatizar valores utilitaristas, invertendo a hierarquia axiológica até então aceita. Assim, Guerreiro Ramos aborda a questão: "Diversos estudiosos vêm examinando as condições religiosas da ideologia inerente ao sistema de mercado, e salientam que tal ideologia não representa a contribuição de uma única pessoa, mas resultou de esforços confluentes de filósofos como Hobbes e Locke, de reformadores religiosos como Lutero e Calvino, de moralistas como Bentham e outros, que elaboraram o antecedente teórico do ethos utilitarista".(7) Os efeitos da exacerbação da variável produção na sociedade, e a conseqüente transformação do ser humano em recurso ou em fator produtivo, estão aí para serem constatados. Basta abrirmos os olhos para vermos a "Sociedade Organizacional", filha da sociedade centrada no mercado, que nasceu em nosso século e que promete ampliar-se daqui para diante. Nesse novo cenário, a pessoa passou a ter um valor correspondente à importância de seu emprego ou à sua capacidade produtiva. Os "caçadores-de-cabeça" (Headhunters) responsáveis pela contratação de executivos e especialistas para as grandes empresas demonstram, com muita crueza, o significado de objeto econômico que os indivíduos "caçados" passaram a representar. A semelhança dos índios antropófagos, os modernos caçadores-de-cabeça, disfarçados de paletó e gravata e equipados com sofisticados computadores portáteis, agendas eletrônicas e outras "armas" à altura da empreitada, assumem, ritualmente, o mesmo papel de seus "colegas" aborígenes, procurando as presas mais robustas em curriculum, os mais agressivos empreendedores, os mais espertos, enfim, os mais "suculentos" para serem servidos nos banquetes dos novos deuses da economia selvagem Os super-managers, pagos a peso de ouro, e mesmo os especialistas menos aquinhoados, terão, ao longo de alguns anos de muito trabalho produtivo - razão exclusiva de suas vidas - suas cabeças miniaturizadas, seus corpos mumificados. Se observarmos seus rostos com atenção, veremos estampada uma espécie de sorriso heróico, cheio de falso orgulho, pelos inúmeros sacrifícios pessoais que tiveram de assumir em prol do engrandecimento das suas corporações. É quase certo também encontrarmos em muitos destes "ex-combatentes" da produção, ao olharmos seus peitos (antes estufados), diversas "condecorações" a que fizeram jus: pressão arterial descompensada, dores de coluna, ponte, de safena, úlceras, gastrites crônicas, obesidade, alcoolismo, tabagismo etc. Será que exagerei na descrição do quadro resultante da exacerbação de valores utilitaristas de nossa sociedade centrada no mercado? Pois tenho certeza de que você, leitor, conhece pelo menos meia dúzia de pessoas que involuntária, inconsciente, ou mesmo deliberadamente, estão se ofertando em sacrifício, quando ainda não foram sacrificadas, ao sistema produtivista. Podemos concluir, a partir dessa incursão crítica nas origens religiosas e econômicas da ideologia do trabalho produtivo como valor primordial da sociedade centrada no mercado, o quão necessário se faz a recolocação da variável produção em seu devido lugar, isto é, como componente da ação e da condição humana nas organizações. Mediante o trabalho, o ser humano, ao produzir algo, produz também a si próprio. Portanto, quando deste trabalho são retirados todos os elementos desafiadores, criativos, prazerosos e, principalmente, a possibilidade de o indivíduo deliberar sobre seu próprio desempenho e de participar na definição dos objetivos de seus esforços. o que resta? Somente o bagaço do trabalho. Toda a substância que daria sentido à ação humana foi extraída e, nesse processo, extraiu-se também a possibilidade de o ser humano fazer-se alguém digno, saudável, alegre, criativo, responsável, enfim, um ser integral. O trabalho, mantido em sua forma integral, constitui um meio de libertação do ser humano, que, ao criar novos serviços, equipamentos, utensílios, passa a desfrutar de recursos que a natureza mantinha guardados. Em nossa época, de final de século e de milênio, a "tecnologia de ponta" vem abrindo para a vida humana, horizontes sequer imaginados há dez anos atrás. Os avanços da microeletrônica, das telecomunicações, da teleinformática, da robótica, da química fina, dos novos materiais, dos novos meios de transporte e da engenharia genética, das descobertas da física quântica e da astrofísica, atestam a grandiosidade da criação humana. Entretanto, convivemos ao mesmo tempo com a persistência de índices elevados de analfabetismo, precárias condições de saúde pública, fome endêmica em inúmeros países, totalitarismo de governos que continuam esmagando a liberdade, consumo de drogas, doenças mentais e psicossomáticas, entre tantos outros indicadores da grande vergonha que é a condição infra-humana ainda presente em parcela significativa da humanidade. Como compreender esse cenário tão contraditório e esquizofrênico? Infelizmente, tal realidade está presente tanto no macro quanto no microssocial, alertando-nos de que, à semelhança da fotografia holográfica, o todo também está contido em cada uma de suas partes, com sua qualidades mazelas. Continuando a análise da realidade organizacional, podemos encontrar, também neste nível, algumas respostas para o paradoxo anteriormente citado. Nesse sentido, precisamos compreender os significado das variáveis Politização e Saúde, que a seguir enfocaremos 2.2 POLITIZAÇÃO A existência desta variável da ação humana nas organizações, só recentemente vem sendo reconhecida pelos teóricos da administração e da psicologia organizacional, apesar de o seu uso remontar ao início das próprias organizações e, mais do que isso, de constituir um dos alicerces para a construção e a manutenção destas. O reconhecimento de sua importância foi a condição básica para o início de seu desvendamento, que ainda ensaia seus primeiros passos. Para nos desincumbir dessa tarefa, precisamos incursionar pelos campos da filosofia, da história, da sociologia, da antropologia, da ciência política, da psicologia e da administração, rompendo barreiras e preconceitos corporativistas. A variável politização constitui um dos fatores de facilitação ou de dificultação do processo de desenvolvimento humano nas organizações. Entendemos por politização a ação de lidar com o fenômeno do poder que, por meio de relações interpessoais diretas e/ou simbólicas, permeia todas as relações de trabalho, desde aquelas estabelecidas com agentes situados fora da organização (Governo, clientes, fornecedores, concorrentes), passando pelas relações de subordinação (do presidente ou diretor até o encarregado de setor) até incluir as relações entre pares. Entretanto " em que pese ser o poder fenômeno essencialmente relacionar, dependendo para sua manifestação da interação entre, pelo menos, dois indivíduos, ele se reifica, se objetiva, nos símbolos de status, distinguindo os indivíduos conforme o quantum de poder que cada um detém, e, consequentemente, transformasse em algo concreto por meio do qual seu detentor passa a usufruir de benefícios e vantagens materiais e psicológicas".(8) 2.2.1 AS TRANSFORMAÇÕES DO PODER NAS ORGANIZAÇÕES Primariamente, em seu estado mais rudimentar, o poder, enquanto fenômeno inerente às relações sociais produtivas, surgiu com a agregação de pessoas e grupos em torno de objetivos comuns, tais como defender-se de ameaças naturais ou de outros grupos, conquistar novos territórios de caça, recursos minerais e/ou vegetais, realizar operações, do tipo: construção de obras públicas, pesca oceânica, preparação de terreno para a plantação, colheita etc. As relações de comando-subordinação são inerentes à realização dessas grandes operações, porém restringem-se ao espaço e ao tempo de sua execução, de modo que, ao concluir um mutirão, por exemplo, cada participante retoma sua condição anterior, desfazendo o contrato de subordinação, necessário à organização das ações coletivas das quais tomou parte. Portanto, o exercício do poder, nessas situações, é tipicamente funcional e circunstancial, cumprindo um papel necessário ao bom desempenho do trabalho e, consequentemente, à obtenção dos resultados almejados. A estruturação de organizações sociais permanentes ao longo da história, tais como os governos, as igrejas, os mosteiros, os exércitos, os presídios, os hospitais, as academias e, mais recentemente, as grandes corporações comerciais, foi acompanhada pela transformação da natureza do poder, enquanto fenômeno ordenador do desempenho de papéis em coletividade. Neste período, que se estende até o século XVII e que poderíamos caracterizar como a segundo fase do poder, seu uso está mais vinculado a questões como defesa ou conquista de territórios, práticas simbólicas e de manutenção de rituais civis (cortes e academias) e religiosas (igrejas, mosteiros) e ao controle de contingentes humanos (presídios, hospitais). Foi somente a partir do século XVIII que a terceira transformação do poder, caracterizada pelo seu uso enquanto meio viabilizador da produção coletiva, estruturou-se e passou a estruturar a própria organização social. Essa transformação se deu pela "invenção" da disciplina - método de controle do comportamento, do tempo e do próprio corpo humano, enquanto instrumento de produção. Nesse sentido, a disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. No século XVII, nas oficinas de tipo corporativo, o que se exigia do companheiro ou mestre era que fabricasse um produto com determinadas qualidades. A maneira de fabricá-lo dependia da transmissão de geração em geração. O controle não atingia o próprio gesto /.../. A partir do século XVII, desenvolve-se uma arte do corpo humano. Começa-se a observar de que maneira os gestos são feitos, qual o mais eficaz, rápido e melhor ajustado / ... /".(9) Com esta tecnologia micropolítica à disposição do empresário, foi fácil "domesticar" o trabalhador e equipará-lo aos demais recursos e instrumentos de produção, simplificando-se os métodos, arranjos espaciais e equipamentos, num esforço conjugado de redução de custos e conseqüente aumento de lucratividade. Sob a aprovação dos padrões de conduta estóicos, garantidos pela moral protestante, transformou-se o trabalho em sagrada penitência, purificadora dos pecados e salvoconduto para o reino dos céus, reeditando-se o velho pressuposto aristotélico de que "alguns instrumentos são inanimados, outros são vivos (por exemplo, para o piloto o timão é um instrumento inanimado e o marinheiro vigilante na proa das naus é um instrumento vivo, pois o elemento auxiliar em qualquer atividade é um instrumento)".(10) Estava preparada a ante-sala da chamada revolução industrial e, com isso, o início da quarta transformação do fenômeno do poder nas organizações. Esta quarta fase, que dura até hoje, foi inaugurada por F. W. Taylor (l856-1915), o célebre engenheiro. Caracterizou-se pela fragmentação do trabalho em operações extremamente simples, combinada com a individualização das tarefas, de modo a evitar, ao máximo, a comunicação entre os trabalhadores, considerada um fator redutor de produtividade. Entretanto, depois de fragmentar o trabalho produtivo em seus elementos mais simples, Taylor deparou-se com uma questão crucial: "como garantir o respeito ao modo operatório e sua execução no tempo fixado? Em outras palavras, de que hierarquia, de que vigilância, de que comando devia-se dotar a nova organização do trabalho? Taylor imaginou então um meio de vigiar cada gesto, cada seqüência, cada movimento na sua forma e no seu ritmo, dividindo o modo operatório complexo em gestos elementares mais fáceis de controlar por unidades, do que o processo no seu conjunto. Ele sistematizou este método e o instituiu em princípio: vários gestos não deviam mais ser executados por um só operário, sem que entre cada um deles se interpusesse uma intervenção da direção'."(11) Com o que se convencionou chamar de Organização Científica do Trabalho, o processo de alienação do trabalhador adquire um respaldo "científico", passando a justificar-se tecnicamente. Retira-se do trabalhador o conhecimento da tarefa global, seus objetivos, sua possibilidade de administrar seu próprio tempo e seus instrumentos. Resta-lhe, tão somente o fazer, a execução acrítica e neurotizante de fragmentos do trabalho. "A hierarquia tem a seu cargo problemas de concepção, de decisão, de coordenação e de controle. Detém o saber e representa a autoridade (o poder).(12) Taylor, de fato, conseguiu criar a tão sonhada 'Ciência do Senhor" a que se referiu Aristóteles, há 2.300 anos atrás. Incrível a semelhança de pontos de vista entre aquele pensador grego, preceptor de Alexandre, o Grande, e funcionário de Felipe da Macedônia, e Taylor, esse engenheiro que, a serviço do ainda incipiente capitalismo selvagem, sistematiza o processo de desumanização do trabalhador, refazendo em escravo, aquele que já se havia libertado pela Revolução Francesa. Já ao final da década de 80, podíamos antecipar o que consideramos a quinta transformação do fenômeno do poder nas organizações. Dessa transformação está surgindo uma nova fase das relações e condições do trabalho coletivo. Esse novo trabalho está sendo construído sobre um pilar político - a libertação humana, que, num movimento de reação à reescravização aristotélico-taylorista, lança as bases de reintegralização do Homem enquanto ser bio-psicohistórico-político, capaz de manifestar-se como sujeito (e não objeto) de seu processo de desenvolvimento pessoal e coletivo. A reintegralização do trabalho responde à necessidade humana de politização da perso nalidade que "pode ser destacada como uma característica de particular importância para a manutenção da democracia /.../. O desinteresse pelas relações e práticas políticas é uma abdicação da auto-responsabilidade".(13) E foi exatamente essa abdicação da auto-responsabilidade, um dos resultados mais perversos da organização mecanicista do trabalho. Em conseqüência, surgiram a irresponsabilidade, a apatia, o desinteresse, como componentes rotineiros do comportamento do trabalhador. Como paliativo para essa situação, as inúmeras pesquisas, promovidas pelos próprios empresários, apontaram como solução a adoção de políticas de benefícios e práticas motivacionais como forma de apaziguar os mais exaltados e despertar o entusiasmo dos mais apáticos sem, no entanto, mudar a situação intrinsecamente desmotivadora do trabalho desfigurado. A resposta mais comum a tais práticas manipuladoras tem sido o cinismo, que se traduz em participação aparente, em satisfação imediatista e em novas reivindicações por mais e mais benefícios, numa espécie de jogo que se estabelece entre os administradores e os trabalhadores (no serviço público, então, esse fenômeno é patente - o estado de "greve branca permanente" demonstra o que estamos dizendo). O movimento de reintegralização do trabalho, por sua vez, tem atestado que a solução da situação criada precisa passar, necessariamente, pela discussão aberta sobre as condições e relações de trabalho e pelo reconhecimento do trabalhador como interlocutor competente para, junto com os empresários e administradores, construírem novas bases para o aprimoramento do trabalho nas organizações. Ao fazermos a análise de nossa recente história trabalhista, constatamos essa tendência de as organizações assumirem cada vez mais a função de palco para a administração e solução dos conflitos do trabalho, substituindo a situação em que o governo, enquanto representante do empresariado, ditava as regras e impedia que os trabalhadores exercitassem seu direito de agentes políticos na busca de soluções para as questões trabalhistas. Ainda hoje se ouve algumas a autoridades remanescentes daquele tempo fazerem comentários de que "esta greve é de natureza política" (portanto deverá ser declarada ilegal pela justiça trabalhista). Felizmente nossos magistrados evoluíram na análise de cenários trabalhistas e já não embarcam na falácia de que a greve só pode ser usada como instrumento de pressão quando motivada por questões salariais. Ora, as condições físicas, psíquicas e sociais, a qualidade das relações de trabalho e a própria condução dos destinos da organização, não são fatores relevantes? Acontecimentos recentes atestam que o são e o serão cada vez mais. Em 1987, os funcionários de uma empresa estatal paralizaram suas atividades para protestar contra os desvios nos objetivos institucionais do órgão. Nesse sentido o acontecimento mais significativo foi a aprovação de nossa nova Constituição, que estabelece, explicitamente: Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Art. 10º. É assegurada a participação dos trabalhadores empregados nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação. Art. 11º. Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores. Temos, portanto, o instrumento legal para a construção dessa nova fase do trabalho. Entretanto, o risco desses preceitos constitucionais tornarem-se letra morta, paira sobre nossas cabeças como uma espada de Dâmocles. O discurso "cínico" característico daqueles que mantêm as regras do status quo e não as querem alterar, tem-se combinado com o discurso "tísico" daqueles que, sofredores crônicos de injustiças e indignidades, já se sentem desalentados e incapazes de mudar a realidade que os vem consumindo gradualmente. Nessa simbiose macabra, nossa sociedade é golpeada diuturnamente, gerando um processo entrópico cujos resultados estão estampados nos indicadores sociais e econômicos dessa década. Um indício de nossa patologia cultural é a reduzida capacidade de mobilização coletiva que se expressa na acomodação diante de situações difíceis, na espera de que algo mágico aconteça ou de que algum "salvador" apareça para concretizar nossas expectativas. Mas, a reação a tal patologia cultural, começa a ocorrer. E isso passa por todos os níveis da ação humana, desde o familiar, o escolar, o organizacional, ao societal. Ao nível societal, o movimento das "Diretas Já" representou um exemplo marcante desse despertar. Em nossa análise (organizacional), a garantia dessa reconstrução passa pelo resgate da variável política como elemento indissociável e, portanto, legitimo do ambiente de trabalho. "A política e o poder, que até bem pouco tempo pareciam categorias concernentes às relações sociais macroscópicas, são hoje vistas como categorias do comportamento administrativo. As relações entre indivíduos e entre pequenos grupos dentro da Organização, não se passam como supunha a teoria administrativa tradicional, isto é, como se estivessem assepticamente limpas de políticas e de vontade de poder. A política e o poder deixaram de ser assim manifestações clandestinas na Organização e ganharam hoje um quadro formal na teoria administrativa".(15) É com base nesse axioma organizacional que precisamos compreender como a variável politização manifesta-se nessa quinta fase do poder. Em nossa vivência como consultor de organizações, temos observado a valorização cada vez mais incisiva (em algumas empresas já se transformando em bandeiras de luta) de princípios políticos, tais como: legitimidade, engajamento, representatividade, igualitarismo, autodeterminação, autocontrole, que há bem pouco tempo só faziam parte de discursos político-partidários ou de teses acadêmicas. A partir de meados da década de 80 intensificou-se a prática democrática de legitimação do ocupante de cargo de direção em organizações públicas e privadas. Exemplos disso, como as eleições de diretores, de chefes de departamento e, até mesmo, de cargos gerenciais menores, não são mais raridade nem novidade; em todas as universidades federais, as eleições de reitor e pró-reitores já estão consolidadas e, em algumas, também as de chefes de departamento. Além disso, tem-se procedido às eleições de representantes de funcionários para os Conselhos Diretores de empresas. (O Banco do Brasil S.A., por exemplo, elegeu seu primeiro representante dos funcionários junto ao Conselho Diretor, em 1987). O engajamento constitui outro princípio inerente a esta fase de politização. Nesse sentido, substitui-se gradualmente o discurso técnico de motivação para o trabalho (leia-se para o aumento da produtividade) pela necessidade de obter-se engajamento efetivo no processo de desenvolvimento da empresa, enquanto entidade prestadora de serviços e produtora de bens que realmente correspondam às necessidades da comunidade, em qualidade, preço e valor social. O capitalismo moderno que se vem construindo nessa fase, passa obviamente pela questão da participação dos trabalhadores nos resultados financeiros (lucro) de seu trabalho, tornando-os parceiros do empreendimento, em seus êxitos e fracassos. Ligado a isso, outro fator de politização é a representatividade, enquanto possibilidade de participação do trabalhador no processo decisório, de forma direta ou indireta (por meio de representantes), desde o nível estratégico-mercadológico ao operacional. Desse modo, obtém-se a recolagem da execução com o planejamento e o controle de qualidade, fortalecendo-se os laços mútuos (empregador/empregado) de responsabilidade pelos destinos da empresa. Assim, as expectativas de igualitarismo, de autodeterminação e de controle vão sendo concretizadas concomitantemente ao aprimoramento do processo de trabalho. Isto confirma que: "a reivindicação difusa da autogestão, isto é, da organização do grupo por si mesmo e da reconquista de suas atividades, constitui a resposta à heteronomia imposta pela disciplina burocrática".(16) No contexto internacional, essa fase de democratização da organização já se encontra em estágio avançado. São exemplos eloqüentes a Noruega e a Suécia, que procederam à transformação do trabalho em escala nacional. Na Noruega esse processo seguiu-se à constatação ocorrida "por volta de 1960, quando os meios industriais e sindicais noruegueses reuniramse para deplorar os desvios existentes entre a democratização social do país e a organização hierárquica da empresa".(17) Constatação esta, reforçada pelo fato de que "a geração jovem, cujo nível de ensino é mais elevado, quer colher mais do que dinheiro e bens da sua vida profissional. Aspira a fazer um trabalho que tenha um sentido no plano pessoal e social. Deseja aprender e desenvolver-se, exercer um controle sobre o seu próprio trabalho e sobre a sua situação na vida".(18) As necessidades sobre as quais os projetos de transformação do trabalho se basearam, foram, conforme Ortsman: a de um trabalho cujo conteúdo fosse razoavelmente interessante, em termos que não os meramente físicos, proporcionando um mínimo de variedade; a de conhecer a natureza do trabalho que se efetua e a forma como ocorre:, a de aprender no posto de trabalho; e a de poder prosseguir nessa aprendizagem ao longo da vida profissional; a de se ter certas margens de decisão e de iniciativa no trabalho; a de certo apoio social e de certo reconhecimento no interior da empresa; a de o trabalhador situar as suas atividades em relação aos objetivos da empresa e de poder relacioná-los com a vida na comunidade social, em sentido mais lato; a espera de um futuro desejável que não implica, aliás, forçosamente, promoção hierárquica".(19) Os resultados obtidos pelas empresas que adotaram esse esquema foram significativos, especialmente quando comparados com os das empresas organizadas de modo tradicional: a produtividade aumentou, a flexibilidade operacional facilitou a adaptação dos produtos às alterações do mercado, a rotatividade do pessoal reduziu-se ao mínimo, "a iniciativa e a vontade de aprender desenvolveram-se".(20) No caso sueco, a extensão do processo de democracia das empresas foi maior e mais profundo. "Em 1975, a Suécia já apresentava-se com um milhar de empresas em que houve experiências de reorganização do trabalho".(21) Um aspecto a realçar como resultado desse processo é a transformação do papel das chefias. Oscar Ortsman enumera as novas exigências e tendências: " Dada a generalização dos grupos de trabalho, o contra-mestre deixa de ter de encarregar-se dos problemas de regulação cotidiana. Deverá aprender a permitir que os operados participem nas decisões que os afetam; deverá ter em conta os problemas de relações intergrupo; as capacidades de inspirar entusiasmo, de delegar, de prever as possibilidades potenciais das situações, formam um conjunto novo; os seus conhecimentos no que se refere à gestão, às possibilidades de racionalização do trabalho, deverão aumentar; o seu papel, longe de reduzir, está, assim, pelo contrário, em vias de tomar uma importância nova. Está também em vias de emergir um novo papel: o de animador do grupo/.../"(22) Um exemplo eloqüente dessa fase de trabalho é a fábrica Kalmar, da Volvo. Esta empresa, segundo Ortsman "é, provavelmente, o primeiro exemplo de uma fábrica onde foi a técnica que teve de adaptar-se às necessidades do pessoal e não o pessoal às pressões da técnica. /.../ Não se tratou, de forma alguma, de simplificar a tecnologia, mais de a repensar inteiramente, ao serviço do Homem - que, assim, não a serve, como se dizia, mas dela se serve, no local de trabalho".(23) O leitor pode, diante da citação de exemplos de países tão desenvolvidos como Noruega e Suécia, num ar de descrença, perguntar o que isso tem a ver com a nossa realidade terceiro-mundista e latinoamericana. Eu respondo: tem muito, principalmente por que esse processo de democratização empresarial já vem ocorrendo há mais de 30 anos naqueles países. Será que precisamos de um fosso cultural mais profundo para tentar nossas próprias experiências? Não, não precisamos. Uma das maiores empresas de economia mista do mundo, e das mais tradicionais, o Banco do Brasil S.A., já vem empreendendo desde 1987, silenciosamente, uma verdadeira revolução administrativa, assentada em princípios, estratégias e métodos que se compatibilizam com os princípios da democratização empresarial. Nesse sentido, suas agências vêm sendo reestruturadas com base em novo modelo organizacional, cujas mudanças mais marcantes são: flexibilização na estrutura da agência e na distribuição dos trabalhos, associada à maior descentralização do poder decisório; ênfase nas equipes de trabalho, com quebra da antiga rigidez ,setorial e com a velha idéia de "meu funcionário". Consequentemente a mobilidade do pessoal entre as equipes passou a ser uma prática gerencial do dia a dia, pautada pela necessidade do serviço e do cliente e não mais de normativos desatualizados; ¨ constituição do Comitê de Direção que, diariamente, avalia o desempenho da agência e delibera sobre suas ações futuras. Desse comitê participam, além dos gerentes geral e de áreas, os supervisores, representando as equipes de trabalho. Estas, entre outras mudanças gerenciais/organizacionais, já vêm proporcionando, além de um clima de trabalho mais motivador, ''um aumento de produtividade em torno de 30 por cento, em decorrência da valorização que se confere ao cliente e ao funcionário".(24) O processo de construção da democracia empresarial vem ocorrendo também em várias empresas privadas brasileiras: Um exemplo marcante é a Promon, empresa de projetos de alta tecnologia, que desde 1970 é de propriedade de 1.800 dos seus 2.400 funcionários. Desde então, a direção da empresa vem sendo eleita pelos seus funcionádos-acionistas e, no dizer de seu atual presidente,''não existe aqui, ou existe muito pouco, aquela mentalidade de patrão e empregado, de nós e eles, de capital e trabalho, e esse é um dos nossos pontos fortes;''(25) outro exemplo muito conhecido é o da Rhodia, que vem continuamente reestruturando-se, guiada por suas duas máximas: democratização e participação. Nesse sentido, foram criados, até 1988, 800 Grupos de Ação sobre a Performance (GAPS) e 2.000 Turmas de Ação sobre a Performance (TAPS) cura finalidade é concretizar no dia a dia os mecanismos de participação dos empregados no processo decisório e na melhoria da qualidade dos serviços. O processo de democratização da Rhodia vem seguindo os objetivos de: 'reduzir para cinco os níveis hierárquicos, da diretoria aos operários; fazer dos chefes de seção verdadeiros lideres de grupo, com responsabilidade pela formação dos liderados; dar maior segurança no emprego aos funcionários, para melhorar seu desempenho; fazer de seus funcionários também sócios da empresa, pela venda ou distribuição de ações''.(26) O outro caso já por demais conhecido, inclusive do grande público, é o da Semco, transformado em best-seller por Ricardo Semler, seu presidente. O êxito que o modelo democrático vem produzindo na Semco é traduzido anualmente por seus resultados operacionais, sua conquista de novos mercados, e a ampliação de seu patrimônio; Outro exemplo é a Cummins do Brasil, que desde 1995 vem adotando, como filosofia e prática de trabalho, a participação ativa de seus empregados atráves de comissões de representantes junto à direção da empresa. . 2.3 SAÚDE Esta variável da condição e da ação humana nas organizações constitui, surpreendentemente, algo ainda pouco compreendido, tanto pelos administradores, quanto pelos próprios trabalhadores. É comum confundirem saúde com doença, quando falam dos planos de saúde mantidos por suas organizações, revelando as somas vultosas que os serviços médico e odontológico consomem no tratamento do pessoal. Ao indagarmos sobre o uso dos serviços médicos, entretanto, vemos que a maioria dos atendimentos é de natureza curativa, isto é, a ação dos profissionais de saúde é voltada para a doença já instalada no organismo do indivíduo e não para a preservação de sua saúde. O trabalhador, assim transformado em paciente, transfere de seu chefe para seu médico a mesma relação de dependência baseada na ignorância (antes, a ignorância quanto à finalidade de seu trabalho; agora, a ignorância quanto aos agentes patogênicos que debilitaram seu organismo). A dicotomia entre trabalho e organismo vem sendo mantida durante muito tempo, criando um fosso entre, de um lado, as condições de produção, as relações de trabalho e a própria ação produtiva, e de outro, as condições bio-psico-sociais do trabalhador. Até há algum tempo atrás, não se admitia que a organização do trabalho pudesse ser um fator patogênico. Diante de alguma enfermidade, culpava-se o indivíduo por sua fragilidade, considerada resultante de problemas congênitos: "ele já nasceu fraco para esse tipo de trabalho, por isso adoeceu. E com base nessa convicção, substituíam aquele trabalhador-peça gasta por outro recrutado no mercado de mãode-obra, abundante de outros trabalhadores-peças. Em países cujo desenvolvimento vem combinando numa só equação, as conquistas econômicas, políticas e sociais, a questão da saúde no ambiente de trabalho adquiriu maior relevância, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida no trabalho como um valor final. Países europeus têm definido a qualidade de vida no trabalho como prioridade de governo, dos empresários, dos sindicatos de trabalhadores e das universidades. Tal conquista, entretanto, não se deu de maneira fácil. Foram necessárias muitas lutas de trabalhadores e de representantes do poder legislativo para a construção de relações e condições de trabalho mais dignas. Podemos observar alguns aspectos dessa luta na França, no final do século passado. Nesse país, observa-se que: "As lutas operárias marcarão todo o século XIX. As discussões governamentais são intermináveis. Entre um projeto de lei e sua votação é preciso, muitas vezes, esperar dez, vinte anos. Treze, para o projeto de lei sobre a redução do tempo de trabalho das mulheres e crianças (1879 a 1892); Onze, para a lei sobre higiene e segurança (1882 a 1893); Quinze, para lei sobre acidentes de trabalho (1883 a 1898); Quarenta, para a jornada de 10 horas diárias (1979 a 1919); Vinte e sete, para o direito ao repouso semanal (1894 a 1906); Vinte e cinco, para a jornada de 8 horas (1894 a 1919).''(27) Em nosso País, a questão da qualidade de vida no trabalho começa, timidamente, a sair do âmbito das discussões acadêmicas, para fazer parte das políticas administrativas de algumas empresas mais avançadas. O acidente de trabalho, certamente, foi o fator desencadeador dessa preocupação, pelo impacto financeiro imediato que produz nos caixas das empresas. De fato, muitos empresários começam a olhar com maior seriedade as estatísticas da grande insegurança que ainda caracterizam nosso parque industrial. Afinal, a interrupção de fluxos de produção, a redução da força de trabalho e, até mesmo, o desgaste da imagem pública da empresa, começam a contar no balanço anual. Em nível macroeconômico, é uma vergonha nacional que o tão alardeado 8ª. lugar no rankíng da economia mundial (Brasil - 8ª. potência econômica) tenha sido conquistado ao preço de indicadores sociais tão iníquos, tais como o baixo índice de educação e de saúde de nossa população. A selvageria de nossos capitalistas, apoiados pela perversidade de nossos políticos governantes, ávidos por fazerem o "bolo crescer" a qualquer custo, colocou-nos numa posição deplorável no contexto mundial, quanto à distribuição de renda. O índice de injustiça social que o nosso País ostenta somente é superado pelo Equador, de acordo com pesquisa realizada pelo Banco Mundial. O orgulho de possuirmos uma economia equiparada aos países de Primeiro Mundo desmorona diante da crua realidade de como essa riqueza vem sendo acumulada: na proporção de 66,6% nas mãos de apenas 20% dos brasileiros mais ricos, enquanto os 20% mais pobres ficam com as migalhas de 2,0% da riqueza. Só mesmo um milagre político sustenta tamanha injustiça. A Tabela abaixo, produzida pelo Banco Mundial, ilustra o que estamos dizendo. AMÉRICA LATINA 20% MAIS POBRE 20% MAIS RICOS Argentina 4,4 50,3 Brasil 2,0 66,6 Chile 4,5 51,3 Colômbia 2,8 59,4 Equador 1,8 72,0 México 4,2 63,2 Panamá 2,0 61,8 Peru 1,9 61,0 Trinidad Tobago 4,2 50,0 Uruguai 4,4 47,5 Venezuela 3,0 54,0 Média 3,2 57,7 LESTE DA ÁSIA China Hong Kong Indonésia Coreia Malásia Filipinas Singapura Taiwan Tailândia Média 20% MAIS POBRES 7,0 6,0 6,6 6,5 3,5 3,9 6,5 8,8 5,6 6,0 20% MAIS RICOS 39,0 49,0 49,4 45,2 56,0 53,0 49,2 37,2 49,8 47,5 Fonte: Folha de São Paulo de 28/01/199 Infelizmente, este quadro continua crítico no ano 2000, conforme pode ser constatado pela última PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, realizada pelo IBGE, em 1999, ao revelar que, em nível nacional, 27,99% da população foi classificada como "indigente" e 50,21% enquadrou-se na situação de "pobreza". Estão, portanto fora da situação de pobreza apenas 21,8 % de nossa população. Para agravar nosso segundo lugar no campeonato de injustiça social (perdemos para o Equador) no âmbito do trabalho, o Brasil era, em 1990, o campeão absoluto em doenças e em acidentes de trabalho que resultam em mortes e invalidez. Em 1990, uma reportagem da revista Exame revelou que: "A cada ano cerca de l milhão de pessoas sofrem algum tipo de lesão enquanto estão trabalhando. Só na década de 80 morreram mais de 41.000 trabalhadores nas fábricas brasileiras''. (28) É importante realçarmos que estes são os números oficiais (Fundacentro/Ministério do Trabalho) o que significa dizer que a estatística real deve superá-los. Continuando, a reportagem revela o impacto financeiro direto desses acidentes de trabalho sobre a Previdência Social: "com seguros, indenizações e tratamentos médicos a acidentados os gastos anuais atingem a marca de 280 milhões de dólares". (29) E a revista Exame prossegue: ''Os custos indiretos, como horas de trabalho perdidas, máquinas danificadas e perda de produtividade são incalculáveis, mas, segundo estimativas da Fundacentro, em alguns tipos de acidente o valor pode chegar a l 00 vezes o dos custos diretos''. (30) É realmente uma grande tragédia nacional, tanto do ponto de vista humano, quanto do econômico. Comparando nosso desempenho com os de outros países, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apresenta os seguintes dados: ''Relação entre o número de trabalhadores e cada caso de morte provocada por acidentes de trabalho, em mil: (31) Brasil 4,7 Espanha 1,5 Cuba 10,3 França 12,7 EUA 16,6 Suécia 26,3 Japão 50,0 Inglaterra 52,6 Podemos constatar que o trabalhador brasileiro está ameaçado de morte em seu ambiente de trabalho numa proporção alarmante de l para 4.700 trabalhadores. Comparado a outros países, temos a pole position de outro campeonato vergonhoso: o brasileiro trabalha l00% mais ameaçado de morte do que o espanhol e o cubano; 350% mais ameaçado do que o americano; e, pasmem, l.000% mais ameaçado de morte do que o japonês e o inglês. Parodiando a "roleta russa", nosso trabalhador enfrenta uma verdadeira ''roleta brasileira'' que, agravada pelo nosso baixíssimo nível salarial, quando comparado com esses mesmos países, transforma nossos trabalhadores em ases da imprudência; arriscar-se tanto para ganhar tão pouco é algo que não se justifica, nem mesmo pela guerra da sobrevivência. O adicional de 30% de insalubridade sobre o salário tende a manter a acomodação do empregador e a resignação do trabalhador, numa sórdida conivência para com a manutenção de condições de elevado risco e de baixa higiene no trabalho. Tal situação é reforçada pelo atraso de nossa legislação trabalhista, que não cumpre o que determina a convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A propósito: ''O direito do empregado se recusar a trabalhar em locais que oferecem riscos à sua saúde está assegurada na França, Itália, Suécia, Canadá, Estados Unidos e Finlândia, desde o início da década de 70''. (32) No intuito de tirar esse atraso de 20 anos, em l 989 foi elaborada proposta de revisão do capítulo 5 da CLT, que se refere à segurança e à medicina do trabalho. O documento foi redigido por 120 entidades representativas de trabalhadores, empregadores, técnicos da área de segurança e saúde do trabalhador, além de órgãos do setor de saúde e instituições públicas e privadas ligadas ao assunto, em atendimento à portaria 3.223 do Ministério do Trabalho. Em 1995, conforme reportagem da Folha de SP de 16 de junho de 1996, o número de acidentes no trabalho caiu, mas o número de mortos voltou a crescer. Foram 3.967 mortes contra 3.129 em 1994, 26,78% a mais. Não há aí nenhum falso paradoxo. É que empresas evitam registrar acidentes porque o funcionário passa a ter direito a um ano de estabilidade quando o período de afastamento ultrapassa 15 dias. 2.3.1 STRESS Fizemos até aqui uma rápida incursão pelas questões referentes à segurança do trabalho, o lado hard da saúde do trabalho, portanto mais fácil de ser percebido e administrado. Imaginem como estará sendo tratado o outro lado, o lado soft da saúde, que implica, para a sua compreensão, um enfoque mais sutil da engenharia, da medicina, da psicossociologia, da administração. De uns tempos para cá, o termo stress vem ganhando terreno nos meios de comunicação em forma de alerta contra os males que encerra, ou pelo fato de já ser considerado o inimigo número um do homem moderno. O stress não é uma doença, como alguns possam pensar. Constitui um sistema complexo de defesa que o organismo lança mão, enquanto unidade bio-psico-social, para fugir ou enfrentar situações de perigo real ou imaginário. Esse sistema de defesa assemelha-se a uma operação de guerra, ao mobilizar todos os órgãos do corpo que, comandados pelo sistema neuro-endócrino, prepara o indivíduo para enfrentar a ameaça: o sangue concentra-se nos órgãos centrais, deixando a pele com um mínimo de irrigação para evitar sangramentos excessivos em caso de luta; as supra-renais aumentam a secreção de adrenalina que estimula o coração, acelerando-o para distribuir maior volume de sangue à musculatura, para o caso de ataque ou fuga; o fígado passa a trabalhar freneticamente, convertendo gorduras armazenadas em açúcares e garantindo, assim, energia para o corpo desempenhar sua tarefa; os pulmões aceleram-se, garantindo maior aporte de oxigênio e livrando o sangue de CO2, numa dinâmica que resultará em mais energia para o organismo; o cérebro acende-se todo, tornando-se mais receptivo aos estímulos ambientais e até mesmo despertando o chamado sextosentido; enfim, o indivíduo transforma-se num guerreiro prestes a atacar ou a fugir, dependendo das circunstâncias e da situação-ameaça. Todo esse maravilhoso mecanismo biológico de preservação da saúde, construído pelos animais desde seus primórdios, vem sendo transformado em doença pelo homem moderno. Ao construir a cultura de exploração do indivíduo como instrumento de trabalho, bem como a sociedade centrada no mercado, na disciplina, no medo e na competição desenfreada, o homem instalou as bases de sua própria destruição. Já se denuncia, hoje em dia, em passeatas e assembléias, a destruição da natureza; nada, porém, é dito ou feito publicamente, sobre o processo de destruição psicossomática que, lentamente, vem adoecendo o ser humano em coletividade e, especificamente, em organizações sociais, em empresas. Vejamos alguns exemplos eloqüentes desse processo de ''adoecimento'' que o ser humano vem construindo em seu ambiente de trabalho: 1. ''Todo ano a economia dos Estados Unidos sofre uma sangria da ordem de 75 bilhões de dólares, somente na falta ao serviço de pessoas acometidas de stress''.(33) 2.''Em abril de l987 operários metalúrgicos de São Paulo consumiram no ambulatório médico do sindicato precisamente 8.340 comprimidos de ansiolíticos, remédio que costuma ser receitado para o stress. Em maio esse número foi para 15.560 e passou a 18. l 00 em junho''.(34) 3."Como uma espécie de logotipo do subgrupo a que pertence, nos picos de stress ele enfrenta uma úlcera que o persegue há alguns anos. Também pudera! Às 6 horas da manhã, Sr. A., vestido com criteriosa elegância, segue para a fábrica, de onde só retoma para, geralmente sozinho e por volta das 22h30min, fazer sua única refeição completa do dia''.(35) 4."O operário O.A. da Conceição/.../trabalha nove horas por dia como montador de forno, em pé o dia todo. Já teve todos os problemas possíveis de saúde e está tomando antidistônicos para poder dormir. Diz ele: ''não tenho condições de trabalhar, mas tenho de ir até cair. Um descanso até que seria bom, mas sei que, se fizer isso, vou ser mandado embora em represália''.(36) 5. "Num grande banco estatal, no decorrer de dois anos, os motivos psiquiátricos de afastamento atingiram um nível de 14,06% de todos os afastamentos por doenças. O diagnóstico psiquiátrico mais frequente foi o de depressão'' .(37) 6. "Sra. P trabalha bravamente, engorda sua conta bancária com sucessivos e polpudos honorários, mas não dá a mínima bola para as recompensas que sua dedicação pode proporcionar-lhe. '''Acho que trabalho tanto para não pensar na vida e ficar deprimida''.(38) 7.''Diariamente descarrego litros e litros de adrenalina, reclamava Jardel Filho depois das extenuantes gravações de que participava. Ele teve morte súbita, em 1983, durante as gravações da novela Sol de Verão, da Rede Globo'' . (39) 8. "Os brasileiros consumiram 113 milhões de reais em antidepressivos no ano de 1996".(40) Como podemos ver, a desumanização do processo e do ambiente de trabalho não tem escolhido vitimas; simplesmente ataca tanto empresários quanto operários e bancários, além de artistas e políticos. No caso dos executivos, até mesmo os momentos de lazer eles tendem a transformar em competição. "Habituados a ambientes competitivos e à obtenção de resultados, os executivos não resistem à tentação de carregar esse modelo para dentro das quadras esportivas. O executivo usa a atividade física como uma fuga para o principal fator de estresse em sua vida: a carga excessiva de pressão, ambição e cobrança no mundo dos negócios. Para minimizar esse problema, só há uma saída: mudar o estilo de vida e abandonar a competição excessiva. Essa é a grande resistência dos executivos - e a fonte de boa parte de seus problemas. "Ninguém morre de enfarte do miocárdio, mas sim de um estilo de vida descuidado", diz o médico De Marchi. (41) A constatação, que já não pode ser ignorada, é de que os empresários e os empregados não têm dado a devida relevância ao fator Saúde como componente fundamental do processo de trabalho. Não adianta criar CIPAS, semanas de prevenção de acidentes de trabalho e outros paliativos isolados, se os fatores produção, politização e saúde continuarem sendo abordados como compartimentos estanques, com o uso de departamentos específicos para cuidar de cada um dos fatores, exacerbando uma fragmentação que não tem trazido resultados positivos, nem para o empregado nem para o empregador. Tal fragmentação, sem dúvida, vem sendo mantida ao longo do tempo por valores culturais que impregnam todas as empresas e por que não dizer, a própria sociedade, ainda inspirada em paradigmas filosóficos que têm forçado a dicotomia artificial de fenômenos inseparáveis tais como: corpo e mente; superior e subalterno; planejamento e execução; trabalho intelectual e trabalho manual; crescimento econômico e justiça social; tudo isso entre muitas outras fragmentações da realidade que vêm sendo mantidas desde Parmênides, Platão e Aristóteles, passando por Tomás de Aquino, Descartes e Augusto Comte e concretizando-se na organização e nas operações de trabalho, com Fayol e Taylor, até chegar aos nossos dias. Realmente, Taylor levou às últimas conseqüências as diretrizes de seu velho mestre espiritual, Aristóteles, que há 2.300 anos já afirmava: - ''Da mesma forma que em outras matérias, é necessário decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples''. (42) - "Quem pode usar o seu espírito para prever é naturalmente um comandante e naturalmente um senhor, e quem pode usar o seu corpo para prover é comandado e naturalmente escravo''. (43) - ''pode haver uma ciência do senhor e uma ciência do escravo/.../ a ciência do senhor, por sua vez ensina a usar os escravos''.(44) Impressionante como até hoje tais diretrizes ainda impregnam a mentalidade de nossos empresários e trabalhadores, numa equação política sustentada pela exploração e pela alienação. A engenharia dos processos de produção já começou, há alguns anos entre nós (e há pelo menos 4 décadas na Suécia, na Dinamarca e na França, entre outros países europeus), a romper a camisa de força mecanicista que Taylor, competentemente, construiu como artifício para garantir elevados índices de produtividade. Ele não teve tempo de assistir ao surgimento dos subprodutos de sua linha de montagem: a queda da criatividade, do entusiasmo, da responsabilidade do trabalhador pelo que faz, resultando em baixa qualidade dos produtos, perda de mercado pela empresa, surgimento de níveis gerenciais desnecessários (para controlar, vigiar e punir), aumento de despesas com pessoal administrativo, quebra de equipamentos, elevados índices de absenteísmo, licenças médicas, entre muitos outros efeitos. Sobre a saúde, o impacto do taylorismo foi arrasador. Isto porque ''ao separar, radicalmente, o trabalho intelectual do trabalho manual, o sistema Taylor neutraliza a atividade mental dos operários. Desse modo, não é o aparelho psíquico que aparece como primeira vítima do sistema, mas sobretudo o corpo dócil e disciplinado, entregue, sem obstáculos, à injunção da organização do trabalho, ao engenheiro de produção e à direção hierarquizada do comando. Corpo sem defesa, corpo explorado, corpo fragilizado pela privação de seu protetor natural, que é o aparelho mental''. (45) Como vimos em alguns exemplos, o impacto da fragmentação do conjunto corpo/mente transformou o stress, de sistema de defesa, em doença deste final de século. No rastro deixado por essa transformação, vêm surgindo, a cada dia, inúmeros métodos e remédios milagrosos de "cura" do stress. Clínicas e consultórios são criados para tratar dos executivos stressados que, como revelava a revista ISTO É, em 1987: ''A cada semana, durante três horas, G.S., instala-se numa sala acústica na Clínica Âmara, em São Paulo, relaxa num divã e escuta músicas suaves acompanhadas por emanações aromáticas e um balé de luzes coloridas - parte "de uma terapia pelo qual desembolsa alegremente 4.500 cruzados semanais - Na sala de música eu viajo muito (revela G. S.)''(46) Esse é o problema: ele é levado a "viajar muito", a fugir, naquele ambiente artificial, de sua realidade massacrante e stressante. Certamente com boas intenções, o profissional da saúde, está, sem o perceber, contribuindo para a manutenção dos agentes stressantes que caracterizam o sistema de produção, o ambiente, as condições e as relações de trabalho que continuam, assim, a fazer suas vítimas, entre empresários e trabalhadores. Não podemos persistir ignorando a realidade que nos demonstra que ''se a violência da organização do trabalho pode, mesmo na ausência de nocividade dos ambientes de trabalho (por exemplo, nos empregos de escritórios, criar doenças psicossomáticas e não apenas psíquicas, é porque o aparelho mental não é um compartimento do organismo, simplesmente justaposto à musculatura, aos órgãos sensoriais e às víscera. A vida psíquica é também, um patamar de integração do funcionamento dos diferentes órgãos. Sua desestruturação repercute sobre a saúde física e sobre a saúde mental''. (47) Apesar dessa constatação, grande número de pessoas, em troca de segurança e de um salário, continua a vender seu corpo e seu tempo de vida ao patrão que habilmente maneja, diretamente ou por meio de especialistas, as condições, operações e relações de trabalho mantenedoras da situação que, combinadamente, apropria a energia laboral e expropria a saúde do empregado (trabalhador ou gerente). Diante disso, é preciso voltarmos nossos esforços para a real e urgente necessidade de mudança de paradigmas, de valores e de práticas que vêm transformando as organizações sociais, e especialmente as empresas, nessas ''câmaras de tortura'' assalariadas que tanto conhecemos. 2.3.2 HÁ LUZ NO FIM DO TÚNEL Os sistemas de gestão e a organização do trabalho que criticamos aqui, vêm sendo questionados em várias empresas privadas e públicas. Estas honrosas exceções nos animam a insistir na necessidade de que as corajosas mudanças que tais empresas empreendem se multipliquem em nosso País, substituindo a selvageria do capitalismo que ainda mantém raizes de nossa época colonial e escravista (afinal os quatrocentos anos de relação de dominação deixaram muita gente habituada) por relações de trabalho mais democráticas e humanas. Entre as empresas privadas que modernizaram suas políticas e procedimentos administrativos em relação à saúde (ainda com ênfase em segurança do trabalho) vale a pena conhecer: 1.''A Caterpillar, empresa na qual todos os supervisores reúnem diariamente seus subordinados antes do expediente e passam 5 minutos falando de segurança, um bate-papo informal voltado exclusivamente para esse assunto''. (48) 2.''A Vulcan, a maior transformadora de plásticos do País e subsidiária do grupo americano Oxxy, que em outubro de 1989 completou dois anos e meio sem registrar acidente do qual resultasse afastamento de alguns dos seus 1.450 funcionários, graças a um programa de segurança implantado em 1982''. (49) Para chegar a esse resultado, a Vulcan conciliou um esquema de treinamento com investimento em tecnologia, que em 1989 chegou a 1,2 milhão de dólares. ''O programa da Vulcan tem como marca registrada o envolvimento dos gerentes no assunto''. (50) Foi incluído o item segurança no processo de avaliação de desempenho (para algumas funções com peso de 25%) e consequentemente passou a ser levado em conta nas promoções e nos aumentos de mérito. 3. ''A unidade de produtos industriais da Goodyear (em São Paulo) acaba de bater o recorde mundial de horas trabalhadas sem acidentes de trabalho com afastamento nesse tipo de atividade. Foram mais de 2,5 milhões de homens/horas''. (51) 4."A Esso brasileira tem uma média de 3,2 acidentes, por milhão de milhas dirigidas, enquanto a média mundial do grupo chega a 5,9. Seu diretor de distribuição declara que investe 3 milhões de dólares por ano em campanhas de motivação, treinamento, divulgação e eliminação de condições inseguras. (52) 5. ''Em dez anos de funcionamento da Acrinor (empresa petroquímica do Pólo de Camaçari-Bahia), não se registrou ali sequer um acidente fatal, embora ela produza duas matérias-primas letais, o ácido cianídrico e a própria acrilonitrila. Outro feito: há 1.617 dias nenhum dos funcionários se afastou devido a acidentes. (53) ''Para tanto, a Acrinor tem envolvido todas as pessoas (gerentes e não gerentes) que tomam parte no processo produtivo. Desde agosto de 1989, a direção industrial da empresa vem realizando nove reuniões de segurança por semana, envolvendo funcionários de produção e da administração. (54) Na área pública, destacamos dois exemplos de negociação entre sindicatos e diretorias, no sentido de construírem condições de saúde mais promissoras ao pleno desenvolvimento humano. l.º) Em 13 de setembro de 1989, foram aprovados pela Diretoria do Banco do Brasil, duas reivindicações dos empregados (Via CASSI-Caixa de Assistência): -'''70a O Banco aprimorará os exames, considerando sistematicamente as condições de trabalho e suas conseqüências na saúde dos funcionários; - 74a O Banco prosseguirá estudos e experiências de implementação de programa nacional de ginástica laborial compensatória destinada a funcionários que desenvolvem atividades repetitivas''.(55) 2º.)Em 31 de janeiro de 1990, a Eletrobrás, em Acordo Coletivo de Trabalho, aprovou a seguinte cláusula: ''Cláusula 45º - fatores psicossociais no trabalho - A empresa concorda em desenvolver estudos relativos aos fatores psicossociais inerentes à organização, que podem influir, consideravelmente, no bem-estar físico e mental dos trabalhadores, bem como manter a realização dos programas de preparação para aposentadoria e informação sobre o stress''.(56) - A aprovação desta cláusula nos insere entre os países mais adiantados em matéria de prevenção da saúde no trabalho, abrindo, assim, espaço para a gestão dos fatores psicossociais até então ignorados ou apenas empiricamente considerados por administradores e empregados. Podemos dizer, portanto, que há luz no fim do túnel. Um novo ambiente de trabalho vem sendo construído paulatinamente, tirando o ser humano da situação marginal e colocando-o no centro, quer como agente, quer como destinatário do processo produtivo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) MAY, Rollo, Liberdade e Destino. Rio de Janeiro, Rocco, p. 103. (2) LATEY, Maurice. Ditadura: ontem e hoje. Rio de Janeiro, Novo Tempo, l 980. p. 300. (3) WEBER,Renée. Diálogos com Cientistas e Sábios. São Paulo, Cultrix, 1988. p. 185. (4) MARX, Karl. O Capital. 7. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. p. 61. (5) POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985. p. 125. (6) CARVALHO, José Maurício de. O Significado do Trabalho nas Culturas Luso-brasileira. s.n.t. Texto não publicado. (7) GUERREIRO RAMOS, A. A Nova Ciência das Organizações. Rio de Janeiro, FGV, 1981. p. 133. (8) MATTOS, Ruy de A. Gerência e Democracia nas organizações. Brasília, Livre, 1988. p. 21. (9) FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1981. p. 106. (10) ARISTÓTELES, Política. 2. ed. Brasília, UNB, 1985. cap. 1. p. 18. (11) DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho. 2. ed. São Paulo, Cortez, 1987. p. 38-9. (12) ORTSMAN, Oscar. Mudar o Trabalho. - Fundação Calouste Gulbenkian,1984.p.30. (13) KAPLAN, A. & LASWELL, H. Poder e Sociedade. Brasília, UNB, 1982. p.274. (14) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil - 1988. Brasília, Senado Federal, 1988. Titulo II-Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Capítulo II - dos Direitos sociais.p.16 (15) GUERREIRO RAMOS, A.A Administração e Contexto brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro FGV, 1983.P.53 (16) ANSART, Pierre. Ideologia, Conflitos e Poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 254. (17) ORTSMAN, Oscar. Mudar o Trabalho. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982. p. 174. (18) Id., ibid., p. 175. (19) Id., ibid., p. 186-7. (20) Id., ibid., p. 201. (21) Id., ibid., P. 245. (22) Id., ibid., p. 261-2. (23) Id., ibid., p. 264. (24) CORREIO BRASILIENSE, 5 de janeiro de 1990. Encarte Especial. (25) REVISTA PEQUENAS EMPRESAS GRANDES NEGÓClOS, Globo. p. 21. (26) LEONEL, Luís. A Grande Virada de Mesa na Rhodia. Exame, São Paulo, 20(19): 44-8, 21 jun., 1988. p. 45. (27) DEJOURS, Christophe. op. cit., p.17. (28) CASTANHEIRA, Joaquim. O Primeiro lugar é uma derrota. Exame, São Paulo, 22(1 O): 74-8, l O jan., l 990. p. 74. (29) Id., ibid., p. 74. (30) Id., ibid., p. 74. (31) Id., ibid., p. 77. (32) Id., ibid., p. 75. (33) CARVALHO, Flávio de. Estafa domada. Revista Isto É, São Paulo (553): 46-52, 29 de jul., 1987. p. 47. (34) Id., ibid., p. 52. (35) LAZARETTI, Mariella. A geração workaholic. Revista Exame/VIP, São Paulo, 4(6): 10-15 , 28 jun., 1989. p. l 1. (36) CARVALHO, Flávio. op. cit., p. 52. (37) BOLETIM SAÚDE, Movimento Nacional de Saúde, 1(1). (38) LAZARETTI, Mariella. op. cit., p. 14. (39) CARVALHO, Flávio. op. cit., p. 52. (40) Revista EXAME, 28 de janeiro de 1997. (41) Revista EXAME 22 de junho 1994 (42) ARISTÓTELES. op. cit., p. 13. (43) Id., ibid., p. 14. (44) Id., ibid., p. 21. (45) DEJOURS, C. op. cit., p. 134. (46) CARVALHO, Flávio de. op. cit., p. 46. (47) DEJOURS, C. op. cit., p. 134. (48) CASTANHEIRA, Joaquim. op. cit., p. 75. (49) Id., ibid., p. 74. (50) Id., ibid., p. 76. (51) Id., ibid., p. 74. (52) Id., ibid., p. 76. (53) Id., ibid., p. 77-8. (54) Id., ibid., p. 78. (55) BOLETIM DE SAÚDE, Movimento Nacional de Saúde, 1(1). (56) ELETROBRAS. Acordo Coletivo de Trabalho. s.n.t. 31 de janeiro de 1990. CAPÍTULO II ORGANIZAÇÃO SOCIAL E RH 1. A CONCEPÇÃO DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL Declarações do tipo "há conflitos permanentes entre as necessidades dos indivíduos e as necessidades da organização" ou "os objetivos organizacionais são sempre contraditórios aos objetivos individuais" denunciam uma concepção antropomórfica de Organização, caracterizando-a como entidade física e psicológica autônoma, dotada de necessidades, valores, comportamentos e objetivos, à semelhança dos indivíduos. Guerreiro Ramos aponta esta distorção conceptual quando analisa o conceito de sanidade organizacional de Bennis: ''a sanidade organizacional, como a conceitua Warren Bennis, é estranha ao campo da teoria organizacional, sendo uma extrapolação mecânica e um atributo que pode ser pertinente à vida individual, mas não à natureza da organização formal. O conceito de sanidade organizacional de Bennis pressupõe a existência concreta de uma mente coletiva ou organizacional, cujas implicações organicistas dificilmente se harmonizam com a estrutura da ciência social contemporânea''.(1) Outro cientista social que refuta a concepção organicista e antropomórfica das organizações é Lapassade que, ao citar Sartre, esclarece a diferença essencial entre o indivíduo e a organização: ''o organismo individual, que satisfaz uma necessidade mediante uma atividade prática, sobrevive ao desaparecimento dessa atividade: ele sobrevive como organismo, quer dizer, pela variedade unificada de suas funções. O organismo é, ao mesmo tempo, totalização e totalidade. Ao contrário, o grupo (a organização) só pode ser totalização em processo, e a sua totalidade encontra-se fora dele, em seu objeto''. Mais adiante Lapassade enfatiza: ''a unidade do grupo (ou organização) é prática, não é ontológica''. (2) Corroborando estes pontos de vista, podemos dizer que a organização constitui um complexo sistema de relações de poder e de trabalho estabelecidas entre indivíduos e grupos, com vistas no alcance de objetivos. Estas relações manifestam-se em três dimensões: a psicossocial, a política e a econômica, que são interligadas e interdependentes, conforme demonstra a figura abaixo: A estrutura de cargos e funções, assim como as normas e procedimentos, são reflexos desta subjacente realidade tridimensional que caracteriza a organização. A dimensão psicossocial representa a manifestação individual e coletiva dos comportamentos, atitudes, valores, crenças e concepções de seus participantes. Estas variáveis influenciam profundamente o comportamento organizacional, seja por meio do exercício formal dos cargos e funções, seja através dos papéis desempenhados informalmente. A dimensão política refere-se ao uso e conquista do poder por seus participantes. Esta dimensão vem sendo pouco enfocada pela teoria organizacional, apesar do fato de que ''a estrutura de poder de uma empresa define a própria empresa. Os objetivos que a empresa persegue e a estrutura que ostenta são uma extensão dos objetivos e necessidades dos grupos e indivíduos dominantes que constituem a sua estrutura de poder''.(3) Assim, a natureza das relações de poder exerce um efeito crucial sobre o desempenho da organização e, especificamente, de cada um de seus participantes. A dimensão econômica constitui o conjunto de recursos (financeiros, energéticos, materiais, naturais), os equipamentos e a tecnologia de produção empregada na organização. O profissional de T&D, assim como qualquer outro que lide no contexto organizacional, precisa lançar mão de estratégias que levem em conta cada uma dessas três dimensões, pois do contrário estará fragilizando sua abordagem da realidade e comprometendo a eficácia e efetividade de sua atuação. 2. A CONCEPÇÃO DE RECURSOS HUMANOS Fala-se muito em Recursos Humanos sem, no entanto, compreender-se o real significado que o conceito encerra e suas repercussões sobre a própria atividade do desenvolvimento do Homem e das organizações sociais. Sabemos que o conceito fundamentou-se em princípios e práticas da chamada Administração Científica, que veio a dar suporte ao esforço de racionalização de operações e procedimentos com vista no aumento da produtividade e redução de custos empresariais, objetivos sofregamente perseguidos no meio industrial. Entretanto, suas raízes são mais antigas e profundas, transcendendo a conotação eminentemente técnica que vem sendo dada por inúmeros estudiosos da administração, desde Max Weber, passando por Taylor e Fayol até nossos dias. A concepção do ser humano como recurso e sua utilização como instrumento de trabalho têm origem em motivações não somente econômicas, mas fundamentalmente políticas, sendo, assim, produto das relações de poder estabelecidas entre os indivíduos e as classes sociais. Não seria possível o conceito de homem-recurso sem a instituição do controle do corpo e das ações do indivíduo - isto é, da disciplina. Estudos desenvolvidos por Michel Foucault ilustram com muita clareza o que queremos dizer. Transcrevemos, a seguir, algumas de suas conclusões a respeito desse fenômeno: - ''A disciplina é uma técnica de exercício do poder que foi, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVII. Historicamente, as disciplinas existiam há muito tempo na Idade Média e mesmo na Antiguidade.''(4) (Os mosteiros e as grandes empresas escravagistas são exemplos muito conhecidos de sistemas disciplinares.) - ''Fala-se, freqüentemente, das invenções técnicas do século XVII - as tecnologias químicas, metalúrgicas etc. mas, erroneamente, nada se diz da invenção técnica dessa nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá-las.''(5) E continua Foucault: ''A disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. No século XVII, nas oficinas de tipo corporativo, o que se exigia do companheiro ou do mestre era que fabricasse um produto com determinadas qualidades. A maneira de fabricá-lo dependia da transmissão de geração em geração. O controle não atingia o próprio gesto. (...) A partir do século XVIII, se desenvolve uma arte do corpo humano. Começa-se a observar de que maneira os gestos são feitos, qual o mais eficaz, rápido e melhor ajustado. É assim que nas oficinas aparece o famoso e sinistro personagem do contramestre, destinado não só a observar se o trabalho foi feito, mas como é feito, como pode ser feito mais rapidamente e com gestos melhor adaptados.''(6) A chamada revolução industrial não teria condições de acontecer sem a instituição do hetero-controle do comportamento humano, da disciplina como técnica de gestão dos homens e da categoria humana surgida com essa prática, a do homem-recurso, homem-instrumento, homemferramenta de trabalho de outros homens, sejam estes detentores do poder econômico ou do poder burocrático. A atividade de Treinamento e Desenvolvimento de Recursos Humanos foi concebida a partir de valores, premissas e necessidades .oriundas da Revolução Industrial guardando, portanto, identidade de propósito com ela. Desse modo, por sua origem e pelo modo como vem sendo conduzida tradicionalmente, tem constituído mais um instrumento de consolidação da ideologia e prática de utilização do homem como instrumento, ao invés de um meio que contribua para o seu desenvolvimento como profissional e como pessoa. É natural, portanto, que ao conceber-se a organização como sistema de relações de trabalho, torne-se contraditório o próprio conceito de ''recursos humanos''. Recursos de quem, administrados por quem? pela organização? e quem será a organização? será tão-somente a alta administração, a cúpula? e quem serão os recursos humanos? os outros? a alta gerência estará acima dos recursos humanos? por isso não precisa ser treinada ou desenvolvida? Tais indagações, aparentemente óbvias, vêm sendo evitadas por inúmeros administradores e teóricos organizacionais, especialmente os defensores da concepção antropomórfica das organizações. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) Guerreiro Ramos, A. - A Nova Ciência das Organizações. Editora da FGV, Rio de Janeiro, 1981.p.76. (2) Lapassade, G. - Grupos, Organizações e Instituições. Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977.p.233. (3) Bethlem, Agrícola.-apresentado por Sérgio Joaquim Corrêa. O Exercício do Poder na Administração. Documentário, Rio de Janeiro, 1977.p..91. (4) Foucault, M.- Microfísica do Poder, Editora Graal, Rio de Janeiro, 1981.p.105-106 (5) Idem (6) Idem Idem . CAPÍTULO III TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO: O MODELO DEMOCRÁTICO 1. INTRODUÇÃO Historicamente, podemos dividir o treinamento em três fases. A primeira iniciou-se com a administração científica e representou a fase do adestramento de pessoas, cujo objetivo expresso era a preparação do indivíduo para alcançar o maior nível de produtividade possível. O homem era considerado um equipamento sofisticado que trabalhava essencialmente em função de recompensa salarial. O indivíduo era percebido como intrinsecamente não-identificado com a organização. Um mal necessário, na ausência de outro equipamento tão sofisticado quanto ele. O protótipo de trabalhador era aquela pessoa disciplinada e resistente à fadiga e à monotonia do trabalho. A segunda fase, que podemos denominar de Desenvolvimento de Recursos Humanos, iniciou-se com o chamado Movimento de Relações Humanas. A preocupação com o aprimoramento de habilidades foi mitigada pela busca da satisfação das necessidades e aspirações do indivíduo, visando integrá-lo à organização. Procurava-se assim obter, maior identificação e envolvimento emocional para com ela - e aumento da produtividade, conseqüentemente. O Homem Organizacional, aquele que se sacrifica pela organização, passou a ser considerado um modelo de boa adaptação, ótica ainda hoje predominante. O indivíduo, apesar de considerado um ser complexo, continua sendo visto, essencialmente, como um instrumento, um recurso a ser consumido no processo produtivo e no desenvolvimento econômico da organização e da sociedade. O ''homem organizacional'', modelo desta fase, representa o símbolo da hipertrofia de uma área do desempenho humano - o trabalho - em detrimento de outras, tais como a política, a social, a familiar e a pessoal. A nosso ver, estamos hoje no limiar de uma nova fase, que podemos denominar de Desenvolvimento Humano. Respalda-se na visão do Homem como sujeito do desenvolvimento político, econômico e social, dotado de um potencial a ser desenvolvido nas diversas dimensões do comportamento humano. Nesta nova fase, o lazer e o tempo livre sairão da marginalidade para conquistar uma posição de relevância junto ao trabalho. A anterior ênfase na memorização será substituída pela ênfase na criatividade; a dependência do indivíduo em relação à organização dará lugar à autonomia profissional e à interdependência; o comportamento estereotipado cederá lugar à ação reflexiva e crítica; o consenso será conjugado com o dissenso, transformando o acordo e o conflito em expressões naturais da convivência; a austeridade e o formalismo burocrático darão lugar à espontaneidade e à flexibilidade funcionais. O homem-objeto da primeira fase e o homem-recurso da segunda, cederão lugar ao homem-pessoa nesta nova fase do desenvolvimento humano É sobre esta aparente utopia que dissertaremos, trazendo nossa contribuição em forma de questionamentos e de descobertas feitas a partir de nossa experiência pessoal. Sabemos, de antemão, que apenas arranhamos as parede que separam o adestramento e a manipulação do verdadeiro desenvolvimento humano. 2. ORIENTAÇÃO DO TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO Tradicionalmente, a orientação do T&D o tem caracterizado como atividade suplementar da administração de pessoal ou gestão de RH, desde a criação das primeiras seções e serviços de treinamento. Isto reduziu a idéia de desenvolvimento a treinamento, criando problemas que ainda hoje os profissionais da área enfrentam na execução de seu trabalho. Para a solução dessa disfunção não advogamos a simples transferência do T&D da área de administração de pessoal, o que constituiria uma questão de forma ou simples rearrumação de organograma. Propomos uma mudança radical nos pressupostos que sustentam o exercício da atividade, desde o seu planejamento até a sua execução e avaliação. O T&D deve constituir um suporte para o planejamento estratégico da Organização e para sua contínua modernização institucional. Para isto, de nada adiantará promover-se mudanças ao nível do sistema de referência pré-existente - isto seria apenas realocar velhas concepções administrativas em novas formas. Precisamos de uma critica profunda, ao nível das bases filosóficas e demais premissas que sustentam a prática do Planejamento, da Modernização e do T&D. Esta tríade precisa não de uma nova roupagem, mas de uma nova concepção que reflita os anseios de participação e de democratização das relações de trabalho. A já velha orientação tecnocrática precisa de urgente aposentadoria, sob o risco de tomar-se anacrônica. Neste sentido precisamos repensar nossa atividade ao nível do paradigma que a sustenta. O T&D vem sendo executado, tradicionalmente, segundo premissas tipicamente aristotélico-positivistas, cujas repercussões mais relevantes são: a) a transformação do T&D numa atividade racional-objetiva especializada de um centro do qual emanam programas e projetos a serem executados por unidades organizacionais periféricas; b) a crença na mensuração quantitativa de resultados dos programas de T&D; c) a busca de uniformidade no desempenho humano na organização, sem levar em conta as peculiaridades setoriais e individuais; d) a centralização do diagnóstico, planejamento e avaliação de T&D; e) a ênfase na eficiência das ações desenvolvidas e não na efetividade (repercussões sobre a clientela). Enfim, o T&D orientado por aquele paradigma visa, em suas ações, à obtenção da máxima quantificação, ''como reflexo da busca de generalização, de unidade e de conformidade'' (1)na organização. O planejamento e a condução da atividade de T&D caracteriza-se, desse modo, por sua orientação tecnocrática e elitista, subtraindo da efetiva participação, os legítimos responsáveis pelo processo de desenvolvimento - os próprios trabalhadores. Nesse sentido, a crença na superioridade do conhecimento racional-formal do especialista sobre a experiência e o conhecimento existencial do trabalhador, tem sido um fator dificultador da eficácia dos programas de T&D. Enquanto o primeiro enfoque preocupa-se com o princípio da validade científica e da exatidão metodológica, o segundo (enfoque existencial-fenomenológico) anseia, antes de tudo, pela utilidade, adequabilidade e exequibilidade. Orienta-se no sentido da satisfação das reais necessidades e possibilidades e não da conformidade com modelos teóricos; o compromisso é antes com o que precisa ser feito, do que com o que deve ser feito. Nos moldes da orientação tradicional, a programação anual de eventos (geralmente cursos) transformou-se mais numa exibição estética do profissional de T&D aos seus superiores, do que numa proposta de atividades em resposta às reais demandas dos diversos níveis e segmentos da organização. A compulsão de mostrar serviços suplantou a necessidade de realizações necessárias e relevantes para a clientela do T&D. Com isso, a organização vem perdendo em qualidade de desempenho humano, os trabalhadores em possibilidade de desenvolverem suas reais potencialidades e o profissional de T&D vem sendo esvaziado em seu poder de influência na organização. Em lugar desse modelo, tipicamente elitista, é necessário que o profissional de T&D adote uma relação de trabalho que respeite e incentive a diversidade das unidades organizacionais. Desse modo deverá descentralizar o poder de decisão para que os próprios trabalhadores (gestores ou não) em suas respectivas Unidades, identifiquem suas necessidades e sugiram suas alternativas de solução para seus problemas. Vale, a esta altura, apoiar-me em Cartwrigth quando diz que ''problema não são coisas objetivas inerentes ao chamado mundo real, mas imagens deste mundo definidas pelas pessoas numa variedade de maneiras mais ou menos precisas. E isto é principalmente válido, se considerarmos que o planejamento, como qualquer outra atividade humana, é baseado nas percepções individuais do mundo em que vivemos''. (2) É, portanto, no conhecimento existencial-fenomenológico que o T&D deverá buscar o substrato de sua ação. Esse conhecimento está disponível em sua própria clientela, Desse modo, por que não descentralizar a atividade de T&D, preparando as unidades organizacionais para melhor utilizarem seus próprios recursos no atendimento às suas necessidades? Assim, além da redução da margem de erro dos projetos, estimula-se a postura de co-responsabilidade dos gestores e técnicos em seu processo de desenvolvimento profissional. A aprendizagem, decorrente da participação do indivíduo em seu processo de desenvolvimento profissional, constitui, por si só, um resultado a ser perseguido pela unidade de T&D, enquanto promotora do desenvolvimento humano na organização. O T&D vem sendo tradicionalmente orientado por premissas desenvolvimento econômico, refletindo, desse modo, a visão do Homem como mero recurso a ser utilizado pela organização, que o explora e o ajusta ao processo produtivo, a despeito das potencialidades, tendências e aspirações individuais. Até quando o Homem continuará a ser encarado como instrumento ou recurso de uma organização para o alcance dos objetivos de seus dirigentes? A organização é, ao lado de seu caráter produtivo, um recurso sócioprofissional criado pelo Homem para desenvolver-se no decorrer de sua vida social. Por sua vez, a concepção de Homem, como ser econômico, não passa de uma caricatura e já não se adequa às aspirações culturais e políticas de nossa sociedade. Nesse sentido, a busca do desenvolvimento humano integral é uma atividade legítima a ser empreendida no seio das organizações, e como tal deve ser estimulada a cada momento; representa a constatação da falência da orientação meramente econômica e a percepção de novas premissas políticas e sociais que as organizações precisam levar em conta. 3. A ORIENTAÇÃO DEMOCRÁTICA DO T & D O T&D, orientado segundo pressupostos democráticos, implica na crença de que os próprios indivíduos e grupos detêm informações e experiências que possibilitam seu desenvolvimento, cabendo ao setor de T&D a função de assessorá-los em métodos que facilitem o processo de aprendizagem. Segundo este enfoque, os programas de ensino, por natureza exógenos, devem ser complementadas por programas de aprendizagem, caracteristicamente endógenos. Em outras palavras, o T&D, desenvolvido principalmente através de atividades de ensino, deve dar lugar a uma orientação mais andragógica, com ênfase nos recursos disponíveis no próprio treinando e em seu grupo de trabalho. Nessa relação, o instrutor desempenhará o papel de orientador ou facilitador do processo de aprendizagem, enfatizando o resgate do potencial do indivíduo e dos grupos através do incentivo à autocrítica e à descoberta de novas maneiras de enfocar as questões e solucionar os problemas. '' T&D, ao ser encarado como um processo permanente de aprimoramento dos indivíduos e grupos de trabalho, não pode circunscrever-se a atividades formais em salas de aula. Além dessas, deve-se dar ênfase ao treinamento em serviço, um modo muito mais razoável de se transferir conhecimentos e habilidades no ambiente de trabalho.''(3) Para que o processo de aprendizagem - e, em decorrência, o desenvolvimento humano - ocorra no ambiente organizacional, faz-se necessária a descentralização das atividades de diagnóstico, planejamento, execução e avaliação dos programas de T&D para os níveis organizacionais onde serão de fato processadas. Desse modo estará sendo criado o suporte necessário para a verdadeira co-gestão do processo de desenvolvimento. Nada mais natural, uma vez que aprendizagem e desenvolvimento são fenômenos tipicamente autoinduzidos. Lembro-me da parábola do viajante que, preocupado com a longa jornada que teria pela frente, quis obrigar seu cavalo a beber bastante água antes de partir e constatou, aborrecido, que o máximo que poderia fazer era conduzir o animal até o riacho, mas nunca obrigálo a beber água quando não o desejasse. Do mesmo modo, ninguém, por melhor especialista e mais bem-intencionado que seja, desenvolve alguém. No máximo, cria ou mantém as condições ambientais favoráveis para que o processo ocorra. Sabemos, entretanto, da dificuldade de tornar o T&D, assim como outras atividades semelhantes, mais participativo e auto-induzido. Nosso passado remoto de colônia dependente de uma matriz de alémmar e nosso presente, marcado pela dependência tecnológica e econômica, além das relações autoritárias e paternalistas mantidas entre o estado e a sociedade ao longo de nossa história, transformaram essa orientação democrática num sonho quase quixotesco. Como salientam Grabow e Heski ''para que o maior número possível de pessoas participe das decisões que lhes dizem respeito, é necessário que se busque também a estruturação da sociedade descentralizada. O futuro evolucionário dos seres humanos é limitado pela habilidade de suas organizações sociais de lidarem com um ambiente em mutações. As civilizações sobrevivem ou perecem em função desta habilidade. A inovação e a experimentação nas organizações sociais são, portanto, necessárias ao desenvolvimento humano''.(4) A adoção de uma orientação democrática para o T&D não representa, ao contrário do que parece, uma quimera ou utopia humanística, mas significa uma necessidade de aumento de eficácia e uma busca de legitimidade para as ações de T&D. Sabemos que qualquer sistemacliente dispõe de focos de poder que, quando ignorados, manifestam-se extremamente reativos, quer seja com apatia, quer seja com violência. Entretanto, não basta identificar estes focos, nem tampouco envolvê-los no processo como forma de vencer resistências. É preciso devolver aos indivíduos e grupos situados nos diversos níveis da organização, a responsabilidade pela co-gestão do processo de aprendizagem e desenvolvimento. Há, na condução do T&D, três atitudes possíveis: a) ignorar as pessoas enquanto fonte de decisões relevantes e confiáveis; b) envolver as pessoas para reduzir sua resistência às mudanças; c) descentralizar para os próprios trabalhadores e gestores as atividades de T&D, como forma de responsabílízá-los pela condução de seu processo de desenvolvimento. Como ressalta Anna Campos, '' o objetivo de levar as pessoas a participar deixa de ser meramente o de vencer suas resistências, mas ampliar as perspectivas de análise de uma dada situação e aumentar a probabilidade de descobrir alternativas de ação mais acertadas''. (5) 4. TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO E SISTEMA GERENCIAL Adotar uma orientação democrática para T&D significa acreditar que esta atividade seja fundamentalmente uma responsabilidade dos gestores e trabalhadores, exercida nos diversos níveis da organização, cabendo ao Centro de Formação e Desenvolvimento assessorá-los tecnicamente. Esta concepção traz, em si, uma série de repercussões sobre as diversas atividades do T&D. O diagnóstico transforma-se numa atividade contínua e descentralizada, isto é, passa a ser executada nas diversas unidades organizacionais, através de seus respectivos dirigentes, em conjunto com seus trabalhadores. Estes são incentivados a explicitarem suas necessidades materiais, organizacionais, psicossociais e cognitivas, indispensáveis ao seu desempenho e ao pleno desenvolvimento de suas possibilidades de crescimento e realização, como profissionais e como pessoas. Além disso, a determinação das necessidades de desenvolvimento deve respaldar-se no próprio nível de desempenho da unidade organizacional considerada. Assim, se a qualidade e presteza das decisões e os resultados obtidos por uma determinada Unidade têm estado aquém das expectativas ou das metas estabelecidas, o diagnóstico deve considerar, também, as condições estruturais e funcionais da referida Unidade e da própria Organização. O esforço do T&D abrangerá, desse modo, o pr6prio desempenho organizacional, quer seja através de ações educacionais, quer de procedimentos administrativos do tipo reformista ou modernizador. Em nossa opinião, desenvolver o Homem na Organização não constitui atividade limitada tão-somente ao nível do desempenho do indivíduo na função, mas abrange outras expressões da performance humana, que se manifestam nos níveis interfuncional, grupal (setorial, intergrupal e organizacional. Do mesmo modo, ''os efeitos de um programa de T&D devem ser avaliados conforme o nível de desempenho que se pretende atingir''.(6) Assim, a avaliação de eficácia deve fornecer informações que traduzam mudanças objetivas produzidas nos procedimentos de trabalho no nível de desempenho almejado pelo programa. ''E, em cada um destes níveis, encontramos um gerente potencialmente apto a descrever as mudanças observadas após uma ação de T&D. Só precisamos dotá-lo dos métodos e instrumentos de análise de resultados, para obtermos uma avaliação de eficácia fidedigna. Sem o envolvimento dos gerentes será impossível sabermos se os programas estão ou não alcançando os objetivos propostos. Neste ponto, fica nítida a função de feedback que o sistema gerencial desempenha em relação à atividade de T&D. Enquanto este mecanismo não for estabelecido e fortalecido, o T&D continuará cego e sob suspeitas quanto à sua real eficácia''.(7) Assim como o diagnóstico e a avaliação de eficácia são atividades que devem ser desmitificadas e descentralizadas para aqueles que de fato possuem as informações, deve ocorrer o mesmo com o planejamento e a definição de prioridades dos programas e projetos a serem desenvolvidos. Caberá à unidade de T&D a função de assessoramento ao sistema gerencial na transferência de métodos e enfoques que venham a contribuir para o melhor desempenho da atividade. O receio de que ocorra um desvirtuamento da programação é muito comum e reflete a preocupação centralizadora e elitista do técnico de T&D, cioso de sua especialização profissional. Segundo essa preocupação, tipicamente tecnocrática, o cliente não pode e não deve desempenhar outro papel que não seja o de paciente da ação de T&D. Do contrário, estará ocorrendo uma invasão de áreas, (inconcebível dentro da diferenciação que deve ser mantida pela própria classificação de cargos e funções). Ora, esta atitude reflete, no fundo, mais um temor de perder terreno e de sentir-se supérfluo na organização, do que uma preocupação de cunho científico. Mas, por paradoxal que pareça, quanto mais alguém defende seu território, mais aguça a cobiça alheia. A questão não é porém, de loteamento de competência ou atribuições. O T&D é, em essência, uma atividade cuja responsabilidade pela execução permeia todos os cargos e funções, com ênfase sobre a função gerencial. A unidade de T&D deve assumir o papel de indutora e facilitadora do processo de desenvolvimento humano na organização, descentralizando suas atividades de forma a tornar sua ação mais abrangente e fidedigna às demandas de seus clientes. Para tanto, a U nidade de T&D deve disponibilizar seus recursos, tais como os meios audiovisuais, suas instalações físicas e seus conhecimentos especializados sobre os processos de ensino-aprendizagem. Seu papel, ao invés de escola de cursinhos para adubos, deve ser o de estimular, em todos os níveis e áreas onde haja um homem trabalhando, a atitude de aprendizagem e de desenvolvimento contínuos. Cursos, quando necessários para atualizar ou acrescentar conhecimentos, poderão ser melhor executados por instituições especializadas nesse mister, como as faculdades, institutos, colégios, escolas técnicas, fundações e empresas de educação. 5. A ORGANIZAÇÃO COMO SISTEMA DE APREND@GEM E DESENVOLVIMENTO Repetindo o já lugar-comum do propalado ritmo acelerado de mudanças das condições ambientais, cujos reflexos atingem diretamente a organização, é um truísmo falar da necessidade desta adaptar-se continuamente e acompanhar as mudanças externas, ou mesmo antecipar-se a elas. De fato, a época de descontinuidade econômica, social e política em que vivemos, exige das organizações muita flexibilidade; caso contrário, correrão o risco de se verem desatualizadas ou mesmo inviabilizadas. Para adaptar-se às contingências externas ou antecipar-se a elas, a organização deverá criar permanentemente, alternativas de ação de maior ganho possível e, para tanto, precisará monitorar-se continuamente, em seus processos e resultados. Caso contrário perderá a noção de seu rumo e de suas possibilidades. Em outras palavras, se a organização não se transformar numa comunidade de aprendizagem, seu desenvolvimento estará ameaçado. É necessário aprender continuamente, já que respostas dadas a problemas passados tornamse inadequadas às novas situações emergentes. A desejada flexibilidade organizacional, que pressupõe um amplo repertório de enfoques e de decisões, somente poderá ser alcançada com um esforço participativo, contínuo e global de desenvolvimento de seus recursos gerenciais, técnicos e administrativos. Desenvolver o fator humano não significa, portanto, uma ação periódica de aprimorar o desempenho no exercício de certa função, mas um processo individual e coletivo (grupal e organizacional) permanente de autocrítica, descoberta e atualização do potencial de criação e realização humana, em seus diversos níveis de manifestação. Adotar um processo de Desenvolvimento Humano nas Organizações de cunho democrático significa: 1. desenvolver o potencial humano disponível na organização,, em suas mais variadas formas,, 2. estabelecer relações de trabalho facilitadoras do desenvolvimento humano individual e organizacional, 3. aumentar a eficiência do comportamento organizacional em cada um dos seus níveis de ocorrência; 4. criar condições para a implantação de atitude de autocrítica na organização, de modo que a aprendizagem de novas formas de procedimentos e relações de trabalho seja uma constante. O Desenvolvimento Humano nas Organizações é um processo que visa, além da transmissão, a criação de conhecimentos, atitudes e comportamentos orientados para a aprendizagem permanente. Transfere-se, desse modo, a iniciativa pelo desenvolvimento aos próprios gestores e trabalhadores. O T&D deve deixar de ser um meio através do qual se transmitem ''idéias inertes, quer dizer, idéias que a mente se limita a receber sem que as utilize, verifique ou as transforme em novas combinações''.(8) Precisamos substituir o modelo tecnocrático do T&D, cujas premissas ainda remontam ao sistema educacional, através do qual, segundo Paulo Freire, ''ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas, não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado da busca de algo que exige, de quem o tenta, o esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção''.(9) Sem dúvida, nós, profissionais de T&D, temos repetido em nossos programas a orientação pedagógica tradicional, sem levarmos em consideração que a clientela formada por adultos, no desempenho de suas funções profissionais, difere muito da criança e do adolescente, para os quais foram estruturados os princípios, regras e métodos da educação formal. 'Os treinandos não podem ser encarados como seres passivos, que são convocados para o treinamento, devendo permanecer sentados numa sala de aula a fim de receberem conhecimentos. Infelizmente, a utilização do modelo educacional formal no ambiente de trabalho mantém esta situação, onde a tendência de usar-se regras e sanções disciplinares para obrigar o funcionário (ou trabalhador) a freqüentar o treinamento é um exemplo típico do esquema escolar.''(10) ''É imperativo que revisemos nossas orientações pedagógicas e adaptemo-las à realidade do ambiente de trabalho e à relação com pessoas adultas.''(11) Nesse sentido, o T&D é a própria andragogia, a ciência da educação dos adultos, segundo Pierre Furter. A este respeito, Knowles, um renomado especialista na matéria, esclarece: ''As características básicas dos aprendizes adultos e que os distinguem fundamentalmente dos aprendizes crianças são as seguintes: 1. à medida que se desenvolve a maturidade do indivíduo, seu autoconceito vai-se modificando, de modo a apresentar-se progressivamente como um ser humano que se auto-dirige; 2. o indivíduo vai acumulando uma experiência cada vez maior, que se constitui num recurso crescentemente importante para o desenvolvimento da aprendizagem auto-dirigida; 3. sua capacidade de aprender vai-se tomando progressivamente orientada para tarefas de desenvolvimento dos seus papéis sociais, 4. "Sua perspectiva quanto ao momento da aplicação do conhecimento adquirido modifica-se, passando de uma preocupação com a utilização posterior desse conhecimento, para um interesse a respeito da sua aplicabilidade imediata; da mesma forma, deixa de ver a aprendizagem como algo centrado em matérias, disciplinas, para passar a vê-la com alguma coisa ligada a problemas a serem solucionados.''(12) Diante desses esclarecimentos seria inadmissível mantermos, em sã consciência, a relação de dependência que carateriza a administração dos programas de T&D sob a orientação tecnocrática. Mas, mesmo sabendo das limitações desse modelo e acreditando na relação democrática como a mais adequada para a própria eficácia do esforço de ensino-aprendizagem, uma vez que '' conhecimento técnico é uma das bases do poder, a aceitação das limitações desse conhecimento implica alterações na parcela de poder dos tecnocratas. Podemos esperar, portanto, que eles resistam.''(13) 6. A CO-GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NAS ORGANIZAÇÕES A palavra co-gestão ainda não foi bem digerida no meio empresarial apesar de estar sendo considerada e mesmo aplicada em algumas empresas brasileiras. Devido a características técnicas de certas especializações, tem ocorrido maior equalizações as relações de poder entre gerentes e técnicos em certas áreas do trabalho especializados. No que diz respeito a uma atividade eminentemente auto-induzida como a aprendizagem humana, seria de se esperar que a co-gestão e mesmo a autogestão - constituísse uma realidade aceita e estimulada nas organizações, que seriam suas maiores beneficiadas. Mas não é o que ocorre. Sabemos da influência que a visão aristotélico-positivista tem exercido nas ciências sociais e humanas, a despeito da diversidade observada entre estas e as ciências naturais, onde aquele paradigma se aplica muito bem. Uma das premissas positivistas é a necessidade do controle e do conformismo às leis universais. Sua visão de Homem é a de um animal-engrenagem, parte de um sistema social que o delimita e lhe dá segurança. A sistematização, a quantificação e a previsibilidade são os princípios essenciais desse modelo de pensamento. Em vista disso, é muito difícil para um positivista lidar com as realidades diferenciadas de sua clientela. Como compensação ele institucionaliza comportamentos, generaliza percepções de uma realidade particular para outras não conhecidas e isola-se cada vez mais em sua torre de marfim da especialização. Bonfield relaciona três razões do planejamento centralizador e global, de orientação tipicamente aristotélica e positivista: a) sua falta de condições de descobrir os reais objetivos e metas da clientela: b) sua impropriedade para lidar com sistemas políticos descentralizados, ou seja, de trabalhar com reduzida parcela de poder em relação à periferia; c) dificuldades para prover conhecimentos que levem à criação de meios efetivos para se atingir seus fins (devido ao distanciamento da clientela).(14) Estas mesmas dificuldades são facilmente encontradas na atividade de T&D, uma vez que o paradigma que a sustenta é o mesmo. Como já dissemos anteriormente, é um paradoxo que o profissional de T&D se encastele, em sua tecnologia educacional e em sua especialização conceitual, como forma de conquistar poder, criando uma barreira ao seu próprio acesso à clientela com a qual deveria trabalhar solidariamente. A gestão do processo de T&D não pode continuar enfeixada nas mãos desses técnicos, ou entre as paredes dos centros de treinamento. Ao invés disso, deve espraiar-se por toda a organização, preferencialmente através de seu sistema gerencial. Isto implica, ideologicamente, numa democratização do T&D; operacionalmente, a gestão compartilhada do diagnóstico, planejamento, execução e avaliação dos programas e, filosoficamente, a adoção do paradigma existencial-fenomenológico, como suporte dessa nova abordagem do T&D. A este respeito Cornélio adverte, com muita propriedade, que a adoção do paradigma existencial-fenomenológico implica nos seguintes aspectos: a) '.. democracia - o que iria levar à maior participação; b) descentralização - o que iria levar à fixação de novos limites de competência; c) delimitação de unidades contextuais - o que iria exigir a fixação de limites para as generalizações."(15) A adequação do paradigma existencial-fenomenológico às ciências sociais é perfeita, devido às peculiaridades do contexto e à natureza dos fenômenos sociais ou humanos - objeto de análise desse campo do conhecimento. Sinteticamente, podemos dizer que esta visão da realidade recoloca, em seu devido lugar, o racionalismo e a objetividade, reconhecendo a importância da heurística e da subjetividade, enquanto formas legítimas de conhecimento da realidade. A mente humana não é a tábua rasa de Locke; o mundo social não é tão previsível e causal quando desejava Descartes; a realidade não é tão sistematizada e organizada como pretendia Comte. Como afirma Bunge, ''o domínio do determinismo causal continuará reduzindo-se até que nada reste dele: demostrar-se-á que todas as leis da natureza e da sociedade são estatísticas e se comprovará que o conceito da causalidade é um mito, um resíduo do estágio prépositivista da humanidade''.(16) A realidade de um sistema social é percebida por seus membros, através da vivência e do contato direto, por meio do qual influenciam e são influenciados pelo contexto. Portanto, nada mais óbvio do que estimular esses participantes a assumirem a relevância de seu conhecimento existencial e, com base nele, planejarem as intervenções compatíveis com suas necessidades e aspirações. Caberá ao profissional ou unidade de T&D as funções de: a) estimular a atitude dos trabalhadores, enquanto agentes organizacionais, de assumirem a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento; b) assessorar os agentes organizacionais na sistematização desses esforços de participação, até que se estabilizem como procedimentos rotineiros; c) criar condições que facilitem o intercâmbio de experiências entre as unidades organizacionais e entre os trabalhadores e gestores, com vistas ao incremento da aprendizagem em rede; d) pesquisas e definir métodos e instrumentos de diagnóstico, planejamento, execução e avaliação dos programas de T&D que sejam adequados aos contextos onde serão utilizados. O processo de T&D administrado compartilhadamente pelo técnico e cliente, tem a vantagem de compensar as lacunas e disfunções deixadas pela ótica objetiva do técnico com a percepção dos elementos do próprio sistema-cliente. O T&D assume, desse modo , as características de uma ação processada endogenamente, e não exogenamente. Dessa maneira terá condições de ser legitimado pela organização, aumentando assim o grau de efetividade de suas ações. 7. QUADRO COMPARATIVO DOS MODELOS DE T&D. MODELO TECNOCRÁTICO - planejamento como atividade baseada no conhecimento racionalformal; - princípio da validade científica; - centralização do diagnóstico, planejamento e avaliação e descentralização da execução; - ênfase no hetero-controle do desempenho; - Homem como recurso econômicos (objeto do desenvolvimento econômico); - desenvolvimento econômico como matriz do T&D; - diagnóstico de necessidades como projeto de pesquisa; MODELO DEMOCRÁTICO planejamento como atividade baseada no conhecimerto existencial fenomenológico; - princípio da utilidade e exeqüidade; - descentralização do diagnóstico, planejamento, avaliação e execução; -combinação do hetero com o auto-controle de resultados; - homem como pessoa em crescimento (sujeito do desenvolvimento econômico); - desenvolvimento político, social e econômico como matriz - diagnóstico de necessidades como processo de aprendizagem e desenvolvimento humano; - avaliação como - avaliação como feedback do instrumento objetivo de processo de aprendizado e desenvolvimento humano; - orientação pedagógica do - orientação andragógica do T&D; T&D; - T&D através de atividades - T&D através de atividades formais (cursos e e formais e informais seminários); sistematizadas ( estágios, reuniões, grupos de trabalho, atividades de auto-desenvolvimento); - indivíduo na função como - subsistemas organizacionais objetos do T&D; e indivíduos como objeto do T&D; - sala de aula como - local de trabalho como ambiente principal de ambiente pricipal de ensino; aprendizagem e redes - de aprendizagem; - instrutor como agente e - facilitador, monitor, aluno como paciente dos treinandos como participantes programas; dos programas; - ênfase na aquisição de - ênfase no resgate do conhecimentos; potencial de criatividade e realização dos trei nandos; - T&D como ativi dade - T&D como atividade especializada de um Centro complementar ao exercício da de treinamentos. função. 8. APLICAÇÕES DO MODELO DEMOCRÁTICO DE T&D A concepção deste modelo de T&D não se deu no campo da abstração ou da adaptação da prática a uma ideologia previamente imaginada. Foi o resultado de um processo de aprendizagem que se desenvolveu junto a diversas organizações e que continua se aprimorando. Representa uma construção coletiva, na qual eu me percebo como mero facilitador. Em diversos trabalhos realizados, verifiquei que, por mais que aperfeiçoasse instrumentos de diagnóstico, não poderia obter, através deles, a riqueza e a complexidade da realidade que pretendia conhecer. A tecnologia instrumental, para mim, significava um meio de conhecimento da realidade, apesar das idiossincrasias humanas que porventura viesse a encontrar. Na pesquisa de dados, o que importava era o instrumento de coleta e o treinamento do pesquisador. Nada mais distante da realidade, apesar da sinceridade e honestidade de propósitos que me guiavam. E esta inadequação do método utilizado não poderia ser resolvida ao nível da metodologia eu pressentia que a mudança precisaria ocorrer num contexto muito mais profundo - ao nível de enfoque do mundo, da vida, do trabalho, do Homem e de suas relações. Nesse processo de ebulição mental vi-me, inicialmente, inseguro em relação à propriedade de um novo enfoque, à validade de seus resultados, à competência e seriedade da clientela em lidar com ''essa coisa tão especializada e difícil'', e às dificuldades de controlar a situação. Porém, o próprio exercício da participação foi ensinando-me que estas questões eram falsas, nesse novo paradigma. Representavam, tão somente, a necessidade de sentir-me dono e capataz do processo de ensino-aprendizagem. E cada nova experiência foi demonstrando que a aprendizagem e o desenvolvimento humano são responsabilidades da própria pessoa, e não de um especialista ou dirigente da área de T&D. E que a chave do êxito de um programa é o nível de envolvimento direto do cliente em todo o processo de T&D, e não a qualidade tecnológica e instrumental, da atividade. Desse modo, elaborar o diagnóstico e executar o planejamento e a avaliação de T&D participativamente, foram as respostas que encontrei para o problema da fidedignidade e relevância de suas ações. 8.l A Experiência do Ministério da Justiça A primeira experiência de diagnóstico, planejamento, execução e avaliação do T&D, conforme o paradigma existencial-fenomenológico e com base na participação efetiva, deu-se no Ministério da Justiça, nos anos de 1977 a 1978. A primeira parte deste trabalho consistiu em discutir com a equipe do Centro de Treinamento os prós e contra dessa abordagem e treiná-los em técnicas de entrevista individual e grupal e na facilitação de grupos de trabalho. O diagnóstico de necessidades foi realizado através de entrevistas individuais, junto aos dirigentes de primeiro e segundo escalões, e de trabalhos de grupo com representantes dos diversos setores e categorias funcionais do ministério. Todas as categorias funcionais foram envolvidas no processo por amostragem de, no mínimo, 30% de cada universo particular. Numa primeira fase, foram levantadas as necessidades de melhoria de desempenho e de condições de trabalho, por meio de um formulário aberto. Os dados desse formulário foram consolidados em grupos de 20 e 30 participantes. Posteriormente foram eleitas para cada grupo, pequenas comissões de dois a quatro membros, que passaram a representar seus respectivos grupos nas fases posteriores do trabalho. Estas comissões analisaram e consolidaram os dados, sugerindo medidas corretivas e preventivas pertinentes às diversas necessidades. Nessa fase foi eleito um representante para cada comissão que, de posse de seu relatório de diagnóstico e prescrições, passou a constituir, juntamente com os demais participantes e os técnicos de T&D, uma equipe de programação. A programação anual e os projetos de treinamento, além de outras medidas de natureza administrativa, foram definidos por esta equipe de programação. Além disso, ela assumiu o papel de acompanhar e avaliar a execução e os resultados das ações de T&D desenvolvidas no ministério. Este papel de acompanhamento e avaliação foi fundamental, vez que dele saíram as informações para programas futuros, sem a necessidade de se realizar um novo diagnóstico global de necessidades. Esse sistema de trabalho foi mantido por mais um ano, tendo sido interrompido com a mudança de administração do Centro de Treinamento. Entretanto, permaneceram as bases da experiência que permitiram sua retomada, no decorrer de 1981, numa reedição revisada e ampliada. O processo de T&D que se implantou nesta segunda fase, representou um salto de qualidade em relação à primeira experiência. Cabe realçar algumas das conquistas alcançadas nesse novo empreendimento: a) o processo de T&D passou a ser conduzido por uma comissão permanente, constituída por representantes da maioria dos departamentos; b) instalou-se um processo de trabalho conjugado entre o Centro de Treinamento e a Secretaria de Planejamento do Ministério; c) surgiram iniciativas no sentido de envolver-se a Associação dos Servidores do ministério no processo de treinamento e desenvolvimento. Este último tópico é, a meu ver, um marco para o T&D, uma vez que resgata o potencial de aglutinação e motivação que a Associação (ou sindicato) dos servidores possui no âmbito da organização. Com isso ela transpõe os limites do mero assistencialismo e das atividades recreativas e sociais, para desempenhar também o seu papel de legitima representante dos funcionários, em suas necessidades e aspirações de desenvolvimento humano. Neste ponto, cabe lembrar que o T&D é feito também através de treinamentos, mas é, antes de tudo, a conquista de condições materiais, funcionais, organizacionais, psicossociais e políticas, que favoreçam o resgate dos talentos individuais e grupais e nessa área a Associação de servidores poderá contribuir muito. O processo de democratização, característico desse sistema de trabalho, não é alcançado espontaneamente, mas através da adoção, por um lado, de novas posturas gerenciais pelos dirigentes e, por outro, pela expressão de novas atitudes e comportamentos técnicos, políticos e administrativos pelos subordinados. 8.2 A Experiência do Ministério da Saúde Os trabalhos realizados no Ministério da Saúde abrangeram duas de suas Secretarias-fim. Nossa intervenção limitou-se às atividades de diagnóstico de necessidades e programação de ações de T&D, devido à interrupção dos mandatos do Ministro da Saúde e de seus Secretários. A sistemática de trabalho utilizada diferiu da empregada no Ministério da Justiça. O diagnóstico e a programação de T&D foram realizados em cada Secretaria, considerando-as como organizações distintas. Entretanto, o modelo de trabalho foi essencialmente o mesmo nos dois casos. O diagnóstico foi realizado por uma equipe-núcleo formada pelo Secretário e seus Assessores e por todos os Diretores de divisão, seus Assistentes e Chefes de Seção. Além desses, participaram em diversas oportunidades, técnicos e pessoal de funções administrativas e operacionais da Secretaria. Durante o decorrer das reuniões de trabalho, toda a Secretaria era informada, através de reuniões setoriais e de um boletim de divulgação, criado pela própria equipe-núcleo de T&D, sobre o andamento dos trabalhos. Nessas oportunidades, todos os níveis funcionais da organização eram estimulados a participar, não de modo compulsório, uma vez que se buscava a participação como direito, e não como dever. Meu contato, como consultor, limitou-se à equipe-núcleo de T&D, cabendo a esta o papel de colher informações junto aos demais funcionários. Desse modo transferia, de fato, a responsabilidade do diagnóstico-programação para o sistema gerencial da própria organização. A primeira fase deste trabalho foi dedicada a uma série de explanações e debates sobre o processo de T&D e à sistemática de diagnósticoprogramação que seria adotada. A segunda fase constituiu o próprio levantamento e análise de problemas de desempenho nos níveis funcional, interfuncional, setorial, intersetorial, organizacional e interorganizacional. A terceira fase tratou da definição de linhas de ação a serem adotadas para a solução da problemática identificada. A quarta fase foi realizada através de entrevistas individuais junto a cada diretor de divisão, no sentido de especificar mais detalhadamente os problemas e as propostas de soluções pertinentes. Após todo este esforço organizacional, o trabalho foi interrompido sem terem sido efetivadas as propostas de ações prescritas pela equipe-núcleo de T&D. A esta altura parece claro o quanto é ainda frágil qualquer espécie de atividade realizada ao nível do segundo escalão das organizações públicas e até mesmo ao nível do primeiro escalão. A descontinuidade administrativa frustra continuamente os planos, projetos e atividades inovadoras.A esperança no efeito somativo dessas iniciativas é que alimenta a busca de condições administrativas e humanas mais justas e eficazes para nossas possibilidades e desejos de desenvolvimento. Ter forças para combater esta entropia burocrática é o mínimo que se pode esperar daqueles que lidam com a atividade de T&D na administração pública. 8.3 A Experiência do Ministério da Educação e Cultura O trabalho que desenvolvemos junto ao MEC abrangeu o subsistema de pessoal, constituído pelo Departamento de Pessoal do MEC e Departamento de Pessoal das Universidades Federais e das Escolas Técnicas Federais. Não se limitou à definição de programas de T&D . Envolveu, além disso, a programação de medidas de desenvolvimento institucional, tais como: reorganização das unidades administrativas, redefinição de funções, competências e atribuições e redimensionamento dos Departamentos de Pessoal. Este trabalho foi um exemplo típico da aplicação da orientação democrática ao processo de T&D, enfocado em seu sentido mais extenso, inclusive o de Desenvolvimento Organizacional. A intervenção iniciou-se através de dois encontros regionais de dirigentes de treinamento das Instituições de Ensino Superior (IES) e de um encontro de dirigentes de treinamento das Escolas Técnicas Federais (ETF), com a finalidade de proceder-se a um diagnóstico global da situação do T&D no sistema MEC. Como proposta prioritária dos próprios encontros, foi definida a necessidade de promover-se a integração dos dirigentes de T&D com os dirigentes de Departamento de Pessoal, o que resultou num encontro voltado para ambas as funções que, em conjunto, analisaram a situação e buscaram medidas corretivas com vistas no fortalecimento do subsistema de Recursos Humanos do MEC. Objetivando a implementação e administração do programa, foi eleita pelos participantes desse encontro, uma comissão formada por oito membros, representativa das diversas regiões do País e constituída por dirigentes de pessoal e de treinamento. Sua missão era planejar, estimular a adoção de medidas, adaptar soluções à realidade das IES e ETF e acompanhar e avaliar a execução do programa em todas as organizações que compõem o subsistema de Recursos Humanos do MEC (30 IES e 20 ETF). Nosso trabalho de consultoria técnica foi prestado junto ao subsistema, através dessa comissão e sob a supervisão do Centro de Treinamento do DP-MEC (CETREMEC). Os membros da comissão desempenharam, além de suas funções de dirigentes de pessoal e de treinamento, o papel de consultores internos do programa, de modo que as medidas deflagradas eram sempre adaptadas às peculiaridades das organizações envolvidas. Este programa criou e mantém, em caráter permanente, uma Rede de Aprendizagem e Desenvolvimento formada inicialmente pelos Departamentos de Pessoal, e que, progressivamente, abrangeu outras unidades das IES e ETF Através desse sistema processou-se um intercâmbio permanente de experiências entre as instituições envolvidas. Além disso, esta Rede representou para o MEC um suporte e um fator facilitador do processo de descentralização da administração dos Recursos Humanos, obtendo-se maior adequação às realidades regionais e locais do País. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS (1) Cornélio, A. Fernando. Repensando o Planejamento Brasileiro: um posicionamento de cunho filosófico; In: Modernização administrativa Brasília, Ipea/Semor, 1980p.353 (coletânea de monografias, v. 2) (2) Cartwright, James L. Apud Comélio, Antonio Femando. op. Cit. p. 368. (3) Matos, Ruy A. Desenvolvimento de Recursos Humanos da Administração Pública. Tipogresso, 1980 p. 30-1. (4) Grabow, Stephem & Heski, Allan, Foundations for a Radical Concept of Planning, Joumal of the American Institute of Planners, 39(2): 10614, mar. 1973 (5) Campos, Anna Maria. Um novo modelo de planejamento para uma nova estratégia de desenvolvimento - Revista de Administração Pública, FGV, 14(3): jul/set. 1980. (6) Matos, Ruy A op. cit. p. 23 (7) Id. ibid. (8) Whitehead, A. N. The aims of education and other essais, New York, Macmilian, 1967. p. 2. (9) Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Paz e Terra, 1980, p.96-7. (10) Matos, Ruy A. op. cit. p. 27. (11) Id. ibid. (12) Knowles, Malcon. ln: Brown, Gemld & Wedel, Kenneth R. Assessing Training Needs. Washignton National Training, 1974, p. 14 (Extraído de Treinamento de Executivos - um abordagem andragógica. UFBa/ISP, 1977) (13) Campos, Anna Maria. op. cit. p. 31. (14) Bonfield, Edward C. The unheavenly City. Boston, Littlie Brown, p. 18. (15) Cornélio, Antonio F. op. cit. p. 368-9. (16) Bungue, Mario. Causalidad - el principio de causalidad en la ciência moderna. Ed. Universitária de Buenos Ayres, 1972, p. 359 CAPÍTULO IV CAD - A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO Fundamentação O QUE É A CAD? A CAD - Comunidade de Aprendizagem e Desenvolvimento é uma estratégia de desenvolvimento empresarial em serviço que resgata os talentos individuais e amplia a sinergia das equipes de trabalho. É centrada em grupos naturais. Desse modo, todos os componentes de um determinado setor ou unidade organizacional participam do esforço de recuperação da unicidade do trabalho humano, enquanto processo que conjuga produção, criação e aprendizagem permanente.A CAD sistematiza e torna consciente o processo de endoculturação, isto é, de transformação da cultura empresarial através da aprendizagem coletiva e da vivência grupal. Quando um setor, célula de produção ou unidade de negócio transforma-se em CAD, ocorre, naturalmente, uma mudança cultural no grupo. Há o incremento da cooperação, da consciência crítica e do engajamento de seus membros na obra coletiva de produzir e prestar serviços com qualidade e produtividade e, ao mesmo tempo, criar um ambiente democrático e com qualidade de vida para as pessoas. A CAD propicia a integração dos cinco fatores da competência e do desenvolvimento humano: o SABER, o PODER, o FAZER, o PRAZER e o SER, ao mobilizar, através da ação coletiva, a atitude de aprendiz e o comportamento de parceiro. O saber deixa de ser alheio ao trabalho e restrito às salas de aula; o poder desce dos estratos superiores da pirâmide burocrática para vincular-se ao nível onde as oportunidades e problemas ocorrem e precisam de solução; o fazer deixa de ser mecânico e acrítico, recuperando seu significado e complexidade; o prazer reintegra-se ao ato de trabalhar, deixando de ser um escape de fim-de-semana e o ser deixa de parecer quimera, e passa a constituir um direito que cada pessoa tem de alcançar sua realização, enquanto profissional, em harmonia com as demais dimensões de sua plenitude pessoal. O que dá origem à CAD? Em sua essência, Comunidades de Aprendizagem constituem o berço da cultura, da inteligência e da própria existência humana. Existem desde os primórdios da humanidade e foi a invenção sócio-política que distinguiu o homo-sapiens das demais espécies primatas e de outros animais. Enquanto o leão tem a força, a seu favor; a gazela, a velocidade; o jabuti, a carapaça e a águia, a visão de longo alcance; o colibri, tem a agilidade; o cão, o faro aguçado; o elefante, a força física, o que tem o ser humano? Como indivíduo, tem a fragilidade física, a lentidão, a pele nua, a visão curta (ou míope), os sentidos de baixa eficiência. Mas, enquanto ser coletivo, tem a inteligência, a consciência, a criatividade, o sentimento, a intuição e a parceria, que se conjugam, resultando no trabalho, que por sua vez, constrói a cultura que o perpetua através da comunicação (falada, escrita), dos utensílios e equipamentos sociais e das comunidades (famílias, núcleos, vilarejos, cidades, municípios, estados, nações; ocupações, corporações, empresas, organizações, instituições etc.) O ser humano só é humano porque trabalha e aprende, ao mesmo tempo, isto é, produz e produz-se em cada ato. Em cada objeto que cria, recria-se; em cada relação que estabelece, reconhece-se. Nossa mente foi condicionada, por gerações e gerações, a não perceber a realidade holística do trabalho e das organizações. Desde Parmênides, que espetou o Ser na parede, retirando-lhe o fluir permanente, passando por Platão, que rompeu a unicidade fisicoespiritual, deixando o corpo sem alma, além de Aristótoles, Tomás de Aquino, Descartes e Newton, vem sendo concebido, e fortalecido, o paradigma classificador e hierarquizador, que fragmenta e dicotomiza nossa visão da realidade, com suas conhecidas repercussões sobre a pessoa, a sociedade e a natureza. O paradigma classificador distorce a concepção e a percepção da realidade, com seu princípio científico da causalidade linear que o método cartesiano nos legou. Sob esta influência, tentou-se simplificar a análise do comportamento humano pela ótica dos experimentos com ratinhos e pombos de laboratório, do mesmo modo que tentou-se reduzir o trabalho humano ao funcionamento de máquinas, com a engenharia dos tempos e movimentos e a supersimplificação de tarefas. Atualmente, assiste-se, maravilhado, à tentativa de reduzir a criatividade humana a exercícios e técnicas estruturadas, dissociadas do contexto micro-político das organizações. Como, também vem fazendo sucesso a esperta tentativa de compreender e alterar o comportamento através de auto-sugestão, ou auto-programação, fundamentando-se na redução do nosso ser a um cérebro cibernético, logicamente estruturado. Todas essas tentativas de transformar o ser humano em máquina, em dinheiro, em número, retirando-lhe o sentido de ser coletivo, resultou na expropriação de seus sentimentos, de sua inteligência e de sua vontade, dando origem à caricata concepção economicista de mão-deobra ou, pior ainda, de recurso humano. Felizmente, a essência holística da natureza, que já era conhecida pelas tradições do oriente, foi reconhecida pela ciência ocidental. Einstein, ao postular a teoria da relatividade, superou os limites do universo newtoniano e abriu o caminho para a concepção da Teoria do Campo Unificado, da Física Quântica, da Astrofísica e da Teoria do Caos, com seus fenômenos desconcertantes, aos olhos cartesianos. Também no mundo do trabalho, o velho paradigma classificador e hierarquizador, vem sendo substituído pelos paradigmas holístico e relacional, reconstruindo o ser humano enquanto pessoa integral, integrada e interativa, que se renova permanentemente, através de suas relações produtivas e simbólicas, no sentido de sua realização e plenitude. Como resultante deste esforço, as Comunidades de Aprendizagem e Desenvolvimento brotam, espontaneamente, no ambiente de trabalho, como impulso para a superação dos bloqueios à manifestação dos talentos, que as estruturas hierárquicas e as relações estereotipadas, mantêm. Este processo de aprendizagem coletiva é ainda percebido com estranheza por muitos especialistas e dirigentes de órgãos de treinamento e desenvolvimento. Eu tive a oportunidade de testemunhar a adoção de medidas administrativas para desestimular e, até mesmo, impedir o funcionamento de CAD que haviam sido estruturadas, empiricamente, por gerentes e funcionários de determinados setores ou divisões. Entre os motivos alegados, estavam o de que: "aquelas ações de treinamento em serviço não haviam sido previstas", "essas reuniões freqüentes vão atrapalhar o trabalho"; ou mais ainda "como é possível esse negócio dos funcionários aprenderem uns com os outros, sem nenhum instrutor?" Mas, o que mais incomoda, a alguns empresários e dirigentes de visão curta, é o medo de que as CAD subvertam o status quo e denunciem o pacto de mediocridade que se mantém pela dominação combinada com a ignorância e a subserviência. Metodologicamente, quais são as bases da CAD? A base fundamental é a própria natureza humana, que nos impulsiona a aprender, permanentemente, com as outras pessoas. Aprender novas idéias, novas habilidades, novos valores, constitui um prazer em si mesmo. A curiosidade é a essência da ciência e da tecnologia. O oráculo de Delfos, há milênios, nos alerta: "conhece-te a ti mesmo". Portanto, a CAD nasce da tentativa de superação do estado de ignorância com e através dos outros. Nesse sentido, a Maiêutica Socrática, que busca extrair do estado de aparente ignorância, o conhecimento, é uma das ferramentas da CAD. O Método Andragógico, (andros significa adulto em grego), desenvolvido por Malcolm Knowles, é outro suporte utilizado na CAD. Este método, em contraposição ao Pedagógico - que foi estruturado para ensinar crianças, promove a produção de conhecimentos e sua aplicação prática, a partir da experimentação, da reflexão e da crítica constante de seus resultados. Estas são as expectativas de aprendizes adultos, que trabalham e são responsáveis por famílias, grupos, empresas etc. Ao sair da sala de aula para o próprio local de trabalho, a CAD enfatiza a aprendizagem ao invés do ensino acadêmico, geralmente dissociado do tempo presente e do espaço relevante de produção. O Método Paulo Freire constitui outro esteio da CAD. Nesse sentido, os grupos são estimulados a se questionarem, a extraírem, através da autocrítica e da práxis transformadora de sua própria realidade, o novo conhecimento que se irá generalizar em novos conceitos, concepções, valores e práticas. Ao maximizar o uso de seus próprios talentos, o grupo transformado em Comunidade, fortalece-se sinergicamente, resgatando a consciência crítica e a autoria de seu próprio destino e condição, enquanto processo político-econômico e psicossocial de produção e de realização humana. A Teoria da Dinâmica de Grupo, desenvolvida inicialmente por Kurt Lewin e aperfeiçoada por inúmeros psicólogos e sociólogos organizacionais, é outra base metodológica da CAD. Nesse sentido, as fases de formação dos grupos, os fatores aglutinadores e dispersores dos processos grupais, os conceitos e técnicas de comunicação e feedback, o repertório de análise do comportamento da Análise Transacional, entre outros, são referenciais importantes que o consultor interno utilizará, conforme as necessidades dos grupos. Uma nova abordagem metodológica vem surgindo nesses últimos anos. Trata-se do Diálogo, uma contribuição que nos foi legada pelo grande físico quântico David Bohm, em sua última fase de vida. No Congresso da American Society of Training and Development - ASTD, realizado em junho de 1995, em Dallas-Texas, tivemos a oportunidade de conhecer, em maior profundidade, esta proposta de aprendizagem coletiva que, através da sistematização do diálogo, busca o desenvolvimento humano nas organizações. Segundo Glenna Gerard (1995) "no diálogo estamos interessados em criar um quadro mais completo da realidade, ao invés de quebrá-lo em fragmentos ou partes, como ocorre na discussão. No Diálogo, nós não tentamos convencer os outros de nossos pontos de vista. David Bohn determina as raízes da palavra Diálogo a partir do grego dia e logos, que significa através do significado. Poder-se-ía imaginar o Diálogo como uma corrente de significado fluindo entre e através de um grupo de pessoas, do qual pode emergir alguma nova compreensão, algo criativo." Estas são, a meu ver, as principais bases metodológicas da Comunidade de Aprendizagem, entre outras que cada CAD, em particular, lançará mão como meios facilitadores do processo de aprender coletivamente. Este é um campo vasto e profundo que se confunde com o próprio ser humano. Quais são as Instituições e Empresas que vêm adotando a CAD como estratégia de educação permanente e transformação cultural? Em minha prática de consultaria tive oportunidade de levar esta idéia, método e estratégia de implantação de CAD, como ação complementar aos projetos de treinamento e desenvolvimento, como intervenção endógena na cultura empresarial ou como suplemento aos programas de Gestão pela Qualidade Total, a diversas organizações. A primeira aplicação ocorreu nos idos de 1980 no Sistema Nacional de Educação, envolvendo os segmentos de Administração de Pessoal e de Treinamento de todas as Universidades Federais e Escolas Técnicas Federais. Naquela época foi criada uma rede de aprendizagem e desenvolvimento - uma RAD, que articulando e promovendo o intercâmbio de experiências entre as várias universidades, criou um suporte técnico e político ao desenvolvimento de conhecimentos, métodos e estratégias de trabalho, concretizada pela Comissão Nacional de Administração de Pessoal. Esta é uma comissão diferente de tantas outras, por ser voluntária e constituída através de eleições anuais. Vem atuando como fórum de legitimação de propostas do Sistema de Pessoal das Universidades e Escolas Técnicas e, também, como órgão de assessoramento informal às diversas reformas administrativas que o Governo Federal fez ou tentou fazer, até hoje. Em várias universidades, foi utilizada a CAD como meio de promoção da aprendizagem em serviço. Dentre essas, destacamos as Universidades Federais do Ceará, de Goiás, de Juiz de Fora, Fluminense e de Minas Gerais. O CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - também na década de 80, utilizou a CAD em seus programas de T&D, assim como o Banco Central e o Banco do Brasil. Nesses dois bancos, a CAD foi implementada durante Programas de Desenvolvimento de Sistemas Gerenciais. No Banco do Brasil, várias agências e CESEC (Centros de Processamento e Serviços) organizaram CAD que funcionaram durante alguns anos. Com as várias mudanças de direção e reformas organizacionais, estes trabalhos foram interrompidos. Desde 1993, o SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - vem adotando a CAD em diversas unidades estaduais, como estratégia de fortalecimento de sua cultura participativa e de aprendizagem coletiva. As CAD foram implantadas e vêm sendo acompanhadas por Consultores Internos, após terem sido capacitados, pela EMCO - Empresa de Consultoria Organizacional. Como resultado desse trabalho, consultores do SEBRAE vêm multiplicando a CAD em várias empresas de pequeno porte, como estratégia de desenvolvimento empresarial. Em 1995, iniciamos um programa de capacitação de consultores internos para a implantação de CAD, no BRB - Banco de Brasília, visando ao seu desenvolvimento empresarial. A proposta é estimular a criação de Comunidades de Aprendizagem nas diversas agências e órgãos da direção geral do Banco, em sinergia com o seu Planejamento Estratégico. Durante o ano de 1996, participamos do esforço do SEBRAE-GO de remodelagem de sua estrutura organizacional, no sentido de transformar seus setores em Células de Trabalho e Aprendizagem Coletiva, o que resultou em uma estrutura mais flexível, capaz de aumentar sua competência e agilidade operacional no atendimento aos seus clientes. OBANESTES (Banco do Estado do Espirito Santo), promoveu, durante o ano de 1997, a capacitação de 15 profissionais para a implantação de CAD em suas Agências e demais Unidades Organizacionais. O TRT- Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região (DF e Tocantins) vem, desde o ano de 1999, implementando o método da CAD em sua Diretoria de Desenvolvimento de Recursos Humanos. CAPÍTULO V CAD - A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO Uma Estratégia de Desenvolvimento Empresarial em Serviço 1. USOS E ABUSOS DA EDUCAÇÃO A educação, ao longo do tempo, tem desempenhado o papel de instrumento de modelagem do ser humano em seu processo de socialização, como um longo rito de passagem. Ter educação é ter passaporte para os diversos círculos do convívio social e os diversos segmentos do mercado de trabalho. Nesse sentido, a educação tem sido usada pelo aparelho estatal, como instrumento político para anestesiar consciências e amortecer impulsos criadores, desestabilizadores do status quo; tem servido a grupos de elite da sociedade como instrumento de manutenção de mitos, símbolos e tradições; tem sido usada pelas diversas religiões que, através das organizações educacionais, massificam suas crenças e tabus engrossando suas fileiras de adeptos. Diante desses usos e abusos da educação institucionalizada, usada como instrumento de passagem para o reino dos céus, para o convívio societal ou para o conformismo político, era de se esperar que, também na construção da revolução industrial, a educação fosse convocada a dar sua parcela de contribuição. Do contrário, como manter a disciplina do comportamento humano numa linha de montagem? Como garantir o manuseio dos caros equipamentos com segurança e destreza? E, principalmente, como transformar o ser humano num instrumento ou recurso físico-fisiológico do sistema de produção de bens e serviços a um custo cada vez mais reduzido? Todas estas exigências de conformismo para a produtividade teriam de ser satisfeitas, caso contrário inviabilizaria de um lado, a economia capitalista centrada no mercado, e, de outro, a economia socialista centrada na burocracia estatal. Num ou noutro caso, o trabalhador teria que sofrer o expurgo de todas as suas características pessoais que ameaçassem pôr em risco a lógica do sistema produtivo - ele teria que ser sacrificado em sua identidade e, em decorrência, seus valores, emoções, sentimentos e desejos postos a serviço da Economia. E é isto o que vem sendo perpetrado cotidianamente, seja nas empresas privadas, seja nas organizações públicas. Como afirma Guerreiro Ramos: ''uma sociedade de mercado, o empregado eficiente deve ser um ator despersonalizado. Espera-se dele que acate as determinações impostas, de cima para baixo, e que definem o papel que desempenhar. Um traço de sua patologia normal é aquilo que Dewey chamou de ''psicose ocupacional'', resultante de uma aceitação acrítica das determinações referentes ao seu papel profissional''.(1) Zumbificado pelo sistema político-econômico da organização em que trabalha, resta tão somente ao indivíduo a força, a destreza e a resistência física, combinadas com a resignação de que não é possível ''lutar contra a corrente''. E mesmo nessa situação ainda lhe exigem que dê o melhor de si em prol da instituição. Ele passa a considerar-se a ''apenas como um instrumento, não fazendo julgamento de valor sobre suas ações. O que o preocupa, é se mostrar digno do que a autoridade espera dele. As conseqüências de seus atos são decodificadas à luz dos critérios apresentados pela organização (... )''. E mais do que isso, ''ele se acha incapaz de agir sem diretivas vindo da autoridade superior. Conforma-se à vontade desta autoridade, mas por isso mesmo se desobriga de compromisso com as suas próprias ações''.(2) Como parte desse cenário político-econômico-psicossocial, que constitui a organização, estruturou-se a educação para o trabalho, visando ao adestramento operacional, ao aperfeiçoamento de conhecimentos, atitudes e habilidades e ao desenvolvimento de potencialidades individuais requeridas pelo sistema produtivo. Não é de se estranhar que o berço e o ambiente mais nutritivo do Treinamento e Desenvolvimento de Recursos Humanos tenha sido e continue sendo os Estados Unidos da América do Norte, santuário da Deusa Economia. 2. DA ESCOLA PARA A EMPRESA A educação para o trabalho consolidou-se e proliferou-se por meio de Divisões, Centros e Institutos de Treinamento e Desenvolvimento de Recursos Humanos nas empresas privadas e nos organismos governamentais. E esta transferência do processo educacional da escola para a empresa se fez, na maioria dos casos, de modo acrítico, importando princípios e valores consolidados na relação de dependência professor-aluno, gerando uma série de equívocos e contradições, tais como: ''a ênfase na transmissão em lugar de na produção de conhecimentos; a organização de grupos de treinandos apartados de suas respectivas situações e relações de trabalho; a separação de treinandos por níveis hierárquicos, categorias funcionais, necessidades pessoais de aperfeiçoamento, como se o trabalho constituísse algo fragmentado e parcelado; entre outros equívocos.''(3) Apesar da mudança de contexto, os mitos que parasitam as relações de ensino-aprendizagem continuaram e, em alguns casos foram fortalecidos. Por exemplo, a produção de conhecimentos continua sendo vista como algo hermético, privilégio de iniciados, cabendo ao instrutor sua mera transmissão e ao treinando, o esforço de assimilação. Estes, ''de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber (...) terminam por se convencerem de sua ''incapacidade''. Falam de si como os que não sabem e do ''doutor'' como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais. Não se percebem, quase sempre, conhecendo, nas relações que estabelecem com o mundo e com os outros homens.''(4) Os esforços despendidos pelos Setores, Divisões e Centros de Treinamento restringem-se à busca de métodos e técnicas que tornem a transmissão de pacotes de conhecimentos, mais eficiente. Nesse sentido, o arsenal de instrumentos e equipamentos sofisticou-se com o uso, hoje corriqueiro, do video-tape, gravador, projetor de slides, retroprojetor, entre outros equipamentos, e de técnicas de ensino como textos-ativo, leitura dirigida, instrução-programada via computador etc. Nessa busca de inovação tecnológica do ensino, pouco ou quase nada tem sido feito para a compreensão e a ruptura do mito do saber elitizado, segundo o qual sua produção somente deve dar-se através de elites intelectuais, geralmente encasteladas em suas Universidades e Institutos de Pesquisa. As Organizações de Trabalho, reforçando o mito, restringem-se ao FAZER. É verdade que ultimamente vem sendo conquistada, por grandes empresas, certa franquia para a produção de SABER. Referimo-nos aos Setores e Departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento que, infelizmente, importando preceitos e critérios oriundos do modelo acadêmico, estruturam-se em nichos de competência, onde os eleitos pesquisadores exercitam sua criatividade ''à salvo'' do burburinho das operações de produção. O Saber e o Fazer continuam apartados entre si e submetidos ao Poder, numa bizarra segmentação do trabalho humano associado, geradora da alienação dos níveis subalternos frente ao processo de análise e resolução de problemas enfrentados pela Organização. A massa de operários e funcionários procura esmerar-se no FAZER cada vez mais e melhor, sem saber o porquê nem o para quê do que faz, guiada por normas e padrões estabelecidos pelo estrato superior da Organização, que detém o PODER de mandar fazer. De fato, ''a lógica da moderna Organização burocrática empresarial implica em concentração de saber na administração e em concentração de ignorância na produção."(5) É natural que, com essa política de segmentação do trabalho, o Fazer adquira, cada vez mais, as características de ação motora acrítica, repetitiva e alienadora. É de se esperar, também, que a mão-de-obra, o cérebro-de-comando e o cérebro-do-saber, estabeleçam entre si fronteiras intransponíveis, criando-se assim categorias mutuamente exclusivas. Temos como resultado dessa exagerada especialização, a esquizofrenização das operações e relações de trabalho, ''e no contexto de tais circunstâncias, e para chegar à consecução dos resultados finais previstos, as habilidades pessoais passam a ser subsidiárias de objetivos mecânicos. Em outras palavras, em tais circunstâncias espera-se do homem não que se ocupe adequadamente, nem se exprima livremente, em relação à tarefa que lhe foi designada; espera-se dele que trabalhe. O homem é, portanto, essencialmente considerado apenas como um componente de uma força de trabalho."(6) Um simples recurso, que, ingenuamente, buscamos lapidar para ser consumido pelo sistema de produção. Cabe-nos, como profissionais comprometidos com a educação no contexto organizacional, buscarmos, incessantemente, caminhos para a superação da situação desumanizadora que atualmente caracteriza a realidade organizacional. A estratégia de instalação de Comunidades de Aprendizagem e Desenvolvimento Humano nos diversos setores e segmentos da Organização, é um desses caminhos alternativos, tanto no sentido da valorização do ser humano empregado, quanto com vistas ao melhor desenvolvimento das organizações, enquanto instrumentos de produção de bens e serviços em prol da sociedade e da natureza. 3- A COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO A implantação da educação nas organizações por meio de Comunidades de Aprendizagem e Desenvolvimento constitui uma ruptura do tradicional método de transferência de conhecimentos, modelagem de atitudes e adestramento de habilidades, corriqueiramente efetuados com os conhecidos pacotes de Treinamento e Desenvolvimento centrados no indivíduo. Ao enfatizar a equipe natural de trabalho (Setor, Divisão, Departamento) o método da CAD leva em conta os pressupostos de que: 1. "a Organização não é a soma de indivíduos, mas a manifestação das relações sócio-culturais, políticas e econômicas que eles estabelecem entre si;'' 2. "o trabalho não é o resultado do esforço isolado de um indivíduo mas a resultante das inúmeras relações estabelecidas entre indivíduos no desempenho de funções complementares e entre os diversos grupos organizacionais(...);'' 3. "a necessidade de aprimoramento e desenvolvimento não deve ser buscada, tão-somente, na pesquisa de atitudes e comportamentos individuais, mas principalmente, na análise da natureza dos sistemas interacionais estabelecidos a nível das unidades organizacionais;'' 4. "a qualidade do desempenho guarda íntima vinculação com a natureza das relações mantidas entre o gerente e sua equipe e entre os componentes desta;" 5. "cada grupo organizacional (departamento, divisão etc) constitui naturalmente uma Comunidade de Aprendizagem e Desenvolvimento, detendo potencialmente a maioria das soluções para os problemas com os quais se defronta."(7) Ao trabalhar-se no sentido de transformar cada Unidade Organizacional em Comunidade que, a partir dos seus próprios recursos, comprometese com a aprendizagem para a resolução de seus problemas e com o desenvolvimento de novas atitudes, conhecimentos e habilidades de seus participantes, resgata-se o potencial criador e a capacidade de produção do SABER, contida no nível do que normalmente tem sido apenas o FAZER mecânico. Com isso, cria-se o necessário suporte para que o grupo de trabalho recupere sua parcela de PODER, alienada no processo de burocratização e concentrada nos escalões superiores. Assim, a recolagem do trabalho (FAZER) com a educação, (SABER) constitui um exercício de competência político-social (PODER). Sem a combinação desses três componentes, questões tais como: eficácia, efetividade, motivação, comprometimento e criatividade, continuarão sujeitas a malabarismos teóricos e a manipulações. ''A produção...''. assinala Guerreiro Ramos, ''... não é apenas uma atividade mecanomórfica. É também um resultado da criativa satisfação que os homens encontram em si mesmos. Num sentido, os homens produzem a si mesmos, enquanto produzem coisas."(8) Ao implantarmos a Comunidade de Aprendizagem e Desenvolvimento realçamos os seguintes fatores do desempenho humano no contexto organizacional: Condições Condições Condições para para Qualificação para Eficácia do Eficiência Engajamento { Desempenho { Efetividade { do Organização Desenpenho Compromisso do Articulação Desempenho com os Visão de Clientes Objetivos 3.1. Qualificação A qualificação expressa a correta aplicação de conhecimentos, atitudes e habilidades no exercício de determinada função ou papel organizacional. Não basta, entretanto, treinarmos o indivíduo (técnico, operário, gerente) para o desempenho de sua função específica, se não contarmos com as condições favoráveis à real aplicação do que está sendo aprendido. Nesse sentido é importante realçarmos que a simples participação do indivíduo em cursos ou programas de treinamento não garante a sua qualificação. Pode significar tão somente absorção de conhecimentos sem a correspondente transformação de atitudes e habilidades. Será no exercício da função, portanto, em serviço, que os efeitos do processo de ensino-aprendizagem serão validados - e é aí que poderemos constatar, ou não, o aumento da qualificação do egresso do curso ou treinamento. 3.2. Engajamento Há quem prefira trabalhar com uma pessoa de baixa qualificação, porém engajada com o que faz, do que com alguém altamente qualificado e desengajado com seu trabalho. Enquanto com o primeiro podem ser obtidos resultados progressivamente melhores, com o segundo será maior a probabilidade de que os resultados sejam cada vez piores. Isso atesta a importância de abordarmos o desempenho humano como um complexo sistema de fatores sinérgicos. Não basta qualificar o indivíduo em sua função. É preciso criar condições psicossociais, econômicas e políticas necessárias à implementação de seu desempenho. O engajamento pressupõe a motivação, mas ao incluir os componentes político e axiológico, transcende-a, caracterizando a ação humana como uma ação politizada, seja a nível micro (societal) ou a nível micro (organizacional). O engajamento do indivíduo com sua coletividade, acrescenta ao seu desempenho o sentido de missão, um valor resultante de seu processo de conscientização e conseqüente resgate de seu poder enquanto co-autor do trabalho coletivo. 3.3. Organização O trabalho humano manifesta-se numa dimensão espácio-temporal específica e, nesse sentido, é relevante que seus agentes sejam orientados com vistas à melhor organização de seu desempenho. O desempenho precisa ser organizado espacialmente de modo que o ambiente seja racionalmente planejado para a espécie de trabalho a ser executado, visando ao melhor uso dos equipamentos, móveis, utensílios, material de expediente etc, além de permitir a melhor circulação de pessoas e material, agilizar o fluxo de informações e de documentos. Os estudos de O&M com vistas na racionalização de procedimentos, simplificação de métodos e rotinas, adequação do layout etc, apresentam contribuições inestimáveis ao aprimoramento desse fator do desempenho humano, o que reforça a concepção de que a integração de estratégias e métodos de T&D e de O&M deve ser cada vez mais exercitada. 3.4. Articulação A articulação do desempenho humano no trabalho deve ser aprimorada em nível das relações interfuncionais, intersetoriais e interorganizacionais. No primeiro caso, pretende-se agilizar e dar maior eficácia às relações estabelecidas por indivíduos no desempenho de suas funções, no sentido vertical (superior-subordinado e subordinadosuperior) e no sentido horizontal (relação entre funções administrativas e técnicas de nível equivalente). No segundo caso, almeja-se quebrar ou reduzir as segmentações organizacionais tão ciosamente mantidas por dirigentes, mais preocupados em assegurar seus territórios de poder do que de participar na construção e condução dos destinos da organização como um todo. A articulação interorganizacional refere-se à administração das transações que a organização estabelece com outras organizações (fornecedores, clientes). Ao trabalhar-se com o fator articulação pretende-se enfatizar a importância que as transações de informações, bens e serviços representam enquanto componentes do desempenho humano, uma vez que ''o trabalho não é o resultado do esforço isolado de um indivíduo, mas a resultante de inúmeras relações estabelecidas entre indivíduos no desempenho de funções complementares e entre os diversos grupos organizacionais (Departamentos, Divisões, Serviços, Seções etc)."(9) Os quatro fatores anteriormente citados (qualificação, engajamento, organização e articulação) são indispensáveis ao alcance de um desempenho eficiente, caracterizado pela adequada utilização de recursos na implementação dos serviços. Porém deve-se evitar que a busca da eficiência transforme-se num fim em si mesmo, perdendo-se com isso, a necessária visão dos objetivos do trabalho desempenhado. Nesse sentido, o conhecimento dos objetivos do próprio trabalho constitui fator de grande relevância, não apenas para a motivação do indivíduo, como também para a obtenção da eficácia almejada na prestação de serviços e na produção de bens. Além da boa qualidade do produto em si, é necessário avaliar-se o seu índice de absorção pelo ambiente ou clientela especifica, do contrário pode-se comprometer a efetividade do empreendimento. O que nos leva a acrescentar mais um fator indispensável ao êxito do desempenho humano no contexto organizacional: o compromisso para com a clientela. Os seis fatores do desempenho citados constituem o elenco básico para a implementação da Comunidade de Aprendizagem e Desenvolvimento como estratégia de desenvolvimento humano nas Organizações Sociais. 4. PROCEDIMENTOS PARA A IMPLANTAÇÃO DE COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO Apresentamos a seguir alguns balizamentos para a implantação da CAD. Por ser uma estratégia, ao invés de uma técnica, deve-se ter sempre em vista a necessidade de sua adequação a cada contexto organizacional, principalmente se levarmos em conta sua natureza político-educacional. Esquematicamente podemos visualizar a implantação de CAD em seis grandes fases, conforme apresentamos a seguir: Como pode ser observado, a partir da terceira fase inicia-se um processo permanente de aprendizagem e desenvolvimento gerido pelo próprio setor de trabalho, resgatando-se com isso, a natural vinculação entre trabalho e educação. 4.1. Fase 1: Sensibilização Esta fase, orientada pelo especialista em T&D ou DO, geralmente externo ao grupo natural (Divisão, Setor, Departamento etc), visa despertar os participantes para as experiências e conhecimentos acumulados por eles e subutilizados no dia-a-dia do trabalho, devido a tabus e mitos que mantêm sobre suas capacidades de gerarem conhecimento relevante em serviço. É comum ''importarem'' especialistas de outras instituições ou até mesmo de outros países para solucionarem seus problemas, uma vez que ''santo de casa não faz milagres''. Não é incomum, mais tarde, eles perceberem que o conhecimento trazido ''empacotado'' pelo instrutor externo não é utilizável ou é irrelevante, por não se adequar ao contexto organizacional. Esta atitude de dependência, longe de exceção, constitui um certo cacoete brasileiro, espécie de sentimento de inferioridade já automatizado entre nós. Com isso desvalorizamos nosso próprio pensamento enquanto gerador de conhecimentos relevantes e passamos a importar soluções de outras realidades. ''Aguardamos uma solução estrangeira sem nos darmos conta de que, sendo estrangeira, será precisamente isto: estranha. E o pensamento, antes da pretensão de ser atemporal, deve ter a pretensão primária de não ser jamais estranho, o saber de um outro."(10) Felizmente temos encontrado em várias Organizações o surgimento de experiências do tipo CAD, em que o próprio gerente, ou um dos membros do grupo natural, toma a iniciativa de mobilizar seu setor para a ação de ensino-aprendizagem em serviço a partir de seus próprios recursos. Nesse caso eles já queimaram a fase de sensibilização, facilitando, e muito, o processo de resgate do saber existencial contido no grupo. Caberá ao profissional de T&D assessorá-los em procedimentos de resolução de problemas, de geração e implementação de idéias, de administração de conflitos, organização e racionalização de espaço e tempo etc. 4.2. Fase 2: Contratação social Com o grupo sensibilizado para a utilização de seus próprios recursos é necessário que seus membros (com o gerente incluído, óbvio) assumam um contrato de ajuda mútua, estabelecendo os critérios de participação e de uso do tempo coletivo, visando aumentar a sinergia do grupo no processo de trabalho-educação que construirão juntos. Este contrato de constituição da CAD representará a ruptura de redes interacionais simbolicamente sedimentadas ao longo do tempo e a denúncia de seus correspondentes ''beneficios''psicológicos, advindos da concentração do saber fora do grupo e de sua alienação do processo decisório. A dimensão política da CAD dificulta sua implantação, uma vez que os jogos de poder mantidos tanto pelo dominante quanto pelo dominado, enraízam-se simbolicamente, transformando certas atitudes e comportamentos em tabus inquestionáveis para ambos os ''parceiros''do jogo. A superestrutura simbólica que permeia toda a Organização Social é pouco compreendida, devido, talvez, a um mecanismo inconsciente criado por seus próprios atores. Em conseqüência, não constitui um problema à primeira vista. É imprescindível que, enquanto educadores, rompamos essa cortina de fumaça, que oculta a irracionalidade dos processos e relações sociais, mantidas no ambiente de trabalho. A este respeito a antropologia social, ao tratar da função objetivadora e reificadora que os símbolos desempenham quanto às relações entre indivíduos e grupos, é muito ilustrativa. Segundo Abner Cohen ''nós podemos observar os indivíduos na realidade concreta, mas as relações entre eles são abstrações que só podem ser observadas através dos símbolos, pois as relações sociais se desenvolvem e são mantidas através deles. Nós ''vemos'' os grupos através de seus símbolos..." e continua mais adiante... "os símbolos também objetivam papéis sociais, dando a eles uma realidade que difere da personalidade individual dos que deles se incumbem. Os homens são treinados para representar papéis específicos, depois passam a representá-los e são ajudados na representação de seus deveres por uma série de atividades simbólicas estilizadas."(11) A partir dessas considerações podemos pressupor que, ao tornar-se consciente da função que a dimensão simbólica desempenha na manutenção das relações de poder (dimensão política), os membros do grupo podem desestruturá-las e juntos constituírem, agora deliberadamente - através de um contrato social - as novas bases de sua convivência e de seu esforço coletivo de produção. Esse é um processo de legitimação sem o qual o setor de trabalho jamais chegará a constituir-se em verdadeira Comunidade de Aprendizagem e Desenvolvimento, reintegrando, em uma só realidade oFAZER, o SABER e o PODER. 4.3. Fase 3.- Diagnóstico de necessidades O diagnóstico de necessidades de aprendizagem e desenvolvimento da Comunidade, é realizado: quanto ao nível de ocorrência, em quatro categorias: - funcional - interfuncional - setorial - intersetorial quanto ao fator de desempenho em seis categorias: - qualificação - engajamento - organização - articulação - visão de objetivos - compromisso com a clientela As necessidades de qualificação, engajamento, organização, visão de objetivo e compromisso com a clientela, quando detectadas ao nível funcional, dizem respeito ao desempenho dos indivíduos em seus cargos, funções e papéis, seja de natureza gerencial, técnica, operacional ou administrativa. No nível interfuncional é diagnosticado o estado das ''relações interfuncionais , ocupantes da maior parcela dos procedimentos organizacionais, constituindo fluxos de informações e produtos entre funcionários."(12) Analisa-se, neste nível, as dificuldades oriundas da reduzida clareza dos papéis desempenhados por diferentes funcionários. É comum encontrar-se conflitos de atribuições neste nível que, explícita ou sorrateiramente, minam os recursos e desviam as atenções do setor de trabalho de seus objetivos. ''O diagnóstico de necessidades setoriais objetiva levantar as dificuldades de desempenho de cada unidade administrativa considerada isoladamente. São aspectos relevantes a serem levados em consideração nesse processo, as condições legais, estruturais, gerenciais, técnicas, operacionais e sociais, determinantes dos parâmetros de desempenho global do setor."(13) No nível intersetorial são detectadas as necessidades de aprimoramento das interfaces entre cada setor da organização. Seus resultados têm um impacto imediato sobre a dinâmica organizacional e os procedimentos gerenciais. Um dos efeitos que se faz sentir a partir desse nível de diagnóstico é a condução mais precisa de ações articuladoras, reduzindo-se, com isso, a segmentação organizacional, tão prejudicial à eficácia e efetividade da organização. 4.4. Fase 4: Diagnóstico de potencialidades Esta fase da estratégia visa elencar as experiências, conhecimentos e habilidades de cada participante da CAD, de modo a estabelecer os laços mútuos de intercâmbio necessários à mobilização dos recursos disponíveis. 4.5. Fase 5: Planejamento das ações de aprendizagem e desenvolvimento Com base no conhecimento das necessidades e potencialidades da CAD, seus participantes procedem ao delineamento das ações de aprendizagem, com o estabelecimento do cronograma, recursos necessários, temas, métodos, resultados esperados, procedimentos de avaliação etc. Num primeiro estágio as ações de ensino-aprendizagem da CAD visam equalizar habilidades e conhecimentos entre os participantes para, em estágios posteriores, possibilitar a resolução de problemas e o aproveitamento de oportunidades com as quais o setor de trabalho se defronta. 4.6. Fase 6.- lmplementação A fase de implementação das ações de ensino-aprendizagem deve estar embasada numa sistemática de acompanhamento que permita a correção tempestiva de desvios que porventura venham a ocorrer em relação ao plano de ação delineado. Como já assinalamos, a implementação da CAD é um processo permanente de trabalho-educação autogerido, isto é, os participantes de cada setor de trabalho assumem a responsabilidade pela qualificação, engajamento, organização e articulação de seus desempenhos individuais (funcionais), grupais e intergrupais. Excepcionalmente, quando diante de problemas ou oportunidades a respeito dos quais não possuem competência e após esgotarem seus esforços e recursos de aprendizagem comunitária, poderão lançar mão de especialistas externos ao setor ou à própria Organização sem, contudo, perderem de vista o treinamento e desenvolvimento em serviço como principal método de aprendizagem no contexto organizacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) Ramos, A. Guerreiro. A Nova Ciência das Organizações. Editora da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, l98l p. 98 (2) Pagés, Max. Análise do Poder e Prática de Mudança nas Organizações. Material apostilado pelo NAI/PE p. l 09-110 (3) Mattos, Ruy de A. Desenvolvimento de Recursos Humanos e Mudança Organizacional. Editora LTC, Rio de Janeiro, 1985 p.10 (4) Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra, 8a Edição, Rio de Janeiro p. 54 (5) Motta, Fernando Prestes. Burocracia e Autogestão. Editora Brasiliense, São Paulo.p.l6 (6) Ramos, A. Guerreiro. In op. cit.p. l 33 (7) Mattos, Ruy de A. In op. cit.p. 26 (8) Ramos, A. Guerreiro. In op. cit. p. l 99 (9) Mattos, Ruy de A. In op. cit. p.26 (10) Gomes, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. Cortez Editora, São Paulo p. 24 (11) Cohen, Abner. O Homem Bidimensional. Zahar Editores. Rio de Janeiro p.46 (12) Mattos, Ruy de A. In op. cit. p. 39 (13) Mattos, Ruy de A. In op. cit. p. 41 CAPÍTULO VI ORGANIZAÇÕES EM MUDANÇA 1. AS FALSAS PREMISSAS DO DESENVOLVIMENTO Os teóricos e, principalmente, os tecnólogos da mudança organizacional planejada, têm defendido, em suas abordagens, a mudança como determinante do progresso, como sinônimo do desenvolvimento. Para eles mudar significa crescer, inovar, e isto é bom; ao passo que manter o status quo, a permanência das coisas, é mau. Apoiar-se em sofismas maniqueístas, como este, não contribui em nada para o entendimento dos sistemas sociais e das organizações. Ao contrário, cria distorções perceptivas e conceituais da realidade dificultando, sobremaneira, sua abordagem e compreensão. A realidade, por sua complexidade e dinamismo, vem frustrando inúmeros teóricos, cientistas e tecnólogos, que, equipados de suas fórmulas simplistas e concepções dicotômicas, vêm tentando, infrutiferamente, moldá-la e aprisioná-la em espaços e posições arbitrárias. O mesmo vem acontecendo com os teóricos da mudança. É necessário, portanto, analisarmos as falsas premissas que baseiam a idéia da mudança e sobre as quais são construídos sofismas que se infiltram em nossas concepções acerca das organizações, distorcendo-as e dificultando nossa compreensão da realidade organizacional. Há três falsas premissas que vêm sendo aceitas, acriticamente, pelos teóricos e tecnólogos da mudança como verdades: 1) A primeira falsa premissa é a de que tudo à nossa volta está mudando num ritmo cada vez mais acelerado e que os indivíduos e as organizações precisam acompanhar esse surto de mudanças sob o risco de sucumbirem ao "choque do futuro''. As organizações seriam como frágeis embarcações, num mar revolto e imprevisível, a ponto de irem a pique. Ao que parece, essa visão de ambiente transiente, na concepção de Alvim Tofler, pode, de fato, refletir uma realidade bem particular dos países mais desenvolvidos, em contraste com uma certa calmaria observada em nações menos desenvolvidas. Ou, por outro lado, pode expressar o ritmo de progresso de certas áreas do conhecimento, como, a grosso modo, as tecnologias oriundas das ciências físicas e químicas. Não podemos dizer a mesma coisa a respeito do desenvolvimento de uma tecnologia social, psicológica e cultural. Como ressalta Barrington Moore: ''A experiência dos últimos cinquenta anos foi, sem dúvida, muito dura para as teorias do progresso. Duas guerras mundiais, o recuo da democracia parlamentar, a ascensão de governos totalitários, os campos de concentração e a perfeição dos meios de destruição em massa são fatos que dificilmente se enquadram em qualquer teoria do progresso".(1) A história da humanidade testemunha, muito claramente, o quão pouco temos mudado em nossas idiossincrasias tipicamente humanas, como os valores, as emoções e as indagações fundamentais sobre a vida e a morte, a verdade, a paz, a realização pessoal, a felicidade e a saúde. As dúvidas, perplexidades e os mistérios de Sócrates e demais filósofos gregos são ainda tão atuais quanto há 2.400 anos atrás. A busca do Nirvana, a libertação do Samsara - o ciclo de vida e morte budista - , assim como a procura do Tao - o caminho perfeito do homem, segundo a concepção taoísta - permanecem tão presentes quanto o eram a mais de três milênios. Em síntese, os problemas humanos - em seus níveis individual e social e em suas expressões cultural, política e econômica - persistem até hoje, essencialmente os mesmos. Tem ocorrido muita mudança de rótulos para coisas velhas, como se isso, magicamente, nos transformasse. Não é preciso nos estender na tese de que, de fato, não têm ocorrido mudanças substantivas na esfera subjetiva e social de nossas vidas. Basta lançarmos os olhos nos jornais e revistas que as manchetes nos fulminam com acontecimentos tão corriqueiros hoje quanto a 30 ou 50 séculos atrás: a guerra, a dominação, a corrupção, a violência, a fome, a ignorância, a inveja, o ressentimento, as tramas políticas, as mentiras econômicas, as ilusões religiosas, enfim, a pletora de fenômenos tão antigos quanto o ser humano. A sensação de impotência diante do ritmo acelerado de mudanças ambientais, por muitos considerado inerente à nossa época atual, já estava presente no final do século XIV e início do XV, como podemos observar no trecho de O Príncipe, de Machiavel: ''Será melhor deixar que o acaso decida. Essa opinião é muito aceita em nossos dias, devido às grandes transformações ocorridas, e que ocorrem diariamente, as quais escapam à conjectura humana. Quando reflito sobre ela, às vezes eu próprio me inclino a aceitá-la em parte."(2) Esta declaração poderia caber muito bem na obra de Alvim Tofler, que nos apresenta, magistralmente, o que, para ele, representa o fenômeno do século XX: o processo de mudança acelerado. O que mudou então? Ocorreram progressos de natureza tecnológica (restritos a certas áreas geo-econômicas), porém a essência da problemática humana continua inalterada. ''Realmente, só o mais incurável otimista poderia afirmar que o homem, com o avanço da civilização, tornou-se progressivamente mais capaz de solucionar racionalmente os seus problemas e, dessa maneira, banir os demônios criados por ele mesmo."(3) Como o ambiente, no qual estão inseridas as organizações sociais, é um conjunto formado por fatores culturais, políticos, sociais, econômicos e tecnológicos, entre outros, não é licito declarar que sua característica atual seja a transiência. Quando muito, podemos dizer que a tecnologia, um dos seus componentes, é altamente transiente. Em outras palavras, esta parte possui um ritmo acelerado de mudanças que pode repercutir no todo. Mas não podemos, em sã consciência, tomar o todo pela parte, numa generalização apressada. Além disso, se evocarmos a teoria de sistemas, podemos lembrar que uma das propriedades do sistema (nesse caso o ambiente) é a manutenção do seu ''estado firme'', ou seja, inerente à sua dinâmica, há uma resistência natural à mudança de suas condições, quando iniciada por um de seus componentes. Nesse caso, a mudança tecnológica poderá não exercer efeito relevante sobre a natureza do ambiente. Pelo contrário, ao invés de mudá-lo, poderá ocorrer o inverso, com os outros fatores reduzindo a possibilidade de manifestação do progresso tecnológico e de absorção de seus resultados. Concluindo, podemos dizer que a primeira premissa, segundo a qual as organizações encontram-se imersas num ambiente instável, caracterizado por mudanças cada vez mais aceleradas, é uma falácia. 2) A segunda falsa premissa é a de que mudar é progredir, e como progredir é bom, então é necessário mudar para que a organização se desenvolva. Constrói-se, assim, mais um sofisma que tenderá a ser aceito sem objeção. Dita desse modo tão enfático, a assertiva soa muito clara e óbvia. Porém, ao analisarmos a essência da declaração, deparamo-nos com a possibilidade da mudança para pior ou da mudança que não muda nada, apenas reorganiza, em novo arranjo, o estado de coisas objeto da intervenção. À esta altura nos cabe introduzir, de passagem, os conceitos de mudança de primeira ordem e mudança de segunda ordem. A primeira refere-se a uma alteração interna operada no sistema sem a ruptura de seus limites e natureza. Mantem seu status quo, ratificando o ditado francês: ''Plus ça change, plus c'est la même chose''. Por outro lado, a mudança de segunda ordem corresponde à alteração substantiva das características do sistema. É um salto qualitativo de um estado mais simples para outro mais complexo, transcendendo os limites do sistema. Neste caso, ocorre, de fato, mudança, enquanto no primeiro há somente a rearrumação de componentes do sistema, sem repercussões em sua substância. '' Mudar'', portanto, pode ser também um modo de manter as coisas como estão, dando-se a impressão de que ocorreu algo diferente. Há muitos agentes de mudanças fictícias, ou, em outras palavras, agentes da permanência travestidos em agentes de mudanças. A finalidade de sua ação é acalmar os ânimos dos reivindicadores ou defensores da mudança, sem criar descontentamento entre os baluartes do status quo. Assim, fica-se bem com gregos e troianos. Antes de se defender a idéia de que mudar é progredir, é indispensável que se analise a natureza da mudança, considerando-a em sua relatividade e evitando-se de tomá-la como valor absoluto e dogmático. Os defensores do progresso tecnológico como a mais elevada aspiração humana, deveriam refletir sobre as palavras de Norbert Wiener: "somos escravos de nosso aperfeiçoamento técnico. Modificamos tão radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modificar-nos a nós mesmos para poder viver nesse novo meio ambiente(...). O progresso não só impõe novas possibilidades para o futuro como também novas restrições."(4) 3) A terceira falsa premissa estabelece que a permanência é sinônimo de estagnação e, portanto, negativa, devendo ser combatida a todo custo. Por extensão, aqueles que a defendem são tidos como reacionários e inimigos do progresso e do desenvolvimento. Mais uma simplificação da realidade. Há casos em que a mudança transforma-se num problema, desestabilizando um estado de permanência conquistado às custas de muito tempo, recursos e esforços adaptativos. É como mudar uma árvore do lugar onde nasceu, para embelezar um canteiro planejado por algum paisagista, transgredindo certas leis da própria natureza em beneficio de uma idéia, muitas vezes, afoita. O resultado poderá ser a atrofia ou mesmo a morte daquele ser vivo, devido à quebra da sua permanência adaptativa. Há, é claro, estados de permanência decorrentes da inércia, do medo de conquistar novas posições, da atrofia de possibilidades em troca da segurança presente. Em lugar de adaptação (função ativa), temos a acomodação (resposta passiva) e, como resultantes, a inércia e a morte. Cabe-nos refletir sobre a realidade que se nos apresenta, em cada momento, considerando-a sempre em sua relatividade, propriedade inerente aos sistemas vivos, principalmente os sócio-culturais. Por exemplo, não podemos, em sã consciência, rotular uma cultura indígena como atrofiada e reacionária ao progresso, baseados na constatação de que seus meios de comunicação, produção e defesa (sua tecnologia) permanecem, até hoje, no mesmo estágio encontrado pelos portugueses em 1500. É bem possível que eles estejam tão bem ou melhor adaptados, mais felizes, mais livres e até mais produtivos do que nós, representantes de uma civilização letrada. Aliás, a respeito da tão cantada liberdade,'' é perfeitamente legítimo negar que o avanço tecnológico, com todas as suas conseqüências, subentende um movimento para a liberdade. É duvidoso que se tenha registrado qualquer tendência a uma liberdade maior no curso da história humana."(5) Por outro lado, as culturas indígenas nos dão aula de equilíbrio homemnatureza e, como resultante, de conquistas psicossociais e políticas que, para nós, são sonhos. A este respeito, veja o que Pierre Clastres narra em suas pesquisas sobre as nações indígenas sul-americanas: ''De fato, considerando-as de acordo com a sua organização política, é essencialmente pelo sentido da democracia e pelo gosto da igualdade que se distingue a maioria das sociedades indígenas da América. Os primeiros viajantes do Brasil e os etnógrafos que os seguiram, muitas vezes sublinharam: a propriedade mais notável do chefe indígena consiste na ausência quase completa de autoridade; nessas populações a função política parece ser muito fracamente diferenciada."(6) Mais adiante, Clastres acrescenta que ,o poder normal, civil, fundado sobre o consensus onnium e não sobre a pressão, é assim de natureza profundamente pacífica; a sua função é igualmente pacificante: o chefe tem a tarefa de manutenção da paz e da harmonia no grupo. Ele deve também apaziguar as disputas, regular as divergências, não usando de uma força que ele não possui e que não seria reconhecida, mas se fiando apenas nas virtudes de seu prestígio, de sua eqüidade e de sua palavra."(7) Quanto nós, considerados civilizados, não daríamos para sermos dirigidos por líderes políticos como estes encontrados nas comunidades indígenas, não é? Portanto, o diagnóstico de um determinado sistema sócio-econômicopolítico, como a Organização, por exemplo, é algo muito sutil, que exige do cientista ou tecnólogo uma postura isenta de falsas premissas e uma estratégia que considere a relatividade da situação analisada, em seus paradoxos e aparentes mistérios, inerentes aos sistemas complexos. Desse modo, permanência não é sinônimo de estagnação, ao contrário, pode ser a expressão de um elevado estado de adaptação à realidade. 2. COMPREENDENDO O FENÔMENO DA MUDANÇA Por que ocorrem mudanças na ordem estabelecida ? Por que há ruptura do equilíbrio conquistado pelos sistemas sóciopolítico-econômico? A origem desse intrigante fenômeno é intrínseca ao próprio sistema ou advém de fontes externas a ele? É um fenômeno assentado no conflito ou decorre da combinação de forças complementares? É coisa boa, aliada do progresso, ou coisa má, companheira da entropia? E, afinal, a mudança é mesmo um fenômeno real, um fato, ou não passa de ilusão produzida pela impropriedade de nossas expectativas, necessidades e sentidos? A busca de uma resposta convincente a estas indagações tem ocupado o homem desde a época imemorial dos primeiros filósofos gregos. Foi Heráclito o primeiro pensador a dedicar-se, a fundo, sobre a questão da mudança, dando-lhe foro de objeto filosófico, à altura de questões fundamentais como o Ser e o Existir. Com Heráclito aprendemos a ver além da aparente imanência da realidade, alcançando-lhe o âmago turbulento, o constante fluir. Seu aforismo ''Não se banha no mesmo rio por duas vezes'' traduz essa visão da realidade. Para Heráclito ''o existir é um perpétuo mudar, um estar constantemente sendo e não-sendo, um devir perfeito, um constante fluir."(8) Ele pode ser considerado, de fato, o filósofo da mudança. Entretanto, as verdades filosóficas de Heráclito não tiveram longevidade. Foram soterradas por Parmênides, que construiu sobre elas as bases de uma visão da realidade antípoda à de Heráclito. Para Parmênides, a mudança constitui uma ilusão de nossos sentidos. O Ser é infinito, imóvel e eterno e a realidade é essencialmente estática. Surgia, assim, com Parmênides, o fundamento de nossa concepção do Ser e da realidade como algo imutável, que seria aperfeiçoada por Platão e persistiria, através da Filosofia e da Religião, transformando-se em sabedoria popular, até os nossos dias. Como assinala Garcia Morente: "Parmênides tomou o Ser, espetou-o na cartolina há vinte e cinco séculos e lá continua ainda, preso na cartolina, e agora os filósofos atuais não vêem o modo de tirar-lhe o alfinete e deixá-lo voar livremente. Este vôo, este movimento, esta funcionalidade, esta concepção da vida como circunstância, como chance, como resistência que nos revele a existência de algo anterior à posse do Ser, algo do qual Parmênides não podia ter idéia, é isto que o homem tem que conquistar."(9) Parece-nos que a recente contribuição de Einstein, a teoria da relatividade, abriu mais uma porta para a compreensão dos fenômenos naturais e humanos, retirando-nos da armadilha das concepções dicotômicas que aprisionaram nosso pensamento e libertando-nos para a percepção mais adequada da realidade. A busca desta síntese para a compreensão do fenômeno da mudança vem sendo perseguida por inúmeros teóricos, que produziram quatro concepções acerca das causas da mudança que se opera nos sistemas econômico-sócio-político: a concepção sócio-psicológica, a estruturalista, a evolucionista e a teleonômica. 2.1. Concepção Sócío-Psicológica Esta concepção tem em James C. Davies e Ted Guff seus maiores expoentes. Segundo tal concepção, o descontentamento dos indivíduos e grupos é a raiz da mudança, que tende a ser explosiva, revolucionária. Este descontentamento decorre da contínua e crescente frustração dos indivíduos em satisfazerem suas necessidades mais primárias, além de suas expectativas e valores mais elevados. As pessoas podem suportar um índice de frustração elevado até certo ponto, a partir do qual iniciase um verdadeiro processo de efervescência social, que desemboca na ruptura das condições julgadas insatisfatórias. Poderíamos dizer que a política do ''pão e circo'' corrobora esta hipótese, vez que, satisfazendose o povo com alimento e diversão, obtém-se uma redução da tensão social. A questão é saber até quanto tempo essa política surte efeito. Podemos classificar a concepção de Max Weber nesta categoria. Segundo este teórico o fator indutor da mudança é a influência mágica e arrebatadora que o líder carismático produz sobre a massa. Entretanto, constitui fato histórico que o surgimento do líder carismático é fenômeno inerente ao clima psicossocial de insatisfação, frustração e agressão latente. O papel do líder é dar sentido a toda essa energia contida na massa. Um grupo ou um povo insatisfeito é o terreno fértil para o carisma florescer. Por outro lado, será impossível seu surgimento em um grupo satisfeito ou inconsciente de seu estado de insatisfação. 2.2. Concepção Estruturalista A concepção estruturalista, por possuir diversos mentores, originou uma série hipóteses convergentes em certos aspectos e bastante divergentes em outros. Porém, têm em comum a visão de que as mudanças só ocorrem, de fato, quando há alteração das bases estruturais do sistema. Dentre estes teóricos os mais conhecidos são: Karl Marx, Raff Dahrendorf, Johann Galtung. a) Karl Marx propõe que a mudança essencialmente revolucionária, ocorre a partir da desagregação da estrutura vertical da sociedade, especialmente através da exacerbação dos conflitos de interesses entre dominadores e dominados, com a posterior destruição da estrutura de classes. b) Ralf Dahrendorf propõe que as mudanças decorrem de uma síndrome nas estruturas que seguram os indivíduos em seus elos sociais nos quais eles mesmos se desenvolveram e que já não os permite realizar e participar. A pressão decorrente dessa falta de realização e participação é a mola-mestra que impulsiona a mudança. c) Johann Galtung admite que as mudanças originam-se nas alterações do equilíbrio das estruturas de prioridades do sistema. ''Estas poderão ser prioridades de valor, de cultura, econômicas ou tecnológicas.(11) Desse modo, segundo Galtung, a aquisição de um computador por uma organização irá desestruturar a ordem social, em decorrência do choque provocado pela inovação da estrutura tecnológica sobre as demais prioridades estruturais. 2.3. Concepção Evolucionista Os defensores desta corrente propõem que as mudanças fazem parte do processo natural de desenvolvimento dos seres vivos e, por extensão, dos sistemas sociais. Esta evolução poderá dar-se de modo mais ou menos suave, com mais ou menos conflito entre os participantes do sistema. Há diversos teóricos defensores dessa concepção, destacandose: Darwin, Herbert Spencer, Augusto Comte, Pitirim Sorokim, Philip Selznick. a) Darwin pode ser considerado o mentor número um do evolucionismo.. Por meio de pesquisas com diversas espécies animais, Darwin demonstrou que as mudanças são produzidas como respostas às exigências das condições ambientais, vencendo, neste jogo da adaptação, os mais fortes e os mais hábeis. A mudança é a própria expressão da vida contra as ameaças do ambiente. b) Herbert Spencer concebe a mudança tomando de empréstimo as hipóteses darwinianas e transplantando-as para os sistemas humanos. Para ele, os sistemas possuem tendências que lhes são inerentes, fazendo-os mudar: (a) de níveis mais simples para mais complexos; (b) de estruturas homogêneas para estruturas heterogêneas; e (c) de formas mais desorganizadas para mais organizadas. Segundo Gentil Martins Dias, "o fundamental da visão evolucionista, sobretudo na visão de Spencer, é a idéia do permanente progresso onde os que comandam lhes justificam a supremacia pela sua suposta superioridade. Dai por que nos círculos mais intelectualizados das elites nacionais tal teoria cumpriu uma função eminentemente racionalizadora dos papeis sociais do establishment."(12) c) Augusto Comte pode ser classificado como evolucionista, na medida em que concebe o desenvolvimento do sistema através da condução racional e científica da mudança, tendo por base o consenso entre as partes, de modo a não abalar as estruturas do sistema durante a mudança. Para Comte, a sociedade deve progredir como um todo homogêneo e ordenado. É patente a influência que Spencer e Comte exerceram e ainda exercem no pensamento brasileiro, fundamentando ideologicamente inúmeros políticos e dirigentes. Veja-se, por exemplo, o lema nacional ''ORDEM E PROGRESSO''. Segundo Gentil Martins, ''através de uma atuação que em muito excedia a simples interpretação e a análise acadêmica da sociedade brasileira, positivistas desempenharam papel da maior importância na vida política da nação. A convicção de que o progresso social deveria ser conduzido por uma plêiade de apóstolos da razão e da ciência, animava a não poucos intelectuais."(13) Eu diria que ainda anima, pois, do contrário, não seria possível compreender declarações públicas, e outras ditas a meia-voz, de que hoje padecemos da falta de homens capazes de conduzir nossas políticas econômica e social, à exceção de uma reduzida elite de tecno-burocratas que se vêm mantendo ao redor do círculo do poder já há dezenas de anos. d) Pitirim Sorokim pode ser considerado evolucionista na medida em que propõe a tendência inerente aos sistemas sociais de amadurecerem continuamente no sentido da conquista de maior autoconsciência. Para Sorokim, a educação e a produção de idéias ocupam o lugar de destaque, como fatores responsáveis pelo processo de desenvolvimento. e) Philip Selznick introduz, na concepção de desenvolvimento, a idéia de ciclo vital ou etapas de crescimento do sistema. Nesse sentido, há que se considerar a história particular de cada sistema e identificar seu nível de desenvolvimento para compreender-se e produzir-se mudanças eficazes. Segundo ele, "a lição nos diz que, em organizações avaliadas, não podemos tirar conclusões a respeito das práticas administrativas, a menos que possamos colocar aquelas práticas num contexto de desenvolvimento. Na medida em que aprendemos mais sobre as condições sociais que caracterizam várias etapas de crescimento, devemos ser capazes de formular princípios que possam reger a aplicação de preceitos para situações específicas."(14) 2.4 Concepção Teleonômíca A concepção teleonômica da mudança constitui uma expressão da abordagem sistêmica. O termo teleonomia corresponde à ''alocação e disposição de objetivos (como análogo à agronomia é a alocação e disposição de terras)."(15) Segundo Ingo Ploger, tal modelo foi desenvolvido recentemente, na década de 70, para satisfazer a necessidade da Comunidade Econômica Européia de uma abordagem de planejamento voltada para o futuro. Com base nesta concepção, a mudança deve ser conduzida, voluntariamente, a partir da antevisão das possibilidades do futuro, por meio da confrontação das opções de objetivos com a disponibilidade de meios e instrumentos. Nas palavras de Ploger, "a concepção teleonômica visualiza, em função do tempo futuro, a possibilidade de formular e estabelecer objetivos visando ao mesmo tempo a possibilidade de escolha de opções, tendo em vista os meios disponíveis."(16) Os modelos desenvolvidos por cientistas do comportamento humano nos Estados Unidos a partir da década de 60, e conhecido grosso modo como ''D.O.''(Desenvolvimento Organizacional), podem ser classificados como teleonômicos, no sentido em que há sempre o compromisso com a mudança planejada, com base em objetivos previamente acordados entre consultor e organização-cliente. Atualmente, na década de 90, as diversas estratégias para a obtenção da qualidade total, (TQC, Gestão de Qualidade e outras) também podem ser classificadas nesta categoria de enfoque teleonômico da mudança. 3. UMA TENTATIVA DE INTEGRAR AS DIVERSAS CONCEPÇÕES SOBRE MUDANÇA Atualmente, pelo fato de termos o privilégio de visualizar todo um espectro de concepções sobre o desenvolvimento humano produzido nestes 25 séculos passados, é natural a tendência de síntese e integração de posições aparentemente antagônicas e excludentes. Este antagonismo adquire conotação de complementaridade quando ampliamos nossa análise através das lentes da teoria da relatividade aplicada às ciências sociais, fazendo emergir de sonhadas verdades absolutas, pelas quais muitos se têm digladiado, à relatividade dos elementos que as compõem. Sinteticamente, podemos dizer que as diversas concepções sobre mudança dividem-se em duas grandes categorias: de um lado, as que propõem o conflito como motor da mudança e, de outro, as que advogam o consenso. No primeiro grupo temos os defensores da hipótese revolucionária e no segundo aqueles comprometidos com a hipótese evolucionária. Estas concepções, tomadas isoladamente, pecam por refletirem uma visão estática da questão, deixando de lado o dinamismo inerente aos sistemas sócio-políticos. Uma solução de conflito pode dar certo hoje e ser completamente ineficaz amanhã, assim como o consenso pode ser adequado em certa situação e não em outra. A recente teoria do ciclo vital das organizações e demais sistemas sociais (grupo, nação), que introduz a idéia de índice de maturidade do sistema, traz à baila uma questão que precisa ser considerada. Daniel Katz, já em 1951, levantava a questão de que ''necessitamos dirigir a atenção para tais aspectos elementares das organizações como padrões de desenvolvimento."(17) Em outras palavras, ele afirmava que não podemos abordar ou compreender uma organização sem antes visualizarmos seu estágio de desenvolvimento, vez que a estratégia de mudança será mais ou menos eficaz conforme o índice de desenvolvimento organizacional. Selznick aprofunda esta análise quando realça que ''acontecimentos ou práticas aparentemente semelhantes não poderiam ser diretamente comparadas, mas somente quando o estágio de desenvolvimento da organização for determinado. (...) Ao fazer isto, devemos distinguir problemas colocados pela tarefa presente que não exigem transformações organizacionais, dos problemas que são estabelecidos por uma organização segundo o estágio de desenvolvimento no qual ela se acha."(18) Outro cientista defensor da necessidade de levar-se em conta o ciclo vital dos sistemas organizacionais é Ichak Adizes, professor da Universidade da Califórnia, EUA. Ele declara que "as organizações evidenciam padrões de comportamento característicos, diferentes nos diversos estágios de suas vidas."(19) A manifestação de fases do desenvolvimento dos sistemas sociais pode ser claramente percebida através da análise da história de diversas nações. O ciclo de nascimento, crescimento, esplendor e morte pode ser observado nos tempos remotos, tendo como exemplos o Egito, a Assíria, a Pérsia, a Macedônia, Roma, os gauleses, os vikings e, mais recentemente, a França e Inglaterra. Atualmente, podemos inferir a gradual queda do esplendor dos Estados Unidos, que desde a Segunda Grande Guerra Mundial vêm dominando, tecnológica e culturalmente, todo o Ocidente. A fase de desenvolvimento do sistema social atua como um dos fatores determinantes da natureza do processo de mudança. Este aspecto é realçado por Gentil Martins Dias quando declara que, ''na realidade, diferentes explicações e preferências sobre explicações resultam não apenas dos interesse objetivos dos grupos sociais envolvidos (aspectos ideológicos), como reclamam os marxistas, mas também, e sobretudo, essas diferenças resultam de situações concretas que derivam do estágio de desenvolvimento da sociedade analisada."(20) A este respeito Martins Dias cita Alvim Gouldner, que em seu livro The Coming Crisis of Western Sociology ''chama atenção para a crescente influência do funcionalismo no mundo intelectual do bloco socialista." Segundo Martins ''na medida em que os problemas fundamentais de desenvolvimento industrial foram vencidos na Europa Oriental, as metas sociais e políticas passaram a se concentrar cada vez mais nos aspectos voltados ao estabelecimento de sistemas de autocontrole, de estabilização e de mudança rotinizada."(21) A revolução, como forma de desenvolvimento, foi substituída pela evolução positivista, ocorrência à primeira vista paradoxal, principalmente para os analistas cujo pensamento se processa apenas em duas pistas: estruturalismo x funcionalismo. Ainda é Martins Dias quem elucida a natureza dessa transição de concepção sobre desenvolvimento, quando declara que ''enquanto modelos explicativos da mudança, que se baseiam no conflito social, se prestam de modo altamente eficaz ao processo de mobilização das tensões e dos grupos sociais, forçando assim transformações imediatas, os modelos que se assentam no equilíbrio social revelam um maior e mais eficaz desempenho quando as metas fundamentais da sociedade se concentram na estabilização e no evento sob controle. Na realidade, há de se reconhecer que tais modelos de mudança social, antes de determinar diferentes tipos de sociedade, são na realidade produtos do nível de desenvolvimento e de avanço social da sociedade."(22) A natureza do desenvolvimento de determinado sistema depende do nível de abertura e flexibilidade já conquistado. Se o conceito de desenvolvimento pressupõe maior flexibilidade, abertura a novas idéias, agilidade e precisão do sistema em adaptar-se às constantes demandas externas, podemos referir-nos a um índice de desenvolvimento dos sistemas, a partir do qual será mais fácil compreender e administrar o processo de mudança. Este índice de desenvolvimento deverá ser inferido através da análise da relação entre o ritmo de mudança do sistema e o ritmo de mudanças ambientais. Neste aspecto, um sistema mais fechado e rígido, do ponto de vista econômico-social-político, ensejaria mudanças mais abruptas, portanto revolucionárias, e ao nível de suas estruturas. Entretanto, a necessidade dessas mudanças s6 poderia ser percebida confrontando-se o estado do sistema com o estado do ambiente no qual se insere. Se há equilíbrio entre os dois: (necessidades do sistema e condições do super-sistema de satisfazer estas necessidades) não ocorrerão mudanças no status quo. Exemplos dessa situação são as sociedades indígenas, cujo equilíbrio com a natureza (seu meio relevante) estabilizou seu nível de desenvolvimento num estágio em que se encontram á milênios. Não há, portanto, sentido em qualificar a sociedade indígena como imatura ou não-desenvolvida. Somente a partir do momento em que o ambiente deixa de satisfazer as necessidades e expectativas do sistema, ocorrerão impulsos para sua mudança, visando conquistar o equilíbrio perdido. Um sistema mais dinâmico e aberto às demandas ambientais, caracterizar-se-á como intrinsecamente guiado por forças internas desenvolvimentistas ou, em outras palavras, pelo exercício de sua função adaptativa. Ao nosso ver, está muito clara a importância do fator índice de desenvolvimento como elemento a ser considerado na análise e condução de mudanças em sistemas sócio-político-econômicos. Deixar de considerá-lo poderá resultar na própria ineficácia do processo de mudança. 4. RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS NAS ORGANIZAÇÕES 4.1. O Fenômeno da Resistência às Mudanças É patente o reconhecimento do fenômeno da resistência às mudanças, como a expressão de defesa que o ser humano emite quando diante da iminência de alterações de sua situação presente, especialmente quando não possui informações seguras e confiáveis sobre a futura condição e mais ainda, quando não participou na concepção da mudança pretendida ou nem ao menos foi consultado a respeito. A lei da Física, segundo a qual, à toda ação iniciada há uma correspondente reação em sentido contrário e de intensidade equivalente, aplica-se muito bem nos sistemas sociais e políticos. E, na verdade pode ser até mesmo exacerbada, vez que as reações às mudanças podem ser mais intensas do que as ações iniciais, dependendo da repercussão política e social que elas ensejem. Diz-se, comumente, que a resistência às mudanças decorre da própria insegurança do indivíduo ou grupo, quando diante de situações ambíguas, incertas e potencialmente ameaçadoras à sua integridade ou tranqüilidade. Para outros, trata-se de um sintoma da incompetência do homem para administrar, com desenvoltura, o seu futuro. Outros dizem que representa o comportamento típico de personalidades imaturas ou rígidas, incapazes de tratar racionalmente questões que envolvam interesses e necessidades pessoais. E mais ainda, há quem conceba a resistência às mudanças como fenômeno natural, um mecanismo de adaptação, que se expressa através da lei da inércia. Independente da explicação que se dê, a resistência às mudanças constitui um fenômeno no mínimo curioso, por manifestar-se de forma bifacial: para a fonte emanadora da intenção de mudança (A), a resistência à mudança representa um empecilho incompreensível, um obstáculo a ser destruído ou contornado a qualquer custo; para o receptor da mudança (B), a resistência à mudança constitui um escudo sagrado de defesa contra as ameaças ao seu bem-estar. Instala-se, assim, um conflito de objetivos cuja resolução poderá seguir um dos seguintes cursos: a) desistência de A em suas intenções de efetuar mudanças em B. (A reação de B foi seguramente um fator convincente da impropriedade da mudança, demonstrando, desse modo, maior poder do que A); b) desistência de B de reagir às mudanças pretendidas ou iniciadas por A. Nesse caso, B foi convencido de que os benefícios advindos da mudança são maiores do que os decorrentes da permanência ou, por outro lado, sucumbiu às pressões do poder de A em decorrência da ausência de alternativas de fuga da situação de dependência; c) confrontação de forças entre A e B resultando em possíveis desgastes para um dos contendores e para a Organização. Vencerá aquele que contar com maior poder no sistema, combinado com a habilidade de usá-lo em benefício de sua posição; d) negociação entre A e B, de modo a obterem, ambos, a satisfação parcial de seus objetivos. O reconhecimento da característica bi-facial da resistência à mudança é muito importante; seu desconhecimento é responsável por muitos fracassos de comandantes e de comandados. A dificuldade de transcender o próprio ponto de vista, trazendo à luz a posição antagônica, constitui fato amplamente reconhecido. Podemos dizer que reside nessa incompetência a origem de parte dos problemas humanos. E quanto menos habilidade para a empatia, mais frequente torna-se o bloqueio do fluxo de comunicação, e em decorrência, maior fechamento do sistema; com isso mais autoritarismo se insere na relação entre A e B. O inverso também é verdadeiro, ou seja, quanto mais empatia houver, mais haverá abertura, mais comunicação, portanto mais democracia. É importante realçar a interpenetração dos conceitos de comunicação, inovação e participação (democracia). Um sistema "fechado" tende a ser mais tradicionalista, aristocrático, voltado para o passado e pouco inovador. Isto deve-se em parte, ao fato da comunicação ser, caracteristicamente, descendente e de "mão-única", impossibilitando a circulação, ao longo do sistema, da critica e das idéias novas, verdadeiras revitalizadoras do sistema social, à semelhança do oxigênio para o organismo vivo. Por outro lado, em um sistema democrático, os fluxos de comunicação são construídos em todos os sentidos e direções, satisfazendo cada parte do ''corpo social'' em suas necessidades de participar e pertencer. O resultado dessa rede complexa de interação é a efervescência das idéias novas, da criatividade e da inovação permanente. Sem dúvida, "a comunicação como sistema portador de informações tem um papel catalítico dentro do processo de transformação: altera a velocidade de transformação, podendo acelerála ou retardá-la."(23) A questão, portanto, não é a de como eliminar a resistência às mudanças, mas reconhecê-la como membro complementar da intenção de mudança. Assim, enquanto as forças pró-mudança indicam uma direção, as forças antimudança indicam outra, num embate permanente entre mudança e permanência. Na medida em que os sistemas sociais se desenvolvem e adquirem maior flexibilidade, aumenta a aceitação do dissenso, como uma das forças inerentes ao processo de desenvolvimento, ao lado do consenso. Tanto o medo do conflito como elemento desagregador, quanto a repugnância pelo consenso como fator de acomodação, cedem lugar à aceitação e administração dessas duas maneiras de trabalhar, de resolver problemas e de viver em comunidade. 4.2. Fatores Dificultadores do Desenvolvimento das Organizações Públicas Brasileiras. 4.2.1. Um Pouco de História Por que é tão complicado desburocratizar uma organização pública? Por que é tão difícil despertá-la da sonolência em que se encontra? Por que é julgado impossível acabar com a proverbial indolência e má vontade que caracterizam grande parte dos funcionários? São questões muito difíceis de serem respondidas, e muito já se tem feito nesse sentido. Porém, "no Brasil, os esforços de modernização e de adaptação do Governo em relação às demandas ambientais se caracterizam, até bem pouco, por sua inoperância."(24) Podemos adotar como marco da história da modernização administrativa a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP, em 1938, ''como órgão de assessoramento, execução e controle da racionalização administrativa da nova realidade política, institucional e organizacional lançada pelo Estado Novo, implantada com a revolução de novembro de 1930."(25) A segunda tentativa (frustrada) de mudança da administração pública deu-se em 1953, através de projeto do Executivo apresentado ao Congresso, cuja essência era a proposta de institucionalização do planejamento e coordenação e o estabelecimento de processos funcionais mais racionais."(26) Em 1956, o presidente Kubitscheck criou a Comissão de Estudos e Projetos Administrativos - CEPA, cuja finalidade era atuar a nível macroorganizacional, propondo mudanças de estruturas (criação, fusão e extinção de órgãos) e de funções gerais (planejamento, orçamento). Paralela à CEPA, Kubitscheck ''criou, junto ao DASP, a Comissão de Simplificação Burocrática-COSB, que deveria atuar a nível mais microorganizacional, efetuando estudos sobre rotinas nos ministérios (...) O seu sucesso aparentemente foi pouco expressivo."(27) A quinta iniciativa de modernização da administração pública ocorreu no Governo Goulart, com a criação do cargo de Ministro Extraordinário para a Reforma Administrativa, dando origem à Comissão Amaral Peixoto, em 1963. Os estudos dessa Comissão trouxeram contribuições relevantes, como a introdução do conceito de sistemas e sua orientação teleológica. Seus resultados, entretanto, foram inexpressivos, vez que os quatro projetos produzidos não foram transformados em leis (anteprojeto de Lei Orgânica do Sistema Administrativo Federal, projeto de Pessoal, projeto de Material e projeto de Organização do Distrito Federal). Em 1964, tivemos um novo marco da modernização administrativa, com a gestão do Ministro do Planejamento, Helio Beltrão. Ele veio mudar a orientação até então seguida pelos reformuladores que se caracterizava pelo cunho legalista, processualista e instrumental, sem penetrar a fundo na questão da mudança administrativa. ''Em novembro de 1964 foi instalada a Comissão Especial de Estudos da Reforma Administrativa - Comestra, que se encarregaria de por em prática os princípios que culminariam com a expedição do Decreto-lei número 20/67."(28) Os estudos da Comestra revitalizaram princípios da Comissão Amaral Peixoto, consolidando-os em cinco: Planejamento, Descentralização, Coordenação, Controle e Simplificação. Apesar de brilhante, o Decreto-Lei número 200 continua até certo ponto como intenção ou esperança. O princípio da descentralização tem sido aplicado apenas para a fase de execução, quando muito, deixando ainda nas mãos do Governo Federal as decisões que, política, social e economicamente, deveriam estar sendo tomadas em nível estadual e municipal. Mas, vale realçar que os Ministérios da Educação e da Saúde, vêm inaugurando, desde 1998, uma nova fase de real descentralização da gestão dos recursos, que agora são gerenciados pelos Municípios. Infelizmente a aplicação do princípio da simplificação dos procedimentos administrativos tem deixado muito a desejar até hoje. Em 1981 e 1982, foi retomada a questão da modernização, ensaiando uma nova fase. A abordagem técnico-legalista foi complementada com o enfoque político do tema. Desse modo, a criação do cargo de Ministro Extraordinário para a Desburocratização, assumiu um sentido de implementação da intenção de redemocratização das relações entre o Estado e a Sociedade em nível administrativo. Seu instrumento, entretanto, continuou sendo o decreto, numa demonstração patente do vício histórico da modernização pela lei e pelo centro. A periferia (comunidade, estados e municípios) assume ainda um papel passivo, complementando o paternalismo do Poder Executivo Federal. O discurso democrático não combina com a prática. Mas, pelo menos, essa dissonância já é sintoma de uma nova ordem de coisas. A criação no Governo Sarney, da Comissão lnterministerial, incumbida de efetuar estudos e apresentar propostas de reforma do Sistema Tributário Nacional, representou iniciativa concreta de operacionalização do princípio da descentralização. Não se pode fazer descentralização política e administrativa sem o suporte da descentralização econômica. O tabu da redistribuição da receita começou a ser quebrado. Mas, até o ano 2000, continuamos aguardando a tão esperada reforma tributária e fiscal, tão importantes para o desenvolvimento do nosso país. A variável política, tanto em seu nível partidário como ideológico, ensaia seu papel nas discussões e nas decisões de modernização. Entretanto, há ainda muito terreno a percorrer nesse esforço de desenvolvimento das organizações publicas e, nesse itinerário, enfrentaremos inúmeros obstáculos. Contudo, antes de mais nada, ''vale dizer que não há nada mais difícil de executar e perigoso de manejar (e de êxito mais duvidoso) do que a instituição de uma nova ordem de coisas. Quem toma tal iniciativa adquire a inimizade de todos os que são beneficiados pela ordem antiga, e é defendido sem muito calor por todos os que seriam beneficiados pela nova ordem - falta de calor que se explica em parte pelo medo dos adversários, que têm as leis do seu lado, e em parte pela incredulidade dos homens."(29) A percepção dessa verdade que Maquiavel genialmente intuiu, talvez seja a responsável pela escassez de inovadores na administração pública. Ora, os riscos são tantos e os benefícios imediatos tão poucos que ''é mais prudente deixar as coisas como estão e ver no que vai dar'', ou ''dar tempo ao tempo'' - justificativas muito ouvidas nos corredores das organizações públicas. Outrossim, a efetivação de mudanças na administração pública implica a ruptura de um equilíbrio de forças, mantido historicamente pela sociedade brasileira. Fatores culturais, econômicos, políticos e ideológicos restringem a liberdade de ação do dirigente, limitando a possibilidade de conquista de maior êxito pelas organizações públicas. O dirigente se encontra preso a compromissos que provavelmente não assumiu e nem rejeitou explicitamente, dos quais não consegue abstrair-se. Assim, ''na medida em que se desenvolvem estes compromissos, a organização perde sua pureza como entidade, considerada de modo abstrato ou ideal; assume um papel definitivo em uma comunidade vivente; institucionaliza-se."(30) O receio da perda de base de sustentação e da própria identidade fazem com que o dirigente conforme-se às regras do jogo, do contrário terá que enfrentar os ônus de sua indisciplina ao pacto-tabu. 4.2.2. Análise de Fatores Dificultadores da Mudança nas Organizações Públicas. Passemos agora a analisar os fatores dificultadores do esforço de desenvolvimento das organizações. Realçamos, neste sentido, onze fatores: 1. Falta de base social definida 2. Falta de comprometimento para com a missão organizacional 3. Centralização e concentração do poder 4. Descontinuidade administrativa 5. Busca da eficiência ao invés da eficácia 6. Conformismo 7. Pressões de grupos de interesse 8. Estratificação organizacional 9. Falta de auto-crítica 10. Insatisfação básica dos funcionários 11. Despreparo gerencial 1. Falta de base social definida Um dos fatores mais relevantes, a nosso ver, é a falta do que Selznick chama de base social definida. Muitas organizações públicas não têm claramente definida a extensão e a natureza de sua clientela, e com isso improvisam programas de ação com base no conhecido ''achismo''; ''Eu acho que neste ano devemos nos dedicar a isso'', ''enfatizar aquilo'', ''suspender aquilo outro''. Nesse jogo de ''boas intenções", esvai-se o dinheiro público através de projetos gerados em gabinetes. Com o desconhecimento das necessidades reais do cliente, o que resulta é a flutuação da organização nas águas da improvisação e do casuísmo. Falta-lhe base de sustenção na realidade, responsável pela consistência do desempenho respaldado em objetivos gerados pela clientela. 2. Falta de comprometimento para com a missão organizacional Decorrente, em parte, do fator anterior, muitas organizações padecem da ausência de comprometimento de seus dirigentes e demais trabalhadores para com a missão organizacional e, por extensão, com seus objetivos e metas. O compromisso que se observa comumente é de promoção pessoal do dirigente. Ele faz de tudo para deixar sua própria marca na organização (às vezes a ferro e fogo). Outro tipo de compromisso é com grupos externos, econômicos ou políticos, perdendo-se com isso, a visão global da realidade brasileira e o senso de prioridade com as necessidades da comunidade. Desse fato decorre o favorecimento de certas regiões e grupos de interesse específicos, em detrimento do desenvolvimento integrado da Nação. Os desníveis econômicos e sociais entre as regiões brasileiras atestam este fato, desde os idos do Império até a época atual. Parece constituir um vício de nossa cultura, refletido pelos políticos por meio da administração pública. 3. Centralização e concentração de poder Um fator estrutural extremamente relevante, é a centralização das decisões e a concentração de poder e de recursos na área federal. Se, por um lado, pode ser pré-requisito para a melhor distribuição da riqueza e do progresso conforme as prioridades nacionais, por outro, constitui um obstáculo fundamental à concretização desse intento, vez que a centralização cria, artificialmente, um elevado poder discricionário no centro, esvaziando a voz da periferia e, portanto, a expressão de sua realidade. Mudar as condições de um sistema de poder altamente concentrado é tarefa titânica. Nesse sentido deve-se realçar o esforço do governo em 1985, ao criar o Ministério da Desburocratização, a Comissão de alto nível para estudos sobre a reforma tributária e, principalmente, ao garantir a eleição direta para governadores, recuperando, estes, democraticamente, o poder de negociação perdido pelos governadores-delegados. 4. Descontinuidade Administrativa A célebre descontinuidade administrativa de que padece a administração pública brasileira, constitui outro fator anti-desenvolvimento muito relevante. Alguns de seus efeitos mais conhecidos: o proverbial repertório de obras inacabadas, a síndrome de demolição de obras de governos passados, a pressa combinada com a superficialidade e a imperfeição dos programas obras públicas. Em Brasília há anedotas muito conhecidas sobre a descontinuidade administrativa: ''No último ano de um governo, ninguém trabalha'', a metade dos funcionários investe suas energias na conquista de padrinhos que os mantenham ou melhorem sua situação no próximo governo; a outra metade cruza os braços, fala da vida alheia, transforma-se em técnico de futebol (os homens) ou passam o dia fazendo crochê (as mulheres)''. A sabedoria popular também descobriu que o primeiro ano do novo governo é dedicado a formar sua equipe, o segundo ano para conhecer "a máquina", o terceiro para planejar o que será feito no quarto e o quinto para avaliar por que motivo os projetos não foram implementados. O último será dedicado a descobrir ''para onde vamos na próxima rodada''. Em decorrência da descontinuidade, a administração padece a falta de um corpo de servidores integrados entre si, conhecedores da realidade e comprometidos com os resultados das organizações públicas. Falta ao Brasil, o que a França, a Inglaterra e a Alemanha já alcançaram, que é a efetiva profissionalização do servidor público. O sistema gerencial das organizações públicas está pouco comprometido com o processo de modernização institucional, que em última instância significa aumentar sua produtividade e melhorar a qualidade do atendimento ao cidadão, usuário dos serviços públicos. Na administração indireta a preocupação é ''tocar o barco'' sem perda de tempo, trabalhar a todo vapor (mesmo que a custos econômicos e sociais muito elevados e com riscos de ''fundir'' a mal lubrificada máquina organizacional). Na administração direta o negócio é ''não levantar a poeira'', pois ''pode ficar pior do que está e não vai dar tempo para consertar''. 5. A busca da eficiência ao invés da eficácia As organizações públicas orientam seu desempenho essencialmente pelo principio da eficiência, preocupando-se com a observância das normas de redução de despesas e contenção de investimentos, em vez de pautar-se pela eficácia, com vistas na obtenção dos resultados almejados, e menos ainda pela efetividade, que se manifestaria pela preocupação com a satisfação das expectativas e necessidades da clientela dos serviços. A ênfase na eficiência tem sido um dos fatores limitadores das organizações públicas, desviando seus esforços para dentro de si mesmas, numa virtual orientação de autoreferência, perdendo, com isso, o senso de realidade. Psicologizando a questão, poderíamos pensar num processo de autismo organizacional em curso. Aliás, o fenômeno da papelocracia representa claramente um dos sintomas dessa patologia. Outro sintoma da ênfase na eficiência em detrimento da eficácia é a exagerada manualização de procedimentos. Para isso, muito concorreram e concorrem os trabalhos de modernização administrativa, quando limita-se à Organização e Métodos (O&M) cuja finalidade é deixar as coisas organizadas e claras. Para um ''agente de modernização'' não constitui questão de relevo indagar se é disso que a organização precisa e se é realmente necessária a racionalidade dos procedimentos, layout e a redenominação de funções, (quando o necessário poderia ser extinguir a seção ou divisão, já desprovida de objetivos). O desempenho desse ''especialista'' em O&M está programado para mudar sem mudar, ou seja, apenas alterar a ordem das coisas, redistribui-las, rotulá-las, porém nunca questionar sua essência. Seu trabalho limita-se às fronteiras da organização, quando muito, pois geralmente fica restrito às seções, divisões e departamentos, tomados como partes isoladas do todo. Nessa direção, as organizações públicas tendem a ficar mais ''autistas'', mais ''esquizofrênicas'', passando a constituir sujeito e objeto de si mesmas. É o modo de transformar os meios em fins. Outra tecnologia que vem sendo usada de modo inadequado nas organizações, advém da psicologia. Numa falta de percepção da realidade organizacional, muitos psicólogos têm orientado suas técnicas para a análise de personalidade e a melhoria das relações inter-pessoais como fins em si mesmas. Subjaz a esta prática a intenção ou esperança de fazer surgir no horizonte um ambiente de paz a harmonia, baseado no estabelecimento de relações pessoais íntimas e sinceras - a meta é a "amorização" organizacional. Nessa linha de procedimentos, busca-se a eficiência através da dimensão psicossocial do trabalho de modo inadequado, por ignorar as demais dimensões organizacionais. Tanto a orientação ''modernizadora'' de O&M, voltada tão somente para a racionalidade da tarefa, como a abordagem psicologizante, enfatizando o relacionamento interpessoal como fim em si mesmo, encontram-se hipnotizadas pela magia da busca da eficiência, e constituem, ambas, meios de alienar os participantes da organização das questões mais relevantes, situadas além dos limites organizacionais. Há ainda outro agente da eficiência: trata-se do treinamento, do modo como vem sendo realizado: - treina-se por treinar, como justificativa de aplicação de verbas do magro orçamento de treinamento; do contrário, no próximo ano, ele virá mais escasso ainda; - treina-se para cumprir Instruções Normativas com vistas na ascensão funcional, mesmo que contrarie as reais necessidades de treinamento nesse sentido; - treina-se para transmitir conhecimentos que nunca serão aplicados, por falta de respaldo institucional; - treina-se, fora do expediente, para punir alguém. Em suma, o treinamento tem constituído mais uma tecnologia a serviço da eficiência, perdendo com isso o potencial de que dispõe para contribuir no desenvolvimento do fator humano e da própria organização. Seus programas têm refletido de modo míope a realidade e as necessidade das organizações. 6. Conformismo Outra peculiaridade das organizações públicas é o conformismo exacerbado de seus funcionários para com as determinações formais, escritas ou não. A disciplina constitui um valor inquestionável, chegando-se ao absurdo de declarações do tipo: ''manter a disciplina, a ordem, é mais importante do que alcançar resultados'', ''tenho que cumprir o que determina a lei (decreto, portaria, ordem de serviço, instrução normativa etc), pois se está errado não é problema meu'', ''tenho que registrar, se não for útil depois, não me diz respeito''; ''já fechamos, não há ninguém mais aqui''. Ocorre-me, a respeito desse fenômeno do conformismo burocrático, uma hipótese, no mínimo, curiosa: partindo da premissa de que a disciplina exacerbada fere a própria racionalidade humana, insistir nela só pode ser resultado de algum motivo muito sério, como: a) o funcionário deixou de pensar, transformando-se numa espécie de zumbi organizacional. Perdeu seu amor-próprio durante o horário de expediente. Ele fica como que em vida suspensa para suportar as tarefas ou as condições de trabalho oligofrenizantes que precisa enfrentar todos os dias para conseguir seu sustento; b) o funcionário entra em ''greve psicológica'' consciente ou inconscientemente, através do mecanismo de superadaptação às normas. Lembram-se da operação-padrão dos aviadores comerciais grevistas? Seria algo semelhante a isso. A propósito, esta reação de defesa (ou de ataque) foi muito utilizada pelos negros escravos, segundo Roderick Martin, como ''forma de fugir às restrições impostas pela dependência completa."(31) É ainda Martin quem cita Philips, segundo o qual ''os escravos tinham uma aceitação cortês da subordinação, uma necessidade de serem elogiados, uma facilidade de serem fiéis ao estilo feudal, e uma sábia repugnância humana ao excesso de trabalho."(32) Continuando, acrescenta Martin que este comportamento do escravo consistia "numa forma de resistência passiva, de infantilismo, redução da responsabilidade e estupidez legitimada e freqüentemente destrutiva."(33) Nas organizações, o poder coercitivo do regime escravocrata foi substituído pelo poder baseado na autoridade racional-legal, e a relação de posse o foi pela relação empregatícia. Porém, o autoritarismo dos dirigentes, combinado com as restrições inerentes à burocracia, mantiveram a essência da relação assimétrica superior-subordinado. Adicione-se isto o fato de os funcionários públicos não possuírem o direito de greve (até 1989) e o quadro está formado. Nada mais compreensível do que o estado permanente de greve psicológica em que passaram a viver muitos funcionários públicos. 7. Pressões de grupos de interesses Outro fator de resistência às mudanças é a ocorrência de pressões oriundas de grupos internos, cujos interesses estão sendo contrariados pela mudança pretendida. Esses focos de resistência são responsáveis pela ''contaminação'' da cultura organizacional, instalando prevenções e temores generalizados através de boatos, fofocas e intrigas. É vital que se descubram os líderes desses grupos para a adequada administração dos prováveis conflitos que tenderão a exacerbar-se se deixados de lado ou se adotadas medidas de força. Os condutores da mudança precisam cooptar estas lideranças, geralmente informais, para participarem no esforço de mudança. Para tanto, será necessário utilizar o diálogo, a barganha ou a pressão, dependendo da natureza da resistência e de suas bases de poder. Não é incomum encontrarmos em organizações verdadeiros ''feudos'' e ''baronatos'' com suas regras de conduta, sinais de identificação, rituais de iniciação, sistemas de defesa, demarcações territoriais e outros mecanismos de autopreservação. Constituem miniorganizações dentro da organização, dando origem a controle paralelos e execução de programas redundantes. E comum que estes enclaves organizacionais passem a definir metas à revelia das diretrizes gerais. Se por um lado apresentam o aspecto positivo de constituírem uma base para a descentralização decisória e, conseqüentemente, agilidade e precisão administrativa, por outro, representam obstáculo à integração e sintonia das ações organizacionais frente às oportunidades e problemas ambientais, subtraindo, assim, parcelas da força do conjunto organizacional. A solução dessa situação não será a eliminação pura e simples dos feudos, através da dispersão de seu pessoal, ou mesmo da demissão de seus líderes. A questão é como utilizar-se do potencial de realização contido nesses grupos em favor da missão e diretrizes organizacionais, comprometendo-os com o todo, sem a perda de suas identidades. 8. Estratificação organizacional A estratificação organizacional constitui outro fator a ser considerado como restritivo às inovações nas organizações públicas. OS princípios da divisão de responsabilidades e da especialização funcional têm sido aplicados rigidamente, privilegiando-se o fator de diferenciação em detrimento do fator de integração. A divisão do trabalho por níveis de complexidade é claramente desvirtuada pela estratificação política, administrativa e social dos participantes organizacionais, criando-se, ao invés da necessária complementaridade, a desintegração entre ocupantes de níveis, classes e categorias funcionais distintas. É necessário que os dirigentes atentem para as implicações desse fator, não somente sobre o processo de mudanças, mas também no fluxo de comunicação administrativa e no andamento das decisões de um modo geral. Caso contrário, sua administração poderá correr o risco de ser feita sem o necessário apoio de um número relevante de funcionários e, conseqüentemente, ver-se isolada do contexto organizacional, enfrentando resistência incômodas aos seus objetivos. 9. Falta de Autocrítica A reduzida presença de atitudes ou mecanismos institucionais de autocrítica constitui fator extremamente restritivo ao desenvolvimento das organizações públicas. É característica a incredulidade dos funcionários públicos sobre a possibilidade de que venham a ocorrer mudanças reais nas condições atuais, por isso, ''para que preocupar-se em saber como estão as coisas ?''A critica da situação resume-se usualmente em duas questões: para a grande maioria dos funcionários, o problema é o baixo nível salarial, enquanto que para a maioria dos chefes a culpa da ineficiência é a carência crônica de pessoal - para eles há sempre muito a fazer e poucos funcionários. Estas duas posições criam bodes-expiatórios suficientes para qualquer diagnóstico que venha a ser feito, tornando irrelevantes as tentativas de uma análise mais acurada da situação e deixando impermeáveis à critica, funcionários e chefes - ''afinal, o que se pode esperar de alguém que trabalha tanto e ganha tão pouco, ou de alguém com tamanha responsabilidade de chefiar um setor da administração sem o pessoal necessário?'' (é o que dizem comumente). Além disso, há o desvirtuamento do sentido e significado da critica, como meio de correção de rumos e de desenvolvimento. Muitos a têm interpretado como sinônimo de calúnia, fofoca, "deduragem", e, nesse contexto, negam-se a participar ou, quando questionados, declaram que "está tudo bem, não há o que corrigir." Faz parte de nossa cultura a repugnância pelo alcaguete ou ''dedo duro'', valor muito respeitado e defendido. Portanto, ao instalar-se a confusão entre análise crítica da realidade e "deduragem", cria-se um problema de complexa solução. É difícil obter-se objetividade e abertura por parte de alguém que, por princípio, encontra-se prevenido, além de receoso de possíveis repercussões de declarações suas e, mais ainda, descrente de que esse gesto irá valer a pena realmente. Há, com isso, um patente não comprometimento de grande parte dos funcionários para com a melhoria de sua organização. A ausência de auto-crítica institucional faz com que as atividades sejam realizadas ritualisticamente, pautadas, tão-somente, pela letra da lei e pelos limites da disciplina, O legalismo, associado ao autoritarismo, resulta numa combinação castradora da reflexão, da crítica e da criatividade, tornando impossível a análise objetiva da situação por seus participantes diante da inércia burocrática. Desenvolve-se neles um sentimento de impotência e menos-valia, manifestado por reações de passividade ou por agressão à organização. Dificultar, sabotar ou impedir que ocorram mudanças substantivas no status quo organizacional, constituem reações muito comuns e até mesmo compreensíveis dentro do contexto em que se inserem. Cabe aos administradores atentar para a gravidade desse fato, dando-lhe a importância que merece no conjunto de suas responsabilidades como dirigentes públicos. É um truísmo declarar que, afinal, os mais prejudicados serão os clientes do serviço público. 10. Insatisfação básica dos funcionários É notório o fato de que grande percentagem dos funcionários públicos sente-se insatisfeita em suas necessidades básicas, decorrente, por um lado, do baixo nível de remuneração e, por outro, da ausência de políticas de benefícios. Esta situação é específica da administração pública direta, vez que inúmeras autarquias e praticamente todas as fundações e empresas públicas já corrigiram essa falha administrativa. Diversas pesquisas sobre a motivação humana no trabalho têm demonstrado que o indivíduo insatisfeito em suas necessidades básicas tende a concentrar sua atenção na busca de condições que solucionem seu estado de carência. Suas energias, ações e pensamentos são desviados das metas organizacionais para as metas pessoais. Falar em mudanças que precisam ser feitas na organização não tem significado, a não ser que venham melhorar sua situação pessoal. Sua análise restringe-se, desse modo, a questões de natureza muito concreta e de curto prazo, perdendo de vista a noção de missão, metas, políticas, clientela e responsabilidade social. Para eles, estes conceitos representam, no máximo, invenções de dirigentes que não têm nada a perder, e de teóricos que não têm o que fazer. A ausência de uma política de recursos humanos que satisfaça às necessidades básicas dos funcionários públicos produz dois efeitos altamente negativos: (a) atrofia o indivíduo em suas possibilidades de crescer como pessoa, e (b) sub-utiliza o potencial humanos que a organização dispõe, desviando suas energias para metas conflitantes com as necessidades do trabalho. Estes dois efeitos da miopia administrativa, resultam em prejuízo para a nação, um de natureza social, outro de ordem econômica. Um quadro de pessoal insatisfeito em seus direitos mais básicos constitui, sem dúvida, forte muralha contra tentativas de modernização organizacional. 11. Despreparo Gerencial O despreparo de dirigentes para o exercício de funções gerenciais constitui, evidentemente, um fator altamente restritivo a qualquer organização. Na administração pública é notória a ausência de programas especificamente formulados para o preparo de gestores. As premissas de que qualquer um sabe chefiar, e de que dirigir é uma arte que se aprende com prática e malícia, encontram-se embutidas no esquema de valores e concepções do administrador público. É comum ouvirem-se declarações de funcionários de que os ocupantes de funções de DAS (Direção e Assessoramento Superior) não entram em sala de aula, e que participar de treinamento significa, para eles, um desprestígio funcional. Criou-se uma espécie de aura em torno do DAS, como se ao ocupar este nível ele alcançasse um patamar que o tornasse onisciente e onipotente. Esta falta de eventos educacionais sistemáticos, voltados para a análise crítica da realidade ambiental, organizacional e funcional contribui para o reduzido emprego da reflexão e da auto-crítica em torno das práticas gerenciais. O trabalho transforma-se, desse modo, numa rotina alienante, desprovida de mecanismos de correção de rumo e de desenvolvimento de seu ocupante. Quando falamos em despreparo dos dirigentes, estamos nos referindo a quatro dimensões do desempenho gerencial: técnica, administrativa, psicossocial e política. A dimensão técnica compreende o conhecimento das tecnologias empregadas na organização durante o desenvolvimento de suas atividades. A dimensão administrativa refere-se ao desempenho das conhecidas funções gerências, tais como direção, coordenação, planejamento, organização e controle. Constitui o conjunto de procedimentos que diferencia a função gerencial de funções eminentemente técnicas. A dimensão psicossocial constitui um dos suportes mais importantes do desempenho gerencial, vez que a gerência não existe de per si, como atributo individual, mas enquanto relação entre pessoas e grupos no exercício de papéis organizacionais específicos. Finalmente, a dimensão política representa outro aspecto fundamental da prática gerencial, já que o sistema de relações estabelecido entre gestores e subordinados, funcionários e comunidade-cliente, concorrentes e autoridades externas, encontra-se estruturado sobre relações de poder. Podemos encontrar um dirigente extremamente competente do ponto de vista técnico e administrativo e incompetente nas demais dimensões. Ele possui o conhecimento de causa e a metodologia necessária para planejar e coordenar programas de grande envergadura, elaborando-os com o requinte de um verdadeiro conhecedor das atividades-fim da organização. Porém, encontra dificuldades para implementar esses planos devido à falta de habilidades de administrar as interferências de ordem interpessoal em sua relação com superiores e/ou com subordinados. Devido a esta incompetência, suas decisões são tomadas com elevado custo psicológico e social para si e para a organização, com frequentes reclamações ou atitudes de descaso e passividade dos insatisfeitos. O andamento de seus programas pode também sofrer sérios reveses de ordem política, em decorrência de má administração das relações de poder intra e interorganizacional. Sua reduzida sensibilidade para as necessidades, exigências e variações de humor dos grupos de pressão externos e internos à organização, pode inclusive inviabilizar programas irrepreensíveis do ponto de vista técnico. A nosso ver, a relevância da dimensão política não vem sendo percebida pela maioria dos teóricos e tecnólogos que se dedicam ao estudo das organizações. Eles têm privilegiado, de um lado, os aspectos comportamentais e, de outro, os aspectos técnicos e estrutural, deixando de fora a análise do poder organizacional. Cada vez mais deparamo-nos com a estreita relação (talvez até correlação) entre mudança e poder. Em outras palavras, só ocorrem mudanças, quando impulsionadas ou respaldadas por alguma fonte de poder interna ou externa à organização. Há dirigentes que, por experiência própria e/ou tendências inatas, possuem elevada competência política. É pena que, muitas vezes, não a possua associada à competência técnica, administrativa e psicossocial. Sua saída, a curto prazo, será assessorar-se de especialistas nas áreas técnica e administrativa e desenvolver-se na dimensão psicossocial através de programas do treinamento ou mesmo psicoterapia. Existem também aqueles dirigentes muito hábeis nas relações interpessoais, cujo contato humano possui certa magia e encanto. Porém, não dispõem em seu repertório, de conhecimentos e habilidades nas demais dimensões. Sua fragilidade como gerentes torna-se clara quando enfrentam a necessidade de tomar decisões rápidas e seguras, ou, por outro lado, quando precisam negociar perdas e ganhos com grupos de interesses conflitantes. Esta rápida e superficial sucessão de exemplos pretende tão-somente deixar clara a necessidade de programas de treinamento que respondam adequadamente à complexidade da função gerencial. A falta ou reduzida competência gerencial em qualquer das quatro dimensões (técnica, administrativa, psicossocial e política) irá fatalmente comprometer a eficácia das ações levadas a efeito no sentido do desenvolvimento das organizações. É do conhecimento geral o nível de improvisação de nossos dirigentes públicos, numa flagrante falta de profissionalismo requerido ao desempenho de funções de tamanha relevância sócio-econômico-política. Exceção honrosa deverá ser feita às organizações militares e ao Itamaraty, cujos quadros gerenciais são formados e continuamente qualificados através de cursos de formação, especialização, estágios, entre outros eventos. O despreparo gerencial a que nos referimos, de início, constitui fonte de resistência às mudanças e à inovação, que o dirigente manifesta, através da insegurança diante da sentida "ameaça" de ampliação dos limites de competência e do nível de responsabilidades, aos quais já se habituou. Desenvolver implica inovar, que pressupõe correr riscos, que significa possuir flexibilidade para adaptar-se às novas situações. E, para adaptar-se, necessitasse de competência para gerenciar a situação presente e preparar as condições futuras. As oportunidades e possibilidades de mudanças substantivas nas organizações públicas, no sentido de seu contínuo desenvolvimento, dependerá em grande parte, da correta administração, pelo menos, desses 11 fatores dificultadores aqui apresentados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) Moore Jr. Barrington. Poder político e teoria social. Editora Cultrix, São Paulo, 1972, pg. 164-5 (2) Machiavelli, Nicolo, O Príncipe. Brasilia, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979, Pág. 55 (3) Moore Jr., Barrington. In op. cit p. 40 (4) Wiener, Norbert, Cibernética e Sociedade - O uso humano dos seres humanos. Editora Cultrix, São Paulo, 1978, pág. 46 (5) Moore Jr., Barrington. In op. cit p. 166 (6) Clastres, Pierre - A Sociedade Contra o Estado - Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 3a edição - 1986 - p. 22 (7) Clastres, Pierre - In op.cit. p. 23 (8) Morente, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia - Editora Mestre Jou, São Paulo, 1964, p. 69 (9) Morente, Manuel Garcia - In op. cit. p. 76-7 (10) Ploger, Ingo - Mudança Política. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1980, p. 18 (11) Ploger, Ingo - In op. cit p. 18 (12) Martins Dias, Gentil - Mudança Social. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1980, p. 25 (13) Martins Dias, Gentil - In op. cit. p. 27 (14) Selznick, Philip - A Liderança na Administração. Editora da FGV, Rio de Janeiro, 1972, p. 101 (15) Ploger, lngo - In op. cit p. 19 (16) Ploger, Ingo - In op. cit p. 20 (17) Selznick, Philip - In op. cit p. 87 (18) Selznick, Philip - In op. cit. p. 88 (19) Adizes, Ichak - Passagens Organizacionais - Editora Incisa, Rio de Janeiro, 1980 p. l 0 (20) Martins Dias, Gentil - In op. cit. p. 40 (21) Martins Dias, Gentil - In op. cit. p. 40 (22) Martins Dias, Gentil - In op. cit. p. 401 (23) Ploger, Ingo - In op. cit. p. 10 (24) Aragon Fernandes, Aguinaldo - Modernização Administrativa. Ed. lPEA-SEMOR, Brasília, 1978 p.60 (25) Santos Pequeno, Iglê - Modernização Administrativa. Ed. IPEASEMOR, Brasília, 1978, p. 210 (26) Santos Pequeno, Iglê - In op. cit. p. 212 (27) Santos Pequeno, Iglê - In op. cit. p. 213 (28) Aragon Femandes, Aguinaldo - In op. cit p. 61 (29) Machiavelli, Nicolo - In op. cit. 55 (30) Selznick,Philip - In op. cit. p. 89 (31) Martins, Roderick - Sociologia do Poder, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1978, P. 96 (32) Martins, Roderick - In op cit., p. 97 (33) Martins, Roderick - In op cit., p. 97