Revista da ISSN 0102-1788 VOL 25 n. 52 Jan/Jun 2011 NESTA CASA ESTUDA-SE O DESTINO DO BRASIL REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA VOL 25 1º Semestre 2011 Rio de Janeiro 2011 Revista da Escola Superior de Guerra. — v.. 25, n. 52 (jan./jun.) 2011 – Rio de Janeiro : ESG, 2011. Semestral ISSN 0102-1788 1. Ciência Militar - Periódicos. 2. Política - Periódicos. I. Escola Superior de Guerra (Brasil). II. Título. CDD 320.981 Revista da Escola Superior de Guerra A Revista é uma publicação semestral da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, do Rio de Janeiro. Com tiragem de 1.000 exemplares, circula em âmbito nacional e internacional. Comandante e Diretor de Estudos General de Exército Túlio Cherem Subcomandante e Subdiretor de Estudos Vice-Almirante Nelson Garrone Palma Velloso Diretor do Centro de Estudos Estratégicos General de Brigada R/1 João Cesar Zambão da Silva Conselho Editorial General de Brigada R/1 João Cesar Zambão da Silva Professor Doutor Jorge Calvario dos Santos Professor Doutor José Amaral Argolo Capitão-de-Mar-e-Guerra (CA-RM1) Caetano Tepedino Martins Capitão-de-Mar-e-Guerra (FN-RM1) José Cimar Rodrigues Pinto Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva Professor Doutor Fernando da Silva Rodrigues Editor Responsável José Cimar Rodrigues Pinto Capitão-de-Mar-e-Guerra (FN-RM1) Revisão Editorial Jornalista Maria da Glória Chaves de Melo Funcionária Civil Ioná José dos Santos Diagramação e Arte Final Anério Ferreira Matos Projeto, Produção Gráfica e Impressão Gráfica da Escola Superior de Guerra SUMÁRIO Editorial 5 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Waldimir Pirró e Longo Considerações Propedêuticas sobre Unidade e Identidade Nacional Jorge Calvario dos Santos 7 38 Metodologia da Geopolítica: O Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem George Friedman Imprensa e Terrorismo Político José Amaral Argolo 57 72 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes depois da Guerra Fria José Carlos de Assis 107 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar Antonio Celente Videira 134 A Assistência Judiciária - Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais Norma Maria dos Santos Borges 150 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares dos EUA e da URSS / Rússia Diego Santos Vieira de Jesus 163 Revista da Escola Superior de Guerra Rio de Janeiro V. 25 n. 52 p. 1-188 jan./jun. 2011 Editorial: oito desafios para reflexão A Revista da Escola Superior de Guerra (ESG), nesta edição de número 52, apresenta oito artigos elaborados por professores civis e militares com reconhecida e indiscutível experiência nos seus respectivos campos de atuação. Não sem efeito, o primeiro deles, intitulado Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia, foi produzido pelo Professor Waldimir Pirró e Longo, recentemente e muito justamente honrado com a Emerência outorgada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). O Professor Pirró e Longo, autor de renomados trabalhos científicos, ocupou durante meses o cargo de coordenador do Projeto Pró-Defesa junto à ESG e às Escolas de Comando e Estado-Maior das Forças Armadas, no contexto de articulação do Professor Titular e Emérito da UFF Eurico de Lima Figueiredo que estabelece importante elo entre aquela instituição acadêmica e as Escolas de Altos Estudos Militares. Dois outros textos bastante atuais adensam esta edição, sob os títulos: Considerações Propedêuticas sobre Unidade e Identidade Nacional, de autoria do Professor e Coronel aviador Jorge Calvario dos Santos; e Imprensa e Terrorismo Político, do Professor José Amaral Argolo, ambos integrantes do Corpo Permanente da ESG e assessores do Centro de Estudos Estratégicos. Do Professor George Friedman, fundador e diretor do Stratfor Strategic Forecasting (STRATFOR), com tradução do Embaixador Christiano Whitaker, Assistente do Ministério das Relações Exteriores na ESG, publicamos Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem. Destacam-se, ainda, nesse conjunto de idéias, aqui não hierarquizadas, os artigos do Professor, Jornalista e Economista José Carlos de Assis sob o título Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria; e do Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Diego Santos: Além da Guerra Fria: a Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares dos Estados Unidos da América e da URSS/Rússia. Do Coronel da Força Aérea Brasileira Antonio Celente Videira, também membro do Corpo Permanente da ESG, publicamos Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar. E, finalmente, da Advogada e Defensora Pública do Estado do Pará, Norma Maria dos Santos Borges o artigo Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais. Temas que se associam no propósito de bem servir aos leitores com percepções interessantes e oportunas. Aproveitem a leitura, pois. General de Exército Túlio Cherem Comandante e Diretor de Estudos da Escola Superior de Guerra Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Waldimir Pirró e Longo1 Tenente- Coronel (QEM) Ref., Engenheiro Metalúrgico, Mestre, Doutor, Livre Docente, Professor Titular e Emérito e Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense Resumo Partindo-se da hipótese de que foi decidida a produção local de material bélico pela base industrial de defesa (BID), sob controle nacional, e que tal material será produzido com tecnologias desenvolvidas localmente ou obtidas de terceiros não nacionais, o presente texto esclarece quem deverá arcar com o custo e o risco (total ou parcial) da pesquisa, desenvolvimento experimental, engenharia (PD&E) e/ou absorção de tecnologias necessárias ao empreendimento. Feitas considerações e expostos conceitos básicos sobre PD&E e tecnologia, e sobre a importância desta última para a estratégia militar, são abordados, em seguida, diversos fatores que condicionam o sucesso tecnológico da indústria em questão, tais como o cerceamento ao acesso a tecnologias ditas sensíveis, os investimentos em PD&E e o desenvolvimento de um Sistema Setorial de Inovação Tecnológica em Defesa (SiSITD). Segue-se uma exposição de detalhes do financiamento de PD&E, em geral, no Brasil. Finalmente, apresenta-se a conclusão que cabe ao Governo Federal participar dos custos e riscos, totais ou parciais, das atividades de PD&E necessárias à BID. Adicionalmente, são feitas duas propostas referentes ao custeio específico da PD&E para a BID: a) criação, pelo Governo Federal, de um Fundo Setorial para a área da Defesa, a exemplo dos fundos já alocados ao FNDCT, e b) a disponibilidade de uma agência de fomento científico e tecnológico específica para a Defesa, e que administraria o Fundo proposto. Palavras Chave: Indústria. Defesa. Pesquisa. Desenvolvimento. Tecnologia. Engenharia. Abstract Assuming the hypothesis that was decided the local production of military equipment by a defense industrial base (DIB) under national control, and that such equipment will be produced using technologies locally developed or obtained from non-nationals third parties, this text clarifies who must bear the cost and risk (total 1 O autor agradece o apoio recebido da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por intermédio do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional (Pró-Defesa), particularmente do Pró-Defesa /2008, e ao Projeto Sistema Brasileiro de Defesa e Segurança (SISDEBRAS), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Escola Superior de Guerra (ESG). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 7 Waldimir Pirró e Longo or partial) of the research, experimental development, engineering (RD & E) and/ or technology absorption necessary to the enterprise. After some considerations about RD & E and technology, and the importance of the latter to military strategy, several factors that influence the technological success of the defense industry are addressed, such as the restriction to access to the so called sensitive technologies, RD&E investments and the development of a Sectorial Technological Innovation System in Defense (SiSITD).Then are exposed details of the RD & E financing in Brazil. Finally, it follows the conclusion that the federal government has to participate in the costs and risks, in whole or in part, of RD & E activities required by the DIB. In addition, it was made two proposals for funding RD & E required for the DIB: a) establishment by the federal government, a Sectoral Fund specific to the area of Defense, like the funds already allocated to FNDCT, b) to make available a CT&I financing agency specific to the Defense, which would manage the Sectoral Fund proposed. Keywords: Industry. Defense. Research. Development. Technology. Engineering. Introdução Um problema central a ser resolvido para o desenvolvimento de uma indústria nacional de defesa é a questão tecnológica. Para analisar essa relação, no caso brasileiro, partiu-se da hipótese de que foi decidido, no mais alto nível estratégico do País, que a produção local de material de emprego militar deverá ser feita com a Base Industrial de Defesa (BID) sob controle nacional, podendo as suas unidades de produção ser privadas, estatais ou mistas. Definidos quais são os equipamentos e serviços militares que se necessita, decidiu-se, também, que o ideal é que os mesmos sejam produzidos com tecnologias desenvolvidas localmente ou obtidas de terceiros não nacionais, por exemplo, por transferência via contrato formal, por cópia, engenharia reversa, importação de especialistas ou outro meio de acesso. Em qualquer caso, a pergunta que se formula é quem correrá com o risco e custo (total ou parcial) da pesquisa, desenvolvimento experimental e engenharia (PD&E) necessárias ao empreendimento e como fazê-lo? O objetivo do presente trabalho é contribuir para a compreensão da problemática envolvida nessa pergunta, assim como respondê-la. Para tanto, inicialmente, são feitas considerações e explicitados conceitos básicos sobre pesquisa, desenvolvimento experimental, engenharia e tecnologia, e a importância desta última para a estratégia militar e a operacionalidade das Forças Armadas (FA). Em seguida, são abordados fatores que condicionam o sucesso tecnológico da indústria em questão, tais como o cerceamento ao acesso às tecnologias consideradas sensíveis, os investimentos nacionais em PD&E e a existência e funcionamento, ou não, de um Sistema Setorial de Inovação Tecnológica em Defesa 8 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia (SiSITD). São expostos dados e particularidades do financiamento de PD&E em geral, no Brasil, com destaque para a área da Defesa. Finalmente, segue-se a conclusão, ou seja, a resposta à pergunta acima formulada. Adicionalmente, são apresentadas duas propostas referentes à questão do custeio específico da PD&E voltadas para necessidades da BID brasileira. 1. Pesquisa, Tecnologia, Desenvolvimento Experimental e Engenharia A geração de inovações tecnológicas envolve, normalmente, atividades de pesquisa, desenvolvimento experimental e engenharia. A pesquisa é uma atividade realizada com o objetivo de produzir novos conhecimentos, geralmente, envolvendo experimentação. A pesquisa pura, básica ou fundamental: é a pesquisa feita com objetivo de aumentar conhecimentos científicos sem qualquer aplicação prática em vista. A pesquisa pura é realizada sem compromisso com a resolução de problemas predeterminados. Sua motivação é a curiosidade e o seu objetivo é acrescentar algo novo ao acervo de conhecimentos acumulados sobre as propriedades, estruturas e inter-relações das substâncias e de fenômenos de qualquer natureza. Ela dá origem a novas hipóteses, leis ou teorias, que poderão, ou não, resultar em aplicações utilitárias numa etapa subsequente. A pesquisa aplicada busca novos conhecimentos científicos ou não, que ofereçam soluções a problemas objetivos, previamente definidos. A pesquisa aplicada se diferencia da pesquisa fundamental, principalmente pela motivação de quem a realiza. A ciência busca formular as “leis” às quais se subordina a natureza, a tecnologia utiliza tais formulações para produzir bens e serviços que atendam as suas necessidades. Assim, a tecnologia pode ser considerada um conjunto de atividades práticas voltadas para alterar o mundo e não, necessariamente, compreendê-lo. Modernamente, a estreita ligação entre a ciência e a tecnologia fez com que surgisse, no trato dos assuntos a elas pertinentes, o binômio Ciência e Tecnologia, referido no singular e designado pela sigla C&T. O entrelaçamento ciência/ tecnologia tornou-se mais próximo ainda, a partir do momento em que o método científico passou a ser utilizado na geração de conhecimentos associados à criação ou melhoria de bens ou serviços, ou seja, para a inovação tecnológica. O domínio do conjunto de conhecimentos específicos que constituiu a tecnologia permite a elaboração de instruções necessárias à produção de bens e de serviços. A simples posse dessas instruções (plantas, desenhos, especificações, normas, manuais), que são expressões materiais e incompletas dos conhecimentos e a capacidade de usá-las, não significa que, automaticamente, o usuário tornou-se detentor dos conhecimentos que permitiram a sua geração, ou seja, da tecnologia. Frequentemente, tem sido empregada a palavra tecnologia para designar tais Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 9 Waldimir Pirró e Longo instruções e não os conhecimentos que propiciaram a base para a sua geração, os quais, em geral, estão armazenados em cérebros de pessoas. Isto tem sérias implicações na correta compreensão do que seja o potencial ou independência tecnológica de uma indústria ou mesmo de uma nação2. Como exemplo, chega-se ao absurdo de acreditar que quando uma empresa multinacional coloca em funcionamento, num país periférico, o último modelo de uma máquina importada de fazer parafusos, o mesmo está dotado da mais alta tecnologia de fazer parafusos. Na realidade, ele está dotado das mais altas instruções para fazer parafusos. As instruções, o saber apenas como fazer (know how) para produzir algo, e não porque fazer (know why), é o que se deve entender por técnica. Porém, diversos autores, principalmente da área do direito, usam a palavra tecnologia como tradução de know how. Tecnologia g instruções g técnica. (know why) (know how) Para quem produziu as instruções, estas são expressões do “know why”; para quem simplesmente as usa, não passam de “know how” (técnicas). Se o detentor de todos os conhecimentos que resultaram numa dada tecnologia transferir para um terceiro apenas as instruções de como fazer um bem ou serviço, este terá absorvido apenas técnica. Assim, o que para um é, intrinsecamente, tecnologia, para o outro pode ser apenas uma técnica. Desse fato, pode resultar grande confusão na compreensão da questão tecnológica3. Além das instruções, a palavra técnica é utilizada, também, para o conjunto de regras práticas, puramente empíricas, utilizadas para produzir coisas determinadas, envolvendo a habilidade do executor. Como conseqüência, conforme exposto anteriormente, a tecnologia é entendida, por alguns autores, como o estudo e conhecimento científico da técnica, implicando no emprego dos métodos das ciências físicas e naturais nas suas atividades. Geralmente, o que se entende por uma dada tecnologia, que ao ser empregada resulta num produto ou processo, envolve conhecimentos decorrentes de aplicações das ciências naturais (física, química, biologia etc.), de conhecimentos ligados a regras empíricas (técnicas) e de conhecimentos oriundos da aplicação da metodologia científica de pesquisa na compreensão e solução de problemas surgidos durante o processo de concepção e/ou produção4. Normalmente, as tecnologias são, também, referidas em correspondência com as diversas etapas de agregação de valor/conhecimentos envolvidas na produção e comercialização de bens ou de serviços. Assim, por exemplo, encontram-se referências à tecnologia de processo, tecnologia de produto, tecnologia de operação etc. 2 3 4 10 LONGO, Waldimir Pirró e. Conceitos básicos sobre ciência, tecnologia e inovação. Disponível em: <http://www. waldimir.longo.nom.br/artigos/T6.doc>. Acesso em: 10/11/ 2009. Idem. Ibidem. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Além de fator de produção – ao lado do capital, insumos e mão-de-obra – a tecnologia comporta-se, também, como uma mercadoria, pois é objeto de operações comerciais, tendo preço e dono. Em consequência, trata-se de um bem privado ou estatal. Para reforçar o argumento da sua condição de mercadoria, basta lembrar que, além de poder ser vendida e comprada, a mesma pode ser alugada, sendo ainda sujeita à sonegação, ao contrabando e ao roubo. Sendo a tecnologia uma mercadoria, um bem privado ou estatal, é importante a aceitação de sua propriedade pelo sistema econômico. Tratando-se, porém, de um bem intangível, a sociedade criou convenções, normas e instituições específicas a fim de qualificar e proteger a propriedade tecnológica. Na realidade, o aparato legal da propriedade tecnológica, também chamada de propriedade industrial, faz parte do direito mais amplo que é tratado pela propriedade intelectual. A propriedade industrial, juntamente com o direito do autor (copyright), compõem a propriedade intelectual, cujo fórum é a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). Ultimamente, porém, as questões relativas à propriedade industrial, cujo comércio no nível internacional, em dólares, atinge a casa dos bilhões, passaram a ser objeto de fortes interferências da Organização Mundial do Comércio (OMC). A propriedade industrial compreende, basicamente, a proteção de invenções e de modelos de utilidade, de desenhos industriais, marcas, direitos sobre softwares, do uso de indicação geográfica, máscaras de micro circuitos eletrônicos, cultivares, de seres vivos e de outros bens oriundos da criação humana que apresentem valor comercial. O processo de compra e venda ou de aluguel de tecnologia é, normalmente, referido como transferência de tecnologia. O uso da palavra transferência, ao invés de venda ou de aluguel, dá idéia que o cedente transmitirá ao receptor todos os conhecimentos que geraram a tecnologia e, portanto, o seu domínio. Normalmente, porém, o que ocorre é uma venda, na qual o vendedor esconde os conhecimentos (know why) e entrega as instruções (know how). Assim os contratos de transferência de tecnologia podem propiciar ou não sua transferência na verdadeira acepção da palavra. O processo de transferência é bastante complexo e difícil, exigindo, além da disposição do cedente, competência e determinação de quem recebe os conhecimentos. A verdadeira transferência de tecnologia ocorre quando o receptor absorve o conjunto de conhecimentos que lhe permitem adaptá-la às condições locais, aperfeiçoá-la e, eventualmente, criar nova tecnologia de forma autônoma5. Entende-se por desenvolvimento experimental, o trabalho sistemático, delineado a partir do conhecimento preexistente, obtido através da pesquisa ou experiência prática, e aplicada na produção de novos materiais, produtos e aparelhagens, no estabelecimento de novos processos, sistemas e serviços e ainda substancial aperfeiçoamento dos já produzidos ou estabelecidos. Na área industrial, o desenvolvimento cobre a lacuna existente entre a pesquisa e a produção e, 5 LONGO, Waldimir Pirró e. Conceitos básicos sobre ciência, tecnologia e inovação, idem. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 11 Waldimir Pirró e Longo geralmente, envolve a construção e operação de plantas-piloto (engenharia de processo), construção e teste de protótipos (engenharia de produto), realização de ensaios em escala natural e outros experimentos necessários à obtenção de dados para o dimensionamento de uma produção em escala industrial. Nas ciências sociais e humanas, o desenvolvimento experimental pode ser definido como o processo de transformar os conhecimentos adquiridos através de pesquisa, em programas operacionais, incluindo projetos de demonstração para teste e avaliação. Os conhecimentos gerados pela pesquisa e desenvolvimento experimental, podem exigir diferentes graus de elaboração para chegarem ao mercado como bens ou serviços, ou para serem empregadas numa unidade produtiva. Essa elaboração exige os serviços especializados de engenharia. A engenharia faz a concepção da produção do bem ou do serviço, estuda sua viabilidade técnica e econômica, projeta e implanta as instalações físicas, e conforme o caso, opera e faz a manutenção das mesmas. Em outras palavras, os conhecimentos produzidos pela pesquisa e desenvolvimento experimental têm que ser “engenheirados” (segundo Ary Jones6) para poderem ser utilizados pelo setor produtivo. Assim, para que os conhecimentos gerados pelas universidades, institutos e outras organizações envolvidas em pesquisa e desenvolvimento tenham resultado concreto no setor produtivo (inovação tecnológica), há que se cuidar do estabelecimento de alta competência em “engenheirar”. 2. Tecnologia, Estratégia e Conceito Operacional Uma discussão recorrente diz respeito à importância relativa entre tecnologia militar de equipamentos e serviços, estratégia militar e conceito operacional. Alguns analistas7 opinam, por exemplo, que a tecnologia militar materializada em produtos, domina os outros dois; pois, ao considerar-se o uso das forças militares, inevitavelmente começar-se-á pelo que é fisicamente possível. Para esta corrente, todas as estratégias e conceitos operacionais são condicionados pelos equipamentos disponíveis. Em contraposição, estrategistas militares e planejadores tendem a rejeitar o determinismo tecnológico. Segundo esta corrente, deve-se estabelecer primeiro os objetivos militares e depois buscar as tecnologias de bens ou serviços existentes ou desenvolvê-las. Primeiro será preciso decidir, por exemplo, adotar uma postura ofensiva ou defensiva, aniquilar o inimigo ou destruir a sua disposição de luta, invadir ou não o seu território. Estas questões e não os meios constituem a essência da estratégia militar8. 6 7 8 12 JONES, A.M. Serviços de Engenharia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990. MORSE, I.H. “New weapons technologies implications for NATO”, ORBIS, p. 497,1975; EVANS, W.J. “The impact of technology on US deterrence forces”, Strategic Review, Washington, D.C., (4), 1976; e HASSLER, R. e GOEBEL, H., “Uneasiness about technological progress in the Armed Forces”, Military Review, Kansas, 62(10): 66, Oct, 1982. HEAD, R.G. “Technology and the military balance”, in Foreign Affairs, New York, 56:548, apr., 1978. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Frequentemente, porém, há dificuldades em se identificar quem prevaleceu em casos reais, se as oportunidades tecnológicas ou as demandas estratégicas e/ ou operacionais. O que parece existir é uma cadeia de reações, na qual sugestões e demandas, originárias do setor científico e tecnológico ou dos escalões militares, entrelaçam-se. Necessidades operacionais estimulam desenvolvimentos tecnológicos de bens e serviços, os quais, por sua vez, produzem outras necessidades ou oportunidades tecnológicas, que novamente afetam a maneira de se pensar a guerra. Este processo pode ter origem em qualquer ponto da cadeia, como, por exemplo, na inadequabilidade dos materiais existentes para o enfrentamento de um potencial conflito. Na realidade, a questão que se coloca diante das forças armadas não é decidir quem é prevalente, mas a necessidade de uma eficiente integração entre o desenvolvimento tecnológico, estratégia militar e os conceitos operacionais. Quanto melhor tal integração, mais efetivas serão as forças militares9. 3. Tecnologias, Bens Duais e/ou Sensíveis e o Acesso Cerceado Ao longo da história da humanidade, é difícil encontrar algum desenvolvimento tecnológico relevante que não esteja estreitamente relacionado com as questões relativas à segurança e defesa, individuais ou coletivas. Inúmeras tecnologias de produtos, de processos ou de serviços desenvolvidas especificamente para atender necessidades militares de defesa, acabam sendo utilizadas na produção bens e serviços de largo e bem sucedidos usos civis. Quando isso ocorre diz-se que houve um spin off da tecnologia militar. Um exemplo marcante disso é a INTERNET que originalmente foi desenvolvida pela Advanced Research Projects Agency (ARPA, hoje Defense Advanced Research Projects Agency, DARPA) do Departamento de Defesa dos EUA, com o nome de ARPANET que visava, através de uma rede de computadores interligados, assegurar as comunicações em todo território do país mesmo que parte do sistema fosse destruído. Outro exemplo é o Global Positioning System, o conhecido GPS. Igualmente, numerosas tecnologias de uso civil, são incorporadas ou dão origem a produtos bélicos. Para tais tecnologias, os norte-americanos cunharam o nome de dual use technologies. Pode-se definir tecnologia de uso dual (ou duplo) como aquela tecnologia que pode ser utilizada para produzir ou melhorar bens ou serviços de uso civil ou militar. Na realidade, é difícil rotular o que é civil e o que é militar na produção de conhecimentos científicos ou tecnológicos. Dentre as tecnologias militares ou civis, de uso dual ou não, existem tecnologias consideradas sensíveis. Tecnologia sensível é uma tecnologia de qualquer natureza, civil ou militar, que um determinado país ou grupo de países 9 LONGO, W.P. Ciência e Tecnologia e a Expressão Militar do Poder Nacional, Trabalho Especial (TE-86), Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro, RJ,1986. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 13 Waldimir Pirró e Longo considera que não deva dar acesso, durante certo tempo, a outros países, hipoteticamente por razões de segurança. Em muitas publicações utiliza-se a designação de tecnologia sensível para significar tecnologia de uso dual. Evidentemente as tecnologias duais e sensíveis dão origem a produtos de uso dual e/ou sensíveis10. Desde tempos imemoriais, os detentores de conhecimentos que lhes conferiam vantagens significativas no tocante ao poderio militar, sempre tentaram protegê-los do acesso por parte dos seus opositores reais ou potenciais. O cerceamento podendo ser explícito ou velado. Condizente com tal comportamento, desde a Segunda Guerra Mundial, os países líderes no desenvolvimento científico e tecnológico têm praticado, juntamente com seus aliados, o cerceamento explícito de terceiros ao acesso às tecnologias que eles consideram sensíveis. O cerceamento, quando violado, pode ou não ser acompanhado de retaliações principalmente de ordem econômica por parte de países que lideram as restrições. Na medida em que se tornou evidente que o poder econômico, político e militar relativo entre países está inequivocamente relacionado com o nível educacional e a capacidade científica e tecnológica inovadora dos seus habitantes, as ações protecionistas foram aperfeiçoadas, sendo, inclusive, objeto de acordos internacionais multilaterais e de regulamentações nacionais unilaterais11. Assim é que desde o final da II Guerra Mundial, os países líderes no desenvolvimento científico e tecnológico e suas alianças têm cerceado o acesso de terceiros, às tecnologias e produtos que consideram sensíveis ou de uso dual, por razões que variaram, e que continuam variando, ao longo do tempo. Dessa postura surgem dúvidas e ambigüidades no tocante ao real significado do que sejam tecnologias/bens duais e/ou sensíveis/e alcance de tais definições de produtos e tecnologias. Inicialmente, na época da bipolaridade, o objetivo do cerceamento era negar conhecimento ao bloco oponente e buscar manter supremacia tecnológica em áreas consideradas estratégicas. A partir do fim da Guerra Fria, com a ascensão de atores não-estatais e das novas ameaças, notadamente o terrorismo e o crime organizado transnacional, parcela substancial das preocupações foi redirecionada para a possibilidade de que armas de destruição em massa (ADM) pudessem cair em mãos não-confiáveis, como certos Estados ou atores não-estatais12. O nível dessas preocupações cresceu muito depois do ataque terrorista aos EUA, em 11 de Setembro 2001, gerando a intensificação das imposições restritivas ao 10 11 12 14 LONGO, W.P. “Tecnologia Militar”, Tensões Mundiais, vol. 3, n. 5, p. 111- 169, Fortaleza, CE, 2007. LONGO, W. P. e MOREIRA, W. S., Contornando o cerceamento tecnológico. In: III Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), 2009, Londrina. Anais. Londrina: UEL, 2009. Disponível em: <http:// www2.uel.br/cch/his/mesthis/abed/?content=resumoanais.htm>. Acesso em: 15/10/2009. LONGO, W. P.; MOREIRA, W. S., idem. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia acesso a conhecimentos, tecnologias e bens sensíveis. O temor de que grupos terroristas ou extremistas de cunho político ou religioso consigam desenvolver ou adquirir armas nucleares, químicas ou biológicas, e seus vetores de lançamento, capazes de ameaçar cidades ou países, se justifica. Os avanços nas tecnologias de materiais, de comunicações e de transporte, associados à crescente porosidade das fronteiras nacionais criam condições para que esse perigo que preocupa a comunidade internacional em geral – e as grandes potências em particular – seja uma possibilidade real. Segundo Longo13, embora o cerceamento tenha explicitados, às vezes, objetivos considerados meritórios e/ou alvos definidos, a verdade é que tal procedimento tem sido usado pelos países desenvolvidos no sentido de manterem as vantagens estratégicas não somente militares, mas também comerciais, alcançadas graças aos valiosos conhecimentos que detêm através de suas empresas. A “Tríade” que lidera o desenvolvimento científico e tecnológico – basicamente EUA, União Européia e Japão – pratica o cerceamento em larga escala, amparada ou não por atos internacionais os quais, via de regra, são engendrados pelos mesmos e cujos objetivos incluem a preservação da sua hegemonia. Os alvos mais visados pelo cerceamento explícito são variáveis ao longo do tempo, dependendo de fatores conjunturais que envolvem aspectos regionais, alianças, subserviência ou não de certos atores, interesses econômicos, etc. Não raro, o cerceamento é acompanhado de ameaças de retaliação política, econômica ou até militar. Exemplos de acordos restritivos de natureza multilateral são: Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP, 1968), Tratado de Tlatelolco (1969), Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR, 1987), Wassenaar Arrangement (1996), Convenção para a Proibição de Armas Químicas (CPAQ, 1997) e a Resolução 1.540 do Conselho de Segurança da ONU (2004). Alguns exemplos de ações unilaterais praticadas pelos EUA são: Atomic Energy Act (1946), Export Administration Act (1979), Arms Export Control (1979), Homeland Security Presidential Directive (2001), Technology Alert List –TAL (2001), BIS (Bureau of Industry and Security - BIS, International Traffic in Arms Regulations - ITAR e United States Munition List – USML. Recentemente, Sachs14 observando a economia mundial nas últimas décadas, afirmou que o mundo deixara de ser dividido por ideologias (referindo-se à Guerra Fria) para ser dividido pelas tecnologias. Segundo aquele autor, pode-se grupar os países e/ou regiões em categorias, que resulta na divisão do planeta em três partes: Uma pequena parte do planeta, responsável por cerca de 15% de sua população, fornece quase todas as inovações tecnológicas existentes. Uma segunda parte, que engloba talvez 13 14 LONGO, W.P. “Tecnologia Militar”, Tensões Mundiais, v. 3, n. 5, p. 111- 169, Fortaleza, CE, 2007. SACHS, J. “A new map of the world”, in The Economist, abr., de 2000. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 15 Waldimir Pirró e Longo metade da população mundial, está apta a adotar essas tecnologias nas esferas da produção e do consumo. A parcela restante, que cobre por volta de um terço da população mundial, vive tecnologicamente marginalizada ...não inova no âmbito doméstico, nem adota tecnologias externas. Essas regiões tecnologicamente excluídas nem sempre reproduzem o traçado das fronteiras nacionais. Elas abrangem áreas como o sul do México, os países andinos, a maior parte do Brasil tropical, a África Subsaariana tropical e a maior parte da antiga União Soviética. Na segunda categoria, encontram-se o cone sul da América do Sul (sul e sudeste do Brasil), parte do México e da América Central, a Península Ibérica, o Leste Europeu, a África do Sul, a Índia, a costa da China, a Coreia do Sul, Taiwan, a Malásia e a Indonésia. Evidentemente, os países constantes da primeira categoria (basicamente EUA, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, Itália e países nórdicos, mais Austrália e Japão) dominam o cenário mundial, política, econômica e militarmente, estabelecendo “as regras do jogo” e a nova ordem na distribuição da riqueza e do trabalho a nível global. Adicionalmente, os países líderes dessa nova geografia do poder especializaram-se na produção de bens e de serviços nos quais é intensiva a agregação de valores intangíveis, minimizando o seu envolvimento na produção de commodities e de produtos manufaturados intensivos em energia, matérias primas e mão-de-obra. No fundo, tornaram-se grandes exportadores de bens intangíveis, basicamente conhecimentos e valores simbólicos. Vários fatores têm contribuído para manter e aumentar o hiato científico e tecnológico existente entre os desenvolvidos e os demais países: as disparidades econômicas e sociais dos atores envolvidos, a acelerada dinâmica atual da evolução da ciência e da tecnologia, a intensa competição global que tende a dificultar a cooperação vertical e exacerbar o cerceamento tecnológico. Na realidade, em matéria de tecnologias que consideram sensíveis, os países detentores das mesmas não estão dispostos a transferir nem as instruções e técnicas de produção (know how) e muito menos as tecnologias (know why). Evidentemente, os países chamados BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) são alvo de cerceamentos tecnológicos por parte da Tríade que lidera o desenvolvimento científico e tecnológico, mas com tratamentos e consequências bastante distintas. Apesar dos notórios problemas típicos do chamado terceiro mundo que os aflige e de não competirem significativamente com a Tríade em desenvolvimento científico e tecnológico, a Rússia, a China e a Índia, contrariamente ao Brasil, não se descuidaram no tocante às questões de segurança e de defesa. Especificamente no que diz respeito às tecnologias militares, fizeram – e continuam fazendo – persistentes investimentos em PD&E, respaldados por políticas governamentais consequentes, favorecendo a produção local de material de emprego militar. Basta lembrar que os três dominam a tecnologia nuclear para fins bélicos 16 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia e, adicionalmente, dispõem de mísseis de longo alcance desenvolvidos autonomamente. Assim, compreensivelmente, ora estão alinhados com os cerceados, ora são cerceadores. E são tratados de maneira diferenciada pela Tríade, dependendo de fatores conjunturais. Por oportuno, cita-se o recente acordo nuclear entre os EUA e a Índia, apesar desta ter explodido a sua bomba atômica, em 1974, à margem do TNP. Diante da conjuntura descrita, evidentemente, os países têm procurado dominar produtos e tecnologias de alto valor comercial ou estratégico, de uso civil ou duplo, rotuladas de sensíveis ou não, contornando as barreiras levantadas ao seu acesso impostas pelos seus detentores. Algumas ações utilizadas para contornar o cerceamento tecnológico ou para suplantar deficiências nacionais ou empresarias na área tecnológica foram descritos por Longo e Moreira15. Os citados autores classificaram as ações em cinco mecanismos, a saber: - Programas mobilizadores do potencial nacional para desenvolver tecnologias consideradas estratégicas para o país. - Transferência de tecnologia via contrato formal com detentor da mesma. - Engenharia reversa, ou seja, por meio de externalidades de equipamento ou processo existente, refazer independentemente a engenharia do mesmo. - Cópia de equipamento produzido por terceiros. - Dreno de cérebros, ou seja, atração e contratação de profissionais que detêm o conhecimento tecnológico. - Espionagem: apropriação de conhecimentos pertencentes a terceiros, contra a vontade destes utilizando meios ilegais, praticado por indivíduos, empresas ou agências especializadas. 4. Dispêndios Globais e Nacionais em P&D O dispêndio mundial em P&D, em 2004, foi da ordem de US$ 850 bilhões. Estima-se que da ordem de 10 % desse montante foram destinados a P&D de produtos e serviços de uso militar16. Estima-se, também, que cerca de 25% dos pesquisadores em atividade, estejam envolvidos com P&D voltados para necessidades de defesa. As Tabelas 1 e 2 fornecem os dispêndios nacionais em P&D civil e militar de países selecionados, onde se evidência o baixíssimo investimento brasileiro, principalmente quando a comparação ocorre entre os países componentes dos BRICs. 15 LONGO, W. P. e MOREIRA, W. S., “Contornando o cerceamento tecnológico”, in III Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), 2009, Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2009. Disponível em: <http://www2.uel.br/cch/his/mesthis/abed/?content=resumoanais.htm>. Acesso em: 15/10/2009. 16 BRZOSKA, M. Trends in global military and civilian research and development (R&D) and their changing interface. Disponível em: <http://www.ifsh.de/pdf/aktuelles/india_brzoska.pdf>. Acesso em: 15/10/ 2009. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 17 Waldimir Pirró e Longo TABELA 1 - DISPÊNDIOS NACIONAIS EM P&D, CIVIL E MILITAR (2004) País Alemanha Coréia EUA França Itália Japão Reino Unido Rússia China Israel Mundo Total US$ bi(*) 58,7 24,3 312,5 39,7 17,7 112,7 33,7 16,5 102,6 5,0 850,0 Gov % Mil US$ bi Mil (% total) Mil (% Gov) 1,0 0,8 54,1 3,5 0,4 1,0 3,4 4,0 5,0 1,5 85,0 2,0 3,0 17,0 9,0 2,0 1,0 10,0 24,0 5,0 30,0 10,0 6,0 13,0 56,0 23,0 4,0 5,0 32,0 40,0 16,0 100,0 33,0 30,0 24,0 31,0 39,0 51,0 18,0 31,0 61,0 30,0 29,0 31,0 Fontes: OECD: Main S&T Indicators, 2005/2 e SIPRI Yearbrook 2006. In: BRZOSKA, M. “Trends in global military and civilian research and development (R&D) and their changing interface”, http://www.ifsh.de/pdf/aktuelles/india_brzoska.pdf . (*) Valores estimados. TABELA 2 - ORÇAMENTO GOVERNAMENTAL EM P&D (CIVIL E MILITAR) País Alemanha Austrália Brasil Canadá Coréia Espanha Estados Unidos França Itália México Portugal Reino Unido Ano Valor (US$ milhões PPC) 2008 2009 2007 2006 2009 2007 2008 2008 2008 2006 2009 2006 23.270,2 4.825,0 7.436,2 6.901,0 13.865,3 15.271,9 142.413,2 16.073,5 11.480,4 2.605,5 2.725,2 13.805,0 % Civil 94,0 93,8 99,2 96,0 82,8 86,9 43,4 72,3 98,8 100,0 99,5 75,8 % Defesa 6,0 6,2 0,8 4,0 17,2 13,1 56,6 27,7 1,2 0,5 24,2 Fontes: Organisation for Economic Co-operation and Development, Main Science and Technology Indicators 2009/1 e Brasil:Siafi. Extração especial realizada pelo Serpro e balanços gerais dos estados.Elaboração: Coordenação-Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC - Ministério da Ciência e Tecnologia) 18 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia A Tabela 3 fornece os dispêndios públicos brasileiros para P&D por objetivos socioeconômicos, em 2007, em milhões de R$ correntes. Novamente fica patente a baixa prioridade reinante, no País, no tocante às necessidades do setor de defesa, evidenciada pelos recursos governamentais disponíveis e a sua distribuição. TABELA 3 - BRASIL: DISPÊNDIOS PÚBLICOS EM P&D Objetivo socioeconômico Total 2007 Valor % 15.103,80 100 1.509,60 9,99 123,2 0,82 Defesa 82,5 0,55 Desenvolvimento social e serviços 54,6 0,36 Desenvolvimento tecnológico industrial 863 5,71 8.763,50 58,02 Energia 212,1 1,4 Espaço civil 165,3 1,09 70,9 0,47 582,6 3,86 Pesquisas não orientadas 1.499,20 9,93 Saúde 1.059,40 7,01 117,9 0,78 Agricultura Controle e proteção do meio-ambiente Dispêndios com as inst. de ensino superior Exploração da terra e atmosfera Infra-estrutura Não especificado Fonte(s): Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Extração especial realizada pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e Balanços Gerais dos Estados. A Figura 1, por sua vez, detalha o orçamento de P&D do governo dos EUA em 2007, onde verifica-se que foi destinado 50% do mesmo ao Departamento de Defesa (DoD). Para dar conta de suas atribuições, o DoD conta com uma estrutura própria de agências, subordinadas à sua Diretoria de Pesquisa e Engenharia da Defesa (DDRE). As Forças Singulares, por sua vez, além de agências de fomento, possuem várias instituições de PD&E. Os componentes dessas estruturas são listadas no Anexo 1. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 19 Waldimir Pirró e Longo Note-se que as Forças têm agências (Ex.: ARO, ONR e OSRAF) que fazem a interação com a comunidade de C&T civil. O resultado desse relacionamento é simplesmente extraordinário, uma vez que 58% dos químicos e 43% dos físicos norteamericanos agraciados com o Prêmio Nobel tiveram suas pesquisas, anteriores às láureas, financiadas pelo sistema descrito17. FIGURA 1 - ORÇAMENTO DE P&D DOS EUA EM 200718 5. Sistema Setorial de Inovação Tecnológica em Defesa: Investimentos e Riscos do Desenvolvimento de Tecnologias Militares O custo real e o valor de mercado dos modernos equipamentos de defesa são, normalmente, extraordinariamente elevados. As razões são obvias: exigências de desempenho e confiabilidade, riscos e custos da PD&E, escala de produção, poucos competidores e custo de oportunidade. Apenas para ilustrar são fornecidos nas Tabelas 4 e 5, abaixo, os preços de alguns itens do arsenal moderno. 17 LIEBERMAN, J.I. “Techno warfare: innovation and military R&D”, Joint Force Quarterly, Institute for National Strategic Studies, National Defense University, vol. 22, p. 13-17, Summer, Washington, DC, EUA, 1999. 18 Legenda: DoD - Departamento de Defesa; DoE - Departamento de Energia; HHS - Departamento de Ciências da Saúde e Humanas. A soma de valores percentuais pode não ser exata devido a arredondamentos. Fonte: NSF, Divisão de Estatísticas de Recursos da Ciência, Fundos Federais para Pesquisa e Desenvolvimento: Anos Fiscais 2005, 2006 e 2007 (a complementar). Indicadores de Ciência e Engenharia 2008. 20 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia TABELA 4 - CUSTO DE AVIÕES DE COMBATE Avião F-15E F-18E JSF Gripen Rafale C Typhoon F-22 Custo (mi US$) 108,2 95,3 112,5 76,07 135,8 143.8 338,8 Peso (kg) 20.400 13.400 12.000 5.700 9.400 9.750 14.400 Custo/kg 5.303 7.111 9.375 13.345 14.446 14.748 23.472 Fonte: http://www.defense-aerospace.com/dae/articles/communiques/FighterCostFinalJuly06.pdf TABELA 5 - CUSTO DE NAVIOS DE COMBATE Tipo Nome Pais Custo (mi US$) Submarino Scorpene SSK Type 212SSK Virginia SSN- Espanha Alemanha EUA 825 525 2.400 Porta-Aviões C.de Gaulle Gerald Ford Vikrant França EUA Índia Destroier Daring Type 45 Inglaterra 976 Fragata F105 C.Colon Valour MEKO Espanha África do Sul 954 327 Corveta Kedah MILG Malásia Turquia 300 250 3.700 13.500 762 Fonte:<http://www.naval.com.br/blog/2011/02/07/quanto-custa-um-navio-de-guerra/> Devido à importância estratégica de certas tecnologias militares, a geração, comercialização, difusão e uso das mesmas ocorrem em condições absolutamente especiais. Ao longo dos ciclos de vida das tecnologias e dos produtos resultantes das mesmas há uma forte presença dos governos nacionais que interferem com imposições regulatórias exercendo a sua condição de principal e, muitas das vezes, único usuário e patrocinador dos produtos, sejam eles tangíveis ou não. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 21 Waldimir Pirró e Longo Normalmente, as atividades de pesquisa, desenvolvimento e engenharia não rotineira, envolvem riscos. Pode-se investir muito em recursos humanos e financeiros e não se chegar a um resultado satisfatório, por diversas razões: custo exagerado do produto final, inadequabilidade durante o uso, produto não agrada ao mercado, os concorrentes produziram produto melhor etc. Assim, atividades de PD&E dedicadas à geração de tecnologias militares inovadoras exigem ações dos governos nacionais face aos custos e riscos envolvidos nas mesmas, sendo eles, em geral, os usuários principais, ou únicos, dos resultados, como já salientado. Assim, as pesquisas, desenvolvimentos experimentais e engenharia, são realizados diretamente pelos governos nacionais em centros de pesquisas e em unidades militares, em institutos de pesquisa civis governamentais, em empresas estatais e, fundamentalmente, sob encomenda e contratação, em institutos e empresas privadas. Qualquer que seja o arranjo sistêmico do setor é imprescindível o estreito entrosamento e complementaridade entre os atores civis, privados e estatais, e os atores militares, situação que só recentemente tende a ocorrer no Brasil. Na realidade, o ideal é que seja possível distinguir no país um Sistema Setorial de Inovação Tecnológica em Defesa (SiSITD), sendo a BID integrante do mesmo. A inovação resulta de numerosas interações cruzadas entre ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento experimental, tecnologia industrial básica (desenho industrial, normas, metrologia etc.), engenharia e outras atividades que ocorrem dentro e fora das empresas e entre empresas, assim como da combinação de fatores tais como políticas públicas, recursos humanos, organização, gestão, finanças, marketing, logística, alianças estratégicas e redes de cooperação, acesso a fontes de informações as mais variadas, mercado, fornecedores etc. Além disso é preciso ter presente que as interações entre os atores são influenciadas por institutions que compreendem normas, regras, rotinas, hábitos comuns, práticas estabelecidas, leis, padrões, etc., que moldam a cognição e a ação dos atores. Elas podem variar daquelas que amarram ou impõem a execução pelos atores, até aquelas que são criadas pela interação entre eles (Ex.: contratos); das que amarram mais às que amarram menos; de formais a informais (Ex.: a lei de patentes ou regulamentos específicos versus tradições e convenções). Inúmeras institutions são nacionais (ex: sistema de patentes), enquanto que outras são específicas do sistema setorial como o mercado de trabalho setorial ou institutions financeiras específicas para o setor. Nesse caso, é evidente a necessidade de uma visão ampla desse complexo processo social para entendê-lo quanto ao seu funcionamento para poder corrigir lacunas e deficiências. Em última instância, a existência, ou não, de um sistema nacional ou setorial de inovação é evidenciada pelos resultados desse complexo, ou seja, pela geração e introdução no mercado de produtos e processos, tecnologicamente novos, assim como de melhorias tecnológicas significativas em produtos e processos existentes. 22 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Em princípio, as políticas nacionais devem privilegiar as interações entre os responsáveis pela geração, difusão e uso dos conhecimentos que potencialmente conduzam a inovações, a criação de uma ambiência favorável e a superação de óbices específicos, peculiares a cada país, como, por exemplo, um baixo nível educacional da população, uma desnacionalização excessiva de setores tecnologicamente mais dinâmicos do setor produtivo ou uma desestimuladora e ineficiente burocracia. Nas potências militares, no que concerne às empresas e outras instituições privadas, o governo corre com o risco financeiro total ou parcial do desenvolvimento tecnológico, tendo em vista as mencionadas incertezas que cercam tais atividades. Pouquíssimas empresas do complexo industrial militar sobrevivem sem encomendas, subsídios e incentivos governamentais. Um exemplo de exceção são as empresas de armas leves de pequeno porte. Além das óbvias questões de defesa e segurança, os elevados gastos governamentais são parcialmente justificados pelos empregos civis de tecnologias geradas e pelo progresso tecnológico experimentado pelas empresas envolvidas. Este último ponto ocorre porque, em geral, as tecnologias militares além de desafiadoras quanto à criatividade sempre exigida, são geradas para situações extremas de confiabilidade e de solicitações muito acima daquelas normais nos empregos civis. Ou seja, pressionam por desenvolvimentos nos equipamentos de produção e de testes, em materiais, em controles e exigências de qualidade, que podem colocar as empresas nacionais envolvidas em patamares tecnológicos e de competitividade mais elevados. Um poderoso incentivo não fiscal praticado, senão o mais eficiente, é a encomenda e custeio, portanto compra, com recursos de fundos públicos ou privados, de atividades necessárias ao processo de desenvolvimento tecnológico de bens e de serviços, realizado por empresa privada. Quando os fundos empregados são públicos, esta prática pode tornar-se, além de incentivo, o melhor subsídio, ou subvenção, aos riscos inerentes à pesquisa aplicada / exploratória, à geração de inovações, à engenharia não rotineira, à confecção de protótipos e de plantas piloto, à produção de cabeças de série, à homologação de produtos e de processos e à comercialização pioneira dependendo do produto e do arranjo contratual, a propriedade da tecnologia poderá ser do financiador ou da empresa contratada. A encomenda de PD&E é largamente empregada pelas forças armadas, no tocante ao desenvolvimento de seus equipamentos mais específicos, sem similares de emprego civil. Nestes casos, as exigências operacionais fixadas pelos estadosmaiores são transformadas em especificações dos equipamentos desejados. Baseadas nessas especificações são feitas as encomendas ao setor produtivo. Em geral, faz-se a encomenda de P&D ao vencedor de uma verdadeira concorrência, sem que este venha a ser proprietário dos conhecimentos gerados e sem que tenha lucro, nessa etapa. Havendo sucesso, o vencedor da encomenda terá a opção da licença de uso da tecnologia gerada, ou, no caso da fabricação Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 23 Waldimir Pirró e Longo do produto, a garantia de receber parte das encomendas, ocasiões em que terá lucro. Para a empresa, o custo do produto final não incluirá, evidentemente, as despesas realizadas com P&D, o que será um enorme incentivo não fiscal, face aos concorrentes internacionais. No caso do produto ser dual, ou seja, além do seu emprego militar, ter uso civil, mais proveitoso será o subsídio, a subvenção. Setores estratégicos para os países, áreas de alta sofisticação científica, assim como bens e serviços do interesse público, são também beneficiados por esse mecanismo. Alguns exemplos são as atividades aeroespaciais, energia nuclear, meio ambiente, saúde e segurança. Talvez a melhor maneira de elucidar o mecanismo seja através de um exemplo completo, mas diferente do acima exposto. Suponha-se que o Exército necessite de um equipamento de visão noturna com características inovadoras fixadas em especificações de desempenho. O empreendimento envolve elevados custos e riscos, porém, as perspectivas de retorno são compensadoras sob o ponto de vista técnico e financeiro. Havendo capacidade instalada no País para tentar-se o desenvolvimento de tal equipamento, mas não havendo empresários dispostos a correr os riscos envolvidos, a agência de financiamento militar “X” torna público um edital, uma verdadeira concorrência, no qual empresas isoladas ou líderes, redes cooperativas de empresas, redes cooperativas de empresas e universidades e outros tipos de alianças estratégicas são convidadas a apresentar proposta para o desenvolvimento experimental, produção de protótipos e cabeça de série do referido equipamento. Além das condicionantes normalmente exigidas no julgamento de projetos de pesquisa (sanidade financeira da empresa, comprovação de ausência de débitos fiscais, recursos humanos qualificados, equipamentos adequados, etc.), constam do edital as seguintes condicionantes: a) apresentação de proposta cost plus, ou seja, custos diretos envolvidos no desenvolvimento mais over head; b) apropriação de custos acompanhada por auditor permanente, contratado pela agência às custas do projeto; c) propriedade industrial resultante do desenvolvimento pertencencente à agência (patente, segredo de negócio etc.) ; d) exigências rigorosas de sigilo; e) caso o desenvolvimento seja bem sucedido, a empresa ou a rede terá a preferência para exploração do resultado, devendo pronunciar-se a esse respeito no prazo de “x” meses, após o término dos trabalhos; f) no caso de exercer a opção pelo uso da tecnologia, caso conste das cláusulas contratuais, a empresa ou rede poderá ser obrigada a remunerar o fundo público com “y”% do faturamento bruto, na venda do equipamento (obs.: os royalties poderão ser cobrados até que o montante dos recursos recebidos pelo fundo atinjam os gastos efetuados com o desenvolvimento, acrescidos de “x”% , a título de remuneração do risco); e 24 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia g) caso a empresa não exerça a sua opção positivamente e no prazo fixado, a agência gestora do fundo poderá licenciar uma terceira parte, em condições a serem negociadas. Para estimular a concorrência, a agência governamental poderá financiar o desenvolvimento do mesmo produto por duas empresas independentemente. Escolhida a melhor solução após testes de desempenho, a empresa vencedora receberá a totalidade ou a maior parte das encomendas de produção. A outra empresa poderá se contratada para produção, porém empregando a tecnologia escolhida. Dessa maneira as duas competirão no preço final a ser pago pelas Forças Armadas na aquisição do produto. Outra alternativa para estimular a concorrência, caso seja apenas uma empresa a desenvolvedora, como no exemplo acima, será obrigá-la contratualmente a transferir a tecnologia para que uma outra empresa possa produzir o mesmo equipamento. Colocando encomendas de produção nas duas empresas, estará estabelecida a concorrência, com conseqüente estímulo à maior eficiência e diminuição de custos em ambas. Neste ponto, julgou-se oportuno verificar sumariamente os procedimentos dos EUA. Naquele país, as Federal Acquisition Regulations - FAR (Part 35) especificam as instruções para a contratação de P&D (FAC97-26 de 16 de Maio de 2001) com a intenção de produzir avanços nos conhecimentos científicos e tecnológicos e de aplicá-los em objetivos da agência financiadora ou do país. As FAR tem um complemento relativo às Forças Armadas, as Defense Federal Acquisition Regulations Suplement - DFARs. Reconhece-se que, contrariamente aos contratos para fornecimento de bens ou de serviços, a maior parte dos contratos de P&D tem objetivos para os quais os trabalhos a serem realizados e os métodos necessários não podem ser determinados a priori e a probabilidade de sucesso é imprevisível. As relações comerciais entre o governo federal daquele país e o setor produtivo privado se dão, em geral, através de: • contratos de fornecimento; • subvenções (grants); e • acordos de cooperação. Os contratos de P&D são usados quando o principal usuário dos resultados é o governo federal. Subvenções e acordos de cooperação são usados quando o principal objetivo do aporte de recursos é estimular ou financiar P&D para outros propósitos públicos. O Departamento de Defesa (DoD), porém, tem autoridade para fazer outros tipos de negócios envolvendo projetos de pesquisa que não se enquadram nos contratos, subvenções ou acordos acima expostos. São cobertos pelo instrumento denominado “Other Transaction Authority (OTA) for Prototype Projects”, que permite grande flexibilidade nas negociações uma vez que estas não têm que seguir Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 25 Waldimir Pirró e Longo as FAR. O DoD conta também com os Technology Investment Agreements (TIA), que são uma classe de instrumentos de ajuda usada para projetos de pesquisas básicas, aplicadas e avançadas, a serem conduzidas por empresas privadas ou consórcios que incluem pelo menos uma empresa. A participação das empresas nos custos dos projetos é desejável, mas não mandatória. Os contratos de P&D exigem precisos Termos de Referência bem detalhados, claros e que, adicionalmente, permitam que o contratado possa exercer a sua criatividade e capacidade inovadora. Quanto à escolha do tipo de contrato, o governo normalmente prefere aquele que estabelece um custo previamente fixado. Isto nem sempre é possível. O usual é o contrato que estabelece o reembolso dos custos efetivamente ocorridos. Quando for conveniente premiar o desempenho, são usadas as variantes preço fixo + incentivo e custo + incentivo. Para diminuir o risco do governo, quando possível, é feito um contrato de curta duração e preço fixado, através do qual é desenvolvida a concepção do projeto e resolvidos problemas potencialmente relevantes. Em geral, é evitado, de início, o comprometimento com o desenvolvimento de determinado produto e de seus testes, a não ser que o governo tenha fixado prazos e determinado as exigências mínimas que o produto deva satisfazer, ou se estudos e trabalhos exploratórios indicarem alto grau de probabilidade de sucesso. As FAR regulam: editais de chamada, uso de assessores, propriedade intelectual, sigilo, sub-contratações, seguros, compra e posse de bens (equipamentos) com recursos do contrato etc. Capítulos específicos das FAR tratam dos contratos com instituições de ensino e organizações sem fins lucrativos, assim como com Centros de P&D financiados pelo governo federal (FFRDCs). Mecanismos de estímulo à concorrência entre firmas constam, por exemplo, no Defense Authorization Act (1986) e do Competition in Contracting Act (1984). 6. Alguns Aspectos da Contratação e Financiamento de P&D no Brasil No Brasil, o primeiro instrumento financeiro de apoio ao desenvolvimento de ciência e tecnologia, foi o Fundo de Desenvolvimento Tecnológico – FUNTEC, criado em 1964 no então BNDE. Este Fundo teve um papel relevante nos anos 60, perdendo paulatinamente importância até a sua extinção em 1975. Ainda no BNDE, em 1965, foi criado o Fundo de Financiamento de Estudos e Projetos e Programas, de natureza contábil, dirigido por uma Junta Coordenadora presidida pelo Ministro do Planejamento. Sua finalidade era prover recursos para financiar a elaboração de programas e propostas de investimento. Em 1967, foi criada a Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, empresa do setor público, que sucedeu ao Fundo assumindo seus direitos e obrigações, devendo ainda avaliar a viabilidade de projetos de investimentos para o Ministério do Planejamento. 26 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Em 1968, foi promulgado o Plano Estratégico de Desenvolvimento que, pela primeira vez, abordava explicitamente a questão científica e tecnológica como objeto de política governamental. O fato é que no final da década de 60 o financiamento da pesquisa era feita no nível individual, diretamente ao pesquisador, e não adequada para dar suporte de maneira flexível à expansão pretendida e sendo planejada para a área científica e tecnológica. Para sanar essa lacuna, em 31 de Julho de 1969, pelo Decreto Lei no 719, foi criado o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT, “com a finalidade de dar apoio financeiro aos programas e projetos prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico, notadamente para a implantação do Plano Básico de Desenvolvimento Científico Tecnológico – PBDCT”, que, por sua vez, deveria detalhar o Plano Nacional de Desenvolvimento – PND na área da ciência e tecnologia. O mesmo Decreto-Lei previu que a aplicação dos recursos do fundo obedeceria “a diretrizes, planos e normas expedidas por um Conselho Diretor”. Tal determinação, somente veio a ser implementada quarenta anos depois, por meio da Lei 11.540 de 12 de Novembro de 2007, regulamentada pelo Decreto 6.938 de 13 de Agosto de 2009, no Conselho Diretor criado, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), onde tem assento um representante do Ministério da Defesa (MD). O Decreto de criação do FNDCT previa, ainda, que o mesmo seria “dotado de uma Secretaria-Executiva cuja organização e funcionamento” seriam “estabelecidos em Regulamento”. Tal determinação foi atendida quase um ano depois, por força do Decreto 68.748, de 15 de Junho de 1971, que atribuiu essa função à FINEP. Sob o ponto de vista operacional, estava dotada a agência FINEP de mecanismos de apoio capazes de cobrir todas as fases de um projeto, “ou seja: pesquisa básica – pesquisa aplicada – desenvolvimento experimental – estudo da viabilidade econômica– engenharia final” assegurando “a continuidade da seqüência ‘pesquisa – empreendimento’”1. A FINEP inicialmente concebida para apoiar as empresas de consultoria, tornou-se uma agência singular, uma vez que passou a atuar em todo o espectro do desenvolvimento científico e tecnológico. Com a feliz simbiose FNDCT/FINEP estava criada a mais importante fonte de recursos e o mais poderoso instrumento de desenvolvimento científico e tecnológico que o País viria a dispor até os dias atuais2. Um acontecimento importante ocorreu no final da década de 90 com a destinação, pela Lei 9.478 de 16 de agosto de 1997, de um percentual dos royalties, sobre a produção de petróleo, para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Em cada contrato de concessão de exploração de petróleo é fixado o royalty devido, pela Agência Nacional de Petróleo - ANP, podendo esse valor situar-se entre 5 e 10%, dependendo dos riscos geológicos, das expectativas de produção e de outros fatores 1 2 Relatório de Atividades, FINEP, Rio de Janeiro, RJ, 1973. LONGO, W.P. “De um passado glorioso a um futuro brilhante”, Inovação em pauta, FINEP, vol. 7, ago./ out., Rio de Janeiro, RJ, 2009. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 27 Waldimir Pirró e Longo pertinentes. Da parcela do valor do royalty que exceder a 5% da produção, 25% serão destinados “ao Ministério da Ciência e Tecnologia para financiar programas de amparo à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico aplicados à indústria do petróleo”. Do total dos referidos recursos, “40%, no mínimo, serão aplicados em programas de amparo a pesquisa de desenvolvimento tecnológico para a indústria do petróleo nas regiões Norte e Nordeste”. Tal medida, evidentemente, busca diminuir as notórias desigualdades regionais existentes, também, na área de C&T do País. Em novembro de 1998, através do Decreto 2.851, os referidos royalties devidos ao MCT foram destinados ao FNDCT, ou seja, para serem administrados pela sua Secretaria Executiva que é a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP. Com tal decisão, evitou-se a criação de uma nova agência, abrindo-se novas perspectivas de revitalização do FNDCT, através de recursos não dependentes do orçamento da União e alocados, hipoteticamente, sem barreiras e com regularidade. A partir dessas medidas, foi criado o Fundo Setorial de Petróleo e Gás Natural – CTPetro, que teve sua operação iniciada em 1999. Criou-se, então, a expectativa de que outros fundos que fossem criados, principalmente a partir da concessão de exploração de serviços outorgada pelo Governo Federal, viessem a ter a mesma destinação, ou seja, colocados no FNDCT que se tornaria um grande Fundo, voltado principalmente para o desenvolvimento de setores definidos pela origem dos recursos. A criação dos fundos, supridos por recursos extraorçamentários assegurados, poderia dar maior estabilidade ao sistema nacional de inovação, permitindo, entre outros benefícios, o planejamento de longo prazo. Em abril de 2000, o Governo deu início ao atendimento de tal expectativa, propondo ao Congresso, com sucesso, a criação de outros fundos setoriais. Hoje estão em funcionamento dezesseis fundos, sendo quatorze relativos a setores específicos (aeronáutica, agronegócio, Amazônia, aquaviário, biotecnologia, energia, espacial, hidroviário, informática, mineral, petróleo e gás, saúde, transporte, telecomunicações) e dois gerais, um voltado à interação universidadeempresa (FVA – Fundo Verde-Amarelo), e o outro é destinado a apoiar a melhoria da infra-estrutura de ICTs (infraestrutura). Somente um dos fundos setoriais não foi colocado no FNDCT, o FUNTTEL – Fundo para Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações, administrado pelo Ministério das Comunicações. As receitas dos Fundos são oriundas de contribuições incidentes sobre o resultado da exploração de recursos naturais pertencentes à União, parcelas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de certos setores e de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre os valores que remuneram o uso ou aquisição de conhecimentos tecnológicos/transferência de tecnologia do exterior. Em julho de 2004, foi decidido pelo Comitê de Coordenação dos Fundos Setoriais, que cada Fundo contribuiria com 50% dos seus recursos para programas 28 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia estratégicos do MCT que tivessem como objetivo atender, prioritariamente, à Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) do Governo Federal. Esse mecanismo que utiliza recursos de diversos Fundos Setoriais simultaneamente recebeu o nome de Ações Transversais, contemplando inclusive recursos para projetos da área da defesa. A Tabela 6 fornece os recursos arrecadados e desembolsados pelos Fundos Setoriais, em 2008. TABELA 6 – FUNDOS SETORIAIS: ARRECADADO E EMPENHADO - R$ (2008) Fundo Setorial Arrecadado Empenhado CT-Aeronáutico 44.047.119,0 31.396.787,0 CT-Agronegócio 102.776.614,0 80.362.988,0 CT-Amazônia 21.540.324,0 16.619.948,0 CT-Aquaviário 44.266.168,0 21.590.418,0 CT-Biotecnologia 44.047.119,0 32.126.267,0 CT-Energia 179.422.539,0 78.981.432,0 CT-Espacial 10.102.666,0 1.029.727,0 CT-Hidro 48.434.964,0 46.372.396,0 CT-Info 43.187.426,0 32.338.112,0 497.729.163,0 299.643.901,0 13.727.642,0 7.964.604,0 1.064.402.005,0 115.750.584,0 102.776.614,0 80.855.263,0 78.303,0 10.368,0 293.647.471,0 270.763.683,0 2.510.186.138,0 1.111.826.478,0 CT-Infraestrutura CT-Mineral CT-Petro CT-Saúde CT-Transporte CT-Verde-Amarelo TOTAL Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira Federal – SIAFI A Figura 2 apresenta, em valores correspondentes a reais de Dezembro de 2008, os recursos disponibilizados pelo FNDCT desde a sua criação. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 29 Waldimir Pirró e Longo FIGURA 2 – ORÇAMENTO DO FNDCT Fonte: FINEP Outros eventos decisivos para acelerar o amadurecimento do sistema nacional de inovação do Brasil foram a regulamentação, através do Decreto 5.796/2006, da Lei 11.196/2005, chamada de Lei do Bem, e a regulamentação, através do Decreto 5.563/2005, da Lei 10.973/2004, mais conhecida como Lei da Inovação. A Lei do Bem reorganizou e ampliou, basicamente, os incentivos fiscais para investimentos empresariais em PD&E voltados para inovação tecnológica. A Lei da Inovação, por sua vez, criou incentivos não fiscais, com três objetivos: a constituição de ambiente propício a parcerias estratégicas entre universidades, institutos tecnológicos e empresas; o estímulo à participação de institutos de ciência e tecnologia no processo de inovação; e o estímulo à inovação na empresa, principalmente, através do instrumento da subvenção, que prevê o aporte de recursos públicos, não-reembolsáveis, diretamente às empresas, beneficiando empresas inovadoras. A Lei da Inovação estabelece, ainda, dispositivos legais para a incubação de empresas no espaço público e a possibilidade de compartilhamento de infraestrutura, equipamentos e recursos humanos, públicos e privados, para o desenvolvimento tecnológico e a geração de inovações de produtos e de processos. Cria, também, regras claras para a participação de pesquisadores públicos nos trabalhos de inovação tecnológica desenvolvidos no setor produtivo. 30 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia Quanto ao valor da subvenção, este é definido anualmente por meio de portaria interministerial e tem como fonte de recursos o FNDCT. O decreto estabelece que na alocação dos recursos deverão ser seguidas as prioridades definidas na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), embora não exclusivamente. Embora muito se tenha que aprender com a prática, a introdução da subvenção entre os mecanismos de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico tem sido considerado um sucesso desde o seu início de operação em 2006. A Tabela 7 apresenta o seu desempenho até 2009. TABELA 7 – SUBVENÇÃO ECONÔMICA: DEMANDA E ATENDIMENTO Demanda 2006 2007 2008 2009 Nº de Projetos 1.100 2.568 2.665 2.558 1,9 2,5 6,2 5,2 145 174 245 Disponivel (milhões R$) 300,0 450,0 450,0 450,0 Contratados(milhões R$) 274,0 313,0 514,0 Solicitado (bilhões R$) Atendimento Nº de Projetos Fonte: FINEP Através do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas – PAPPE, concebido para ser coordenado pela FINEP e ser executado em parceria com as agências de apoio à pesquisa nos estados, o mecanismo de subvenção foi disseminado e ampliado no País. O Programa atua em apoio direto ao pesquisador, associado a uma empresa já existente, ou em criação, financiando o seu projeto de pesquisa de criação de um novo produto ou processo. Já em 2008, os editais do PAPPE Subvenção contaram com R$ 150 milhões do FNDCT e R$ 95 milhões de agências de 17 estados. Do que foi exposto sob o custeio da inovação na área da defesa, pode-se concluir que a Lei da Inovação, tanto nos seus aspectos conceituais como nos operacionais, deverá ser um instrumento dos mais importantes a ser utilizado para benefício da PD&E executadas pela BID. Finalmente, a Figura 3 apresenta os recursos alocados pela FINEP para a área da defesa, através de ações transversais indutoras na área da defesa, a partir de 2005. Dignos de nota são o crescimento do total dos recursos e a subvenção e crédito disponibilizados para empresas da BID. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 31 Waldimir Pirró e Longo FIGURA 3. AÇÕES NA ÁREA DE DEFESA: EVOLUÇÃO DOS RECURSOS Fonte: FINEP 7. Conclusão e Propostas Referentes à Questão do Custeio da PD&E para a BID Nos itens anteriores, além de abordar algumas especificidades da geração de tecnologias, particularmente as militares, salientou-se a responsabilidade do Governo Federal no custeio, total ou parcial, das atividades de PD&E necessárias à BID de qualquer país. Mostrou-se, também, que o Brasil dispõe de instrumentos, mecanismos e arcabouço regulatório voltados para o desenvolvimento científico e tecnológico em pleno e satisfatório funcionamento que permitem concluir que os mesmos poderão atender à BID se convenientemente complementados e adaptados às particularidades do setor de defesa. Exemplos de arcabouço legal são a Lei do Bem e a Lei de Inovação, anteriormente mencionadas, que regulam, principalmente, incentivos fiscais e a subvenção econômica às empresa privadas, com recursos públicos, ambos mecanismos indispensáveis ao estímulo ao crescimento da BID. Assim, considera-se respondida a pergunta formulada na Introdução do presente trabalho.. Ainda quanto ao custeio da PD&E de interesse da BID, são formuladas duas propostas. A primeira é a criação, pelo Governo Federal, de um Fundo Setorial para a área da defesa, a exemplo dos fundos já criados e alocados ao FNDCT. Tal fundo, o FUNDEFESA, seria composto por recursos orçamentários do Ministério da Defesa, complementados por recursos extra orçamentários, de fonte a definir, 32 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia cujo provimento fosse assegurado livre de complexas tramitações políticas e burocráticas. Os projetos de desenvolvimento tecnológico exigem planejamento de longo prazo, requerendo alocação de recursos que geralmente ultrapassam um ou vários orçamentos anuais de órgãos públicos. Além disso, oscilações de ocorrência normal no tocante aos recursos orçamentários podem, não só prejudicar os desenvolvimentos, bem como minar a credibilidade do órgão financiador. Adicionalmente, corre-se o risco de, no orçamento, haver uma competição na alocação de recursos entre PD&E e outras necessidades do MD e das Forças, com predominância do atendimento das necessidades prementes de curto prazo, em prejuízo do desenvolvimento científico e tecnológico. Oriundos, parcialmente, de receita extraorçamentária com destinação específica, os recursos para PD&E ficariam a salvo de tal disputa. Finalmente, com recursos orçamentários, tornase difícil, senão impossível, subvencionar empresas privadas, como praticado com os Fundos Setoriais. Daí a importância de se dispor, também, de recursos extraorçamentários para custeio da PD&E para a BID. Recentemente o Governo Federal anunciou que uma parte dos recursos advindos da exploração do petróleo do chamado Pré-Sal seriam alocados, entre outras finalidades, para o desenvolvimento científico e tecnológico. Sugere-se que um percentual desses recursos sejam destinados ao Fundo Setorial para Defesa FUNDEFESA. Uma alternativa, por exemplo, seria prover o Fundo com um percentual das vendas de cigarros e de bebidas alcoólicas, e do movimento financeiro de jogos de azar permitidos, como praticado pela Turquia3. A segunda proposta, refere-se à disponibilidade de uma agência de fomento científico e tecnológico específica para a área da defesa, que administraria o Fundo. Tal agência permitiria que o MD e as Forças financiassem, sob sua decisão, interesse e controle, PD&E em universidades, institutos e empresas. Sem tal agência, o relacionamento entre o Ministério da Defesa e as Forças e a comunidade científica e tecnológica depende da interveniência de terceiros, situação no mínimo delicada quanto à operacionalidade (capacidade decisória, prioridade, sigilo etc.). Evidentemente, a operação duma tal agência exige uma estrutura complexa pois compreende operações financeiras que vão desde recursos sem retorno com a comunidade científica, até negócios com empresas. Em outras palavras, requer uma estrutura que atenda, simultaneamente, as obrigações duma agência dedicada à ciência e de um banco de desenvolvimento tecnológico. Ou seja, com competência que vai desde o julgamento do mérito científico de projetos, até análise da sanidade financeira de empresas para possível investimento de risco em desenvolvimento tecnológico, com consequentes desdobramentos administrativos e jurídicos. 3 AMARANTE, J. C. A. “Recursos para a Defesa do Patrimônio Brasil”. In Revista Brasileira de Estudos Estratégicos, v. 1, p. 1, 2009. Disponível em: <http://www.nestbrasil.com/rest/page8/files/rested1-amarante.pdf>. Acesso em: 15/09/2009. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 33 Waldimir Pirró e Longo No Brasil, o melhor exemplo de tal estrutura é a própria FINEP, subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e gestora do FNDCT. Sugere-se que existem duas soluções para dispor-se de tal agência. A primeira, seria através da criação da mesma no Ministério da Defesa, implicando montagem da complexa estrutura acima relatada. A segunda solução, seria realizar a operacionalidade do Fundo através da FINEP. Nesse caso, um acordo entre o MD e o MCT, faria com que o FUNDEFESA fosse, a exemplo dos outros fundos setoriais, colocado no FNDCT. Mediante uma taxa de administração a ser paga pelo FUNDEFESA à FINEP, esta faria a administração do mesmo em estreita ligação com o MD. O valor da taxa seria aquele usualmente praticado pela FINEP em situações semelhantes. O autor é de opinião que a segunda solução é a mais conveniente no momento, por razões óbvias, tais como: menor custo administrativo, rapidez de entrada em operação, experiência e credibilidade da FINEP e aliança estratégica já firmada pelo MD com o MCT. O entrosamento entre a FINEP e atores, civis e militares, do Sistema Setorial de Inovação Tecnológica em Defesa é uma realidade. A criação de uma agência inteiramente operada pelo MD, ficaria postergada para a ocasião em que os recursos alocados à PD&E de defesa atingissem montantes tão elevados que justificassem tal decisão. Referências AMARANTE, J. C. A. “Recursos para a Defesa do Patrimônio Brasil”. Revista Brasileira de Estudos Estratégicos, v. 1, p. 1, 2009. Disponível em:<http://www.nestbrasil. com/rest/page8/files/rested1-amarante.pdf>. Acesso em: 15/09/2009. 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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 35 Waldimir Pirró e Longo ANEXO 1 PD&E NO DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS EUA Sub Secretária de Defesa para Aquisição, Tecnologia e Logística. - Diretoria de Pesquisa e Engenharia da Defesa (DDRE) - Agência da Defesa para Projetos de Pesquisa Avançada (DARPA) - Agência da Defesa para a Redução de Ameaças (DTRA) - Agência da Defesa para Misseis (DMA) Secretaria da Marinha dos Estados Unidos (USSNAVY) - Escritório do Secretário Assistente da Marinha (Pesquisa, desenvolvimento e aquisição) - Comando de Sistemas (SYSCOMs) - Comando de Sistemas Aero Navais (NAVAIr) - Comando de Sistemas Navais Marítimos (NAVSEA) - Comando de Sistemas de Guerra Espacial e Naval (SPAWAR) - Comando de Sistemas de Suprimento Naval (NAVSUP) - Comando de Engenharia de Instalações Navais (NAVEAC) - Comando de Sistemas de Fuzileiros Navais (MARCOR) - Escritório de Pesquisa da Marinha (ONR) - Programas Executivos (PEOs) - (14 Programas: navios, submarinos, porta aviões, C4I etc.) - Vice Secretário Assistente da Marinha (DASN) Secretaria do Exército dos Estados Unidos (USSA) - Comando do Material do Exército (AMC) - Comando de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia (REDECOM): - Laboratório de Pesquisa do Exército (ARL) - Escritório de Pesquisa do Exército (ARO) - Centro de PD&E em Aviação e Mísseis (AMRDEC) - Centro de PD&E em Armamento (ARDEC) - Centro de PD&E em Comunicações e em Eletrônica (CERDEC) - Centro Edgewood de Química e Biologia (ECBC) - Centro de PD&E Soldado Natick (NSRDEC) 36 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 Indústria de Defesa: Pesquisa, Desenvolvimento Experimental e Engenharia - Centro de Tecnologias de Simulação e Treinamento (STIC) - Centro de PD&E em Tanques e Viaturas (TARDEC) - Atividade do Exercito em Análise de Sistemas de Materiais (AMSAA) Secretaria da Força Aérea dos Estados Unidos (USSAF) - Comando do Material da Força Aérea (AFMC) - Centro de Sistemas Aeronáuticos (ASC) - Centro de Testes de Vôo da FA (AFFTC) - Centro de Suporte Logístico Global da FA (AFGLSC) - Centro de Armas Nucleares da FA (AFNWC) - Laboratório de Pesquisa da Força Aérea (AFRL) - Centro de Assistência à Segurança da FA (AFSAC) - Centro de Armamento Aéreo (AAC) - Centro de Desenvolvimento e Engenharia Arnold (AEDC) - Centro de Sistemas Eletrônicos (ESC) - Comando do Espaço da FA (AFSPC) - Centro de Inovação e Desenvolvimento Espacial (SIDC) - Centro de Sistemas de Mísseis e Espaciais (MSSC) - Escritório de Pesquisa Científica da Força Aérea (OSRAF) - Instituto de Pesquisa da Força Aérea (AFIT) Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 7-37, jan./jun. 2011 37 Jorge Calvário dos Santos Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional Jorge Calvario dos Santos Coronel Aviador, Doutor em Ciências de Engenharia pela COPPE/UFRJ e assessor do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra Resumo O texto busca apresentar a questão da cultura como elemento primordial para a identidade e unidade nacional. Isso porque cultura é o modo de vida de um povo. Apresenta a cultura como sendo a característica, a forma e a sustentação da sociedade nacional bem como a identidade e a unidade como sendo inerentes à cultura. Mostra a participação da cultura da economia e da política na constituição da sociedade e as tensões existentes entre elas. Mostra também que a unidade entre religião e cultura é extraordinariamente forte a ponto admitir que, de um ponto de vista, religião é cultura e, de outro ponto de vista, cultura é religião. O texto mostra que religião é a força criativa de uma cultura e quase toda cultura histórica tem sido inspirada e informada por uma grande religião. Palavras-chave: Cultura. Unidade Nacional. Identidade Nacional. Religião. Abstract The paper presents the subject of culture as the main element for national identity and national unity. This is because culture is the way of life of a whole people. It also presents culture as being the characteristic, the shape and the support of national society, as well as identity and unity being inherent to culture. Presents the participation of culture economy and politics in the constitution of society and the tensions existing between them. It also shows that the unit between religion and culture is extraordinarily strong to admit that, from one point of view religion is culture and, from another point of view, culture is religion. The text shows that religion is the creative force of a culture and almost all historic culture has been inspired and informed by some great religion. Keywords: Culture. National Unity. National Identity. Religion. Introdução Nos últimos tempos, no Brasil, muito tem sido falado, ainda que pouco se tenha discutido, sobre temas como: raça, aborto, cotas para acesso à Universidade, 38 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional relações sociais, cidadania, multiculturalismo, etnia, políticos, corrupção, esquerda, direita, dentre outros. Nesses assuntos, estão inseridas questões centrais sobre quem somos, o que somos e como somos. Subjacente a estas está a fundamental, não discutida e nem mesmo falada importância da “identidade e da unidade nacional”. Diante da relevância da matéria compete à Academia liderar a discussão sobre o assunto, como ocorre em outros países. A Escola Superior de Guerra (ESG) tomou a iniciativa de realizar um seminário sobre o tema que pode servir de modelo a outras instituições de ensino superior para que assumam essa responsabilidade essencial ao futuro da nacionalidade e, portanto, do País. Fala-se com certa frequência que sofremos uma “crise de identidade”. Será real esta crise? Se real, qual a razão e suas consequências? Huntington (2004, p. 12) afirma que ocorrem muitas crises de identidade pelo mundo, incluindo o Brasil nesse contexto. Porém, o problema no Brasil é diferente dos demais, principalmente por ser uma nação muito jovem. Descoberto há quinhentos anos, só com a chegada de D. João VI que, realmente, se iniciou a formação da sociedade nacional. O país tornou-se Estado antes de constituir-se como nação, para o que são necessários séculos de história. A propósito, surgem algumas questões: Estamos prontos? Somos uma sociedade madura, organizada e consolidada? As opiniões variam. Constata-se um comportamento peculiar, no qual divergimos de nós mesmos. Somos a favor e, também, somos contra nós, nos depreciamos e nos valorizamos. Por quê? Sobre Cultura A antropologia, ao se interrogar pelo homem em geral, defronta-se, de imediato, com a cultura como sendo seu traço essencial. A partir daí, confunde-se o ser homem e o ser cultural. Sabe-se que todo homem se assemelha a outro por possuir uma cultura, uma identidade, uma individualidade e personalidade. Isso faz dos indivíduos e dos povos, comunidades humanas e civilizações. Por haver uma estreita relação de pertencimento entre cultura, identidade e unidade, o tema deve ser tratado no contexto da cultura para desvelar o sentido da unidade e da identidade nacional. A palavra “cultura” estaria reservada, portanto, para uma formação social que inaugura um novo modo de ser: ser-consigo-mesmo, ser-com-o-outro, ser-no-mundo e ser-frente-ao-Absoluto1. Em todos os contextos, seja no discurso político, no conteúdo da maioria dos livros, nas análises e na linguagem corrente e na própria Constituição Federal, que divide a sociedade, são reconhecidas três dimensões como fundamentais na 1 Este é um conceito expandido do formulado por Coelho de Sampaio em O Futuro da Psicanálise. Palestra realizada na série de eventos “O Futuro da Psicanálise”, promovida pela UERJ, FINEP e estudos transitivos do contemporâneo. Rio de Janeiro. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 39 Jorge Calvário dos Santos sociedade nacional: uma política, uma econômica e uma cultural (na Constituição, a dimensão social se confunde com a cultural). A constituição da sociedade, em suas três dimensões, tem uma razão profunda. A dimensão cultural é a essência da sociedade que, por ser um todo, é um, mas comporta as individualidades. Portanto, é uma síntese do um e do múltiplo. Se as pessoas se isolassem, não formassem a unidade, não haveria uma sociedade e, caso não tivéssemos individualidade, não se teria uma comunidade ou uma sociedade. Entre pedras não tem sentido falar de comunidade. Então, a sociedade, em outras palavras, é uma síntese de múltiplas individualidades. Para que uma sociedade funcione, é preciso que tenha uma força de unificação, de coesão, e esse é exatamente o papel da cultura. A cultura é aquilo que nós temos em comum, apesar das nossas divergências, ou seja, a maneira de ver o mundo, de interpretar, os costumes, os valores etc., sem esquecer também de mencionar a língua, que é o fundo comum partilhado por todos. A cultura abriga em sua essência a religião. Entre cultura e religião existe uma forte unidade. A outra dimensão é a econômica. O econômico, pela própria natureza, é uma força de desagregação da sociedade, de diferenciação, porque a própria ideia do econômico é alguma coisa que visa outra coisa. A própria ideia do econômico, na essência do econômico, mostra que o fato de que eu trabalhe significa que me faço outro. Trabalhar significa ser o outro da natureza, mudar a natureza ou agir sobre os demais, para, assim, mudar a natureza. Então, o econômico, por si, é um produtor de diferença. E qualquer sociedade que tente imprimir um ritmo acelerado à economia, ter uma economia pujante, tende à desagregação, à diferenciação entre pessoas, entre grupos, entre as regiões. É produzida a diferenciação pelo econômico. Então, por que a sociedade não se fragmenta em função de uma atividade econômica mais acelerada? Porque ela tem um contrapeso que atua para a união do grupo, que é exatamente a cultura. São estas duas forças, uma de coesão, que é a força da cultura e que se articula com a força econômica, que é dispersiva, diferenciadora, que vão compor, por síntese, a dimensão política. O político seria a síntese dialética dessas duas dimensões fundamentais da sociedade. Se não há uma coesão política, a economia prevalecendo, fragmenta-se a sociedade. E se prevalece em demasia essa força de unificação, a sociedade perde esse dinamismo econômico. Numa sociedade bem estruturada, madura, essas três dimensões interagem e estão em equilíbrio. Nenhuma dessas dimensões, no entanto, deve ser negligenciada, pois pode pôr em risco o futuro da sociedade nacional. Diante do imperativo cultural na vida das nações, as preocupações centrais desse início de século deveriam ser direcionadas para a cultura e, não, preferencialmente para a economia e a política, como têm sido até então. Sabe-se que a sociedade é uma coletividade, um todo, uma unidade. Esse é um aspecto essencial, e mesmo fundamental, que se faz necessário estudar face 40 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional à relação de pertencimento mútuo, à relação biunívoca entre cultura e unidade e cultura e identidade. Essa relação tem abrigo no seio da nacionalidade e, por isso, deve ser preservada, pois é fundamental para a sobrevivência da nação como tal. Nenhuma cultura é permanente. Todas nascem, crescem e fenecem. Todas, mesmo as mais desenvolvidas, em algum momento, especialmente quanto atingem o ápice de sua história, são ameaçadas, seja por outra cultura, que caminha para lhe suceder, ou por uma desagregação interna, decadência, perda de compromisso da sociedade quanto ao futuro, que a faz paulatinamente encerrar sua participação, como referência maior, no processo histórico. A cultura quase desafia sua própria definição por ser uma atmosfera penetrante em vez de um sistema articulado. Uma força social que cerca os indivíduos e os une em comunidades. Ela dá forma a preconceitos, ideias, valores, hábitos, atitudes, gostos e prioridades. O Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Moderno, lida com cultura, economia e política em três capítulos sucessivos, dando certa prioridade (ao menos de ordem) à cultura sobre as outras duas. Desde o Concílio, Karol Wojtyla, antes e depois de sua eleição como papa, enfatizou a importância indispensável da cultura. Em muitos de seus textos, até mesmo na Centesimus Annus, ele ressalta que ela é mais facilmente entendida do que a economia ou a política, porque lida com as questões mais profundas da vida. Enquanto a política e a economia estão preocupadas com bens próximos e limitados, a cultura tem relação com o significado da existência humana como um todo. Ela examina o que somos como seres humanos e o que é a realidade na sua mais ampla dimensão. Tocando, como o faz, no transcendente, a cultura não pode fugir do mistério, até mesmo do mistério mais profundo de todos, que chamamos pelo nome de Deus. “No centro de cada cultura”, lê-se na Centesimus Annus, “está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus” (CA parágrafo 24) (SARAIVA, 2006). A cultura, portanto, é inseparável da religião. João Paulo II, provavelmente, concordaria com o teólogo luterano Paul Tillich, que escreveu: [...] religião é a substância da cultura e cultura a forma da religião (...) a religião não pode expressar-se mesmo num silêncio cheio de significado sem a cultura, da qual toma todas as formas de expressão significativas. E devemos reafirmar que a cultura perde sua profundidade e inesgotabilidade sem a supremacia do Supremo. (SARAIVA, 2006). As culturas do passado nunca foram concebidas como ordens puramente estabelecidas pelo homem. Organizam-se como uma lei religiosa da vida que coordena os poderes divinos e regem a existência da natureza e a do homem. Assim, a relação entre religião e cultura tem duas faces: o sistema de vida que influi no modo de considerar a religião, e a atitude religiosa que influi no sistema de vida (DAWSON, 1948). T. S. Eliot entende que os elementos primários da cultura são a família, região e religião (DAWSON, 2002, P. 111-112). Enquanto Karl Mannhein tem interesse no Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 41 Jorge Calvário dos Santos mecanismo de mudança social, Eliot, a preocupação no problema da tradição social. A manutenção e a transmissão de padrões de cultura fazem parte das preocupações de Eliot, que mostra a função de classe como todo a fim de preservar a comunicação de padrões de comportamento que constituem um elemento vital para a cultura (DAWSON, 2002, p. 111). A segurança da liberdade espiritual se torna possível pela religião e, não, pela diferenciação social, desde que venha a levar o homem em suas relações com uma ordem elevada da realidade, do mundo dos políticos ou mesmo da cultura, e estabelecer a alma humana em fundações permanentes. Isso não significa que a religião esteja à parte, ou seja, indiferente à cultura. Para Eliot, cultura e religião têm forte e indissolúvel unidade. Argumenta ainda que a cultura seja o caminho da vida de um povo. Eliot admite que “Para refletir que, de um ponto de vista, religião é cultura e, de outro ponto de vista, cultura é religião” pode ser inquietante (DAWSON, 2002, p. 112-113). A unidade entre religião e cultura é extraordinariamente forte. Religião e cultura são inseparáveis e a clássica concepção da relação entre elas, como duas distintas realidades, não é mais aceitável. Essa relação é, essencialmente, o corolário da relação entre fé e vida (DAWSON, 2002, p. 112-113). Religião é a força criativa de uma cultura e quase toda cultura histórica tem sido inspirada e informada por uma grande religião (DAWSON, 2002, p. 114). Nenhuma cultura pode surgir ou desenvolver-se salvo em relação com uma religião (ELIOT, 1988, p. 41). Qualquer que seja ela, enquanto dura e em seu próprio nível, dá um significado aparente à vida, fornece a estrutura para uma cultura, e protege a massa da humanidade do tédio e do desespero (ELIOT, 1988, p. 48). Entretanto, a evolução de uma cultura pode conduzir a uma especialização cultural e resultar em sua desintegração. Isso significa que a desintegração é a ação mais radical que uma sociedade pode sofrer (ELIOT, 1988, p. 39). A cultura constitui-se em um sistema de vida organizado que se baseia em uma tradição comum, condicionada por um ambiente comum. Representa uma comunidade espiritual e implica em crenças e modos de pensar comuns. A função cultural da religião é tanto consagradora como dinâmica: consagra a tradição da cultura e proporciona a finalidade que unifica seus diferentes elementos sociais. As mudanças mais profundas da civilização estão sempre relacionadas com mudanças em crenças e ideais religiosos. Existe uma relação da cultura com a religião? Qual seria essa relação? É claro que um sistema de vida comum implica uma concepção de vida, normas de comportamento e tipos de valores, e, em consequência, uma cultura é uma comunidade espiritual que deve à sua unidade a crenças e modos de pensar comuns, mais do que a qualquer uniformidade de tipo físico. O homem moderno vive em uma sociedade muito secularizada e, por isso, tende a imaginar esta concepção da vida como algo secular, sem conexão necessária com as crenças religiosas (DAWSON, 1948, p. 48). 42 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional A religião exerce a função dinâmica e criadora que dá vida e energia, bem como mantém a sociedade em sua forma cultural permanentemente. Assim, para se compreender as formas internas de uma sociedade, é necessário entender sua religião predominante (DAWSON, 1948, p. 50). A relação entre cultura e religião é sempre ambígua. A forma de vida influi sobre a maneira de se considerar a religião que, por sua vez, sofre a influência da atitude religiosa. Cultura e religião se influenciam reciprocamente. Tudo o que parece ter importância essencial para a vida da gente se relaciona, intimamente, com a religião, e se cerca de sanções religiosas, de modo que cada aspecto da vida econômica e social tem sua correspondente forma de religião. Na medida em que esta tese esteja correta, pode-se construir uma classificação de religiões baseada nos principais tipos sociológicos e econômicos da cultura, nos diz Dawson (1948, p. 57). A religião tem duas funções fundamentais na sociedade: como força unificadora na criação de uma síntese cultural e como força de mudança em momentos de transformações sociais (DAWSON, 1948, p. 202). É possível, certamente, para a cultura negligenciar a questão de Deus e confinar seus horizontes ao temporal e ao visível. Mas, ao fazer isso, vulgariza-se ou erige falsos ídolos ao tornar absoluto algo menor que o Supremo. Essas formas superficiais e distorcidas de cultura não podem ser desmascaradas ou corrigidas, exceto por outra mais elevada ou mais sólida. Negligenciar a formação da cultura é, portanto, irresponsável. Uma questão de fundamental importância é que a cultura está moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito nesse mundo dito moderno. Ela é também determinante para a evolução ou dissolução das nações. É relevante ainda o fato de a política mundial estar sendo configurada seguindo linhas culturais e, não, predominantemente econômicas ou políticas. Tudo isso tem relevância porquanto a cultura nacional possui as características que possibilitam às suas culturas as condições para influenciar no futuro das nações. É necessário preservar as culturas nacionais de sua instrumentalização por outros homens e povos, situação de quem está submetido ao jugo político e econômico do colonialismo, juntamente com sua dominação ideológica, estranha aos povos das nações periféricas. O colonialismo, o imperialismo, o neocolonialismo e o racismo constituem uma ameaça constante às culturas nacionais, que tencionam esvaziá-las de sua profunda significação humanística e democrática e a substituílas por um pragmatismo e pelo empobrecimento espiritual da cultura de massa, conducente à desvalorização da pessoa. Naquilo que diz respeito ao pragmatismo, faz-se necessário ressaltar que esse conduz à redução de todo conhecimento à simples expressão de projetos de ordem prática. Em geral, os projetos coletivos predominam sobre os individuais, reduzindo a atividade cognitiva do indivíduo a uma subordinação regida pela obediente construção social de conhecimentos ditos úteis. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 43 Jorge Calvário dos Santos Vê-se que a cultura atrai a atenção da classe política e, por isso, tem sido considerada um instrumento da política. Relações culturais entre países, instalação de institutos destinados à cultura e inúmeras iniciativas são implementadas, presumivelmente, com a proposta de fomentar e incrementar a amizade entre as nações. Esses aspectos não devem encobrir o fato de que, no passado e em nossos dias, a política tem sido praticada dentro de uma cultura e entre representantes de diferentes culturas. Assim, cabe afirmar que o lugar de uma política é dentro de uma cultura e que, por isso, as políticas nacionais devem ser formuladas em função de características culturais. É fundamental conciliar a rica herança cultural do passado com valores da sociedade contemporânea para evitar uma crise de identidade, tendo a consciência de que as tradições devem encarnar-se nas novas criações firmemente dirigidas ao futuro. Inclui-se ainda neste contexto a importância de preservar e exercer a afirmação da identidade nacional, como ponto de partida da necessária assimilação da civilização imposta, para não ser um puro instrumento da mesma. Naturalmente cada povo, sociedade ou grupo social tem sua cultura. Entretanto, não são todos os povos, ou todas as sociedades, que conseguem evoluir até atingir a condição de civilização. Aqueles que desejam alcançar o centro, construir uma civilização, devem, acima de tudo, preservar e valorizar sua cultura, ter unidade e identidade. Com a existência de uma administração nacional independente de fatores exógenos, voltada para as suas reais demandas, concepção e futuro, baseados na cultura nacional, portanto, domésticos, e dirigidos aos verdadeiros interesses nacionais, principalmente quanto ao futuro da nação. Uma questão relevante para os brasileiros é o entendimento de que, no processo histórico, a cultura é determinante para a evolução ou dissolução das nações. O sistema de vida de qualquer sociedade exerce uma influência tão poderosa sobre cada um de seus membros que as diferenças de caráter e as predisposições hereditárias se incorporam aos sistemas culturais, tal como fios entrelaçados na confecção de um tecido. A cultura é, pois, a forma da sociedade. Sociedade sem cultura é uma sociedade informe que caminha para a desintegração (DAWSON, 1948, p. 48). As mudanças testemunhadas são bem maiores que apenas a ascensão e queda de Estados em particular. É a transformação de um mundo que conhecemos, secularizado, para outro diferente de todos os padrões vigentes, e que afetará todas as nações. Precisamos sair desse mundo secularizado que nos conduz a um mundo desconhecido. Mundo esse diferente de tudo o que conhecemos. Talvez um mundo intermediário entre o atual e o que de fato virá, sem sofrimento, desunião, desagregação ou, ao menos, semelhante com o que vivemos e presenciamos. Se o processo histórico mantiver suas características, após um longo processo de transformação, esta passagem se dará de um mundo materialista para outro mais espiritual e humano. Num regime democrático, a sociedade nacional deve 44 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional encontrar a correspondente organização da vida nacional. A sociedade e a cultura nacional devem transcender a esfera política. Os governos (políticos) formam uma associação que, a par de suas obrigações constitucionais, nem sempre garantem a unidade nacional, apenas a referenciam, mormente em benefício de interesses políticos (DAWSON, 1970, p. 25). Os partidos e regimes totalitários descobriram que as nações não vivem somente do essencial e têm tentado capturar suas almas pela violência e o uso de forças psicológicas em sua implacável caminhada em direção ao poder. Isso significa interferir na cultura de modo a romper com a unidade e identidade nacional, afastando a dimensão espiritual pela ênfase da dimensão material na vida nacional (DAWSON, 1970, p. 30-31). O mundo contemporâneo, especialmente nos países mais industrializados, demanda um elevado grau de organização. Essa organização não é limitada aos elementos materiais, estende-se pela sociedade, e através dela, para a vida ética e psicológica do indivíduo. Se não for assim, a sociedade moderna secularizada entra em processo de desagregação (DAWSON, 1970, p. 35-36). Importante ressaltar que os regimes totalitários e sem alternância de poder desenvolvem processo de padronização da cultura e supremacia da massa sobre o individual, o que é positivamente um perigo, afirma Dawson (1970). Sobre Unidade A unidade nacional (RODRIGUES, 1964) é fruto de um longo e lento processo histórico no contexto de uma estrutura cultural, onde são amalgamados valores, sentimentos, ideias, emoções e vontades vivenciadas por um povo, e que fundamentam uma nação. Por essa razão, não se deve confundir nação com uma soma de indivíduos, que vive e convive num determinado território. Como consequência desse processo solidificado, no tempo e no espaço, de uma cultura, surge e se firma a Pátria, que tem seus pilares na união do homem com a terra. Essa união é continuadamente enriquecida pela fidelidade aos valores que são constituídos pela solidariedade entre os nacionais. O Brasil foi o cadinho em que se juntaram as forças da mestiçagem na construção de uma nova sociedade, as quais interagiram num processo de sincretismo jamais visto em outra parte do mundo. Fundiram-se cultos fetichistas-animistas com o monoteísmo católico, de forma concedente e solidária, determinando uma permanente expectativa de tolerância religiosa. Firmaram-se alternativas de poder político, que vieram debilitar a permanência de posições radicais, derivando para a acomodação e conciliação, sem que, isoladamente, nenhuma ideologia predominasse. A proximidade étnica, ou mesmo a mistura étnica passada, foi fator predominante na difusão das relações raciais, contribuindo para a ausência de enquistamentos raciais. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 45 Jorge Calvário dos Santos A mestiçagem da população brasileira é o elemento aglutinador da formação nacional. Qualidades como versatilidade, adaptabilidade e criatividade implícitas na mestiçagem e que a predispõem a movimentos de mudanças são consideradas por várias culturas como sinais de inferioridade. José Honório Rodrigues (1963) afirma que, no processo de formação do Brasil, a defesa e a manutenção da unidade nacional foram mais vitais e mais importantes do que a ocupação efetiva do território. Ao término do período colonial, o Brasil era apenas uma unidade geográfica. O maior desafio enfrentado pela independência foi o de criar uma consciência nacional e formar a unidade nacional. A ideia de unidade, que vive nos brasileiros, e de todos depende, é produto da história brasileira e da crença no futuro. O progresso material e o domínio do homem sobre a natureza não foram acompanhados de um correspondente na realização da unidade espiritual. Esse progresso proporcionado pela ciência teve fundamental participação na secularização e no afastamento da espiritualidade da humanidade por si mesma, o que tem levado ao enfraquecimento da unidade nacional. O afastamento da dimensão espiritual é o preço que as culturas pagam quando perdem seus fundamentos religiosos (espirituais), dedicando-se principalmente aos benefícios materiais. Por trás da unidade cultural de toda grande civilização, existe a unidade espiritual, devida a uma síntese que harmoniza o mundo interior da aspiração espiritual com o mundo exterior da atividade da sociedade. Essa síntese se expressa no que se pode definir como uma religião-cultura, tal como a que dominou a Europa ocidental durante a Idade Média, quando a civilização em todas as suas manifestações foi indissoluvelmente vinculada a uma grande religião social. Isso nos faz compreender que a intimidade, a profundidade e a vitalidade de uma cultura estão ligadas à sua religião. O aspecto religioso proporciona a força de unificação de uma sociedade. Uma sociedade, que perde sua religião, fica sem rumo, sem referencial fixo, sem criatividade e caminha em direção a sua desagregação. A necessidade da unidade nacional é reconhecida por todos, mas apenas alguns compreendem quão fundamental são as mudanças que envolvem os fundamentos do modo de vida e de pensamento, e, muito poucos, estão preparados para pagar o preço (DAWSON, 1970, p. 4). A unidade nacional, no passado, era um fato social inconsciente, que surgia fora da estrutura natural da sociedade, da vida do povo e da tradição da cultura. Atualmente, essa estrutura se transforma, tornando-se consciente pela contribuição do saber sociológico e discussões acadêmicas sobre o tema (DAWSON, 1970, p. 14). A cultura é a responsável pela unidade nacional. Qualquer que seja a ideologia nacional, as ideias mestras que conduzem a nação, que indicam a utopia, devem estar consoantes com a cultura da nação. Assim, ela manterá a unidade e a identidade, o que possibilitará que se caminhe em 46 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional direção à sua utopia. Apenas as nações com forte unidade e identidade nacional podem almejar a evolução ao longo do processo histórico. Nos dias atuais nem os partidos políticos, nem o sistema burocrático devem ser a única base de organização da sociedade. Precisamos de uma instituição que possa organizar e preservar a cultura nacional, que, para tanto, deve ser tão livre quanto às instituições políticas. Assim, teremos a possibilidade de superar os perigos que ameaçam o mundo moderno. Apesar dos benefícios que nos trouxe, é necessário proteger a cultura da sua degeneração, evitando que se torne uma cultura de massa, padronizada e mecanizada, hostil à liberdade, à integridade intelectual, à unidade nacional, tal como as formas de totalitarismo, assim como mostrou Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo. A unidade de uma sociedade é, em essência, espiritual. A sociedade é uma comunidade de indivíduos que partilham das mesmas tradições, das mesmas crenças, que tem sido formada pelas mesmas influências culturais e ambientais, e que tem seguido ideais comuns, construindo, por essa razão, a unidade social. A unidade de existência é uma espécie de ritmo vital que reconcilia realidades opostas e, aparentemente, inconciliáveis, numa harmonia acabada. Uma nação não é um acúmulo de indivíduos separados, artificialmente unidos por conveniência em função de possibilidades de vantagens mútuas, como pensavam Locke e os filósofos franceses. Uma sociedade é antes de tudo uma unidade espiritual para a qual e pela qual seus membros existem (DAWSON, 1947, p. 42). Quando se pensa na unidade moral e espiritual da cultura, entende-se que dela dependa a sua própria existência. Uma nação não é uma coleção de indivíduos ligados por interesses ou necessidades materiais, mas uma entidade de tradição espiritual que, por longo tempo, moldou suas crenças, ideais e instituições (DAWSON, 1947, p. 239). Spengler encontra um princípio unificador em todas as grandes culturas mundiais. Para ele, cada uma possui um estilo ou uma individualidade, que pode ser apreendido, intuitivamente, por quem possua tato histórico, da mesma forma pela qual o gênio individual de um grande músico ou artista pode ser reconhecido em todas as suas obras pelo crítico de nascença (DAWSON, 1947, p. 42). Esse estilo individual de um povo é único e possui íntima dependência e uma relação biunívoca com o modo de ser dos indivíduos de determinada cultura, por ser a identidade da sociedade. Para Spengler, “Os povos não são nem unidades linguísticas, nem unidades políticas, nem, tampouco, zoológicas, mas unidades espirituais” (SPENGLER, 1982:290). Sobre Identidade É de conhecimento de todos que, desde Wilhelm von Humbold, a identidade nacional vem sendo pensada em termos indissociáveis da cultura. Como o pensamento não se desvincula da cultura, discutir sobre identidade e unidade significa Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 47 Jorge Calvário dos Santos discutir a alma nacional, identificar quem somos para melhor nos conhecermos, nos entendermos e, assim, como unidade, pensarmos sobre as possibilidades de futuro. E apenas dessa maneira, é possível decidir sobre nós mesmos. É necessário destacar que essa atitude é uma obrigação de todos os indivíduos, especialmente nesse momento histórico em que procuram retirar a autoestima, o amor-próprio dos brasileiros e, principalmente, a utopia que conduz todos em rumo a um futuro promissor. Procuram impedir que o País venha assumir um lugar de destaque neste mundo conturbado. A unidade de uma sociedade ocorre na cultura, o que faz com que ela caminhe unida em direção ao futuro. É a cultura que possibilita as condições para que as sucessivas gerações sigam rumo à utopia, que a continuidade se mantenha presente através dos tempos com a construção de uma história coletiva e um senso de destino comum. Identidade nacional é fundamental, pois nos remete ao comportamento da sociedade. Perguntar sobre nossa identidade é o mesmo que perguntar quem somos. Esse questionamento nos remete à cultura nacional, que se caracteriza por ser uma cultura jovem. Em nosso caso, o Estado antecedeu à nação. Nação essa que ainda se estabelece, porque nossa cultura ainda está em processo de consolidação. Ela é nova, a mais nova dentre todas, síntese de outras ricas e poderosas, o que nos traz esperança de um futuro promissor. Essa constatação representa responsabilidade frente ao mundo, a nós mesmos, e à necessidade de proteger nosso patrimônio cultural. Um dos problemas que ocorre com os povos marginalizados e, supostamente, bárbaros, é o de que vêm estabelecendo sobre a importante questão de sua identidade, é o de querer saber o que são em um mundo que resulta ser o próprio. A identidade como forma de identificar-se em um contexto no qual é visto como estranho; contexto de que quisera apropriar-se. É a busca da identidade como forma de suplantar o anonimato do qual torna responsável a civilização que, com tanta resistência, insistia em distinguir-se da barbárie. A identidade dá à nação característica única na comunidade internacional. Essa busca é essencial, pois molda o padrão de coesão, desintegração e conflito no mundo. Amartya Sen, laureado com o prêmio de ciências econômicas em memória de Alfred Nobel, de 1998, em seu livro The Argumentative Indian, afirma que “A individualidade das culturas é o grande assunto de nossos dias, e a tendência para a homogeneização de culturas, particularmente algum modo uniforme Ocidental, ou em uma enganadora forma de ‘modernidade’, tem sido fortemente desafiada” (AMARTYA SEN, 2005). Questões dessa ordem têm despertado novas formas de estudos culturais. Em certos círculos de elevado perfil intelectual no Ocidente, esses estudos assumem especial prioridade. Nos povos das nações periféricas, a identidade se estabelece como o a razão central de sua existência. No início da filosofia europeia ocidental, na remota Grécia, 48 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional definiu-se o problema do ser como a garantia da existência do homem. Da mesma forma, na América Latina do século XIX, e na Ásia e África no século XX, se fixaram questões de identidade, interrogando-se sobre se existe ou não uma filosofia, uma ciência, uma literatura e uma cultura entre esses povos. São problemas semelhantes aos que os gregos estabeleceram sobre a existência do ser. Uma mesma definição para salvar homens e povos, conscientes de sua marginalização, da não nulidade do ser e do existir, problema de identidade, que se estabelece e é traçado a homens e povos conscientes de sua marginalização. A afirmação da identidade nacional, base da independência e da soberania das nações, também é instrumento de unidade nacional e garantia de segurança e respeito nas relações com outras nações. Para Deutsh, as comunicações internas nas nações são decisivas para a criação da identidade nacional (política e moral) (GUIBERNAU, 1997). A respeito da identidade nacional, Hegel afirma que: a reflexão é reflexão determinada, com isso a essência é essência determinada, ou seja, essencialidade. Para Hegel, identidade não é uma simples autoigualdade de determinada noção. É a identidade de uma essência que se mantém a mesma, independente das mudanças de aparências. É, também, a influência mais poderosa e duradoura das identidades culturais (ZIZEK, 1994). Os conceitos de identidade e de unidade são demasiadamente complexos, especialmente ao serem considerados quanto a grupo social. Entretanto, não se pretende, nesse ensaio, analisar em profundidade esses aspectos, mas apenas ressaltar porque são necessários à sociedade nacional. Percebe-se que o relativo significado de identidade nacional tem variações para diferentes culturas. Ainda que complexo, o conceito de identidade é indispensável. Muitos são os conceitos, entretanto poucos são pertinentes ao objeto de nosso tema. Identidade é essencial, pois mostra o caráter e a forma de uma sociedade, de uma cultura. Culturas interagem umas com as outras e nessas relações as identidades definem as diferenças culturais que as caracterizam. Isso nos remete a Aristóteles por considerar como unidade de substâncias: “Em sentido essencial, as coisas são idênticas no mesmo sentido em que são unas, já que são idênticas quando é uma só sua matéria (em espécie ou em número) ou quando sua substância é una” (ABBAGNANO, 1999). Para Hall (2006, p. 11), “A identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade”... “a identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoa e o mundo público”. Como a identidade é reconhecida perante outra identidade, entende-se que há uma relação entre o um e o múltiplo. Assim sendo, a coletividade é um grupo de identidades que interagem e que, em grupo, podem constituir a unidade. Quando há um sentimento de identificação, o grupo social constitui uma identidade que se consolida como identidade nacional. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 49 Jorge Calvário dos Santos Seja indivíduo ou grupo, ambos têm identidades. Assim sendo, uma sociedade ou uma cultura tem sua própria identidade. Cada cultura tem sua própria identidade que a caracteriza e identifica como tal. Assim, os norte-americanos, os franceses, os brasileiros e demais povos têm respectivamente sua cultura e, portanto, sua própria identidade. Há um vínculo entre cultura, identidade e unidade nacional. A cultura guarda a substância e os interesses da comunidade nacional, considerada corolário da identidade nacional. Por isso, a importância de identificar quem somos para melhor decidir e trilhar o caminho que conduzirá ao futuro. Não é possível decidir o futuro até que a identidade esteja consolidada. Assim, há que se preservar a cultura, a identidade e a unidade da sociedade para que seja possível decidir o futuro da nação. Precisamos saber quem somos para, então, sabermos quais são nossos interesses. A identificação da identidade requer a pergunta pelo ser. Quem somos? O que somos? Como somos? O que é ser brasileiro? É ter a estrutura dos pensamentos, desejos, sentimentos e atos, que lhe dão as características, que possibilitam superar e substituir uma dimensão sociocultural mais antiga. Ser brasileiro é ser o mais novo homem na mais nova cultura que a história tem apresentado. Caracteriza-se pela diferença, não só na maneira de agir como também na de se fazer presente no mundo. É um novo ser que surge e que não é um modo de ser, mas também o de buscar. O homem que se projeta no futuro que entende lhe pertencer. É não aceitar o que querem que seja para ser o que realmente é. Dentre outras qualidades, um ser genial, de criatividade infinita, que lhe eleva o espírito e o torna alegre mesmo na tristeza. Aproxima os opostos, e não aceita ideologias, não porque seja contra, mas porque entende estar acima delas. Aceita apenas a ideologia de ser brasileiro, que o torna espontâneo, que faz a vida em amor ainda que viva no contexto de desamor. É partícipe de um processo que fica à margem da história, da consciência, inclusive da sua. Não é estado, mas processo, que é tomado pela sensação de irrealidade, e que está surgindo aqui um novo homem, uma nova cultura. É constituir um processo de evolução que só a inconsciência dos processos pode explicar tal fato. ... “A essência brasileira não é uma maneira de ser, mas uma maneira de buscar. É o homem para o futuro ” (FLUSSER, 1998, p. 48, 54-55). Como expressar identidade? Identidade não é o mesmo que igualdade. Ser igual a outro não significa haver identidade, apenas igualdade ou semelhança. A identidade nos remete ao caráter da unidade: a relação do mesmo consigo mesmo. A unidade da identidade constitui, para Heidegger (2006, p. 39-40), um traço fundamental no seio do ser do ente. Sempre que tivermos uma relação com qualquer ente, somos interpelados pela identidade (HEIDEGGER, 2006, p. 40). O postulado do pensamento ocidental, uma das proposições de Parmênides, nos mostra a identidade ao afirmar: “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser” (HEIDEGGER, 2006, p. 41). Assim, temos que coisas diferentes, 50 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional ser e pensar, são consideradas como o mesmo. Parmênides diz que “O ser faz parte da identidade”. Pensar e ser têm seu lugar no mesmo e, em função deste mesmo, formam uma unidade. Assim, ser e pensar pertencem ao mesmo. Pela reciprocidade, pelo pertencimento mútuo, formam uma unidade, uma identidade. São uma unidade individual ou uma unidade cultural. Uma unidade do ente. Portanto, o ser é determinado a partir de uma identidade. Em seu Diálogo “Sofista”, Platão, em conversa com o estrangeiro, ouve “Entretanto, cada um deles é um outro, ele mesmo, contudo, para si mesmo o mesmo”. Fala “cada um ele mesmo para si mesmo o mesmo” (HEIDEGGER, 2006, p. 39). O que confirma o conceito de identidade, tal como proposto por Parmênides. Ao se interpretar o mesmo como o comum-pertencer, tem-se o significado de integrado, inscrito na ordem de uma comunidade, fazer parte, no nosso caso, pertencer à cultura. Há entre cultura e identidade uma relação biunívoca de pertencimento mútuo. A partir do mesmo comum-pertencer (cultura), a comunidade (nação) passa a ser determinada e identificada a unidade de uma sociedade (HEIDEGGER, 2006, p. 42). Heidegger entende “a mesmidade de pensar e ser como o comum pertencer de ambos”. Portanto, o comum-pertencer é decorrente da comunidade e a comunidade existe em função do comum-pertencer, do mesmo e mútuo pertencimento (HEIDEGGER, 2006, p. 43). Essa identidade no contexto do comum-pertencer, mais por uma visão de sensibilidade do que de intelectualidade, pode ser constatado na fala de Caetano Veloso: O Brasil tem medo de si mesmo. O Brasil é por mais que se diga. Alguém disse que o Brasil é o país do futuro, o futuro já chegou, já foi embora, e nós não acontecemos. O Brasil não tem jeito, vai ser sempre o país do futuro. Por mais que queira desmerecer essa observação profunda de Stefan Sweig, o fato é que o Brasil é de fato uma promessa de algo grande e original. E isso é fatal. Isso não é crença, não é uma esperança, não é uma hipótese, mas a realidade. Uma imensa extensão de terra americana, onde um povo mestiço fala português. Portanto, qualquer coisa que funcione, será enormemente original. Essa assertiva inspira receio aos não brasileiros e, também, a quem é brasileiro. É um país de covardes? É um país como qualquer outro. Existe uma tensão entre o desejo e a capacidade de crescer e se afirmar e o terror de enfrentar a responsabilidade de fazê-lo, ou seja, há uma auto-sabotagem muito grande. Eu atribuo a essa tendência medrosa e auto-sabotadora, que é muito freqüente dos brasileiros, por causa da própria grandeza mesma da proposta de que o Brasil é, queira ou não, diga-se o que se quiser dizer, por causa de um dedo dessa proposta, dessa sugestão que o Brasil é há uma reação ao que no Brasil de se afirmar [...] (COELHO DE SAMPAIO, 1993). A afirmação da identidade nacional, base da independência e da soberania das nações, também é instrumento de unidade nacional, garantia de segurança e respeito nas relações com outras nações. Em relação à identidade nacional, Hegel afirma que a reflexão é reflexão determinada, com isso a essência é essência determinada, ou seja, essencialidade. A reflexão é a aparência da essência em si mesma. A essência, como infinito retorno Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 51 Jorge Calvário dos Santos em si, uma simplicidade não imediata, porém negativa; um movimento através de diferentes momentos, uma absoluta mediação consigo mesmo. A essência é, em primeiro lugar, simples referência a si mesma, pura identidade. Esta é sua determinação, segundo a qual é falta de determinação. A essência é identidade consigo próprio. A identidade é o mesmo que essência (HEGEL, 1956). Para Hegel, identidade não é uma simples autoigualdade de determinada noção. É a identidade de uma essência que se mantém igual, independente das mudanças de aparências. É, também, a identidade nacional, a influência mais poderosa e duradoura das identidades culturais (ZIZEK, 1994). Naturalmente, cada povo, cada sociedade, ou grupo social tem sua cultura. Entretanto, não são todos os povos ou todas as sociedades que conseguem evoluir até atingir a condição de civilização. Os povos que desejam alcançar o centro, construir uma civilização, devem, acima de tudo, preservar e valorizar sua cultura, ter unidade, coesão nacional e autodeterminação. É fundamental a existência de uma administração nacional independente de fatores exógenos, voltada para suas verdadeiras necessidades, concepção e planejamento estratégico, sustentados pela cultura nacional, portanto, domésticos, e visando os verdadeiros interesses nacionais, principalmente quanto ao futuro da nação. A Guisa de Conclusão A cultura, a unidade e a identidade nacional são os núcleos fundamentais de uma nação. Essas três dimensões respondem pelo espírito existente na sociedade, que conferem ao indivíduo a lealdade, a determinação de melhorar o país, a doação da própria vida em situações que entenda que isso deve ocorrer, o entendimento comum de que todos podem e querem ter um futuro melhor e mais promissor e, também, que faça diferença em face de outras nacionalidades, ou seja, reúna os indivíduos em torno da nação. Sem identidade, nem diferença, não existe nada que faça o cidadão se entender, se reconhecer e ter consciência de quem é e de onde pertence. Estas características o distinguem dos outros e o faz único dentre todos, pois cada um dentre todos tem sua própria identidade. Estudos e debates sobre a identidade nacional deveriam estar presentes em toda parte em nossos dias. Por quase todos os lugares, as pessoas questionam sobre sua identidade, sua sociedade, seus valores, seus referenciais com relação a outros povos. Quem somos e a que pertencemos são indagações centrais dos questionamentos. Entretanto, observa-se que países não desenvolvidos constantemente criticam a modernidade Ocidental, mas têm sido inspirados e influenciados diretamente por sua literatura Ocidental. Essa atitude reflete o difícil momento por que passa a humanidade. Por séculos de secularização, a construção da ciência sem consciência, como disse François Rabelais, constituiu a essência dos problemas que todos nós vivenciamos nesse 52 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional mundo dito moderno. Se vier a se consolidar a atual tendência de que o paradigma predominante e dominante continue a conduzir os destinos da humanidade, numa visão prospectiva, seremos obrigados a acreditar que o homem, em sua dimensão mais significativa, a espiritual, tende a perder a sua característica maior, a que o faz humano, levando a humanidade à desintegração, como tal. As crises de identidade, a que se referiu Huntington, possuem diferentes causas. Causas essas que decorrem do mundo que construímos por séculos, em que o progresso, o desenvolvimento feito em função da ciência, comandando tudo e todos, envolto num longo processo de secularização, nos despem dos valores essenciais à nossa vida e, portanto, ao futuro de todos nós. Parece que os seres humanos estão se tornando cosmopolitas, pois já não sabem mais quais os laços que os prende, nem o que os unem, nem quem são no atual contexto. Vive-se, talvez, o ápice da modernidade. Nesse mundo ou nesse imundo, segundo Sloterdijk, em que a secularização domina e as ideologias parecem retirar do indivíduo e das sociedades a unidade e a identidade. A secularização de uma sociedade a faz perder sua vitalidade. O desaparecimento de uma religião não é sinal de progresso, mas uma prova de decadência social. Perde-se o referencial fixo e chega-se à desagregação social. Nesse mundo que se faz somente com o presente que se mostra permanente, em que o passado se afasta para além dele, e que, por isso, o futuro vai distante. Vive-se apenas o momento, acreditando que o futuro possivelmente seja uma ilusão ou uma possibilidade, e sem passado como podemos ter futuro? Questionamos a nós mesmos sobre quem somos, o que queremos ou o que poderemos ser. Apenas temos como referência o mundo da tecnologia, que passou a ser instrumento dela mesmo, e de uma ciência que se tornou dependente dela própria. É nos oferecido novo paradigma. Por falta de opção, se aceita esse paradigma que, de fato, nos afasta, cada vez mais, de nossas raízes, de nossa cultura, de nosso modo de ser, e do futuro que se quer construir. Mas não é apenas isso. Ainda que inconscientemente, o que se está sempre, na verdade, se evitando ou se ocultando é a questão principal de quem deva ser o sujeito da modernização (racionalização), que, entrementes, ali está posto de maneira implícita. A modernidade, para nós, tem que ser olhada não como a questão da opção por um paradigma, mas como a questão da sua ocultação ou dissimulação. Em suma, todo esse alarido sobre a modernização brasileira, como também o discurso (ideológico) sobre a modernidade é, no fundo, um discurso acerca de qual opção de sujeito da ciência, o sujeito liberal se intenciona deveras dissimular. A partir daí, fica fácil perceber a essência do problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor, entre a formação cultural brasileira e a modernidade. Este é, verdadeiramente, o nosso grande conflito interno. Mas se faz necessário aprofundar e entender melhor como se dá essa incompatibilidade e por que persiste este dilema. Os conceitos de cultura, identidade, modernidade, soberania relativa, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 53 Jorge Calvário dos Santos soberania compartilhada, e a eliminação das fronteiras nacionais, que delimitam a base geográfica do Estado nacional soberano, bem como as consequências da interferência cultural, fazem com que as noções de nação, soberania, pátria, autodeterminação sejam esquecidas ou contestadas. Um processo planejado, com objetivo de fomentar uma total mudança de valores, é necessário para que os indivíduos possam se submeter ou ficarem receptivos a um governo mundial, ou a uma paz “Kantiana”. A interferência cultural tem sua ação, predominantemente, direcionada para a extrapolação anímica da alma de um povo sobre outro, fundada no conteúdo de territorialidade das culturas. A tônica de territorialidade da cultura mostra a fundamental importância da nacionalidade que a ela é agregada. O território é imprescindível à cultura e possui, com esta, uma relação biunívoca. A cultura é essencial para a manutenção da integridade territorial, o que, em parte, possibilita seu vigor e sua criatividade. Numa época em que predominam a ciência e a técnica, e se prioriza o consumo, vive-se de um presente permanente. Subordinam-nos ao consumo e ao poder da ciência que, por sua vez, se faz prisioneira de si mesma, constata-se o “show” constante, onde atuam a corrupção progressiva dos discursos e, como corolário, a vitalidade da cultura se esvai, a unidade se enfraquece e a identidade vira diferença da diferença. Corre-se o risco de que nada mais seja possível falar, nada se possa pensar, logo nada se saiba sobre nós mesmos, nossa identidade, nosso ser. Tudo se repete na acolhida mensagem disseminada pelos meios de comunicação de massa. Urge que reconquistemos a nós mesmos para que, com autonomia e originalidade, possamos decidir e caminhar rumo a um futuro promissor. Para isso, a cultura precisa explorar e desenvolver os recursos da genialidade de seu espírito, desenvolver sua criatividade com esforço criador para numerosas e elevadas formas de pensamento original. Apenas por intermédio do fracasso em busca do falar e escutar a genialidade da sua cultura por meio da linguagem, percorrendo o caminho do discurso, é possível aprender e pensar o não dito da fala e do silêncio, e esperar o inesperado nas esperas e esperanças de uma sociedade pela identidade de suas diferenças (HEIDEGGER, 1997). Cultura e ideologia estão interligadas como instrumentos de exercício de poder. Valem a pena identificar quantos e quais são os conflitos armados ocorridos e os que estão em andamento, para, ao menos, identificar a importância da cultura na vida de uma nação. Identificar que a sobrevivência e o futuro de uma nação dependem totalmente da sua própria cultura. Uma das questões de maior relevância, que não pode passar despercebida, pois é fundamental para a unidade nacional, para a nacionalidade, é a consciência dos valores em jogo e dos inúmeros perigos que, constantemente, os ameaçam. É importante, para que possa haver condições de preservar a soberania nacional, 54 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 38-56, jan./jun. 2011 Considerações Propedêuticas Sobre Unidade e Identidade Nacional que os valores nacionais, individuais e éticos sejam preservados. Há que se evitar que a ação de fundo ideológico, de enaltecimento do processo internacionalizante, globalizador, degrade, deprima os valores e realce os perigos a que estão submetidos. 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A defesa desses valores e modos de vida se contrapõe ao de outros grupos, e com respeito a estes, há sempre que ter desconfiança: se as intenções de um grupo são benévolas, nunca se pode presumir que as do outro também o sejam. Segundo o autor, o temor em relação ao “outro” é o principal motor das guerras, muito mais que a cobiça dos bens daquele “outro”. Palavras-chave: Geopolítica. Polemologia. Antropologia Social. Abstract In this article, the author points out that, in order to make predictions about the political behavior of nations, we must bear in mind the importance of factors such as belonging to a community, located in a particular place. These factors give rise to affective values and ways of looking at life overlapping ideologies and economic situations within groups. The defense of those values and ways of life are opposed to those of other groups, and with respect to these, there always have suspicion, whether the intentions of a group are benevolent, you can never assume that the other is too. According to the author, fear regarding the “other” is the main engine of war, far more than the greed of the assets of that “other”. Keywords: Geopolitics. Polemologia. Social Anthropology. 1 Este artigo foi publicado originalmente na Revista Stratfor, de 15 de setembro de 2009 e foi expressamente autorizado pelo autor para ser publicado nesta Revista. A tradução foi realizada pelo Embaixador Christiano Whitaker, Assistente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil junto à Escola Superior de Guerra. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 57 George Friedman O estudo da Geopolítica procura identificar os fatores considerados permanentes, ou seja, os de longo prazo, e aqueles que são transitórios. Essa diferenciação se faz pelo prisma da geografia e do poder. Os resultados desse estudo comumente se chocam com o sentido comum. Mais precisamente: a inquirição geopolítica busca não apenas descrever, mas prognosticar o que vai acontecer, e tais prognósticos frequentemente – melhor dito, quase sempre – vão de encontro ao sentido comum. A Geopolítica é o sentido comum das gerações futuras. William Shakespeare, nascido em 1564 – no século em que se deu a conquista do mundo pela Europa – disse, pela boca de Macbeth, que a História é uma fábula contada por um louco, cheia de sons e de fúria, e sem nenhum sentido. Se Macbeth estiver certo, então a História se reduz apenas a sons e fúria, sem sentido e sem ordem. Toda tentativa de predizer o futuro deve começar por negar a afirmação do Príncipe dinamarquês, pois se a História for aleatória, ela será, por definição, não revisível. Traçar prognósticos é inerente à condição humana: cada ação que um ser humano realiza busca um resultado. Essa expectativa de resultado decorre de um conhecimento de como os fatos se dão. É certo que, algumas vezes, uma ação tem consequências inesperadas, não intencionais; mas há um enorme abismo entre a incerteza de um prognóstico e a impossibilidade de fazer um prognóstico. De manhã, quando me levanto e vou tomar banho, abro a torneira de água quente sempre com a expectativa de que a água vá correr. No entanto, em alguma circunstância, ela não aparece e, embora não tenha conhecimento do motivo dessa falta de água, em geral posso contar com isso. A vida é feita dessas expectativas e prognósticos. Não há ação que se faça sem a expectativa – certa ou errada – de algum resultado previsível. A busca de previsibilidade perpassa a condição humana. Estudantes escolhem uma carreira tentando prever o que lhes será de seu gosto, dentro de trinta anos, ou o que lhes será útil, ou o que lhes proporcionará bons rendimentos etc. As empresas fazem prognósticos acerca do que vender, e para quem vender. Fazemos prognósticos acerca do tempo, de quem vai vencer as eleições, das consequências de uma guerra, e por aí vai. Não existe hipótese dos seres humanos não atuarem como se o mundo não fosse, em alguma medida, previsível. Há profissões baseadas inteiramente em prognósticos. Os tipos mais simples são aqueles relativos à natureza: esta é mais previsível que tudo, uma vez que não dispõe de vontade e não pode fazer escolhas. Os cientistas, que gostam de falar sobre “ciências duras” (N.T.: hard sciences), na verdade, estão numa posição confortável: por exemplo, Saturno não vai mudar de órbita por puro capricho seu. Os prognósticos mais difíceis são aqueles que dizem respeito a seres humanos. Em primeiro lugar, porque, enquanto indivíduos, eles fazem escolhas. Em segundo lugar – e isto é o mais importante – porque nós somos seres humanos, e nossos desejos e preconceitos, inevitavelmente, tingem nossa 58 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem visão sobre o desenrolar dos eventos. Mesmo assim, existem ciências totalmente dedicadas a prognosticar. A Econometria, por exemplo, é um campo que se dedica, com maior ou menor êxito, a prever como será o comportamento de uma economia nacional. Ou no caso dos Jogos de Guerra e Modelos Militares, como ocorrerão as guerras. Os analistas de mercado buscam prognosticar as oscilações do mercado de ações, os analistas laborais tentam prever o futuro dos mercados de trabalho etc. Os prognósticos permeiam a sociedade. Todos esses sistemas de prognósticos sociais atuam da mesma forma: ao contrário de predizer a atuação isolada dos indivíduos, buscam gerar um modelo estatístico formado por vários indivíduos, com o objetivo de predizer qual o padrão geral de comportamento. A Economia e a Guerra compartem o fato de que lidam com vários atores individuais interagindo com a tecnologia e a natureza, com o objetivo de prever, de forma geral, a direção e o resultado dos eventos. AMOR E NASCIMENTO, AFETO E ORIGEM Para ter êxito, todo prognóstico deve começar sendo simplório. Por “ser simplório”, quero dizer que, em vez de buscar conceitos e princípios altamente sofisticados, deve começar com aquilo que é óbvio. As pessoas inteligentes tendem a não dar importância ao óbvio e a buscar detalhes que as pessoas comuns não veem – por isso, seus prognósticos tendem a flutuar no ar, no lugar de estarem firmemente ancorados na realidade. Assim, vamos começar do começo. Uma vez que é sobre a história humana que se está tentando fazer prognósticos, deve-se atentar para aquilo que é certo nos seres humanos. Vários poderiam ser os pontos de partida, mas, talvez, o que há de mais certo quanto aos seres humanos, assim como quanto aos animais, é o fato de que nascemos e morremos. Nascemos totalmente incapazes de cuidar de nós mesmos. No plano físico, precisamos de cuidados, de alimentos e proteção pelo menos até os quatro ou cinco anos de idade; caso contrário, morremos. No plano social, em alguns países industrializados, essa proteção pode se estender até os trinta anos. Os seres humanos protegem a si mesmos e a suas proles através da constituição de grupos familiares, mas uma família pequena é inerentemente vulnerável. Isto porque é mais fácil roubar daqueles que são fracos que produzir para si mesmo; assim, um grupo familiar isolado será sempre vulnerável a ataques de predadores humanos, gente que rouba, mata, escraviza. Para proteger grupos pequenos, faz todo sentido formar comunidades maiores, nas quais uns cuidam dos mais débeis, outros caçam, outros lavram a terra e outros cuidam da defesa. Essa divisão do trabalho é um resultado mais lógico da natureza humana física. Então, torna-se fácil de compreender a pergunta concernente à divisão do trabalho: com quem se deve fazer aliança, onde encontrar aliados? Tal pergunta só é complexa Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 59 George Friedman quando feita num plano abstrato. Na prática, a resposta é óbvia: pais, irmãos, tios, primos e afins constituem o grupo natural da divisão de trabalho. Daí deriva outra pergunta relevante: por que confiar mais em um parente que em um estranho? Esse é o cerne do problema: a questão do amor pelos seus, endógeno. Trata-se de um ponto central para a compreensão do comportamento humano, e como tal comportamento pode ser previsto. Esse tema está em violento contraste com outra visão do amor: aquela em que o objeto é exógeno, adquirido – uma tensão que, nos últimos quinhentos anos, vem definindo a história da Europa e do mundo. A ideia de que o amor romântico deve impor-se àquele destinado aos seus introduz na História uma dinâmica nova e radical, na qual indivíduo e escolha estão acima de comunidade e obrigação. Comecemos com um exemplo muito especial: Romeu e Julieta, de Shakespeare, peça que tem como motivo principal a relação entre dois tipos de amor. Romeu e Julieta pertencem a famílias diferentes, clãs distintos, que se encontram em guerra entre si. Eles se apaixonam. A questão que a peça propõe é a seguinte: qual dos dois contextos amorosos tem prioridade? Aquele em que se nasceu: a família, a religião, a tradição, o amor pelos seus? Ou o contexto do amor adquirido, o que se escolhe porque gratifica individualmente? Durante a maior parte da história e na maioria das sociedades humanas, casamentos eram arranjados: casava-se por amor, mas não pelo cônjuge, mas por amor aos pais e pelo senso de dever advindo desse amor. No Decálogo, o Quinto Mandamento proclama: “Amarás teu Pai e tua Mãe”; contudo, não é apenas ternura familiar o que prescreve o mandamento, mas, sim, algo mais fundamental: o Deus de teus pais é teu Deus, seus amigos são teus amigos, suas dívidas são tuas dívidas, seus inimigos são teus inimigos, seu destino é teu destino. A esse tipo de amor, Shakespeare justapõe o amor romântico. Este é exógeno, adquirido. A concepção de que o amor romântico, exógeno, deve sobrepor-se ao amor aos seus, endógeno, introduz uma dinâmica nova e radical à História, e, nessa dinâmica, o fator individual e a escolha se impõem à comunidade e às obrigações: eleva valores adquiridos através da escolha a uma posição superior àqueles com os quais se nasce. Essa noção é central à Declaração de Independência dos Estados Unidos, a qual sobrepõe à obrigação, a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade. E mais: a Europa moderna, de modo geral, com a ascensão revolucionária do Protestantismo e com a mutação deste no Iluminismo europeu, introduziu uma ideia extraordinária, paralela à do amor romântico: a noção de ideologia. Ideologia é um valor adquirido, exógeno. Uma criança não pode ser jefersoniana ou stalinista: essa escolha, bem como a escolha romântica de uma esposa, só acontece quando se atinge a idade da razão. O Protestantismo eleva a consciência ao mais alto grau das faculdades humanas: ela passa a ditar as escolhas a serem feitas. Por sua vez, o Iluminismo, 60 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem ao somar as escolhas à razão, criou a noção de que em todas as áreas, particularmente na vida política, o indivíduo está obrigado acreditar não naquilo que lhe foi ensinado, mas no que sua própria razão diz ser justo e adequado. A Tradição é superada pela Razão, e o “Ancien Régime”, por sistemas construídos artificialmente, forjados na revolução. Para ter-se uma noção mais clara sobre a questão, consideremos o seguinte: eu sou um americano. Sou também um cidadão dos Estados Unidos. A América é uma entidade natural, um lugar e um povo. Você é americano desde que nasce: é o modo como se identifica perante o resto do mundo. Em inglês, é impossível, em termos linguísticos, classificar-se como “estadunidense”: a expressão não tem sentido. Pode-se simplesmente dizer que se é um cidadão dos Estados Unidos e, como tal, se relaciona a uma construção artificial, a Constituição, a qual jura lealdade. É uma relação racional e, em última análise, eletiva. Por mais que tente, você nunca deixa de ser um americano; é possível, por uma questão de escolha, deixar de ser cidadão dos Estados Unidos. Paralelamente, tem o direito de tornarse um cidadão dos Estados Unidos – mas isso não faz de você, no sentido mais amplo da palavra, um americano. Cidadania e condição de alienígena estão inseridas no sistema. É muito fácil ser americano, pois nasce sendo. Pela língua, pela cultura, por todos aqueles fatores quase imperceptíveis que te fazem um americano, você é um americano. Para tornar-se um cidadão dos Estados Unidos, no sentido mais amplo da palavra, é preciso compreender e aceitar livremente os direitos e obrigações da cidadania. É simples e natural amar a América; amar os Estados Unidos é complexo e artificial. Isso não se aplica somente aos Estados Unidos: considerem-se os casos da União Soviética e dos países que a constituíam; ou da França, em oposição à República Francesa. Isso, sem levar em conta, ainda, a questão da língua. Com o Iluminismo, passou-se a dar valor ao amor adquirido, exógeno, e a desvalorizar aquele dedicado aos seus, endógeno. Com efeito, a modernidade é, em geral, inimiga do nascimento. Os regimes revolucionários modernos derrubaram os antigos regimes exatamente porque estes conferiam direitos com base no nascimento. Para os sistemas políticos modernos, ele é apenas um acidente que não confere autoridade a ninguém - esta resulta dos méritos e conquistas de cada um e baseia-se em virtude concretamente demonstrada, e não presumida por nascimento. O embate entre esses dois tipos de amor tem sido o traço dominante dos últimos quinhentos anos. Nas sociedades tradicionais, as obrigações advêm das circunstâncias de nascimento e se impõem por meio de um amor simples, acrítico, pelos seus e por sua coletividade; já nas sociedades modernas, as obrigações são o resultado de escolhas e de um amor complexo e autocentrado por objetos adquiridos – sejam estes amantes ou regimes políticos. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 61 George Friedman Nas sociedades tradicionais, você sabe quem é e, consequentemente, quem será pelo resto de vida. Nas sociedades modernas, pós-iluministas e pósrevolucionárias, você pode saber quem é, mas isso de modo algum determina em quem necessariamente se tornará: essa é sua escolha, sua tarefa e sua obrigação. As sociedades tradicionais são infinitamente mais limitadas, porém muito mais naturais. O amor a seus pais e a seu meio familiar e social é a forma primeira e mais simples de afeição. Nessas sociedades, fica fácil amar ou odiar aquilo que se ama ou odeia; já nas sociedades modernas, há o problema de sair no mundo e escolher o objeto do amor ou do ódio. Essa dicotomia nos leva à questão do Nacionalismo, ou, em termos mais amplos, do amor e da obrigação para com a comunidade de origem – seja ela um bando de nômades, ou um Estado-Nação. A tendência a amar aquilo que é nosso, os valores coletivos comuns, é quase irresistível. Quase, mas não totalmente irresistível, visto que, nas sociedades modernas, o amor a si mesmo e a valores adquiridos tem preeminência sobre o amor aos valores coletivos comuns, uma vez que este resulta do acidente de termos nascido numa determinada comunidade, enquanto que aquele é uma expressão da individualidade e, portanto, mais autêntico. O Liberalismo e o Socialismo modernos não sabem muito bem o que fazer com o Nacionalismo: este parece ser, em princípio, um impulso atávico, irracional e injustificado. Os economistas, esses pensadores essencialmente modernos, seguem a opinião de seu mestre Adam Smith, para quem o objetivo primeiro dos seres humanos é maximizar, no plano material, seu interesse próprio; ou, dizendo de modo mais simples, adquirir riqueza. Argumentam os economistas que os indivíduos não só devem se dedicar a essa busca, como também o farão naturalmente, se deixados agir livremente, por conta própria Para os economistas, o autointeresse é um impulso natural; mas se o é, também pode ser considerado um impulso estranho, pois são inúmeros os exemplos de pessoas que não o seguem. Consideremos a tensão que existe entre a ideia de que os Estados Unidos foram criados para alcançar os objetivos de “Vida, Liberdade e Busca da Felicidade”, e a decisão de um soldado de ir à guerra e, mesmo, sacrificar voluntariamente sua vida. Como conciliar a constante presença do autossacrifício em prol da comunidade – e a exigência da comunidade para que tal sacrifício seja feito – com a afirmação empírica de que os homens buscam alcançar mais e mais felicidade? Atualmente, considera-se a guerra um evento corriqueiro, e soldados constantemente vão aos campos de batalha. Como um regime voltado à Vida, à Liberdade e à Busca da Felicidade pode exigir que seus cidadãos se anteponham voluntariamente entre seus lares e a desolação da guerra? Isso é, na verdade, o que se passa. Considera-se o Nacionalismo, hoje em dia, um impulso crucial – ou seja: o amor aos valores coletivos continua a ser um impulso crucial. Morrer por um regime dedicado à busca da felicidade não tem sentido; mas, morrer por amor 62 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem aos seus faz todo sentido. Contudo, a moderna visão do homem tem dificuldade em lidar com essa ideia, e tenta superar tal dificuldade procurando abolir a guerra, bani-la como sendo um atavismo, classificando-a como algo primitivo e antinatural. Talvez, ela seja tudo isso, mas o fato é que não desaparecerá, e nem o amor aos seus e aos valores coletivos, com tudo que daí deriva. Há um paradoxo importante nisso tudo. Os regimes liberais modernos proclamam a doutrina da autodeterminação nacional, o direito de um “povo” escolher seu próprio caminho. Deixando de lado a enorme confusão a respeito de como lidar com uma nação que venha a escolher um caminho não liberal, existe a dificuldade de definir o conceito de nação e o seu direito de escolher algo. Historicamente, a emergência da doutrina da autodeterminação nacional está ligada à dinâmica das revoluções europeia e americana. A Europa era regida por dinastias que governavam nações por direito de nascimento; romper esses regimes foi o objetivo dos revolucionários europeus. O impulso motor das massas europeias não foi uma teoria qualquer de direito natural, mas, sim, o amor a suas comunidades e nações, e o ódio ao domínio estrangeiro. A combinação de princípios revolucionários morais com o conceito de nação deu origem à doutrina da autodeterminação nacional como princípio coincidente com os direitos humanos. O fato de o direito individual e o direito da nação – não obstante quão democrática este seja – se confrontarem diretamente não entrou em cogitação pelos revolucionários. No caso dos próceres fundadores americanos, tendo agido em prol da autodeterminação nacional, criaram uma Declaração de Direitos e esperaram que a história resolvesse a contradição entre nação, Estado e indivíduo. Na raiz da sociedade liberal moderna, continua pulsando o coração excêntrico da condição humana: o amor aos seus e aos valores coletivos. Percebese agora claramente essa excentricidade. Por que amamos as coisas e os valores de nosso contexto de origem? Simplesmente porque nascemos nele? Por que os americanos amam a América, os iranianos, o Irã e os chineses, a China? Apesar de existirem opções, e do fato de muitas pessoas estruturarem suas vidas pelo amor a valores adquiridos, por que o amor aos seus continua a impulsionar os seres humanos? André Malraux escreveu certa vez que as pessoas se expatriam “muito nacionalmente”: um expatriado americano continua a ser americano e é muito diferente, por exemplo, de um expatriado mongol. Não importa para onde você queira emigrar, ou que nova identidade queira adotar: no fim das contas, não poderá fugir de ser quem é. Você pode ter os amores adquiridos que quiser; no fim das contas, amando ou não seus valores originais, você é aquilo que nasceu sendo. Sua capacidade de manobra é muito menor que pensava: embora tenha abandonado seu mundo, seu mundo não te abandonou; você pode renegar seus deveres e obrigações – deixar de amá-los - mas os seus valores e seu contexto original permanecem. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 63 George Friedman Para a grande maioria das pessoas, essa não é apenas a condição humana, mas também a que não existe sofrimento. Nascer americano, ou ucraniano, ou japonês, não requer esforço; mais que isso, é reconfortante: diz quem você é, qual o seu lugar no mundo, o que deve fazer. Dispensa de fazer escolhas e, ao mesmo tempo, confere liberdade para agir. No entanto, para algumas pessoas essa situação é um fardo – as mesmas que contribuíram para nos dar consciência sobre nós mesmos. Ernest Hemingway, por exemplo, por mais que odiasse sua cidade natal, continuou sendo, até sua morte, um americano proveniente de uma cidadezinha do interior. A única diferença entre Hemingway e o balconista da farmácia de sua cidade natal é que este se contentava com quem era, enquanto que Hemingway morreu tentando, desesperadamente, escapar dele mesmo. No fim, não conseguiu. Não há como escapar de amar aos seus, incluindo-se, nesta condição, a grande maioria da humanidade. O Quinto Mandamento é o mais humano e o mais fácil de compreender do Decálogo. Nietzsche falava de horizontes. Um horizonte é uma ilusão de ótica, mas uma ilusão que conforta, pois proporciona uma sensação de que o mundo é controlável, ao invés de ser tremendamente maior que nós. O horizonte nos dá uma sensação de um espaço que nos delimita, e à nossa comunidade. Livra-nos de pensar sobre a vastidão de tudo, nos proporciona um lugar que podemos controlar – e esse lugar, depois do amor, é o que mais define nossa identidade. Em termos práticos, isso quer dizer que o nacionalismo, a moderna forma de amor ao que é nosso e a nossos valores, continua sendo a força motora da humanidade. Muito se disse que a interdependência representaria o declínio do Estado-Nação, da exclusão religiosa, da guerra. Para que essa afirmação fosse correta, seria preciso que o amor aos seus, ao que temos e somos desde o nascimento, fosse superado. O autointeresse econômico é certamente uma força poderosa; mas não há evidência empírica de que faça diminuir a intensidade do nacionalismo – muito pelo contrário. Durante o século XX, ao mesmo tempo em que crescia a interdependência, o nacionalismo se tornava mais e mais intenso. Com efeito, ficou mais refinado, na medida em que agrupamentos cada vez menores reivindicavam identidade e direitos nacionais. A história do século XX foi de simultânea intensificação do racionalismo econômico e do nacionalismo. Nada se poderá saber acerca do futuro sem compreender a necessidade essencial do nacionalismo e sua a permanência como um compromisso que, frequentemente, transcende interesses econômicos individuais. LOCALIZAÇÃO E TEMOR Sejam elas cidades, estados ou mesmo bandos de nômades, comunidades existem em lugares específicos; se as tirarmos de seus respectivos lugares, sua natureza mudará. É claro que a cultura – língua, religião, maneiras à mesa etc. – 64 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem não pode ser precisada exclusivamente pela localização geográfica. Contudo, há características que são determinadas pelo lugar, este entendido no sentido mais amplo. Se afirmarmos que somos produtos do contexto cultural e familiar em que nascemos, podemos também afirmar que a Geopolítica nos ensina que aonde nascemos também tem importância relevante. Comecemos com os exemplos mais simples. Um esquimó vivencia o mundo de forma completamente diferente de um nova-iorquino. Um esquimó, sobretudo no seu modo tradicional de vida, antes do contato com os europeus, interage diretamente com a natureza. Ele se alimenta daquilo que consegue capturar ou encontrar; e o que captura ou encontra é determinado por onde está e pelos instrumentos de que dispõe – os quais, mais uma vez, são estabelecidos pela região em que se encontra. É claro que a cultura não se limita a esse tipo de atividade: os seres humanos são complexos demais para se reduzirem a isso. De todos os modos, alguém nascido naquele ambiente geográfico e social enfrenta a vida de um modo particular. Vejamos agora o nova-iorquino: ele estaria tão perdido nas costas do Oceano Ártico quanto um esquimó em Manhattan. Um nova-iorquino obtém seu sustento de modo extraordinariamente diferente ao de um esquimó. Não pretendo aqui demorar-me nos minúcias arcanas do modo de viver urbano dos americanos, mas apenas assinalar o óbvio: o modo de vida de um nova-iorquino é tão idiossincrático quanto o de um esquimó. Não quero adentrar-me num exame sobre as maneiras como a geografia forma a cultura de uma nação. Tucídides notou as diferenças existentes entre uma cidade costeira e uma do interior; ou de uma considerada grande e outra pequena; ou daquelas que dispunham de recursos suficientes para construir muralhas e as pequenas vilas sem tais recursos – e que, consequentemente, nunca chegaram a ser verdadeiras cidades. É fácil perceber a diferença entre ter nascido em Cingapura ou em Ulan Bator. Mas há um conceito de importância fundamental que deve ser levado em conta, no que concerne ao lugar: o de temor. Seja lá onde vivemos, existe constantemente o temor em relação à outra nação, ou comunidade. Próximas uma da outra, duas comunidades sempre se temem. A origem desse medo mútuo é o desconhecimento sobre as intenções de cada uma. Ninguém pode saber com certeza quais os propósitos de outra pessoa. Nos relacionamentos casuais, em que os resultados de um erro de avaliação são triviais, podemos esperar o melhor das pessoas: quando apenas nossa vida e nossa liberdade estão em perigo, podemos assumir os riscos de um juízo equivocado. Mas quando se trata das vidas e da liberdade de nossos filhos, nosso(a) cônjuge, nossos pais e parentes, e tudo o mais a que atribuímos valor, então nosso direito de correr riscos decresce exponencialmente: nessas circunstâncias, temos de presumir o pior. As guerras devem-se muito menos à cobiça do que ao medo. No “Leviatã”, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 65 George Friedman Thomas Hobbes estuda essa questão em profundidade. O mútuo desconhecimento acerca das intenções e da capacidade de atuação é que faz com que vizinhos não confiem um no outro. Saber que nossos propósitos são benévolos de nada vale em relação a nosso vizinho: seu apetite por conquistas é o grande fator de dúvida. Essa desconfiança leva uma comunidade a algo mais que a simples defesa, como, por exemplo, agir por antecipação: se o inimigo deseja o pior, melhor será atacar primeiro. Num universo de espelhos, onde a alma do outro está permanentemente oculta, a lógica leva-nos a proceder com vigor, sempre esperando o pior. A localização determina a natureza da comunidade, o modo de vida dos seus membros, a maneira de educar seus filhos, e como enfrentar a velhice. Determina quem fará guerra, contra quem, e quem sairá vencedor. A localização determina inimigos, temores, ações e, sobretudo, limites. O maior dos estadistas da Islândia terá menos impacto que o mais medíocre político nascido nos Estados Unidos. A Islândia é um país pequeno e isolado, com poucos recursos e opções. Já os Estados Unidos são um país vasto, com amplo acesso ao mundo; embora não ilimitado, seu poderio é grande. A localização comanda a vida tanto de camponeses como de presidentes. A localização proporciona vantagens, mas também impõe vulnerabilidades. Consideremos o caso da Polônia, uma nação imprensada entre dois países muito maiores - a Alemanha e a Rússia, que não dispõe de barreiras defensivas naturais – rios, montanhas, desertos. Ao longo de sua história, a Polônia comportou-se sempre de duas formas: ou extremamente agressiva (raramente, em vista dos recursos de que dispunha), ou era a vítima de agressão (sua condição usual). O espaço ocupado pelo povo polonês explica, em grande parte, a história da Polônia. A localização determina também a vida econômica. Para tocar suas economias, a Alemanha dependia fortemente do minério de ferro da França, e o Japão, dos Estados Unidos, em aço e petróleo. Nem a Alemanha e nem o Japão tinham meios de controlar o comportamento da França e dos Estados Unidos, enquanto que os Estados Unidos e a França buscaram controlar os comportamentos do Japão e da Alemanha através da dependência econômica. Os governos da Alemanha e do Japão ficavam extremamente receosos diante perspectiva de um estrangulamento nesses setores. Como poderiam conhecer as intenções daqueles dois países? Como apostar seus futuros na boa vontade de países com os quais tinham outras áreas de desavença? Se o aço francês estivesse a umas cem milhas para leste, e se o Japão possuísse petróleo e outros minerais a seu alcance e sob seu controle, o curso da história poderia ter sido diferente – mas a localização é a que se conhece, as minas de ferro estavam a oeste da Alemanha, e o petróleo a milhares de milhas do Japão. Dois fatores foram determinantes: o primeiro, a interdependência, o fato de que, não sendo autossuficientes, achavam-se vulneráveis; e o segundo, 66 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem o receio de que os países dos quais eram dependentes viessem a aproveitar-se dessa vulnerabilidade para esmagá-los. O resultado foi a guerra. Com Bismarck, com o Kaiser e com Hitler, os alemães tentaram reverter a situação impondo sua vontade à França. Os russos, aterrorizados pela possibilidade de uma Alemanha poderosa e segura em seu flanco ocidental, não queriam que a França fosse derrotada. Conhecedora dos temores russos, a Alemanha compreendeu que seria derrotada, caso a Rússia e a França atacassem simultaneamente, no momento e no lugar de sua escolha. Temendo essa possibilidade, a Alemanha buscou em três ocasiões resolver a situação, tomando a iniciativa de atacar primeiro. Falhou nas três2. O importante aqui é ressaltar que nações e outras comunidades agem muito mais por temor, que por ambição ou amor. O medo à catástrofe impulsiona as relações externas tanto de tribos nômades como de estados modernos. Esse temor, por sua vez, é determinado pela localização. O medo da dependência e da destruição move as nações, que, em última análise, está radicado na localização. TEMPO E RESISTÊNCIA Todo modelo de comportamento de comunidades, que parta do pressuposto que estas atuam como organismos individuais, está obviamente errado. Uma comunidade se compõe de numerosas subdivisões. Ela pode incluir uma vasta gama de grupos étnicos, de diversidades religiosas ou de castas socialmente delimitadas. Mas é claro que a principal característica é aquela que separa ricos de pobres, que, mais que qualquer outra, determina como uma pessoa vive. Excetuando-se o fato de que ambos nascem e morrem, a diferença de vida entre um camponês pobre e sem terras e um homem rico é, sob todos os aspectos, imensa. Os modos distintos de vida e de trabalho definem categorias diversas de seres humanos. Nenhum dos estudiosos da vida política jamais deixou de ter em conta a importância das classes econômicas e sociais. Nos séculos XIX e XX, pensadores, como Karl Marx, atribuíram tal importância ao fator classe social que o consideraram mais relevante que qualquer outro: nação, família, religião – tudo isso não só deixou de ser menos importante que classe, como também foi reduzido a manifestações de classe, a qual se tornou o motor de todas as realidades. Assim como o liberalismo econômico elegeu o indivíduo como o elemento essencial, os socialistas elegeram a classe. É interessante notar que, aparentemente inimigos irreconciliáveis, tanto os economistas liberais como os marxistas compartilhavam da opinião de que a nação, considerada como a comunidade unitária que possibilita todas as O tradutor assinala que Bismarck conseguiu impor sua vontade sobre a França, e pensa que, em apenas duas ocasiões – na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais -, a Alemanha tentou o ataque preventivo descrito pelo autor. 2 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 67 George Friedman realidades, seria, na melhor das hipóteses, uma mera conveniência e, na pior, uma prisão. Os membros de ambas as correntes esperam que a nação e outras comunidades se definhem: os liberais, por efeito do transnacionalismo do capital, e os marxistas, por ação do transnacionalismo da classe operária. Uma ilusão de ótica sempre aparece para os ricos e para os intelectuais: a de que o nacionalismo, na verdade, não tem importância. Isolados da natureza por camadas de tecnologia e de servidores, os ricos do mundo vivem de modos muito mais semelhantes entre eles que entre os seus demais concidadãos. A localização, para eles, importa muito menos. Tome-se, como exemplo, as famílias reais dos primórdios da globalização: quanto mais se fortificavam, menos se distinguiam entre elas mesmas, e mais se diferenciavam de seus respectivos súditos. É da essência da tecnologia não só dominar a natureza, como também inserir camadas separando a condição humana da natureza. Assim, de muitos modos, quanto mais avançada a tecnologia de uma comunidade, tanto menos importância a localidade passa a ter – ou aparenta ter. Um banqueiro americano, por exemplo, tem muito mais em comum com suas contrapartes, alemão ou chinês, que com muitos de seus concidadãos: a riqueza, parece, dissolve o fator localidade. O mesmo sacontece com os intelectuais, que têm muito mais em comum entre si que com o pessoal que serve na cantina da universidade. Poder-se-ia pensar que essa universalização de interesses ocorreria também entre os que não são ricos: Marx afirmava que os trabalhadores não têm pátria, e que sentiam uma solidariedade transnacional com outros trabalhadores. Os banqueiros podem não ter pátria, e os intelectuais podem acreditar que os trabalhadores não têm pátria; mas não há nenhuma evidência empírica de que trabalhadores e camponeses tenham jamais sentido que não têm uma pátria, ou, pelo menos, que não pertençam a uma comunidade. O século XX foi, na verdade, o cemitério das fantasias intelectuais de que as classes inferiores são indiferentes a interesses nacionais: em duas conflagrações mundiais, foram as classes médias e inferiores que se digladiaram; nos Estados Unidos, a classe média é que apoiou à Guerra do Vietnam. Todo estudo sobre a geopolítica deve partir dessa constatação, pois a usual, a de que os ricos manipulam os pobres para ser belicosos, simplesmente não tem sentido: em primeiro lugar, os ricos não gostam de guerras, pois estas prejudicam os negócios, e, em segundo lugar, os pobres são muito menos estúpidos – e, portanto, muito menos manipuláveis – que os intelectuais julgam que eles são. Vejamos, inicialmente, o princípio do destino compartido. Pensemos em dois planos: o da extensão territorial e o da classe. Quanto ao primeiro plano, tomemos o caso de Israel, um país territorialmente pequeno: se algo lhe acontecer, acontecerá a todos os que nele habitam; se não conseguir opor-se a uma invasão, nenhum israelense estará imune às consequências, que poderão ser profundas – 68 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem catastróficas mesmo. No que diz respeito a países de maior extensão territorial, em particular aqueles que são menos vulneráveis, podemos considerar – ou imaginar – circunstâncias em que os efeitos que recaem sobre a comunidade não venham a afetar certos indivíduos. Os cidadãos dos Estados Unidos talvez imaginem que segurança nacional não é assunto que lhes diga respeito; entretanto, para países pequenos, sob risco direto, essa atitude é impensável. Examinemos agora o segundo plano, o da classe. Para os membros da categoria social mais abastada é mais fácil se proteger de um evento que recaia sobre a comunidade, do que o é para os membros dos estratos sociais médios e baixos. Os ricos podem dispor de depósitos no exterior, ou de aviões privados que os transportem para longe do perigo; ou mandar seus filhos para escolas em outros países, e por aí vai. Tais opções não existem para os que não são ricos: o destino destes está mais atado àquilo que venha a ocorrer à sua nação. Os ricos, portanto, têm como se proteger das consequências – ou até lucrar com elas; já os que não são ricos não contam com os mesmos privilégios. Por isso, as classes inferiores são muito mais conservadoras em relação aos riscos que, no plano internacional, seu país venha a assumir. O cidadão comum, como tem menor espaço de manobra, é contrário a qualquer possibilidade de perigo, mais desconfiado no que diz respeito às intenções de outros países, como também a ideias extravagantes dos ricos e dos intelectuais sobre as vantagens de transcender o nacionalismo. Se a primeira emoção que o ser humano sente é o amor, a segunda é o medo. Ao amor àquilo que é seu, rapidamente, segue-se o medo ao outro. Quanto mais desprotegido o indivíduo, menores são os recursos de que dispõe e maior sua dependência da comunidade em que vive. Quanto mais dependente, mais tende a desconfiar de riscos. Quanto mais desconfia dos riscos assumidos por seus conterrâneos abastados, mais desconfia de tudo que coloque a perigo sua comunidade e, portanto, sua vida. Os ricos e poderosos têm a liberdade de serem ambiciosos, de querer sempre mais, de correr riscos e de perseguir aventuras. Já o cidadão comum vive em estado de medo – e não há nada de irracional nisso. Nesta era democrática, a luta de classes não acontece da maneira como Marx a imaginou: o que ocorre é uma luta entre o internacionalista rico e o cidadão comum nacionalista. Uma vez que dispõe de área de manobra, o internacionalista argumenta que, no longo prazo, as instituições transnacionais – Organização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), União Europeia, Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) – acabarão por beneficiar a sociedade como um todo. Seu compatriota pobre pode até concordar com aquele argumento, no entanto, ele não participa desse processo de longo prazo. Se perder seu emprego, é até possível que seu neto venha a prosperar, mas sua própria vida estará arruinada. O longo prazo, embora verdadeiro, torna-se uma perspectiva que só os ricos vão ter a oportunidade de desfrutar. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 69 George Friedman Ainda que exista o indivíduo exclusivamente centrado em seus próprios interesses, certamente, será um caso excepcional. Igualmente difícil é encontrar uma nação apenas voltada para o desenvolvimento econômico. Isso, por uma razão óbvia: buscar o desenvolvimento econômico sem considerar o perigo do seu puro crescimento é um suicídio, pois quanto maior for a riqueza de uma nação, maior será a tentação de outras em cobiçar essa riqueza. Defender a riqueza torna-se tão importante quanto fazê-la crescer. Mas defendê-la vai de encontro a produzila, tanto em termos de custos como em termos culturais. No fim das contas, uma sociedade é muito mais complexa que um mero motor de crescimento econômico e que uma simples arena da luta de classes. Há outro lado: o crescimento econômico, do tipo que levou os Estados Unidos a transformar-se de uma nação agrária escassamente povoada num gigante industrial e tecnológico, demanda gerações para acontecer. Tais gerações devem ter austeridade, suportar sacrifícios, para atingir seus objetivos. É imprescindível também submeter-se a uma disciplina social que obrigue imigrantes a restrições financeiras maiores que as realmente necessárias, a fim de poderem propiciar um nível social melhor para seus descendentes. A aceitação em sacrificar não só sua vida, mas também seu conforto, suas esperanças e aspirações, para que as gerações futuras possam triunfar, não é apenas o fundamento do desenvolvimento econômico, mas também a refutação de toda visão do indivíduo como o instrumento autocentrado da história. Não é dessa maneira que a história caminha. No entanto, cenários, como o acima descrito, não ocorrem no vazio e devem ser exemplificados. Suponhamos que fosse comprovado que os Estados Unidos se beneficiariam muito, caso a China passasse a produzir a totalidade dos equipamentos eletrônicos, e que, num prazo de 30 anos, isso representaria uma duplicação do Produto Nacional Bruto (PNB) e do padrão de vida dos americanos. Do ponto de vista da sociedade como um todo, pareceria uma boa ideia. Contudo, examinemos a questão sob a ótica de um engenheiro americano de computadores, de 30 anos de idade, com um filho. Aqueles 30 anos compreenderiam toda sua vida produtiva; nosso hipotético engenheiro não poderia exercer a carreira que havia escolhido, e o enorme investimento feito em sua educação seria desperdiçado. Entre seus 30 e seus 60 anos de idade, quando o esperado lucro para a sociedade deveria materializar-se, o engenheiro teria levado uma vida muito diferente daquela que esperava e, provavelmente, em condições econômicas mais difíceis. Em relação à sociedade e aos indivíduos, o tempo se mede por relógios diferentes: para ela, em gerações e séculos, enquanto que para eles, em anos e décadas. Aquilo que é apenas uma fase passageira na história dos Estados Unidos, num pequeno segmento da sociedade americana, para um indivíduo, é a maior parte de sua vida. Esta é a tensão fundamental entre uma nação e um indivíduo: 70 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 Metodologia da Geopolítica: o Amor aos Seus e a Importância do Lugar de Origem funcionam por relógios diferentes. Na maioria dos casos, quando as pessoas afetadas são poucas e se encontram desorganizadas, é fácil para a sociedade descartar seus interesses. Nos casos em que o indivíduo compreende que seus descendentes poderão realizar um salto qualitativo, ele poderá aquiescer. Mas quando os indivíduos afetados formam um conjunto considerável, e quando mesmo a duplicação da economia não trouxer mudanças substanciais para a felicidade dos descendentes, haverá resistência. Aqui, o que importa é focalizar os diferentes relógios, as escalas de tempo, e as mudanças que provocam. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 57-71, jan./jun. 2011 71 José Amaral Argolo Imprensa e Terrorismo Político José Amaral Argolo © Doutor em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ), Pós-Doutorado em Jornalismo (ECA-USP), Professor Associado da Escola de Comunicação da UFRJ e Assessor Permanente do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra. Resumo Breves anotações sobre a origem da palavra Terrorismo. Um pouco sobre a História das ações extremistas. A Difusão dos episódios e seus efeitos multiplicadores. A criação dos personagens que alimentaram a literatura de ficção. Uma advertência para a humanidade. Palavras-chave: Imprensa. Terrorismo Político. História Política. Movimentos Radicais. Apropriação Literária. Abstract Brief notes on the origin of the word terrorism. A little about the history of extremist actions. The broadcast of the episodes and their multiplier effects. The creation of the characters who fueled fiction literature. A warning to mankind. Keywords: Press. Political Terrorism. Political History. Radical Movements. Literature Ownership. Martelo e Bigorna1 Impossível decodificar as mensagens subliminares e derivadas do espetáculo proporcionado diante das câmeras pelo terrorismo, principalmente quando a escolha dos alvos recai sobre aeronaves civis, representando, por extensão, pavilhões nacionais: Alitalia, Lufthansa, El Al, Air France, ou instalações comerciais e diplomáticas, caso não seja efetuado um mergulho profundo na sua gênese. Indispensáveis, por conseguinte, as referências sobre a motivação ou o instante perturbador que desintegrou bloqueios psicológicos e/ou humanitários e impeliu pessoas comuns a práticas de outras formas incogitáveis pela oportunidade única e duvidosa de (excetuado o tiranicídio, ato legítimo quando o pressuposto é restituir a paz social) legar à História das Nacionalidades um registro ainda que fugaz. O terror como ferramenta de coerção, jamais como sistema modulado, remonta àquele amanhecer das tribos e caracterizava-se, inicialmente, pela surpresa e ímpeto do ataque acrescido da força física dos agressores; posteriormente, às 72 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político determinantes supra-assinaladas, juntaram-se a astúcia dos feiticeiros (estes, aos olhos pouco esclarecidos, aparentemente exerciam controle sobre a fúria dos elementos) e as táticas dos lordes da guerra, incluindo ingredientes misteriosos e ferramentas eficazes de destruição (catapultas, fogo grego etc.); mais à frente essas ações passaram a conjugar um mix de Razões de Estado e de propostas de dominação, religiosidade exacerbada e indissociada do implacável braço secular. Época em que, no Ocidente, ganharam vulto os Tribunais do Santo Ofício, Cortes de Instrução e sentenças que levaram à morte nas fogueiras, e por intermédio de outros suplícios, uma imensa quantidade de indivíduos acusados de heresia; dois séculos depois surgiram outros sintomas que motivaram ações ainda mais draconianas tanto nas Américas como no Continente Europeu, tais como: a ascensão ao Poder na França do chamado Terceiro Estado e de um novo way of thinking que decidia o castigo a ser aplicado aos reis: a forca, o machado ou a pesada lâmina da guilhotina. O revolucionário francês Saint-Just acentuava, a propósito, que a monarquia era o crime, e assim, de acordo com ele, ninguém podia reinar na inocência, portanto, todo rei seria antecipadamente culpado; até porque, a partir do momento em que um simples mortal desejava ocupar o trono, estava fadado à morte violenta. No perigeu do Segundo Milênio, sofisticou-se a prática do extremismo por intermédio de um coquetel de ingredientes que se estendiam das antecâmaras dos supremos e quase sempre difusos interesses do Estado, ao desgaste motivado pela desigualdade econômica e aos desequilíbrios na órbita militar; do fanatismo religioso à superioridade derivada dos investimentos maciços em tecnologias de ponta. Variáveis estas com post scriptum idêntico: abastecido e retroalimentado pelos órgãos de difusão, gradualmente mais interativos, presentes, imediatos e... exagerados! Robert Badinter2 acentua que, “historicamente, a prática do terrorismo representava o único método de ação dos oprimidos”. Sob esse viés, centenas de milhares (melhor seria dizer milhões) de vidas foram sacrificadas na luta pela liberdade. Com o passar do tempo, as transformações observadas tanto na conjuntura internacional como nas que se referem ao tecido social, desgastaram princípios arraigados e imprimiram novo ritmo ao processo. Basta uma comparação entre os episódios registrados pelas diferentes mídias para notar a quase inexistência das aspirações dos Estados Nacionais e/ou o ideário defendido por essa ou aquela organização apresentada como extremista ou radical. Existem exceções. Quando é razoável a interação entre os segmentos étnicos, religiosos e laboriais de uma sociedade; quando o objetivo maior é a independência, a recuperação da autonomia e o retorno à plenitude do estado de direito, é comum os cidadãos emprestarem solidariedade àqueles combatentes invisíveis da liberdade, oferecendo-lhes armas, abrigo e alimentos; proporcionando-lhes documentos e alternativas de fuga e, até mesmo, participando como coadjuvantes de ações clandestinas. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 73 José Amaral Argolo Exemplo notável dessa colaboração espontânea por parte da população de uma região ocupada militarmente foi a tática da picada de mosquito (uma incomoda, milhares enlouquecem) — utilizada pelos grupos de partizans que atuaram na retaguarda das forças do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, afetando a capacidade de luta das tropas engajadas nos combates e dispersando-as no exato momento em que os comandantes divisionários ou de corpos-de-exército delas mais necessitavam. Tais ações (e operações psicológicas, como acontecem hoje) compreendem todo um conjunto de manobras: da elaboração e difusão de panfletos (confeccionados em gráficas improvisadas), às pichações em logradouros públicos, incêndios e sabotagem, tanto nas máquinas-ferramentas como no aparato destinado ao esforço de guerra. Essa reiteração diária e sistemática provoca efeitos que se estendem da desconfiança ao desassossego e, deste, ao pânico. Durante a campanha da Wehrmacht no Leste europeu, as fábricas alemãs de parafusos, molas para pistolas e submetralhadoras e chassis reforçados para os caminhões, mantiveram (em que pesem os danos causados pelos bombardeios estratégicos) quase inalteradas as suas cotas de produção; no entanto, certa quantidade de materiais tornava-se inútil ao primeiro manuseio. Parafusos aos milhares eram limados próximo às bases e a parte danificada recoberta por uma camada de graxa ou cera de abelha; as molas, por sua vez, eram habilmente “trabalhadas” de modo a não suportarem o ritmo de fogo exigido, fragmentando-se em pleno combate; quanto aos chassis, apresentavam empenos que dificultavam ou impediam o encaixe nas carrocerias dos caminhões, tratores e tanques. Uma vez descobertos, os transgressores eram punidos exemplarmente, do que se aproveitavam os birôs de Propaganda e Contrapropaganda de Guerra para — por intermédio dos matutinos/vespertinos, programas de rádio e cinejornais —, de um lado, destacar a coragem dos povos oprimidos e, como contrapartida, justificar a adoção de métodos radicais contra os covardes “assassinos das sentinelas” e “conspiradores embuçados”. À semelhança dessas picadas de mosquito em tempos de guerra total, a emissão de boatos amplia o espectro do extremismo oportunista. A simples conjectura sobre um derrame de notas falsas (em tempos de instabilidade financeira e “pacotes econômicos” inesperados) induz lojistas e consumidores a adotarem cuidados com o que simplesmente não existe. Em momentos assim, além do receio daqueles que vivem do comércio, aparecem espertalhões vendendo dispositivos eletrônicos de toda ordem, alardeando sistemas infalíveis de rastreamento telefônico, câmeras dotadas de lentes especiais que identificam volumes de metal do tamanho de um maço de cigarros etc. Essa indústria paralela também se beneficia do terrorismo. 74 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político Tempos de Paz Se, ainda que resumidamente – conforme supra-assinalado – o fenômeno do extremismo é multiplicado em tempos de guerra, interpretação idêntica deve ser aplicada em períodos de paz. Paz simbólica (é claro!), pois não é o que se nota em metrópoles como o Rio de Janeiro, Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Paris, Moscou, onde, para reprimir conflitos interraciais ou derivados do crescimento descontrolado da delinquência comum, até mesmo as Corporações Armadas são convocadas a intervir. Para confundir e assustar, no bojo desses imbróglios de natureza econômica e política, avulta uma espécie de terrorismo negro, dizimando inocentes aos magotes e construindo personagens que se utilizam de táticas diabólicas, capazes de induzir os cidadãos mais crédulos sobre a adequabilidade e legitimidades das ações. Eis, como exemplo, uma referência quantitativa e histórica sobre o paradoxo representado por esse terrorismo: entre 1968 e 1976 – conforme levantamento feito pela equipe do jornal L’Osservatore Romano (ver Hemerografia: Il terrorismo politico I, II, III, IV) – ocorreram 1200 ações internacionais; destas, 38,4% na Europa e 27,5% na América Latina. Em 1968, ano tumultuado pela Ofensiva do Tet (no Vietnam), passeatas e protestos estudantis na França e nos EUA, além do final melancólico da Primavera de Praga, as ações terroristas representavam 18% da violência política em todo o mundo (os conflitos estudantis totalizavam 40%, os distúrbios raciais 18% e as demais rivalidades étnicas 9%). Cinco anos depois (1973), essas operações alcançavam 46% desse mesmo indicativo (violência política) . Itália e República Federal da Alemanha, cujos governos apresentavam indiscutível maturidade política, lideravam as estatísticas; pesquisas realizadas na época revelaram também que as facções engajadas na confrontação com as forças de segurança no chamado Bloco Europeu (excetuados os países tutelados pela antiga União Soviética) exibiam perfis absurdamente díspares. Numa das bases dessa pirâmide, organizações ultranacionalistas e separatistas (irlandeses, ucranianos, corsos, bascos...); na outra, grupos agindo em apoio aos partidos e/ou movimentos legalizados de ultra-esquerda empenhados na sustentação da luta contra o imperialismo (Brigate Rosse, Fração do Exército Vermelho, leia-se Grupo Baader Meinhof etc.); no vértice, planejando iniciativas em série, os braços armados das facções islâmicas mobilizadas numa campanha cada vez mais violenta contra os interesses norte-americanos e israelenses no Oriente Médio. Isoladas das demais, embora não menos atuantes, grupos irregulares operando abrigados nos serviços de informações. As lideranças desses grupos extremistas aproveitavam-se da aparente inércia dos órgãos de segurança para agir. Daí a importância dos estudos sobre a gênese e operacionalidade desses grupos. François Bourricaud, pesquisador francês, foi um desses pioneiros na tentativa de explicar o que ocorreu em alguns Estados Nacionais. Ele partiu do princípio segundo o qual o terrorismo germina e toma corpo nos países onde inexiste equilíbrio social, jurídico e administrativo: Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 75 José Amaral Argolo De acordo com François Bourricaud, esse equilíbrio dependia, (...) antes de mais nada, de duas condições: que haja um acordo mínimo entre os dirigentes para o funcionamento das instituições e um poder de arbítrio e decisão localizado que, no Ocidente, se traduz pelo sufrágio3. Acrescenta que essas violações da legalidade apontavam exatamente para as falhas da sociedade. Por exemplo: na Europa Ocidental, a atuação dos grupos extremistas indicava que as causas sociais e políticas não eram as mais significativas, atribuindo-se relevo àquelas motivações de natureza essencialmente ideológica. Com efeito, estabilidade, índices reduzidos no que tange à delinquência comum, sólida base educacional e hospitalar, governos e Parlamentos operativos e bem articulados, seguridade social disponibilizada em patamares elevados, tudo contribuía (e ainda contribui) para respaldar o conceito observado há quase dois séculos por Alexis de Tocqueville (autor do clássico A Democracia na América). Segundo este, “a monotonia opressiva provoca periodicamente o acionamento do fanatismo religioso e político”. Além disso, nos Estados autoproclamados liberais, os governantes costumam atribuir maior valor aos aspectos econômicos, relegando os demais (sejam eles patrióticos, comunitários e voltados à solidariedade) a um plano secundário, proporcionando um distanciamento ainda maior entre os que estão abrigados no coração do Poder e aqueles outros interessados em promover modificações no sistema político. No princípio era o abismo Examinado sob o sentido lato, terrorista (adjetivo) é todo aquele indivíduo que se utiliza de métodos ultraviolentos para impor a sua própria verdade (ou, por extensão, a da organização à qual está vinculado) ao corpo social. Não por acaso, Albert Camus, pensador, dramaturgo e romancista franco-argelino, além de ganhador do Prêmio Nobel de Literatura4, acentuava: O revolucionário é um homem antecipadamente condenado. Não pode se permitir relações apaixonadas nem possuir coisas ou seres amados. Devia mesmo despojar-se do seu nome. Tudo nele se deve concentrar numa única paixão: a Revolução. Alguém, portanto, capaz de, sem qualquer hesitação de ordem sentimental, colocar uma bomba-relógio num teatro, lançar mísseis de ombro do tipo AT4 ou RPG contra aeronaves civis em pleno pouso/decolagem, ou detonar explosivos plásticos num ônibus escolar de modo a impactar a Opinião Pública, convencê-la sobre a possibilidade de outros atentados ainda mais violentos e, como derivadas dessas práticas impiedosas, obter vantagens políticas, econômicas, religiosas ou, até mesmo, militares. 76 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político Discrepâncias de tempo no Calendário Romano fizeram com que a chamada Civilização Ocidental ingressasse antecipadamente no Terceiro Milênio, ao influxo de transformações não calculadas e intensificadas pelo acesso às novas tecnologias. Todavia, mesmo com a evolução dos softwares, a multiplicação e a dinâmica das redes de comunicação online, cresce e subsiste o legado de Fobo e Deimos: terror do desconhecido, medo da morte — impulsionados pela ameaça do cogumelo radioativo. Basta, para isso, que um ou mais indivíduo(s) amparado(s) em sólidos conhecimentos técnicos e exercendo função de confiança rompa(m) o lacre dos gabinetes especiais e acione(m) as chaves de duplo comando; que um gangster/extremista, com veleidades científicas e muito dinheiro, contrate cientistas deserdados em seus países de origem e produza um artefato miniaturizado, como descreveu o romancista britânico Frederick Forsyth em O Quarto Protocolo, posteriormente respaldado por intermédio das declarações do general reformado Alexander Lebed (ver abaixo); que, por ambição e deslealdade para com seu próprio país, um ou mais físico(s) nuclear (es) talentoso(s) e mal remunerado(s) venda(m) segredos nucleares a um ditador de republiqueta ou guru de uma dessas inúmeras seitas abrigadas nas montanhas ou escondidas nos labirintos das metrópoles. Entrevistado por Jaime Spitzcovsky para a Folha de S. Paulo, edição de domingo, 23 de novembro de 1997 (sob o título: General Russo alerta contra Terror Nuclear, Primeiro Caderno, página 20), Alexander Ivanovitch Lebed, na reserva desde 1995 e terceiro colocado no pleito que conduziu Alexander Ieltsin ao poder na Rússia, em 1996 (tendo sido nomeado Secretário do Conselho de Segurança – órgão que, ainda hoje, define as estratégias de segurança do Kremlin – afastado pouco depois das funções pelo próprio Ieltsin), ao ser indagado sobre a situação das Forças Armadas russas, naquele momento da História, ressaltou5: O outrora forte Exército soviético e o complexo industrial-militar soviético tornaram-se perigosos, principalmente para o próprio país. Com a atual reforma militar e a diminuição do tamanho das Forças Armadas, primeiro dispensam os militares, depois sobra uma enorme quantidade de armas e munições muito perigosas, e não há ninguém que cuide disso. Isso pode levar a consequências catastróficas, sem nenhuma guerra. Imaginemos apenas uma avaria qualquer num reator nuclear de um submarino desativado. Respondeu, também, a outra indagação ainda mais pontual e preocupante formulada pelo jornalista; qual seja: “O senhor, há pouco tempo, levantou questão sobre a (s) maleta (s) nuclear (es). Existe a possibilidade de terrorismo nuclear?” (a hipótese em pauta era o desaparecimento de algumas dessas maletas nucleares, cuja existência fora confirmada pelo Chefe de Governo, Bóris Ieltsin). Lebed: É, por isso, que eu levantei o problema. Esses sistemas existem, a última versão se chama RAS 115, uma outra versão se chama RAS 115-01, são dispositivos muito compactos: 45 cm X 45 cm X 30 cm, pesam 30 quilos. Cabem numa maleta. [Cada qual] É acionada por uma só pessoa. Mas a maleta jamais foi empregada, ela nunca foi utilizada para fins bélicos. Mas é uma arma ideal para os terroristas. As possibilidades do terrorismo nuclear e da chantagem são simplesmente colossais. Mas o problema não é apenas as maletas, mas são as pessoas que as fabricaram. A área que antes estava fechada e onde foram fabricadas as maletas foi uma Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 77 José Amaral Argolo espécie de paraíso na Terra. Hoje é uma região em crise econômica, como todo o mundo da ciência na Rússia, em debandada geral. Então, se eu sei fazer um artefato assim, e se eu sou despedido, sempre poderei achar pessoas que darão condições, poderão me pagar e poderei fazer a (s) maleta (s) em outro lugar. Então, eu espero que sejam eliminadas todas as maletas existentes, todas as tecnologias de sua fabricação. E devem ser achadas todas as pessoas que as fabricavam, dando-lhes condições de uma vida decente para que elas não fiquem tentadas a vender os seus conhecimentos e aptidões6. Esse terrorismo de fonte abstrusa vem, infelizmente, conquistando adeptos em todo o mundo, a tal ponto que foi criada uma espécie de Bolsa Paralela com o único propósito de contratar cientistas e pesquisadores — muitos deles militares da reserva outrora engajados em projetos especiais junto aos seus respectivos governos — quadros de apoio técnico ambiciosos etc. As mídias difundem, diariamente, as declarações inquietantes dos governantes (especialmente ocidentais) diante do sucateamento do aparato nuclear da antiga URSS e, também, a respeito do perigo derivado dos depósitos de armamento deixados para trás após a desincorporação da Ucrânia, Bielorrússia e outros países sob a tutela de Moscou. A técnica para a preparação de bombas atômicas não constitui segredo e, até mesmo, os diagramas mais complexos podem ser copiados por qualquer internauta. Todavia, as tecnologias utilizáveis pelas organizações terroristas avançaram em outros campos, oferecendo produtos letais a custo baixíssimo, principalmente aqueles originários da indústria químico-farmacêutica. Por exemplo: a partir de amostras do DNA retirados de espécimes da fauna é possível alterar códigos genéticos em laboratórios e, em seguida, disseminar determinadas bactérias superativadas, como a do botulismo, ou viabilizar hiperatividade cerebral por intermédio da admissão de uma quantidade de ácido lisérgico nos dutos de água potável de uma unidade militar, indústria, shopping center, escola, universidade ou hospital. O ácido lisérgico (LSD) – como de conhecimento público – é inodoro, insípido e transparente; quase impossível, portanto, de ser detectado. Notícia publicada na edição de 26 de novembro de 1997 de O Globo (como título-forte da página 38) procura reforçar essa assertiva ao informar que o Iraque teria produzido até 200 toneladas da arma química VX, gás que ataca o sistema nervoso e “é cem vezes mais mortal que o Sarin. Esse composto causa paralisia e os músculos involuntariamente estrangulam os órgãos vitais”7. O então secretário de Defesa dos EUA, William Cohen, afirmou que o estoque iraquiano do gás VX seria suficiente para matar toda a população do planeta. Segundo ele, 25 países dominavam (na época) a tecnologia para a produção desses agentes químicos (entre os quais o Anthrax, Tabun e Botox) e alertou para o perigo desses arsenais caírem em mãos de terroristas. Os fatos subsequentes provaram que, relativamente ao Iraque, as afirmativas do Secretário de Defesa eram infundadas. 78 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político Um pouco de História Na Antiguidade os “deuses” cobravam (por meio dos sacerdotes ou xamans) pesados tributos para não incomodar os mortais com sua fúria. Riachos de sangue e pilhas de cadáveres são mencionados pelos antropólogos que estudaram as práticas rituais entre Incas (Peru) o os Astecas (no México). Séculos depois os colonizadores britânicos, donos de um império onde o sol jamais se punha, sofreram imensas perdas decorrentes da atuação noturna e quase ininterrupta dos bhuttootees thugs (adoradores de Khali, na Índia), hábeis na arte de estrangular com fios de seda. Comenta-se que, entre Benares e Bombaim, existem mais sepulturas das vítimas sacrificadas em honra à Deusa da Vingança do que dormentes naquele trecho da estrada de ferro que serve de ligação entre as duas cidades. Mesmo a Europa dita “civilizada” serviu como palco para incontáveis perseguições e atrocidades. Entre as vítimas destacam-se Jacques de Molay (GrãoMestre da Ordem dos Cavaleiros do Templo) e Giordano Bruno (filósofo e professor em Paris), ambos queimados como heréticos; Galileu Galilei (matemático, físico e astrônomo, descobridor da lei da queda dos corpos e enunciador dos princípios da inércia e da composição dos movimentos) forçado a abjurar de joelhos sua doutrina para escapar ao suplício que lhe prometiam os inquisidores; sem esquecer de citar ainda o massacre dos Huguenotes na trágica Noite de São Bartolomeu (23 de agosto de 1572). Entretanto, é o terrorismo político que oferece aos pesquisadores da ultraviolência o campo mais extenso para prospecções, a começar por sua natureza indiscriminada, como observou Paul Wilkinson8: Bem distinto do perigo de que sejam feridas pessoas que não foram pré-selecionadas como alvos, há o subproduto inevitável do terror generalizado de que outros possam ser feridos. A lógica desse raciocínio: uma vez que a ausência de discriminação ajuda a espalhar o medo, se nenhuma pessoa constitui o alvo em particular, rigorosamente ninguém pode se considerar seguro. Wilkinson enumerou, em seguida, as características do extremismo político; quais sejam: indiscriminação, imprevisibilidade, arbitrariedade, capacidade de destruição impiedosa e a natureza implicitamente amoral e antinomista do desafio terrorista. Acrescentou que o terrorismo político propriamente dito é tão somente o que se pode chamar de uma política continuada que, por sua vez, envolve a deflagração do terror organizado, seja de parte do Estado, de um movimento ou facção, ou mesmo de um pequeno grupo de indivíduos. Outro aspecto importante para o trabalho dos pesquisadores diz respeito a difícil delimitação da fronteira entre motivações políticas e intenções criminosas, bem como da delimitação entre guerra e terror. No que tange ao primeiro caso vale considerar a opinião de Walter Laqueur9: Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 79 José Amaral Argolo Para mim é nítida. Matar um homem é crime. Quem teria a pretensão de fazer com que o terrorismo fosse condenável, que o assassinato de um ditador ou de um tirano fosse um crime? Ninguém, a menos que se afirmasse um partidário irredutível da não violência, de recusar, em qualquer circunstância e em nome de princípios morais, a utilização da força. Assassinar Hitler, em 1923, teria sido um ato de terrorismo, mas esse ato teria salvado milhões de vidas humanas. O terrorismo torna-se crime a partir do momento em que passa a atacar pessoas que não são nem opressores nem carrascos, que não torturaram nem assassinaram. É o caso da maioria dos atos terroristas recentes. Agora, durante um conflito de amplas proporções pode acontecer de as tropas ou grupamentos especiais mobilizadas contra os “inimigos do Estado” virem a ser acionadas contra cidadãos comuns para “preservá-los” de um horror ainda maior. A história do nazismo reservou exemplos. Se, por um lado, tem-se o terror desencadeado pela Gestapo contra a Rosa Branca, organização universitária de resistência liderada pelos irmãos Hans e Sophie Scholl, ambos presos e executados quase que imediatamente (ele, a machadadas; ela, guilhotinada), sob a acusação de disseminação de propaganda pessimista e insidiosa contra o Reich no momento em que a Wehrmacht suportava duros reveses no Leste. Do outro, Hannah Arendt, no conjunto de reportagens publicadas originariamente na revista New Yorker e, posteriormente, agrupadas no livro intitulado Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal10, ofereceu aos leitores, além de uma tese polêmica sobre o massacre administrativo (praticado pelos burocratas da SS e do SD), exemplo grotesco sobre como os diferentes segmentos da Opinião Pública de um país podem ser dessensibilizados a tal ponto que, em meio à destruição total, a violência praticada pelo Estado pode perpassar como se fora uma dádiva. Ei-lo, como publicado: Aconteceu em Konigsberg, na Prússia Oriental, uma região completamente diferente da Alemanha, em janeiro de 1945, alguns dias antes de os russos destruírem a cidade, ocuparem suas ruínas e anexarem a província inteira. A história é contada pelo conde Hans Von Lehnsdorff, no seu Ostpreussiches Tagebuch (1961). Ele permanecia na cidade, como médico, para cuidar dos soldados feridos, que não podiam ser evacuados; foi chamado para um dos imensos centros para refugiados, do lado do campo, que já estava ocupado pelo Exército Vermelho. Aí, ele foi abordado por uma mulher que lhe mostrou uma varicose, adquirida há muitos anos, que ela queria tratar agora, porque tinha tempo. “Eu tentei explicar que era mais importante, para ela, ir-se embora de Konigsberg e deixar o tratamento para uma época posterior. Para onde você quer ir? – perguntei-lhe. “Ela não sabia, mas dizia que todos eles seriam trazidos para o Reich. E então ela acrescentou, surpreendentemente: ‘Os russos nunca nos pegarão. O Führer jamais o permitirá. Muito antes disso ele nos gasificará.” Moderna Tradução Tambours! Ordem de Antoine de Santerre, chefe da Guarda Nacional de Paris, para abafar as últimas palavras de Louis XVI. 80 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político O sentido atual para o vocábulo sobre o qual repousa o tema dessa pesquisa foi externado, inicialmente, por Louis-Antoine Saint Just durante a Grande Revolução de 1789, quando parcela representativa do Terceiro Estado – apoiado por uma parte da burguesia – apeou do Poder tanto a nobreza como o clero e lhes ensinou o caminho da guilhotina! Todavia, antes de qualquer digressão filosófica sobre essa matéria, fazse necessário enunciar os fatores que contribuíram para a construção de uma relativamente longa Era do Terror na França; quais sejam: a desordem interna proporcionada pelos acontecimentos subsequentes à Tomada da Bastilha, e a iminência de grave perigo externo; isto é: a confrontação armada com os exércitos da Segunda Coalizão: Espanha, Inglaterra, Áustria, Sardenha, Prússia e Holanda. O que aconteceu na França – além do extermínio de boa parte da noblesse d’épée e da noblesse de rasse (nobreza da espada e da raça) – foram períodos pontuados pela redução ou exacerbação desse Terror. Cronologicamente: o primeiro teve como pique o massacre de 2 a 6 de setembro de 1792 (o assassinato de 1368 pessoas decorreu do confronto exacerbado entre a religião e o Estado). Duramente atingida pelas medidas revolucionárias, a Igreja Católica deixou de exercer o controle sobre a educação, acatou a proibição pública do uso das vestes sacerdotais e foi obrigada a suprimir algumas ordens religiosas. Os sacerdotes, além disso, viram-se forçados a jurar plena obediência à recém-aprovada Constituição Civil do Clero. Um segundo momento se estendeu do dia 17 de setembro de 1793 – quando entrou em vigor a Lei dos Suspeitos (reforçada pela Lei de 22 do Prairial, firmada a 10 de junho de 1794) – a 28 de julho de 1794. Em seguida, houve a fase que os historiadores denominaram O Grande Terror, deflagrado entre os dias 10 de junho e 27 de julho de 1794, o mais violento de todos. Somente na cidade de Paris, 1376 homens e mulheres foram executados. O quarto e último, denominado Terror Branco, de maio a junho de 1795, levou à dizimação de centenas de jacobinos11. Dos quatro períodos supra-assinalados, o segundo e o terceiro são os que mais interessam à pesquisa, uma vez que, em decorrência das leis de exceção, foram perpetrados massacres e execuções em cascata jamais observadas na História daquele país. Quanto aos diplomas legais que respaldaram as ações revolucionárias, o primeiro deles assegurava ao Comitê de Salvação Pública (integrado por doze personalidades) 12, bem como aos respectivos agentes subordinados, poderes para prender sem aviso prévio qualquer émigré, funcionário público destituído de função que não houvesse sido reintegrado, opositores à Revolução ou à guerra travada contra as forças estrangeiras. Vale registrar: mesmo entre os émigrés, alguns se mostravam declaradamente favoráveis à utilização do psicologismo do medo e do terror como ferramentas de coerção, a exemplo do conde de Montmorin, ele próprio ministro do Exterior sob o reinado de Luís XVI. Disse ele: Acredito [seja] necessário punir os parisienses pelo terrorismo13. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 81 José Amaral Argolo Tratava-se, pois, de um dispositivo legal que forçava todas as pessoas declaradamente não engajadas no processo revolucionário (situação aplicada aos católicos e burgueses), a viverem sob a ameaça constante da prisão ou da morte. Na sua gênese, o objetivo desse instituto jurídico era assegurar uma aparente unidade do povo em meio à guerra que se anunciava e poderia esmagar o país (a referência no caso é a Segunda Coalizão). Por sua vez, a Lei datada de 22 do Prairial (fruto da estratégia adotada por Maximillien Robespierre contra o seu maior adversário político na ocasião, o advogado e jornalista Georges Danton) era ainda mais draconiana: estabeleceu a aplicação de pena de morte para os que defendessem a restauração da monarquia e caluniassem a recém-instaurada República (estendendo a sanção, entre outras possibilidades, àqueles que difundissem notícias falsas, roubassem ou causassem dano às propriedades públicas e dificultassem o transporte de alimentos às tropas engajadas na luta contra os estrangeiros); atribuía plenos poderes às cortes de Justiça para que autorizassem – ou negassem – aos acusados o direito de constituírem advogado ou convocar testemunhas; por fim, autorizava esses tribunais a dar por concluídos os inquéritos a qualquer momento. Como se presume, as sementes do Terror não germinam em solo árido. Deve haver água suficiente e jardineiros hábeis para que se transformem em cardos. Ora, dentre os personagens que se destacaram nesta fase turbulenta da História, cinco homens com ideias ao mesmo tempo tão próximas e divergentes: os já citados Maximillien Robespierre e Georges Danton, bem como Camille Desmoulins e LouisAntoine de Saint-Just, seguiram a trilha da guilhotina, máquina infernal inventada pelo Dr. Joseph Ignace Guillotin (membro dos Estados Gerais e, ele próprio, executado posteriormente), montada inicialmente na Place de Grève no dia 25 de abril de 1792; o último deles, Jean-Paul Marat, foi assassinado com uma facada na banheira da sua casa (a 13 de julho de 1793) por uma jovem simpatizante dos girondinos14: Charlotte Corday. Tribunos e/ou jornalistas, esses homens agiram com certa liberdade ao longo da Grande Revolução, agudizando questões ou – como pode ser observado mais tarde – tentando amenizá-las por intermédio de artigos assinados e/ou pronunciamentos públicos. Nesta época, na Capital, proliferaram jornais com títulos retumbantes: Révolutions de France e, em seguida, Le Vieux Cordelier (ambos pertencentes a Camille Desmoulins); L’Ami du People – rebatizado Journal de La République Française (de propriedade de Jean-Paul Marat), Le Patriote Français (de Jean Pierre Brissot), periódicos estes de curta existência, confecção artesanal e tiragens reduzidas, ainda que eficazes no quesito influência sobre o conjunto da Opinião Pública. Ao longo desse período, cristalizavam-se as possibilidades do emprego da mídia impressa como ferramenta de apoio ao terror praticado e justificado como prerrogativa do Estado (nada muito diferente dos dias de hoje quando Estados Nacionais se arvoram no direito de agir como e onde bem entenderem, inclusive fora das suas fronteiras internacionais) Desmoulins, por exemplo, se auto-condenou à morte após publicar, no Le 82 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político Vieux Cordelier, um apelo favorável à decretação do fim do Terror 15 Exterminaríeis todos os vossos inimigos pela guilhotina? Jamais houve maior loucura. Podeis vós destruir um inimigo no cadafalso sem fazer dois outros entre sua família e seus amigos? Eu sou de opinião muito diferente daqueles que clamam que é necessário manter o Terror como a ordem do dia. Confio em que a liberdade será assegurada e a Europa conquistada, tão logo vós tenhais um Comitê de Clemência. Curioso o destino desses homens, principalmente o de Desmoulins. Afinal, foram por ele proferidas – sobre uma das mesas do Cafè de Foy, nas imediações do Palais Royal – as palavras de incitação à desordem, no dia 12 de julho de 1789, denunciando a intempestiva exoneração do financista Jacques Necker, ministro das Finanças de Louis XVI, e a hipótese de intervenção dos regimentos alemães e suíços em plena capital sublevada do país. Fatos estes que levariam – quarenta e oito horas depois – à tomada e destruição da Fortaleza-Prisão da Bastilha, episódio épico no qual o governador Bernard-René Jordan, Marquês de Launay, após assegurar às lideranças dos revoltosos que não atiraria com seus canhões e 114 soldados contra o povo enfurecido, acabou preso e quase que imediatamente decapitado. Sua cabeça foi espetada na ponta de uma lança e exibida nas ruas de Paris. Tanto a cabeça de Camille Desmoulins como a de Danton tinham já sido pedidas por Robespierre (o qual, por sua vez, temia a dissolução do Comitê de Salvação Pública e o fim do Reino do Terror). Esses dois revolucionários, ambos com 34 anos, contam os historiadores, subiram calmamente os degraus que conduziam ao patíbulo na Praça da Revolução, na tarde de 5 de abril de 1794. Maximillien Robespierre e seu amigo Louis-Antoine de Saint-Just também não tardaram a percorrer caminho semelhante, o que aconteceu na tarde de 28 de julho daquele mesmo ano. Pesquisas recentes informam estarem corretos esses números: 18 mil mortos e 300 mil cidadãos franceses presos ou despojados das suas propriedades durante o Reino do Terror. Sena, rive gauche O que vou dizer-lhes não é uma defesa. Não estou tentando escapar do castigo imposto pela sociedade que ataquei. Além do mais, só reconheço um tribunal capaz de julgar-me – eu próprio – e o veredito de qualquer outro não tem importância para mim. Emile Henry16 Paris, margem esquerda do Sena, primeira metade do século XIX. Exatamente ali, na mais cosmopolita e revolucionária das capitais europeias, ativistas de variadas tendências reuniam-se para discutir o provável “futuro do Estado” e as fórmulas capazes de minorar o sistema de semiescravidão do operariado. Três dentre esses Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 83 José Amaral Argolo homens e mulheres conquistaram notável projeção: Pierre-Joseph Proudhon, Michael Alexandrovich Bakhunin e Karl Marx. Os dois primeiros eram anarquistas; o último, na vanguarda das correntes socialistas, teórico do comunismo pleno. Embora esses três homens tenham logrado passar à História pela força das próprias ideias, a denominação revolucionário profissional deve ser aplicada integralmente a Michael Bakunin, ex-combatente nas barricadas (da Comuna) de Paris e nos levantes de Praga e Dresden. Capturado em seguida e mantido preso na Fortaleza de Pedro e Paulo, escapou através da Sibéria e foi parar no Japão, de onde seguiu para os Estados Unidos da América e retornou ao continente europeu. Na Espanha, sob a sua orientação, foi criado o maior movimento anarquista do mundo17. A fidelidade à História exige, porém, que seja creditado aos italianos o mérito de colocar em prática a tese da Propaganda pela Ação. Carlo Pisacane, republicano extremista, após rejeitar o título de Duque de San Giovanni – que, aliás, lhe cabia de direito – disse: A propaganda do pensamento é uma quimera. As idéias são uma consequência da ação e não o contrário, e o povo não será livre quando for educado, mas educado quando for livre18. A partir da inspiração proporcionada por Carlo Pisacane aos anarquistas italianos, foram desencadeadas insurreições em cascata. Daí por diante aconteceram atentados a chefes de Estado (Espanha, EUA, Itália, França, Áustria), que impactaram a Opinião Pública. Essas ações individuais conquistaram espaço no imaginário popular, alimentaram e retroalimentaram a imagem dos militantes anarquistas protegidos pelas sombras e escondendo, sob os respectivos capotes, bombas de fabricação artesanal. Outro importante revolucionário, Piotr Kropotkin, utilizava o seu jornal (Le Révolté) como tribuna para justificar as ações práticas. Por exemplo, na edição de 25 de dezembro de 1880, salientou19: A revolta permanente pela palavra falada e escrita, pelo punhal, pelo fuzil, pela dinamite (...), tudo o que não pertença à legalidade, é bom para nós. Em sua análise sobre o terrorismo anarquista praticado no final do século XIX, Daniel Guérin explica que este20: Apresentava, em seus aspectos dramáticos e anedóticos, um cheiro a sangue que cativou o gosto do grande público. Todavia, se o terrorismo constituiu, naquela época, uma escola de energia individual e de coragem, que merece respeito; se ele teve o mérito de chamar a atenção da Opinião Pública para a injustiça social, ele aparece, hoje, como um desvio episódico e esterilizante do anarquismo. O terrorismo anarquista é uma recordação do passado. Ressalte-se, porém, que não foram tão somente os anarquistas que recorreram aos métodos violentos supra-assinalados para impor as ideias-força que 84 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político abraçavam. Leon Trotsky, em uma das suas obras provavelmente menos conhecidas no Brasil: Stálin, o Militante Anônimo, recorda o período turbulento em que o futuro senhor absoluto da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conhecido pelo apelido de juventude, Koba, agia na clandestinidade, explodindo poços de petróleo e dinamitando ferrovias. Acrescenta o teórico da Revolução Permanente que o curso da insurreição podia ser traduzido com clareza pelas estatísticas do terror. Em 1905, ano que historicamente marca a impulsão dos bolcheviques, 233 pessoas foram assassinadas; 768, em 1906; e 1231, em 1907. Sobre a “mitificação dos mártires” Ao receber do corpo de jurados a confirmação da sentença de morte que lhe fora atribuída e seria aplicada por intermédio de uma injeção letal, Timothy McVeigh, 29 anos, não esboçou qualquer reação. Responsável pela colocação de um carro-bomba que explodiu, no dia 19 de abril de 1995, em Oklahoma City (no estado do Colorado), o ex-soldado condecorado durante a campanha no Golfo Pérsico teria pela frente dois ou três anos numa prisão de segurança máxima até o julgamento dos inúmeros recursos impetrados por seu advogado, Richard Burr, e a execução. McVeigh não foi e nem será o único dentre os açougueiros do século XX a se beneficiar com o espetáculo proporcionado pelas mídias; a projetar-se como uma espécie de “vingador solitário”; como representante de um segmento social oprimido pelo establishment norte-americano. O argumento principal apresentado na sua defesa perante o juiz de Direito foi o da indignação demonstrada por seu cliente uma vez consumada a invasão seguida de incêndio do rancho onde estavam abrigados centenas de adeptos da seita Davidiana – em Waco (Texas) – situação essa bastante grave que exigia a adoção de represálias. “Mártires das causas”, tantos os planejadores como os agentes de campo das organizações extremistas mortos durante confronto com as forças de segurança ou – caso de Timothy McVeigh – condenados à morte (após julgamentos nem sempre conduzidos adequadamente), costumam ser elevados à estatura de heróis. Sem que disponham do glamour dos semideuses, mas com direito a homenagens, discursos inflamados durante os respectivos funerais e outras formas de exteriorização da simpatia. Assim era observado nas reportagens teledifundidas, quando caixões lacrados contendo os corpos de ativistas do Exército Republicano Irlandês (IRA), mortos por unidades britânicas de contrainsurgência (antes da dissolução do braço armado da organização), eram carregados por multidões nas ruas de Belfast; ou, em seguida ao autoextermínio de um ativista palestino, numa rua qualquer de Tel Aviv, Haifa, Hebron ou outra grande cidade israelense. São basicamente jovens que perpassam aos olhos da opinião pública como “sentinelas” da justiça e da verdade. Quanto ao auto-extermínio dos chamados homens-bomba (agora também mulheres!), reveste-se de uma espetaculosidade Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 85 José Amaral Argolo ainda maior, principalmente se acompanhada de intenso morticínio. Para tanto existe uma explicação: a eliminação de um ou mais inimigos durante a operação é, geralmente, interpretada como ponto de honra. Sob este ângulo, vale comparar esse hipotético extremista morto em uma explosão aos antigos heróis da mitologia. Da mesma forma que Héracles – herói nacional da Hélade – precisou ser purificado pelo fogo para (simbolicamente) despir-se dos elementos mortais representados por sua própria mãe, Alcmena, o extremista cumpre desígnios quase sagrados. De volta ao episódio que motivou o atentado de Oklahoma City, ou seja, a tragédia dos davidianos. Às 6h5min, de 21 de abril de 1993, após 51 dias de cerco ininterrupto, iniciado a 28 de fevereiro, originário este, por sua vez, de uma incursão fracassada que resultou na morte de quatro agentes do Departamento de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo (ATF), além de ferimentos em 16 pessoas, agentes do Federal Bureau of Investigation (FBI) e do já citado ATF, apoiados por tanques da Guarda Nacional dos EUA, atacaram a ala principal do Rancho Apocalipse, ocupado por dezenas de fanáticos integrantes da seita Ramo Davidiano, liderada por David Koresh (batizado Vernon Howell). Inicialmente os agentes federais injetaram gás lacrimogêneo nas brechas abertas nas paredes de madeira pela ação dos carros de combate, enquanto seguidores de David Koresh revidavam disparando submetralhadoras (ao término do tiroteio foram recolhidas 268 armas, incluindo rifles de precisão, carabinas e pistolas automáticas, bem como 8100 cartuchos), no esforço desesperado para rechaçar a invasão. De repente, às 12h5min, teve início um incêndio incontrolável — com ventos de 45 km/h — que se estendeu por muito tempo apesar dos esforços despendidos pelo Corpo de Bombeiros. Ao fim da operação de rescaldo, os agentes federais encontraram 86 corpos carbonizados e nove sobreviventes entre os davidianos: cinco americanos, dois ingleses, um australiano e um hispano-americano. O então presidente Bill Clinton, que fora empossado 100 dias antes para exercer o seu primeiro mandato, sofreu pequeno desgaste perante a opinião pública (18% segundo pesquisas) por ter sido favorável ao ataque; todavia, as críticas recaíram bem mais sobre o FBI (33%), enquanto 23% das pessoas consultadas responsabilizaram a Secretária de Justiça, Janet Reno. O episódio em si não teria provocado tantas consequências (até porque a Segunda Emenda à Constituição assegura, a qualquer cidadão, a prerrogativa de comprar ou portar armas e apoia o direito de o Estado utilizar a força quando, dentro ou fora do território dos EUA, venha a sentir-se ameaçado ou desafiado), não fosse por um detalhe: a direção do FBI confirmou o que muita gente suspeitava: as suas equipes somente partiram para o ataque porque, do lado de fora do Rancho Apocalipse , ligeiramente afastados, “dia a dia, minuto a minuto, câmeras, lentes, microfones e computadores esperavam e seus operadores cobravam o desfecho”. As imagens do incêndio no Rancho Apocalipse, permeadas por gritos, disparos e explosões, transmitidas coast to coast ao vivo e a cores para 150 milhões 86 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político de telespectadores por uma legião de repórteres, apresentadores, técnicos e cinegrafistas — acampados desde o início da operação em barracas, station wagons ou nos apartamentos dos 16 hotéis de Waco— motivaram intensa reverberação nos EUA, particularmente nas universidades e centros de pesquisa de Comunicação. O episódio supra-assinalado serviu como confirmação da força das mídias quando querem provocar e/ou acelerar o desfecho de uma situação. Batismo de sangue Em muitos episódios registrados pela crônica diária, cujos resultados implicam mortos e feridos (estejam estes comprometidos ou não com o aparato de Segurança e Informações do Estado), o que acontece de fato é uma espécie de rito sangrento e iniciático que transforma um indivíduo comum em um quadro confiável. Assim aconteceu com Ilich Ramirez Sanchez, quando disparou com uma pistola Beretta — à queima-roupa — no rosto de Edward Sieff, vice-presidente da Federação Sionista da Grã-Bretanha, na semana seguinte ao Natal de 1973, ferindo-o gravemente e, poucos dias depois (janeiro de 1974), jogou uma granada contendo explosivo plástico no interior do banco israelense Hapoalim (em plena City), provocando muita destruição, embora sem vítimas. Ele deixou de ser classificado entre os integrantes dos quadros de apoio da Frente Popular para a Libertação da Palestina (comandada por Waddi Haddad), e obteve ampla respeitabilidade no submundo do terrorismo. Registre-se, aliás, que esses episódios impulsionaram a trajetória do extremista venezuelano junto aos serviços secretos continentais, que o rotularam como o terrorista mais perigoso em operação na Europa Ocidental. Essa reputação foi reforçada após o atentado no Le Drugstore, um complexo de lojas com entrada pelo Boulevard Saint Germain, no coração de Paris. Carlos arremessou uma granada de mão do tipo M26 sobre centenas de jovens, matando duas pessoas e ferindo mais de 30. Entrevistado tempos depois pelo jornalista e escritor britânico David Yallop, um alter ego do terrorista venezuelano explicou as verdadeiras razões dessa notoriedade21. As pessoas comuns têm muito poder, muita influência. E isso se manifesta naquilo a que chamam Opinião Pública. Essa gente pode não ligar para os palestinos. Elas certamente não ligam para os membros do Exército Vermelho. Mas atire uma granada no meio delas, aí vão ligar muito. A captura de Ilich Ramirez Sanchez no Sudão (1994) — materializada de forma melancólica — ocupou por três dias o eixo do noticiário internacional. Examinado friamente, pouco, bem pouco, diante do papel que ele representou durante quase vinte anos de operações clandestinas no Oriente Médio e Europa Continental. Alguns títulos dos principais diários e revistas do País sobre a prisão de Carlos: Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 87 José Amaral Argolo • Globo: Carlos, o terrorista, enfim está preso (16 ago. 1994); O ocaso do Chacal e de um estilo do terror (21 ago. 1994); • Jornal do Brasil: Carlos é preso após ser caçado por vinte anos (16 ago. 1994); • Veja: O Chacal vai para a jaula (24 ago. 1994); • O Estado de S. Paulo: Chacal enfrenta a Justiça fazendo piadas (17 ago. 1994); Espião convenceu Cartum a entregar terrorista (17 ago. 1994); A prisão de Carlos, o homem que sabe demais (18 ago. 1994); • Jornal da Tarde: Prisão marca fim da era do terror (17 ago.1994) Durante as sessões de interrogatório a que foi submetido em local secreto nos arredores de Paris, o ex-Inimigo Público Número 1 não demonstrou inquietação quanto à hipótese de represálias. Sua atenção estava, isto sim, voltada para o noticiário dos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão a seu respeito. Ele sabia que os repórteres, editorialistas e escritores contribuíram para impulsionar a sua lenda, de tal maneira e com tamanha ênfase, que seria inconveniente desmenti-los. Convidado a expressar sua opinião, Frederick Forsyth ressaltou que o venezuelano não passava de um blefe como agente do terrorismo islâmico22: [...] Assim, o que tem esse homenzinho venezuelano extremamente brutal e essencialmente malsucedido que tanto fascina o Ocidente? Acredito que existem três fatores, todos eles falhos. Em primeiro lugar ele sempre gozou de publicidade, e a publicidade é uma dama inconstante. Ela gosta de ser lisonjeada. Carlos a lisonjeava com uma arrogância e atitudes bombásticas cujas recompensas apareciam sob a forma de centimetragem nas colunas da Imprensa. [...] Em segundo lugar, ele tinha fama - assiduamente alimentada - de ser mulherengo. Na condição de terrorista proeminente, ele, sem dúvida, tinha a seu fácil dispor a classe habitual das mulheres super excitadas e sexualmente disponíveis que rejeitavam a classe média de onde provinham. [...] Em terceiro lugar — e nisso é preciso lhe dar crédito — ele era um camaleão humano, deslocando-se pela Europa inúmeras vezes sem ser identificado. Um outsider perigoso Todo indivíduo que, observa Howard Becker23, voluntária e individualmente, ou por associação, desrespeita as normas estabelecidas pelos grupos sociais, numa determinada época e região, é visto como marginal ou desviante. Eram assim os chamados wandervögel (pássaros errantes pacíficos) da Alemanha antes do nacional-socialismo, ao contrário, por exemplo, dos holligans britânicos ou de uma parcela dos rappers das ruas de Nova Iorque, quase sempre provocadores. Esse desvio será maior ainda caso o transgressor provoque danos ao patrimônio do Estado ou de uma pessoa em particular. O terrorista é um outsider no mais elevado patamar. Ao desafiar o sistema em vigor, passa a apresentar uma valoração superestimada sobre a causa que abraçou. Além do mais, como consequência dos treinamentos que o capacitaram a integrar a organização extralegal, incorpora no seu imaginário uma formidável crença na própria infalibilidade/letalidade (o que não 88 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político é de todo irreal). Por fim, a partir do momento em que assume o ônus previsível da morte em combate, da execração pública e o risco da prisão por longas temporadas, reforça a resistência destinada a suportar a aspereza dos interrogatórios. Poderes, poderes Se, ainda que en passant, foi aberto um hiato na narrativa para ressaltar as características psicológicas desse “novo homem” a serviço do terror, porque não fazê-lo tomando como parâmetro sua associação com as tecnologias de destruição e, também, de informação? Por hipótese: admita-se que uma organização extremista invista o que amealhou no mercado formal/aberto de equipamentos eletrônicos e compre sistemas capazes de interferir na programação de uma emissora de rádio ou televisão; e mais: que consiga inserir no chamado horário nobre sob a forma de inserts ultrarrápidos (três, quatro segundos) do tipo: “Amanhã, às l7h15min, explodiremos um dos alicerces da Ponte Rio-Niterói. Vencer ou Morrer - Grupo Liberdade” Até que as contramedidas eficazes sejam ativadas, ao custo provável de milhares de dólares, o mal já estaria feito. Ainda que os extremistas consigam viabilizar uma única transmissão, o balanço final seria favorável; mesmo porque, somente com muita rapidez (e ainda assim numa pequena cidade), as forças de Segurança conseguiriam rastrear e localizar essa minúscula emissora, transportada no interior de uma station wagon, rapidamente desmontável e, em seguida, suas peças principais novamente carregadas em mochilas do tipo escolar para esconderijos distantes uns dos outros. A prévia advertência sobre uma bomba dotada de dispositivo de tempo à semelhança de algumas operações do Grupo denominado Euzkadi Ta Askatasuna Batasuna – ETA (Pátria Basca e Liberdade) colocada aqui ou acolá; as ações clandestinas e escalonadas; a contrapartida representada pela manutenção em Alerta Vermelho das equipes de guerra eletrônica, dos grupos especializados no desmonte de bombas e de retomada e resgate; implica um custo elevado para os cofres públicos. Sem falar dos transtornos derivados da retenção no tráfego, blitzen nas avenidas e estradas de acesso à metrópole, região etc. Outros exemplos interessantes a serem pesquisados são os hackers, isto é, indivíduos que, pelo prazer de violar os códigos de segurança, acessam ilegalmente os mais complexos sistemas de computadores e são habilidosos o suficiente para interferir nas redes vitais para a segurança de um país. Imaginem alguém capaz de invadir as defesas eletrônicas da National Aeronautics and Space Administration (Nasa) ou do Centro de Operações do North American Aerospace Defense Command (Norad), anulando senhas, reprogramando ou congelando os códigos de comando. A indústria cinematográfica explorou razoavelmente bem essa em Goldeneye (produção de 1994). O Agente 007 é Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 89 José Amaral Argolo convocado a desarticular o plano mirabolante no qual um expert em computação tenta e quase consegue apagar as informações bancárias do Reino Unido, transferindo online os depósitos para a conta do vilão. Imaginação à parte, há alguns anos um desses hackers norte-americanos, filho de um militar de alta patente classificado no Departamento de Defesa (Pentágono), acessou arquivos contendo as planilhas do orçamento das Corporações Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea e Corpo de Fuzileiros Navais), e promoveu tamanha confusão que, pela primeira vez, os chamados falcões do Pentágono se convenceram da vulnerabilidade daquela rede e providenciaram novos sistemas de proteção eletrônica. A propósito, a sucessão de escândalos e denúncias derivadas do vazamento de aproximadamente quinhentos mil documentos (principalmente telegramas enviados pelos serviços diplomáticos não somente norte-americanos em todo o mundo) levados a termo pelo Wikileaks, provocou uma revolução nos meandros dos serviços de Inteligência dos EUA. Walter Laqueur ressalta que, nos últimos tempos, cresceram as especulações sobre o terrorismo informático e a guerra cibernética: Um funcionário anônimo do Serviço Secreto americano vangloriou-se de que, com US$ l bilhão e vinte hackers competentes, ele poderia parar os Estados Unidos24. Os hackers, entretanto, não oferecem tanto perigo quanto os crackers (categoria mais agressiva entre os computer maniacs) que, além de invadir os softwares e descobrir os segredos contidos nos arquivos, tentam destruí-los por intermédio da inoculação de vírus (programas criados especificamente para este fim); ou, pior que tudo, deletando os dados ou tornando-os irrecuperáveis até para os mais experientes analistas e programadores. Um cracker dotado de conhecimentos aprofundados sobre química poderia, por hipótese, acessar os computadores/sistemas de um laboratório farmacêutico e, mediante comandos ainda mais sofisticados, alterar nos arquivos as fórmulas de alguns medicamentos e, em seguida, reprogramar os equipamentos da linha de produção, minimizando ou maximizando a dosagem de um ou mais insumos. Não é difícil visualizar um renovado Dr. Strangelove (personagem de um dos filmes de Stanley Kubrick produzido nos anos sessenta), de carne e osso, revirando/ misturando, a milhares de quilômetros de distância, os arquivos da Inteligência Francesa, modificando relatórios de pesquisas ou alterando informações nas homepages das corporações financeiras. Tampouco deve ser olvidada a ameaça representada pela inclusão online de um ou mais sites destinados a oferecer “conselhos úteis” àqueles que pretendem enveredar pelos caminhos do extremismo. É o caso, por exemplo, de um (deplorável, grifo nosso!!!) Verdadeiro Livro Negro: Introdução aos explosivos, confecção de bombas caseiras e diversas dicas sobre o assunto. Esse documento, que pode ser impresso em doze páginas firmadas pelo “autor” (possivelmente um engodo para distrair a atenção dos incautos), um engenheiro e 90 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político professor, secundado pela sigla G.E.T (Grupo dos Estudantes Terroristas), enuncia quais os principais fabricantes de explosivos no País, define critérios para a escolha e manuseio do material destinado à produção de petardos caseiros, e ensina como preparar dispositivos de tempo. Tudo isso com o suporte de ilustrações e diagramas de fácil compreensão e apresentando risco ínfimo para os futuros candidatos a imitar extremistas como Abu Nidal e Yahya Ayyash. Inspiração para Best-Sellers O simples fato de todos aqueles homens terem a habilidade de conseguir reputação limpa depois de uma existência de crimes e traições bastava como condição para seu ingresso na S.P.E.C.T.R.E. (Sociedade Política Especializada em Contra-Espionagem, Terrorismo, Rapinagem e Extorsão). Ian Fleming Entre as nações econômica e tecnologicamente mais desenvolvidas, o terrorismo com formatação ideológica, religiosa ou mesmo embasado em propósitos de chantagem financeira, não somente ocupa generoso espaço nos blocos de noticiário como invade e se instala no imaginário coletivo por intermédio de obras ficcionais elaboradas pelos mestres do gênero, tais como Ian Fleming, John Le Carré, Frederick Forsyth, Tom Clancy etc. Nos anos cinquenta, sob o denso nevoeiro da Guerra Fria, alguns desses autores consolidaram reputação e conquistaram milhões de admiradores graças às tramas bem urdidas, apresentando quase sempre vilões multimilionários e discretamente sustentados, em seus vícios e idiossincrasias, pelos serviços secretos daqueles países do (hoje extinto) Bloco Socialista, bem como agentes coadjuvantes hiperinteligentes e glamurosos. Tais personagens, idealizados como contrapartida ao proclamado “cientificismo mecanicista” da Alemanha Oriental, República Democrática da China e URSS (em relação a esta última, o simples fato de ter enviado a primeira nave tripulada ao espaço, além de dispor de um formidável aparato de propaganda, contribuiu para que se transformasse no alvo preferido dos escritores do gênero), proporcionaram um conjunto de aventuras que, mesmo consolidadas as mudanças derivadas da perestroika, além de superada a fase crítica da corrida armamentista, continuam atraentes para os (as) leitores (as) . Ian Fleming, ex-agente do Serviço Secreto Britânico (assistente do contraalmirante John Godfrey nomeado diretor da Divisão de Inteligência Naval, e envolvido diretamente, entre outras missões, no planejamento de uma operação de sabotagem contra postos defensivos alemães durante a Segunda Guerra Mundial), pode não ter sido o primeiro a explorar esse caminho, mas abriu portas para que outros ficcionistas, aproveitando-se da prévia experiência como repórteres de agências noticiosas internacionais ou freelances bem-sucedidos, retroalimentassem as estratégias da Guerra Fria e construíssem pontes imaginárias unindo os serviços Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 91 José Amaral Argolo de segurança ocidentais (muitas vezes empenhados em disputas nem sempre cordiais pela hegemonia operacional numa região), “alertando” a Opinião Pública sobre os perigos do totalitarismo que, acreditavam, ameaçava a Europa Ocidental. Fleming tornou-se um expert na criação de histórias mirabolantes, para a satisfação dos leitores e glória eterna do Agente 007 (Sean Connery e Roger Moore que o digam!), o superespião com licença para matar, concessão imaginária que pressupõe um status incomum. Em Thunderball, por exemplo, a trama gira em torno do roubo de duas bombas atômicas transportadas num bombardeio Williers Vindicator da Royal Air Force, mediante o assassinato da tripulação por um agente traidor infiltrado. Seguese o impasse: ou as potências ocidentais aceitariam pagar 100 milhões de libras em barras de ouro em troca dos artefatos nucleares, ou milhares de vidas humanas escolhidas, aleatoriamente, seriam sacrificadas, sem falar dos prejuízos materiais incalculáveis. Com o auxílio da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA)— e o apoio de um moderníssimo submarino nuclear norte-americano — James Bond resolve a questão. Outra aventura: Auric Goldfinger, milionário excêntrico que não se envergonha em roubar no jogo de cartas, é o financista do Smersh25 (abreviação russa para Smyert Shpionam, ou seja, Morte aos Espiões). Sua meta: com o auxílio de algumas das maiores quadrilhas de gangsters norte-americanos, assaltar Fort Knox (o superprotegido depósito das reservas de ouro dos EUA), transportar em um trem de carga a res furtiva para os porões um navio de guerra soviético “casualmente ancorado em visita de cortesia nas proximidades” e, de passagem, eliminar – por intermédio de gás venenoso – toda uma divisão do Exército e tropas da Guarda Nacional. Alguns reveses, um romance frustrado e... vitória para 007! Sir Hugo Drax é o arquivilão em O Foguete da Morte. Atuando sob disfarce como se fora um empresário britânico ultranacionalista, é, na verdade, ex-oficial nazista (e agente duplo sob as ordens de Moscou). Com ajuda do próprio Governo de Sua Majestade, constrói um míssil poderoso que, tão somente pelo fato de saberem da sua existência, os países do Bloco Oriental se curvariam diante do Reino Unido. Só que o verdadeiro alvo do experimento é Londres. A destruição da capital do Império serviria como compensação parcial pela derrota militar do Terceiro Reich e, ao mesmo tempo, agradaria os falcões do Exército Vermelho. Chamado a investigar um estranho assassinato, 007 sofre algumas queimaduras e arranhões, mas resolve tudo e... adeus ameaça! Morte no Japão revela um James Bond mais humilde. Acionado para colaborar com o Serviço Secreto japonês na tarefa de eliminar um falso botânico (identificado ao longo da história como Ernest Blofeld, a quem derrotara em Thunderball) que - iludindo a boa-fé das autoridades japonesas — construíra em seu castelofortaleza, no litoral, um jardim repleto de flores e frutos venenosos, répteis e insetos peçonhentos. O agente britânico cumpre a missão. Quanto ao criminoso, que somente aparece aos olhos dos visitantes disfarçados com uma armadura de samurai, vinha estimulando o desejo de milhares de suicidas em potencial. Para vencer o adversário temível, 007 passa por um árduo aprendizado sobre os usos e 92 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político costumes do Japão, disfarça-se como pescador, casa-se com uma linda pescadora de pérolas, entra no santuário de Blofeld, duela com ele e... happy end ! É fácil depreender o pânico que o antigo e sempre renovado espectro do comunismo representava para os povos da Europa Ocidental, principalmente devido às demonstrações de força do aparato militar soviético durante o bloqueio e a construção do Muro de Berlim, na repressão ao levante húngaro (1956) e na Primavera de Praga (1967). Mesmo a derrota política imposta pelo então Presidente norte-americano John Kennedy ao Primeiro-Ministro Nikita Khruschev e seu staff, por ocasião do episódio dos Mísseis de Cuba, não conseguiu afastar esse temor generalizado. O acirramento da disputa pela hegemonia mundial entre as duas superpotências (a China ainda não manifestara abertamente as suas aspirações a um lugar no topo do ranking) trouxe consequências funestas no varejo da luta contra o terrorismo. Grupos como a Organização do Exército Secreto (OAS), Fração do Exército Vermelho (Baader-Meinhof), Exército Republicano Irlandês, Frente Popular para a Libertação da Palestina, Brigate Rosse, Pátria Basca e Liberdade, Exército de Libertação da Córsega etc., não somente invadiram o noticiário, como obrigaram os ficcionistas a um amplo repensar sobre as tramas e personagens. Não havia mais centimetragem disponível nas páginas (sequer na lucrativa indústria cinematográfica) para heróis glamorosos, ricos, bem vestidos e assediados por mulheres com nomes exóticos: Vesper Lynd, Gala Brand, Tiffany Case... Os editores exigiam pragmatismo, ações realistas, locações urbanas conhecidas. A suave tintura romântica, até então visualizada, cedeu lugar a paixões, ainda que momentâneas e arrebatadoras; insinuações aqui e ali sobre a performance sexual dos heróis cederam vez a um novo estilo, privilegiando a descrição crua dos “embates” em lugares como garagens, escadas de edifícios residenciais e automóveis estacionados junto aos postos de vigília. Houve ainda, durante breve período, algumas iniciativas no sentido de transportar dos livros para as telas do cinema heróis caricatos mobilizados contra psicopatas e organizações terroristas. Destacam-se os exemplos de Flint (James Coburn), Modesty Blaise (Monica Vitti), Napoleon Solo (Robert Vaughn) e Illya Kuriakin (David McCallum) – os dois últimos agentes da U.N.C.L.E. (“Tio” em inglês), poderosa agência de contraespionagem norte-americana empenhada na anulação de operações de sabotagem planejadas pelos comunistas. Tais produções registraram certo sucesso de bilheterias no Brasil, mas não passou disso. A chacota literária e cinematográfica evoluiu de tal maneira que, como contrapartida ao bombardeio midiático ocidental preocupado em apresentar aos olhos do público os líderes soviéticos como trogloditas e as centrais de treinamento dos agentes secretos daquele país respectivamente como terroristas sem alma e antros de tortura e de aperfeiçoamento das artes negras, um escritor (não se sabe se a convite do Kremlin) idealizou a personagem de um “espião” quase tão charmoso como 007, culto, elegante e capaz de desarticular “operações de sabotagem” elaboradas contra o seu país pelo MI-6 (britânico). Não teve, porém, o mesmo êxito editorial. Durante esse período, uma disputa feroz pela supremacia comercial perturbava os proprietários dos principais diários europeus. De um lado, jornais Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 93 José Amaral Argolo conservadores como Le Monde, The Times, Hamburg Zeitung; do outro, a chamada imprensa engajada: L’Unitá, L’Humanité... Essa atmosfera ácida não somente estimulou uma espécie de subcultura preparatória à confrontação militar que se presumia inevitável, como contribuiu para envolver os leitores, indiretamente que seja, com as diretrizes fixadas pelos governos. Vale registrar que, na Europa, exerciam influência alguns estadistas notáveis: Charles de Gaulle (França), Francisco Franco (Espanha), Antonio Salazar (Portugal), Willy Brandt (República Federal da Alemanha). Foi esse o gancho que estartou a fase moderna da literatura de espionagem. Realismo Frederick Forsyth, britânico, acatado pela crônica especializada como um dos jornalistas melhor informados sobre operações no submundo da espionagem, dos soldados da fortuna e terroristas, conquistou a primeira colocação no ranking dos autores que, já no final dos anos sessenta, fundamentavam seus romances aproveitando a proximidade existente entre a reportagem e a ficção. Ao contrário de Ian Fleming, que explorou até o limite do ridículo o Agente 007, Forsyth trabalha a partir de personagens díspares quanto às características físicas, psicológicas e métodos de ação. O Dia do Chacal (1971), dentre as obras mais conhecidas de Frederick Forsyth, descreve os bastidores de um plano articulado pelos integrantes da Organização do Exército Secreto (OAS), que combatia a Independência da Argélia, para assassinar o Presidente da França, general Charles De Gaulle. A inspiração do escritor britânico surgiu com o relato publicizado do engenheiro agrônomo Georges Watin para compor a personagem principal (interpretado no cinema pelo ator britânico Edward Fox). Forsyth ultrapassou certos limites e foi duramente criticado pelo próprio Watin, que, à sua maneira um tanto rude, fez o que pôde para desacreditar tanto aquele autor como a obra. Disse ele26: Não houve toda a sofisticação descrita no livro, talvez porque Frederick Forsyth só tenha falado comigo uma vez. Ele cometeu vários erros. Nunca fui mercenário. Na verdade, vendi as terras de minha família para financiar a Causa. Forsyth deixou-me a impressão de ser um inglês bêbado que, inclusive, inventou o codinome Chacal, já que os companheiros me chamavam de O Manco e os árabes me conheciam como O Diabo. Apesar desse comentário adverso a livro reverberou intensamente junto à criativa imprensa francesa. Esta, por sua vez, aproveitou-se do fato de um exemplar ter sido encontrado no interior de um armário do apartamento ocupado em Paris (na Rue Toullier) por Illich Ramirez Sanchez – após as mortes, no dia 25 de junho de 1975, de dois agentes do Departamento de Segurança Territorial (DST) e de Michel Moukharbel (ex-companheiro de um autoproclamado Comando Boudhia) que o denunciara – para rebatizar aquele jovem venezuelano (até então praticamente desconhecido dos órgãos de inteligência e contraterrorismo) com o codinome que o notabilizou 27 por quase duas décadas. 94 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político Georges Watin relata o que aconteceu28: Depois do fracasso no boulevard (refere-se ao Petit-Clamart, em Paris, onde o presidente escapou de um atentado planejado pelo tenente-coronel Jean-Marie Bastien Thiry), a OAS ficou reduzida a um pequeno grupo. Teríamos aí uma última chance. Soubemos que, em um dia de fevereiro de 1963, De Gaulle participaria de um desfile na Escola Militar de Paris. Havia um oficial simpatizante da OAS que vivia lá. E, do banheiro de seu alojamento, o ângulo de tiro era excelente para atingir o palanque presidencial. A missão seria praticamente suicida, porque mais de 8 mil militares estariam na Academia no momento do disparo. Comprei um rifle de alta precisão na Bélgica e consegui introduzi-lo na Academia. No filme, o Chacal usava um par de muletas, uma das quais era o estojo do rifle. Nada disso aconteceu. Eu estava pronto para entrar na Academia, usando documentos falsos e um uniforme de oficial, cheio de medalhas. Foi a primeira vez na vida que vesti um uniforme (...) na hora de entrar na Academia, um de nossos homens sinalizou para que eu fosse embora. O oficial simpatizante gostava de beber e, na noite anterior, na cantina da Academia, disse a um grupo de militares que, em poucas horas, De Gaulle pagaria pela traição da Argélia. Havia no grupo um agente do serviço secreto militar, que deu mais bebida ao oficial. Ele terminou contando tudo. Mais uma vez, fui o único do grupo a não ser preso. Depois disso, a OAS praticamente acabou. Já em O Dossiê de Odessa (1972), Forsyth narra a estratégia adotada por um jovem jornalista freelancer, Peter Miller (John Voight no cinema), para se infiltrar na Organização dos Ex-Elementos das SS — criada durante a Nêmesis do Terceiro Reich com o objetivo de proporcionar a fuga de oficiais superiores nazistas, bem como dos remanescentes das unidades especiais engajadas em operações de extermínio no Leste Europeu. Auxiliado por uma equipe de agentes israelenses — empenhados na captura e justiçamento daqueles indivíduos —, não somente consegue identificar e localizar o vilão (Eduard Roschmann, ex-capitão SS travestido de industrial) como, por tabela, impede que cientistas alemães, com a ajuda de militares egípcios — em pleno Governo do presidente Gamal Abdel Nasser (uma das lideranças do Movimento dos Países Não Alinhados, juntamente com Josip Broz Tito, Ahmed Sekou Touré, Jawaharlal Nehru, e Kwame Nkrumah)—, lancem foguetes contendo ogivas bacteriológicas sobre Israel. O plano é desarticulado e as instalações de mísseis destruídas. Dentre os escritores assinalados neste subtópico, David Cornwell, melhor dizendo John Le Carré, apresenta — para o autor dessas linhas — maior desenvoltura no quesito ação psicológica, fundamentalmente na tetralogia iniciada com O Espião que saiu do frio (considerado pela crítica internacional um clássico do gênero), e seguida por O Espião que sabia demais, Sempre um colegial e A vingança de Smiley (outros romances incluem a personagem George Smiley, embora sem o mesmo destaque). Sua obra, estruturada a partir do jogo traiçoeiro e multitentacular da espionagem, prende a atenção dos leitores pela sofisticação da trama e frieza das personagens. Contam-se pelos dedos as mortes, em meio à loucura da desinformação Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 95 José Amaral Argolo e outras armadilhas dos serviços secretos plantadas durante a Guerra Fria. John Le Carré descreve inicialmente a tragédia do outrora poderoso Serviço Secreto Britânico, esfacelado por traições e deserções de agentes altamente classificados (a exemplo de Hadrian Russel “Kim “ Philby, Anthony Blunt, Donald Maclean, Guy Burgess e John Cairncross, até a contrapartida soviética perpetrada pelo coronel Oleg Penkovsky), desacreditado pelas agências coirmãs ocidentais e transformado em mero “Satélite da CIA”. Desastre que ressaltou no esvaziamento de uma bem-sucedida máquina de inteligência cultivada em mais de 200 anos. O grande medo aquilatado por Le Carré (que recorre a algumas experiências por ele próprio vividas no Foreign Office) não está limitado às operações do Exército Republicano Irlandês, ou aos subterrâneos onde se ocultam frações radicais no Velho Continente. É insidioso, sutil, cerebral; estende-se para muito além das torres de vigia e das sentinelas, das cercas eletrificadas e minas antipessoais instaladas ao longo da terra de ninguém, junto do Muro em Berlim Oriental antes da debâcle soviética. Perde-se nas estepes até chegar à misteriosa e isolada dacha na periferia da capital soviética, onde Karla, seu Graal Negro, o discreto e impenetrável chefe da Décima-Terceira Diretoria da Central de Moscou — mediante artifícios da desinformação e da fraude —, não somente monitora por intermédio de um agente duplo o sistema de informações britânico, como tenta expor ao ridículo o conjunto dos serviços de inteligência ocidentais. É a habilidade de Karla, sua circunspecção monástica e o conhecimento próximo, diabolicamente próximo, das fraquezas de George Smiley, o triste (desglamorizado: baixo, gordo e usando óculos com lentes grossas, além de escandalosamente traído pela mulher) Executivo-Mor do Circus, que fascina os leitores. A angústia provocada pelo terror invisível e onipresente perpassa nessa tetralogia de John Le Carré como um toque de classe: levíssimo e permanente na irradiação. Comenta-se que a personagem Karla teria sido inspirada no general Markus Wolf, durante décadas diretor da Stasi, o serviço de inteligência da Alemanha Oriental. Entre as personagens criadas por Le Carré, algumas se destacam: Jerry Westerby, espião de fato e jornalista de ofício, que caminha na procura interminável de si mesmo enquanto persegue a ponta de um novelo que se estende de Hong Kong ao nevoeiro no interior da República Popular da China. À distância, sempre controlando os fios invisíveis que impulsionam as marionetes humanas, destaca-se Karla... o construtor de lendas. Outros ficcionistas podem ser mencionados, a exemplo de Tom Clancy, autor de numerosos thrillers de ação e, na maioria, focados na luta da Agência Central de Inteligência dos EUA contra o terrorismo de Estado, a ameaça de um confronto derivada do roubo de um artefato nuclear e ao narcoterrorismo. Ira Levin, por sua vez, obteve êxito com Os Meninos do Brasil. Nesse romance, ele desenvolve a seguinte trama: o Dr. Joseph Mengele, conhecido como o Anjo da Morte de Auschwitz (interpretado no cinema por Gregory Peck), reproduz in vitro num laboratório instalado no interior do Paraguai, os clones de 40 crianças com 96 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político características físicas e psicológicas idênticas às de Adolf Hitler. É fácil mensurar os efeitos dessa experiência (se tais produtos da loucura vicejassem), bem como a conclusão do livro. A Construção das Personagens Quem são, de fato, os expoentes do extremismo e como são construídos e desconstruídos, pelo aparato destrutivo das grandes potências e/ou por intermédio da ação sistemática e diuturna das mídias? Eis as primeiras indagações. As estratégias mais frequentes, tanto aquelas emanadas pelas lideranças dos governos como as provenientes dos comandos das organizações para fixar — no imaginário coletivo — esses ícones do extremismo têm início nas histórias de vida e/ou lendas sobre o passado e a participação desses homens e mulheres. Há que se destacar o recrutamento e a impregnação dos dogmas; os estágios nos centros de treinamento até a transformação alquímica da personalidade; o tempo de usinagem das ferramentas humanas estendendo-se ao batismo de fogo nos campos ou nas metrópoles. Tome-se o exemplo dos futuros mártires da Jihad Islâmica, filmados e fotografados quando desfilam nas ruas de algumas das capitais do Oriente Médio, trajando uniformes em tecido negro sobre os quais podemos ver coletes especiais com os bolsos externos repletos de dinamite ou tabletes de Semtex (explosivo plástico fabricado na antiga Tchecoslováquia), barbas cerradas, olhares fixos à frente. Tudo isso, bem antes dos atentados contra as Torres Gêmeas e o Pentágono e como contrapartida militar das ações empreendidas pela Coalizão liderada pelos Estados Unidos da América tanto no Iraque como no Afeganistão. ... Mais uma sequência fílmica: início de dezembro, 1997. Os telejornais da época mostram um centro de treinamento para mulheres guerrilheiras no interior do Iraque. O número das combatentes é impreciso; talvez o equivalente a uma companhia completa (150); elas estão vestidas de preto dos pés à cabeça e marcham seguindo a cadência dos tambores. De repente, as batidas cessam, e os passos são interrompidos. Com o pé esquerdo à semelhança de uma falange, só que equipada com modernos fuzis de assalto, cada uma delas, ao menos na aparência, está pronta para atacar. Tais imagens, a bem da verdade, são peças de propaganda em uma sociedade diferente da nossa, capaz de aceitar como justa e (até mesmo!) oportuna, a colocação de bombas equipadas com dispositivos de tempo em uma estação do metrô. Aqueles (as) soldados da morte supramencionados (as), em marcha ritmada e diante das multidões delirantes nada mais são do que instrumentos da vontade dos líderes, de governantes carismáticos ou apóstolos da tradição messiânica. Os objetivos dessas demonstrações? Impressionar a Opinião Pública e alertá-la sobre os riscos a que estarão incorrendo os infiéis, caso as exigências das lideranças desses grupos não sejam acatadas. De volta aos desfiles: Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 97 José Amaral Argolo Precedidos por bandas marciais e com direito às honras da transmissão direta para todos os países (por intermédio das emissoras que integram o sistema de comunicação desses Estados Nacionais); revigorados a todo instante por gritos de guerra, os desfiles tropas representam grandes espetáculos teatralizados. Algumas explicações: Em primeiro lugar, o palco desse megateatro será preferencialmente um local descampado: as sequências mostram fedayin disparando rajadas de metralhadoras em alvos de madeira, cortando pescoços de galinhas e, em seguida, bebendo o sangue das aves recém-abatidas; manuseando com descontraída perícia serpentes peçonhentas e colocando-as em sacolas de lona; arremessando adagas em retratos ampliados de chefes de Estado inimigos. Seguem-se as exibições relativas ao domínio e emprego dos engenhos de destruição: carros e ônibus são explodidos à distância, minas anticarro abrem crateras no solo e caixas de Correio projetadas a dezenas de metros etc. Essas demonstrações de perícia sugerem três focos de percepção: 1. ocupam o tempo dos analistas (e gastam as solas dos sapatos do pessoal da Inteligência); 2. atendem aos propósitos sensacionalistas dos editores e chefes de reportagem; e 3. ampliam a confiança dos que acreditam nesse tipo de ações. Em relação ao primeiro caso, vale ressaltar que muitas centrais de Inteligência ainda são chefiadas por velhos operadores de campo, remanescentes do tempo em que cada porão, cada sótão, cada túnel secreto em Berlim, Praga, Viena, Budapeste ou Zurique, era disputado a ferro e fogo pelos ases da espionagem e da desinformação (de Allen Dulles a Marcus Wolf), que sempre almejaram aperfeiçoar os métodos destinados a superar as ameaças no âmbito interno (isto é, desarticular as redes clandestinas) e criar contramedidas destinadas a anular as ações inimigas no nascedouro. Mesmo no Brasil, em que pese a proclamada índole pacífica do povo, os órgãos de Inteligência desenvolveram, principalmente ao longo dos governos militares (1964-1985), inúmeras atividades destinadas a: 1. monitorar as ações da propaganda externa adversa ao País; 2. oferecer contrapontos eficazes para fragmentar as iniciativas perpetradas em solo brasileiro; e 3. identificar e prender os responsáveis. Uma fonte protegida do Centro de Informações do Exército disse ao autor que, independentemente das operações de infiltração nos grupos de oposição tendentes à luta armada no território brasileiro, o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) mantinha em plena Universidade dos Povos (Patrice Lumumba), no coração de Moscou — sob sistema de revezamento — (mais de um casal) agentes que, seguindo uma agenda variável, enviavam relatórios pormenorizados sobre o cotidiano dos estudantes brasileiros. Sem entrar em detalhes sobre a identidade dessas pessoas, a mesma fonte acrescentou que, praticamente, todas as iniciativas planejadas contra o governo brasileiro originárias desses grupos na capital soviética foram detectadas ou anuladas. Uma segunda ponderação: O terrorismo é assunto de destaque em todos os países, e não pode ser 98 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político minimizado ou esquecido. Qualquer ação perpetrada resulta em manchetes, especialmente se materializada num local de grande movimento (aeroporto, shopping center, praça pública, edifício de escritórios etc). Michel Wieviorka e Dominique Wolton, na ampla pesquisa que elaboraram sobre o terrorismo, suas implicações e o impacto dele derivado nas primeiras páginas dos diários 29 , comentam sobre a gênese desses episódios. L’histoire du terrorisme médiatique commence avec les premiers détournements d’avion operés par des militants se réclamants de la cause palestininienne. En decembre 1968 et en fevrier 1969, les fedayin du Front Populaire pour la Libération de la Palestine (FPLP) attaquent des avions de la compagnie israélienne El Al, à Athènes et à Zurich, et surtout, début septembre 1970, la même FPLP organise une série sans précédent d’actes de piraterie aérienne (...) Os pesquisadores explicam que as operações supracitadas reverberaram intensamente no coração dos serviços de Inteligência ocidentais engajados na luta contra o terrorismo (aos quais também se juntaram, formando um mutirão discreto e eficaz, as associações de aeronautas e os pilotos das aeronaves civis, igualmente preocupados com a própria vulnerabilidade e a dos passageiros). O êxito desses primeiros ataques inspirou outros modelos para a produção desse tipo de show macabro e encenado em quase todo o mundo, inclusive no Brasil. Aqui, o quase sequestro de uma aeronave da Cruzeiro do Sul, no Aeroporto Internacional do Galeão (hoje rebatizado Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim, em homenagem ao grande músico brasileiro) foi abortado por uma equipe de comandos da Força Aérea. Durante a ação, um dos extremistas morreu com tiros na cabeça e três outros foram capturados30. Situações assim, escreveram Wieviorka e Wolton, reúnem características parecidas com uma superprodução cinematográfica: de um lado os terroristas, forçando as equipes dos jornais e das emissoras de televisão a posicionar as câmeras em ângulos que lhes sejam favoráveis, analisando — prévia e cuidadosamente — as perguntas repassadas por escrito, para que nenhuma resposta possa comprometer a ideologia da organização; de outro, os repórteres praticamente assumindo o papel de coadjuvantes durante as negociações realizadas sob tensão insuportável, seja nas pistas de pouso/decolagem, em pleno deserto, no convés de um transatlântico etc. Nesses tempos de disputa, cada vez mais acirrada pela primazia do furo jornalístico em que as networks que não economizam recursos financeiros, veículos e equipamentos para produzir as melhores imagens e apresentar uma edição caprichada sobre os fatos, vez por outra acontecem situações normalmente incogitáveis; tais como o pagamento de elevadas quantias em moedas-fortes aos extremistas (logo transferidas por intermediários de confiança às contas secretas dessas organizações) como contrapartida à exclusividade na difusão. Trata-se, este, de um pacto ao mesmo tempo temerário e imoral. Iniciativas assim deixam mal a Imprensa, pois, supostamente em nome da liberdade de manifestação e pensamento, colaboram financeiramente com o terrorismo e estimulam a reiteração dessas operações. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 99 José Amaral Argolo Durante esse jogo coadjuvado pelas mídias, podem vir a ocorrer situações incomuns. Vejamos exemplos recentes: Numa primeira os terroristas são apresentados diante das câmeras com os rostos mascarados; em outra, sem qualquer disfarce. Rostos cobertos por balaclavas, indicando a participação dos que preferem continuar no anonimato; ou não, a exemplo do próprio Carlos durante o ataque perpetrado contra a sede da Organização dos Países Produtores de Petróleo, em Viena (ver em seguida); na segunda, o que perpassa é uma sensação ainda maior de suspense, com as autoridades, vítimas e a própria população local alertada sobre a periculosidade dos extremistas quando identificados. Quando, no dia 21 de dezembro de 1975, consumada a invasão do edifício da Organização dos Países Produtores de Petróleo, em Viena, os cinegrafistas e fotógrafos obtiveram a confirmação de que o líder do grupo era Illich Ramirez Sánchez, tanto a Imprensa internacional, como o Governo da Áustria, concluíram que a iniciativa se estendia para muito além dos propósitos meramente publicitários; que se tratava de uma incursão planejada e executada por profissionais que não recuariam diante das pressões. Examinado trinta e seis anos depois, este continua sendo um dos episódios mais representativos do terrorismo em solo europeu na década de setenta. Trinta e cinco pessoas, entre as quais onze ministros do petróleo dos países produtores, ficaram como reféns e foram levadas a bordo de uma aeronave civil inicialmente para Trípoli (onde, diga-se de passagem, o comandante sequer obteve autorização de pouso) e dali rumaram para Argel. Na capital argelina, calmo e desarmado, Carlos desceu do Boeing e conversou longamente com o Presidente Houari Boumedienne, que atuou como moderador. Após uma série de negociações, idas e vindas e ameaças, a crise foi resolvida. O sequestro dos ministros do petróleo faz parte da História e, portanto, seria desnecessário esmiuçá-lo. Em se tratando de ações planejadas e violentas, para que possa vir a ser considerado isento o noticiário deve apresentar sempre três aspectos: o trabalho das equipes de segurança, a opinião dos sobreviventes e a audácia dos extremistas. A própria Opinião Pública, na maioria das vezes, funciona como influenciadora para essas organizações, reportando os funerais dos que tombaram na confrontação com as forças de segurança, registrando a queima nas vias públicas das bandeiras dos países inimigos, exibindo cartazes e posters com os retratos dos extremistas capturados ou mortos, difundindo proclamações e manifestos etc. Outro tópico diz respeito à confirmação do envolvimento desse ou daquele indivíduo proeminente (seja chefe de Governo, jornalista, parlamentar, artista etc) com os braços do terrorismo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Saddam Hussein (Iraque) e (ainda acontece até o momento em que finalizávamos este volume) com Muhammar Kadhaffi (Líbia). Hussein, único ex-chefe de Estado no Oriente Médio que se arriscou a uma 100 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político confrontação militar com as potências ocidentais (muito especialmente os Estados Unidos da América), foi duas vezes derrotado pelas forças da Coalizão capitaneadas pelos EUA. Terminado o primeiro conflito, ele continuou no Poder, mas o peso da derrota foi terrível: as potências vencedoras instituíram uma Zona de Exclusão Aérea ao sul e ao norte do País durante dez anos, até o início do segundo conflito, que resultou na morte de mais de um milhão de crianças pela fome e doenças. Até o desfecho trágico que todos nós conhecemos, ele era interpretado como uma liderança no mundo árabe e, simultaneamente, um estimulador do terrorismo direcionado aos inimigos do Islã. A Imprensa norte-americana chegou a compará-lo ao demônio porquanto (na primeira confrontação) ordenou o disparo de mísseis Scud (de fabricação soviética) contra Israel, destruindo prédios residenciais e estabelecimentos comerciais em Tel Aviv em represália aos bombardeios norte-americanos sobre cidades e vilas iraquianas. Saddam Hussein, fato este comprovado perante a História, nunca pretendeu fazer de Israel seu alvo prioritário; sua intenção naquele conflito foi mostrar ao general Norman Schwarzkopf, comandante das forças da primeira Coalizão, que nem mesmo o mais forte aliado dos EUA no Oriente Médio era invulnerável. A prometida resposta nuclear israelense, defendida com estardalhaço pelas emissoras de televisão, foi contida por solicitação do presidente norte-americano. Em que pese a inclinação dos falcões do Pentágono desejosos de esmagar as forças armadas iraquianas com o seu formidável aparato militar, o presidente George Bush foi alertado que, admitida a hipótese do uso de armamento nuclear, seria deflagrada uma guerra total no Oriente Médio, com os aliados árabes rebelandose contra a Coalizão e incluindo — na mistura explosiva daquele caldeirão — um condimento mais forte e militarmente imponderável: a República Popular da China. Por oportuno vale registrar que o tratamento dispensado por parte da imprensa brasileira àquele conflito foi sob muitos aspectos tendencioso, com os órgãos de difusão enfatizando a precisão cirúrgica dos ataques com mísseis e bombardeios aéreos norte-americanos, ingleses e franceses e, ao mesmo tempo, minimizando as notícias procedentes de Bagdá; rotulando como criminosos os generais iraquianos que planejaram a retomada do território do Kuwait (país criado artificialmente sob a inspiração britânica) e deixando de publicar fotografias comprovando a utilização de bombas contendo fósforo branco nos raids contra as colunas de refugiados. Uma delas — o autor recorda-se bem, pois respondia interinamente pela editoria Internacional do Jornal do Commercio — exibia o rosto e o tronco de um tanquista iraquiano semidevorados por napalm. Quanto ao exemplo do chefe de Estado líbio é mais complexo. O coronel Muhammar Kadhaffi apresenta características diversas. Numa primeira fase ele defendia, publicamente, as ações terroristas contra os países que apoiavam não somente a política intervencionista norte-americana como a não-criação do Estado Palestino. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 101 José Amaral Argolo O dirigente líbio, em outra cartada de mestre, adquiriu reservadamente dezenas de toneladas de explosivos plásticos produzidos na Tchecoslováquia, e anunciou que seriam utilizados contra os inimigos do Islã. Como se isso não bastasse, para reforçar sua imagem polêmica e incomodar ainda mais os inimigos, criou uma guarda pessoal composta exclusivamente por jovens fanatizadas. A morte de qualquer uma delas, num hipotético atentado contra Kadhaffi, significaria uma agressão ao coletivo das mulheres de todo o mundo. O presidente líbio, apesar da propaganda adversa difundida no Ocidente, sabe explorar o marketing pessoal. Veste-se habitualmente de branco (ou quando muito marrom), sua bebida favorita é leite de camela e até recentemente costumava receber os chefes de Estado em visita ao país numa tenda ao ar livre, seguindo o velho estilo nômade (e também para dificultar tentativas de assassinato); suas tropas, ao menos aparentemente, eram bem treinadas e equipadas, enquanto a Líbia foi transformada num refúgio inviolável para um numeroso grupo de mercenários de toda a África e de outros tantos sabotadores contrários aos interesses do Islã. Comparativamente a Saddam Hussein, o coronel Kadhaffi é extrovertido, conhece a linguagem e a extensão das mídias e a sua retórica reflete a preocupação maior da Causa Árabe e Pan-Africana. Tanto assim que, há alguns anos, mais de setenta por cento da ajuda humanitária em solo africano vinham sendo custeados pela Líbia. Em contrapartida, a leitura que ainda se faz sobre Saddam Hussein é muito diferente. Seus trajes diários eram o uniforme de comandante em chefe das tropas; seu olhar, glacial e impassível diante das câmeras; a postura, marcial até a raiz dos cabelos; costumeiramente caminhava nas ruas cercado de generais e guarda-costas (o que não surpreende, face às tentativas para assassiná-lo, inclusive envolvendo pessoas da sua própria família). Em comum, Líbia e Iraque sofreram boicote proporcionado pelos EUA e demais países aliados, na tentativa de esmagar a economia e instalar governos em moldes favoráveis aos interesses das potências ocidentais. Num primeiro momento as ações militares levaram à destruição do exército iraquiano, localização, captura, julgamento e execução por enforcamento de Saddam Hussein; mais recentemente, por intermédio de revoltas populares que começaram em dezembro de 2010, além do colapso dos governos da Tunísia e do Egito, da criação de mais um país (Sudão do Sul). Finalmente, uma rebelião popular colocou em xeque a longevidade (42 anos) do regime político na Líbia. Milhares de civis e militares rebeldes e/ou leais a Kadhaffi foram mortos, enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovava, com cinco abstenções, inclusive do Brasil, o bloqueio aéreo daquele país e todo um conjunto de ações táticas (que ferem as normas elementares do Direito Internacional). A Capital, Trípoli, foi tomada pelos rebeldes, mas alguns bolsões de tropas leais ao governo resistiam. Mesmo que Muhammar Kadhaffi seja capturado e levado ao Tribunal Penal Internacional (Haia); ou seja morto pelos rebeldes; ou, ainda, que consiga obter o benefício do asilo em algum país africano, a situação na Líbia e, por extensão, 102 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político no Grande Maghreb, permanecerá confusa devido à presença de combatentes das mais variadas tendências e grupos engajados na Jihad Islâmica. Chavin de Huantar À percepção sobre essas personagens engajadas no universo do extremismo corresponde uma contrapartida: a dos anti-heróis. A opção do Presidente peruano Alberto Fujimori (El Chino) é digna de registro. Ele protagonizou um papel singular e dificílimo em um momento que o seu governo enfrentava duras críticas por parte da oposição. A reviravolta, que o projetou de ator simplório a megastar para a mídia internacional, restituiu-lhe a popularidade que perdera (ao longo dos 126 dias de tensão após o ataque perpetrado pelo Movimento Revolucionário Tupac Amaru — MRTA — ao conjunto de prédios da Embaixada do Japão, em Lima). De repente, sob o enquadramento irretocável das câmeras da CNN e das emissoras de televisão locais, viu-se, quando impulsionadas por uma explosão, partes do telhado da Embaixada foram projetadas para o alto; em seguida, novas detonações e as imagens — captadas de diversos ângulos: do nível da rua às coberturas dos edifícios próximos — mostram soldados e oficiais das tropas de elite (142 homens selecionados por sua perícia como atiradores) disparando armas automáticas, reféns sendo retirados por passagens laterais, ouvem-se gritos e militares e policiais uniformizados são filmados carregando feridos para as ambulâncias estacionadas nas imediações. Terminou assim, em doze minutos contados pelo relógio, a Operação Chavin de Huantar, elaborada sob rigoroso sigilo com a ajuda de especialistas norte-americanos (e, comenta-se, israelenses). Os 14 guerrilheiros do Movimento Revolucionário Tupac Amaru foram liquidados e 71 (dos 72) reféns enclausurados, desde o dia 17 de dezembro de 1996, voltaram para as suas casas. O ataque dos 140 homens da Marinha, Exército e Polícia pôs fim ao exaustivo jogo de paciência entre os militares e os ativistas do MRTA. O bem-sucedido coup de main desferido pelo Presidente Alberto Fujimori projetou ainda mais o país junto aos Estados Nacionais declaradamente engajados na luta contra o terrorismo: Estados Unidos da América, Reino Unido, Alemanha, França, Itália Rússia e Israel. Em relação a esse episódio, vale registrar a cobertura jornalística ininterrupta por parte das mídias desde que, na noite de 17 de dezembro de 1996, disfarçados como garçons, os guerrilheiros do MRTA driblaram a vigilância dos guardas e fizeram quase quinhentos reféns. Os primeiros informes, repassados à Imprensa pelo próprio Fujimori imediatamente após o resgate dos primeiros reféns, entre os quais o embaixador da Bolívia, ressaltaram a ingenuidade e o descaso dos extremistas que, embora tivessem conhecimento (por intermédio de fontes externas) dos túneis que vinham sendo cavados pelas forças de segurança do governo, nada fizeram para diminuir o risco. Por exemplo, em vez de manterem rígido controle sobre os prisioneiros, divertiamRevista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 103 José Amaral Argolo se jogando partidas improvisadas de futebol num dos salões da Embaixada, local exato em que foram surpreendidos pela violência da primeira explosão, atordoados com granadas de luz e fuzilados sem hesitação. Alberto Fujimori agiu profissionalmente. Não pactuou com os terroristas e ganhou tempo para que as suas tropas treinassem (em local secreto); por fim, vitorioso no rápido confronto armado, conquistou novo triunfo, desta vez com a Imprensa, demonstrando timing perfeito diante dos jornalistas e conhecimentos minuciosos sobre a operação militar. Sua performance: • Enquanto ainda eram ouvidas explosões e disparos intermitentes vindas do interior da Embaixada, o Chefe de Estado solidarizou-se com os soldados e oficiais que participaram da Operação Chavin de Huantar, e, junto com eles, cantou o hino nacional do país; • Vestindo colete à prova de balas, entrou em um dos túneis construídos pelas forças de segurança e percorreu, na companhia de militares e jornalistas, as instalações semidestruídas da Embaixada do Japão; • Convocou a Imprensa para uma entrevista coletiva durante a qual mostrou a maquete do complexo de prédios que serviu de modelo para os ensaios táticos das tropas especiais; • Exibiu à Imprensa internacional um vídeo dos exercícios praticados pelos comandos em local secreto, explicando o desenvolvimento de cada etapa; • Pronunciou discurso impactante diante das câmeras, no qual ressaltou o repúdio do povo peruano aos extremistas; • Compareceu, no dia seguinte à Operação, aos funerais do juiz da Suprema Corte do Peru e dos (dois) oficiais mortos durante o tiroteio; • Beneficiou-se perante a mídia internacional por conta do espetáculo derivado da bem sucedida ação militar, após combate duríssimo que, mal conduzido, certamente lhe custaria o mandato presidencial; • Aos repórteres da Imprensa estrangeira, mostrou-se desprovido de vaidades; como se fora uma pessoa simples que pouco tempo dispõe para cuidar das próprias roupas; • Passeou, em seguida, pelas ruas de Lima sentado no banco da frente de um carro sem escolta, distribuindo acenos aos transeuntes e recebendo cumprimentos de senhoras e crianças; • Sinalizou aos investidores estrangeiros sobre a retomada do equilíbrio político e econômico do seu país, superado o impasse provocado pela ação terrorista; • Projetou, simultaneamente, a imagem dos comandos peruanos como exemplos de competência e dedicação, equiparando-os às melhores forças de contrainsurgência do mundo no combate contra o terrorismo. NOTAS 1 Trata-se de conhecida manobra utilizada pelos Exércitos no combate à guerrilha. Consiste na mobilização e deslocamento de um numeroso contingente que — como se fora um martelo — pressiona o inimigo até que 104 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Imprensa e Terrorismo Político este, exausto e sem alternativas de fuga, é obrigado a fugir na direção de tropas ainda mais poderosas e bem armadas, estacionadas à frente, que funcionam como bigorna. BADINTER, Robert. “Terrorisme et Liberté”. Le Monde, 19 out. 1977. BOURRICAUD, François. “Il terrorismo politico”. L’Osservatore Romano, 15 set. 1978. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, 1951. p. 221. SPITZCOVSKY, Jaime. “Bomba Portátil – Alexander Lebed diz que Kremlin perdeu controle de maletas que funcionam como armas atômicas. General russo alerta contra terror nuclear”. Folha de São Paulo. (entrevista) Idem. O GLOBO. “Sob a ameaça do terror químico”, 26 nov. 1997, p. 38. WILKINSON, Paul. Terrorismo político. Rio de Janeiro: Artenova, 1976. p. 17. LAQUEUR, Walter. “Por que o terror?”. Jornal da Tarde. 1 abr. 1978. 2 3 4 5 6 7 8 9 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Diagrama e Texto, 1983. p. 125. 10 O Clube Breton, rebatizado depois como Sociedade dos Amigos da Constituição, arrendou inicialmente o refeitório de um antigo mosteiro jacobino nas proximidades do Jardim das Tulherias. Em seguida, ocupou todas as instalações. O apelido resultou dessa conjunção de fatores. Quanto aos associados, num primeiro momento eram tão somente deputados do povo; em seguida, esses quadros foram reforçados por intelectuais e burgueses. Em 1794 (Cf. Will e Ariel DURANT, in História da civilização, v. 11, p. 32), existiam na França 6800 clubes jacobinos, totalizando aproximadamente 500 mil pessoas. Quanto ao Grande Comitê, na sua fase mais representativa (isto é, durante o verão de 1793), era integrado por doze homens da classe média: Lazare Carnot, Robert Lindet, André Jeanbon Saint-André, Maximillien Robespierre, Louis Antoine Saint-Just, Georges Couthon, Bertrand Barère, Marie-Jean Hérault de Séchelles, Pierre Louis (cognominado Prieur de la Marne), Jean-Marie Collot d’Herbois, Jean-Nicolas Billaud-Varenne e ClaudeAntoine Prieur-Duvernois. DURANT, Will; Ariel. História da Civilização. Rio de Janeiro: Record, 1975. v. 11, p. 62. Os girondinos integravam o grupo mais ativo da Assembleia Legislativa. Na sua quase totalidade, jacobinos de origem foram duramente perseguidos até 1795, quando o cenário político foi modificado. DURANT, Will; Ariel. História da Civilização. Rio de Janeiro: Record, 1975. v. 11, p. 73. Nascido na Espanha, filho de um comunnard no exílio, Emile Henry foi aluno brilhante da École Polytechnique. Notabilizou-se na Imprensa europeia por haver colocado uma bomba diante dos portões dos escritórios da companhia de mineração Carmoux, e lançado — tempos depois — um petardo no Café Terminus, ambos em Paris. No primeiro atentado morreram vários policiais quando procuravam remover o dispositivo de acionamento; no segundo, uma pessoa não resistiu aos ferimentos e dezenas de outras foram atingidas pelos estilhaços. Preso, foi julgado e condenado à morte; antes, porém, de ser guilhotinado, redigiu um libelo no qual responsabilizava a sociedade burguesa pela violência desencadeada contra os trabalhadores, publicado na Gazeta dos Tribunais, edição de 27- 28 de abril de 1894. WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 1981. v.11, p. 58. Idem, p. 41. GUÉRIN, Daniel. Anarquismo. Rio de Janeiro: Germinal, 1968. p. 80. 11 12 13 14 15 16 17 18 19 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 105 José Amaral Argolo Idem, p. 13. YALLOP, David. Até o fim do mundo. Rio de Janeiro: Record, 1973. v.11, p. 104. FORSYTH, Frederick. “Carlos, o Chacal”. Folha de S. Paulo, 21 ago. 1994. BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 53. LAQUEUR, Walter. “O terrorismo pós-moderno”. Foreign Affairs, número 2, p. 7. O Smersh era o Diretório Central da Contra-Espionagem das forças armadas soviéticas. Reporta Oleg Penkovsky em suas confissões que, em 1946, aquele órgão passou a integrar o MGB (rival soviético da CIA). O Smersh permaneceu ativo até 1947. WATIN, Georges. “O anoitecer do Chacal”. IstoÉ, 19 maio 1993, p. 5-7. O primeiro apelido, explicou Georges Watin, decorreu da paralisia que sofreu, quando criança, na perna esquerda; o segundo, da sua predileção em trabalhar com facas durante as sessões de interrogatório. O relato ditado a um repórter pelo próprio Carlos e veiculado com destaque na Imprensa europeia e norteamericana, não somente projetou seu codinome no cenário (e no imaginário) do terrorismo engajado, como forçou os órgãos de difusão a se preocuparem mais com a questão palestina. Por fim, serviu como sinal de alerta para os agentes dos órgãos de inteligência, uma vez que tinham pela frente um inimigo cruel e de pontaria infalível. 20 21 22 23 24 25 26 27 Ei-lo, como publicado originalmente no jornal Al Watan Al-Arabi: No dia 27 de junho de 1975, a Polícia bateu no apartamento em que eu morava, alugado por duas venezuelanas amigas minhas. Foi através delas que o libanês Michel Moukharbel descobrira onde eu estava. Algum dos meus quatro amigos que ali estavam abriu a porta. Os policiais entraram e perguntaram por Maya Lara. Respondi que ela havia viajado para a América do Sul e lhes ofereci um copo. Eles recusaram e pediram nossos passaportes. – Conhece Moukharbel? Perguntou o inspetor. Não conheço ninguém com esse nome, respondi. Mas ele diz que lhe conhece, e me mostrou a foto em que eu estava com Moukharbel perto do apartamento. Eu perguntei: o que é que ele fez? Droga? Terrorismo? Em seguida eu pedi que me mostrassem suas carteiras. Perguntei: Onde está o libanês? No carro estacionado lá embaixo. Posso vê-lo? Deve haver um mal entendido. O investigador desceu a escada para ir buscar Moukharbel. Desde que percebi que era uma armadilha, preparei para lutar e sair. Quando o policial voltou com Moukharbel, eu fiquei horrorizado. Estava completamente mudado. Tinha um ar letárgico, conseqüência, sem dúvida, das torturas que lhe tinham aplicado. A uma pergunta do inspetor, respondeu: foi a ele que eu dei a mala (onde estavam guardadas armas de diferentes calibres e a munição correspondente). Tirei meu revólver. Era um revólver russo Tokarev 7.62. Acertei os dois policiais, ambos na cabeça. Sobrou Moukharbel. Ele veio na minha direção, com as mãos nos olhos. Ele sabia as regras do jogo: o traidor está condenado à morte. Ele estava diante de mim. Atirei no meio dos olhos. Ele caiu. Atirei de novo na têmpora. Saí do edifício, pulando da janela do terceiro andar. WATIN, Georges. IstoÉ, idem. WIEVIORKA, Michel; WOLTON, Dominique. Terrorisme à la UNE. Paris: Gallimard, 1987. p. 42-43. JORNAL DO BRASIL. “Tiros em pneu de avião e fumaça impedem seqüestro”. 2 jul. 1970, p.7. 28 29 30 106 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 72-106, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria J. Carlos de Assis Economista, Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ e Professor de Economia Internacional da Universidade Estadual da Paraíba. Resumo A expansão da democracia de cidadania ampliada no mundo deu à política fiscal uma dimensão que complementa a tradicional luta distributiva de renda no plano das empresas. É pela política fiscal que as sociedades escolhem, explicitamente, os financiadores e os beneficiários dos gastos públicos. Em contrapartida, a política monetária guarda sua tradicional característica de opacidade. Quando se abre sua caixa-preta, verifica-se que o locus da luta pela distribuição de renda nas sociedades contemporâneas já não é tanto a política fiscal, mas a política monetária, com seu caráter obscuro e antidemocrático. Foi a incapacidade de apreender esse movimento que fez com que os partidos progressistas da Europa e do resto do mundo não tenham se oposto ao neoliberalismo mas, na verdade, acabassem aderindo a ele, pelo menos até a crise de 2008, situação que ainda se arrasta. Palavras-chave: Economia Política. Banco Central. Políticas Monetária e Fiscal. Abstract The spread of extended citizenship democracy in the world gave to tax policy a dimension that complements the traditional income distributive struggle in terms of businesses. By fiscal policy societies choose, explicitly, funders and beneficiaries of public spending. In contrast, monetary policy retains its traditional opacity characteristic. When you open that black box, it appears that the locus of the struggle for distribution of wealth in contemporary societies is not so much fiscal policy, but monetary policy, with its dark and undemocratic character. It was the inability to grasp such movement that led the progressive parties of Europe and the rest of the world are not opposed to neoliberalism, but in fact, finished sticking to it, at least until the crisis of 2008, which still drags on. Keywords: Political Economy. Central Bank. Monetary and Fiscal Policies. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 107 José Carlos de Assis Introdução Se o homem está prestes a assumir o controle de sua evolução, como quer o físico-matemático Stephen Hawking, é mais importante ainda assumir o controle da sua própria história, equilibrando, pela cooperação, as forças dialéticas que a tem movido até aqui, segundo o princípio da competição e da guerra. No plano objetivo, isso só é possível a partir do controle da economia, expressa nas relações de interesses concretos de homens e mulheres. Sobre essas relações se ergue todo o castelo ideológico da Economia Política, cuja desmistificação é ponto de partida para a construção de uma nova sociedade baseada na cooperação. O mundo esteve próximo desse ideal nos países escandinavos e do norte da Europa Ocidental, em algum momento da segunda metade do século XX. Foi, durante algum tempo, o milagre da social democracia europeia. Posteriormente, esse ideal foi engolido pela avalanche neoliberal. Contudo, sendo algo que esteve próximo de existir, pode objetivamente brilhar como o farol do futuro. Todo esforço do homem no sentido compreender a si mesmo, a Natureza ou a Deus, torna-se inútil se não estiver voltado para o compromisso da construção de um ambiente justo para si, seus semelhantes e as demais manifestações de vida na terra. Isso confere à Economia uma posição de destaque no conjunto das atividades humanas conscientes, ou seja, racionais. A condução da economia delimita as possibilidades materiais do homem. Entendê-la contemporaneamente, implica esclarecer o conjunto de representações mentais feitas pelas sociedades, e despi-la do caráter ideológico com o qual é revestida, para atender a interesses específicos de grupos e classes. Trata-se de uma nova crítica da Economia Política, que deve trazer para a realidade atual a originalmente feita por Marx, no século XIX. As relações entre política monetária e política fiscal, definidoras dos processos de distribuição de renda (ou de mais-valia) no mundo contemporâneo, constituem, há tempos, a base sobre a qual se impôs o véu ideológico mais denso da Economia Política nas democracias capitalistas. Foi em função de seu mascaramento que as “esquerdas” políticas históricas europeias e os democratas americanos perderam-se em confusão, a partir dos anos 80, ao mesmo tempo em que a ideologia neoliberal triunfou como portadora de uma política econômica supostamente definitiva e de uma ordem mundial estável para um futuro previsível. Na raiz desses desenvolvimentos encontra-se outra intrincada relação entre economia e política. O conceito de luta de classes, muito caro aos marxistas, refletia em sua origem um contexto histórico no qual o poder político era virtual monopólio de burguesias, exercido pela via parlamentar, ou não, numa situação de cidadania restrita. Correspondia à realidade social e política nos países mais avançados da Europa e da América do Norte, no século XIX, e, fiel à concepção futurística de Marx, deveria estender-se progressivamente ao mundo inteiro, segundo a fórmula por ele aplicada às colônias, “de te fabula narratur” (a história fala de ti). 108 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria Em um país onde a burguesia exerce o monopólio da cidadania, o Estado constitui uma efetiva vanguarda política para lhe assegurar o poder de classe, conforme denunciou o Manifesto Comunista de 1848. Nesse sentido, a relação social principal entre dominantes e dominados dá-se nas fábricas e nas fazendas, e não na relação política em torno do comando do Estado – mais especificamente, do orçamento público. As figuras centrais são o burguês e o trabalhador. Como seus interesses diretos, explícitos nas relações de trabalho são contraditórios – para o burguês a remuneração do trabalhador é custo, para o próprio trabalhador, é renda – a luta de classes é basicamente a luta por salários, fora do terreno político. Contudo, o contexto político histórico sofreu óbvias e profundas alterações ao longo do século XX. A principal delas consistiu na aquisição de direitos de cidadania fundantes por parcelas crescentes da população, primeiro os próprios trabalhadores pobres, ou sem patrimônio suficiente; depois, as mulheres, os imigrantes, os militares e, por fim, os analfabetos. Não foi um processo linear. Basta lembrar que nos Estados Unidos, a mais antiga democracia de massas do mundo, os negros só conquistaram cidadania plena depois dos movimentos civis dos anos 60, no século XX. Na Europa, a relação de medo e admiração em relação à revolução soviética não só reforçou a marcha de ampliação da cidadania política, por um lado, como fez efetivamente desta um instrumento de aquisição de amplos direitos sociais, por outro. Não se pretende aqui recuperar o circuito histórico pelo qual a burguesia viuse obrigada a ceder poder político a crescentes frações do povo, enquanto, no polo oposto, os grupos sociais liderados inicialmente pelos trabalhadores organizados em sindicados (Inglaterra, sobretudo) conquistaram gradualmente seu status de cidadania ampliada. Esse processo, diferenciado por país, resultou de movimentos dialéticos a partir de conflitos internos na própria burguesia, quando algumas de suas facções viram na incorporação de parte das massas externas uma oportunidade de prevalecer sobre as adversárias, concomitantemente com movimentos de massa autônomos, animados pela determinação da busca da conquista direta de direitos dos cidadãos. Chamo de cidadania fundante o direito originário de um pacto político, em geral uma Constituição escrita, que reconhece em seu titular o direito de criar outros direitos políticos, principalmente os direitos sociais. Na medida em que conquista direitos fundantes, expressão da cidadania ampliada, a classe não proprietária passa a exercer parcelas crescentes do poder político, deslocando ao menos parcialmente, o poder absoluto exercido anteriormente pela burguesia. Isso constituiu o surgimento de uma segunda instância da luta social, ao lado da tradicional luta de classes, na medida em que a renda nacional já não é disputada apenas na relação fabril, mas, também, na luta política mais ampla por direitos sociais, que passam a constituir renda indireta do trabalhador, como saúde, educação e previdência. Os marxistas ortodoxos rejeitaram a evolução social pela via parlamentar. Seus mais notáveis formuladores alemães, Kautsky e Bernstein, foram, logo no Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 109 José Carlos de Assis início do século XX, repelidos pela corrente oficial do marxismo, como renegados e reformistas. A propósito, nos meios de esquerda a palavra “reformista” adquiriu, desde então, uma conotação pejorativa, persistindo por décadas, contraposta ao conceito de um verdadeiro “revolucionário”. Em termos ideológicos, a revolução soviética de 1917 teve efeito contraditório nesse processo, reforçou o prestígio e a aura romântica dos “revolucionários”; em termos práticos, serviu como espantalho contra a direita para os reformistas sociais, uma vez que estes, não sendo comunistas, lutavam por uma sociedade mais justa, de caráter socialista não revolucionário. A Economia Política da nova luta de classes Até a Grande Depressão dos anos 30, os efeitos da cidadania ampliada no plano social revelaram-se limitados, exceto nos pequenos países do norte da Europa, notadamente a Suécia – fundadora efetiva da Social Democracia nos anos 20, caso não se considere o programa previdenciário anterior de Bismarck, no século XIX, certamente social, porém não democrata. Os orçamentos públicos, em torno de 10% ou menos do Produto Interno Bruto (PIB), estavam dedicados principalmente a gastos com defesa e segurança, e apenas marginalmente a objetivos sociais. Por isso, o que hoje se chama de política fiscal, era pouco relevante em termos de luta pela distribuição da renda nacional. Relevantes nos países industrialmente mais avançados, e mais ainda entre os países pobres, eram as relações sociais nas empresas, isto é, a luta por salários reais, conforme a expressão imediata da tradicional luta de classes. Isso mudou radicalmente nos anos 30, a partir da depressão, do New Deal nos Estados Unidos e do Novo Plano de Hitler. Naquele primeiro país, no contexto anterior de domínio absoluto do liberalismo econômico – repressão policial de sindicatos, ausência de salário mínimo, tolerância com trabalho infantil em minas etc, enquanto a superexploração do trabalhador nas empresas (não fordistas) era uma regra generalizada, a política econômica era atributo principalmente do Banco Central Americano (FED - Federal Reserve System), árbitro relativamente autônomo da política monetária. Contudo, o FED trazia de sua criação, em 1913, um atributo não ortodoxo, que continha, surpreendentemente, elementos “democráticos”. Também o Banco Central alemão, sob o comando de Hjalmar Schacht, criaria peculiares instrumentos não ortodoxos (como os títulos Mefo) para atender ao programa de investimentos, inclusive militares, de Hitler, com grande sucesso na frente da recuperação econômica e do emprego. Poucos sabem disso, mas nos Estados Unidos a criação de um banco central emissor, se por um lado atendeu aos interesses da grande banca privada de Nova Iorque, assustada pelo pânico bancário de 1907; por outro, ecoou as demandas de pequenos e médios fazendeiros e empresários do centro-oeste norte-americano. Na 110 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria virada do século anterior, estes se mobilizaram contra a rigidez monetária implicada no sistema monetário de bimetalismo em vigor. Eram chamados de “populistas” pelos banqueiros “ortodoxos” nova-iorquinos, e chegaram a conquistar uma parcela expressiva da opinião pública, só se desmobilizando quando a descoberta de grandes minas de ouro na Califórnia tornou desnecessária, por um momento, uma política monetária que se ancorasse na flexibilidade do papel moeda. A expressão “populista” ainda é aplicada em sentido pejorativo aos que propõem uma política monetária expansiva, a fim de atender à demanda de meio circulante numa economia em crescimento. Literalmente, era uma expressão essencialmente justa, porque num país de milhões de pequenos proprietários como nos Estados Unidos, atendia de fato ao interesse da maioria do povo. O FED nasceu parcialmente “populista”, pois entre seus objetivos figurava explicitamente o exercício de uma política monetária flexível, isto é, capaz de responder às necessidades de crescimento da economia. Veremos que, sob orientação democrata, ele se tornaria ainda mais “populista” ao longo do tempo. Em contraposição, um banco central conservador, como o inglês, amarrava a expansão ou a contração monetária ao saldo do balanço de pagamentos; dessa forma, superávit implicava entrada de ouro no Banco da Inglaterra e expansão do crédito; déficit implicava saída de ouro do país e contração monetária. A restauração do equilíbrio no balanço de pagamentos era assegurada pela administração da taxa de juros, que movia para dentro ou para fora o fluxo de ouro na conta capital, e estimulava a exportação ou importação de mercadorias ou serviços. Os ricos, naturalmente, ganhavam sempre. Nesse estágio da política monetária já é possível perceber seu caráter redistributivo. Diferentemente da política fiscal, que é votada nos parlamentos, a política monetária é atributo de um corpo altamente especializado de banqueiros e tecnocratas, seguindo regras em geral totalmente incompreendidas ou ignoradas pela maioria da opinião pública. Quando o Estado detinha o poder emissor, como anteriormente o rei, detinha também o poder de compra vinculado à emissão monetária primária e escolhia onde aplicá-lo, talvez até no interesse público. A isso se chamou tradicionalmente “receita de senhoriagem”, que o Tesouro dos Estados Unidos ainda mantém, limitada, porém, à moeda divisionária. Quando o poder emissor passou às mãos do Banco Central a “receita de senhoriagem” ou é partilhada com a banca privada, ou é totalmente apreendida por ela. Na realidade, a política fiscal escolhe ganhadores mediante o voto do parlamento, podendo favorecer diretamente os mais necessitados; ao longo do tempo, nos países civilizados, ela chega a representar mais de 30 ou até 40% do PIB. Já a política monetária efetiva-se nos bastidores da economia por meio de empréstimos do Banco Central à banca privada, por taxas de juros inferiores às que essa mesma banca cobra do sistema produtivo e das famílias, sendo tais empréstimos repassados à economia real por taxas de juros maiores. Note-se aqui uma distinção fundamental: a política fiscal trata de recolher tributos e redistribuí-los segundo Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 111 José Carlos de Assis critérios políticos; já a política monetária é uma relação entre proprietários – os depositantes dos bancos são donos do dinheiro e os tomadores de empréstimos têm de ter garantias, ou seja, renda ou propriedade, para ter acesso a eles. Assim, numa situação de escassez de crédito, o domínio sobre os fluxos monetários constitui um privilégio, só acessível aos que já detêm propriedade; a banca não empresta a quem não lhe oferece garantias, e ela própria só se apresenta ao Banco Central para tomar o dinheiro que reemprestará aos demais ramos da Economia, se tiver suficiente capital e reservas. Na condição de reserva de valor a moeda é propriedade na forma líquida. Como seu valor flutua em relação às mercadorias e aos serviços que compra, seus proprietários exercerão todo seu peso político para preservar seu valor real a qualquer custo, ou aumentá-lo, inclusive fora da órbita produtiva. Isso estabelece uma contradição de interesses entre os que as têm e os que precisam de novos fluxos para fazer a economia crescer. Se toda a riqueza no mundo fossem terras, seus proprietários tradicionais veriam como agressão a seus direitos de propriedade a “criação” pelo Estado, virtualmente do nada, de novas áreas, com qualidades idênticas às suas, a serem destinadas à reforma agrária. No passado, o peso de outras formas de propriedade em relação ao da riqueza líquida inclinava as políticas monetárias em favor do setor produtivo. Na Economia contemporânea, o volume de riqueza líquida em mãos dos muito ricos – pessoas, famílias, fundos e empresas – é relativamente tão elevado que os interesses monetários e financeiros claramente subordinam os interesses produtivos, inclusive pela manipulação ideológica ou política; o investidor é mitificado. O lado paradoxal desse processo é que, sem economia produtiva – ou seja, sem um fluxo regular de produção corrente, o PIB – toda a riqueza líquida perderia valor. A política monetária restritiva, que a ideologia conservadora vende como prova de austeridade e de responsabilidade, não passa de um instrumento geral de distribuição de renda em favor dos ricos. Isso fica mais claro quando a taxa de juros de empréstimo do sistema bancário mantém-se num nível mais elevado do que a taxa de crescimento da renda nacional. Obviamente, se a parcela de juros sobre a renda nacional cresce mais do que a própria renda, e se mantém nesse nível elevado, haverá transferência da renda do trabalho para a renda do capital – sendo o próprio setor produtivo, além do financeiro, também beneficiário dos juros por meio de aplicações financeiras líquidas em seu fluxo de caixa. Desde o New Deal, os democratas norte-americanos mudaram parcialmente o caráter regressivo da política monetária. Diante daquela que acabou sendo a maior depressão econômica da história do capitalismo até o momento atual, o Governo Roosevelt conseguiu forçar uma articulação entre o Tesouro e o FED, dirigido pela figura marcante de Marriner Eccles, de tal forma que aquele Banco Central, mediante a compra de títulos públicos, passou a financiar indiretamente os gastos públicos deficitários indispensáveis ao programa de estímulo da economia. 112 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria Isso deu à articulação Tesouro-FED um caráter indiscutivelmente democrático – o Congresso aprovava a expansão fiscal, discriminando o gasto público em favor dos mais necessitados (notadamente, desempregados), e o FED lhe dava cobertura, absorvendo, em última instância, o consequente déficit representado pelos títulos públicos emitidos. É o que acontece novamente, agora com outro presidente democrata, Barak Obama, embora com menor eficácia. O aspecto importante a considerar é seu efeito sobre os preços: tomando-se como ponto de partida uma situação de deflação, a expansão monetária se revela uma necessidade para a retomada dos investimentos. Nesse contexto, a retomada do crescimento da economia, favorecida pela expansão fiscal-monetária, funciona como um absorvedor da própria expansão monetária, sem risco de inflação. Em 1946, o Congresso democrata aprovou a Lei do Pleno Emprego, que deveria condicionar a esse objetivo a política monetária e fiscal. Posteriormente, nos anos 70, os democratas amarraram um pouco mais a política monetária a objetivos de interesse público amplo – atribuíram ao FED a responsabilidade conjunta de assegurar a estabilidade dos preços, o emprego máximo e o adequado nível de expansão monetária para garantir o crescimento da economia. Isso significava uma política necessariamente não restritiva de taxa de juros e expansão da moeda, compatível com tais objetivos, salvo em circunstâncias excepcionais. Infelizmente, essa circunstância extraordinária apareceu logo, em fins dos anos 70 e início dos 80, em todo o Ocidente, na forma de uma taxa de inflação galopante. No comando do FED, Paul Volcker, que na condição de acadêmico nos anos 50 havia feito uma tese demolidora contra o monetarismo de Milton Friedman, recorreu justamente ao monetarismo para tentar domar a inflação, liberando a taxa básica de juros para patamares inéditos. No processo, quebraram dezenas de milhares de empresas, bancos e fazendas nos Estados Unidos, mergulhando o Terceiro Mundo em profunda e prolongada crise da dívida. Essa “virada” da política do FED constituiu a mais dramática transferência de renda de pobres (devedores) para ricos (credores), pela via da política monetária, em toda a história. É importante compreendê-la em sua dimensão de Economia Política. A contrapartida radical de uma política monetária restritiva é uma política abertamente inflacionista, na qual a emissão monetária primária, sancionando aumentos exagerados do crédito bancário, vai adiante do crescimento da renda nacional. À primeira vista, a inflação monetária, nesse contexto, representa uma perda de renda real para o credor, a não ser que seja compensada por uma taxa nominal de juros ainda mais elevada que a do aumento dos preços. Na realidade, o processo é ainda mais complexo, pois transcende a relação débito-crédito no sistema bancário. A própria inflação é uma luta distributiva no plano das relações internas às empresas e das relações sociais em geral. No primeiro desses sentidos, é o efeito da luta de classes clássica: os trabalhadores mobilizamse por aumentos salariais nominais e esses aumentos, tidos como custos, são Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 113 José Carlos de Assis transferidos aos preços pelas empresas. O caráter espiralado do processo impede que os trabalhadores assegurem aumentos reais, neutralizando a inflação, mas os simples aumentos nominais atenuam os conflitos. As perdas de renda são mais violentas fora do emprego formal – sem a proteção da relação de emprego, os trabalhadores não sindicalizados, os pequenos produtores e os informais sofrem todo o impacto do aumento nominal e real dos preços sancionado pela política monetária. Aqui se encontra o principal ponto de conexão de aliança “objetiva” entre os muito pobres e os muito ricos nas democracias capitalistas avançadas, razão para o desconcertante apoio popular eleitoral a políticas conservadoras e restritivas – os perdedores com a inflação são, simultaneamente, os muito ricos e os muito pobres. Aqueles porque na presença de uma política monetária frouxa, e sem correção monetária de ativos financeiros, perdem dinheiro líquido com a inflação; estes porque se defrontam com preços de produtos e serviços elementares cada vez mais altos em termos nominais, sem contrapartida de aumento compensatório de renda. Entre os dois polos, as classes intermediárias de empresários e trabalhadores formais conseguem defender, pelo menos parcialmente, sua renda real, eventualmente com apoio suplementar da política fiscal. Obviamente, tudo isso tem efeitos políticos. No caso brasileiro, temos de considerar que a correção monetária de ativos financeiros e a moeda financeira, discutida adiante, deram base a um pacto político amplo de sustentação da economia inflacionária, no qual se incluíam também os trabalhadores organizados. Nenhum outro fator, isoladamente, contribuiu mais para a hiperinflação do que a indexação – inclusive pelo mecanismo da minidesvalorização cambial, que visava a sustentar a receita real dos exportadores em face dos custos salariais em queda real e até nominal. Também nesse caso, os efeitos políticos devem ser analisados. A natureza concentracionista da política monetária ortodoxa É necessário iniciar o esforço de revelar o lado oculto da nova luta de classes, no plano da economia política contemporânea, pela política monetária. Esta, uma caixa-preta, cujo funcionamento na economia não é compreendido pela esmagadora maioria da população, inclusive por boa parte dos próprios economistas. Por outro lado, os ideólogos, ditos ortodoxos da política monetária, aproveitam-se de sua opacidade para dar cobertura a interesses reais de classe por meio de sua manipulação “técnica”. Mais do que isso, a tríplice função da moeda – meio de pagamento, reserva de valor e medida de preços – dá à sua gestão um caráter fundamentalmente misterioso, na medida em que a ação do Banco Central relativa a uma função repercute, às vezes contraditoriamente, em outra. Enquanto medida de preços e de meio de pagamento, a moeda desempenha a mais extensa de suas funções sociais ativas. É como expressão dessas funções que 114 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria ela entra na equação básica do monetarismo, relacionando quantidade emitida e velocidade de circulação com nível médio de preços e de quantidades transacionadas por unidade de tempo – talvez a mais poderosa armadilha conceitual da teoria econômica. Não obstante, essa equação não passa de uma tautologia trivial, cuja objetividade depende de uma hipótese sobre a estabilidade da velocidade de circulação da moeda e das transações, algo que teria de ser provado, porém, não apenas pressuposto. Contudo, não nos deteremos em detalhes técnicos: vamos diretamente aos efeitos distributivos. Qualquer feirante, razoavelmente esperto, sabe que o preço das verduras depende das oscilações da oferta e da procura. O produtor de aço, munido de estatísticas e gráficos, sabe o mesmo. Portanto, é realmente extraordinário que a opinião pública média, praticamente em todo o mundo, tenha se convencido de que a inflação é um efeito basicamente monetário, resultante de políticas fiscais expansivas ou de políticas monetárias frouxas, independentemente do ciclo da economia, e não da luta distributiva no nível da produção. Milton Friedman, o campeão do monetarismo, foi o grande arauto dessa ideologia. Numa série de televisão, ele insistia na imagem falsa das impressoras de dinheiro oficiais criando inflação na economia norte-americana, descontroladamente. Há múltiplas causas de inflação, e talvez a última delas seja efetivamente de raiz monetária. Duas são facilmente apreendidas pelo senso comum: a de custo, associada, por exemplo, a uma quebra de safra agrícola que deprime a oferta (os produtores aproveitam-se do desequilíbrio para aumentar os preços); e a cambial, semelhante à de custo, que surge quando o aumento do câmbio vem necessariamente acompanhado do aumento dos preços dos bens e serviços importados e exportados. O primeiro movimento de alta não será percebido caso haja uma queda compensatória em outros preços; a inflação só se instalará, para além do primeiro movimento, se este for acompanhado de altas generalizadas em outros setores, mediante um processo de retroalimentação espiralado. A mais famosa espiral redistributiva é a de preços e salários. No tempo em que a Europa Ocidental não se envergonhava de ser uma social-democracia, a espiral preços-salários era contida na porta da empresa, mediante grandes acordos e pactos sociais. Os trabalhadores contentavam-se com modestos aumentos reais acima da produtividade, enquanto os empresários mantinham os preços estáveis. Naturalmente havia conflitos, mas acabavam sendo resolvidos por acordos. Nos Estados Unidos, avessos à ideia de pacto social e pouco tolerantes com sindicatos, o conflito distributivo resultou numa espécie de conspiração do mercado de trabalho formal contra o resto da população, na forma de inflação de custos repassados a preços – a despeito de algumas tentativas de políticas de renda, inclusive sob a presidência republicana de Richard Nixon. Diante do fracasso das políticas de rendas, experimentadas nos EUA, e da crescente irritação dos muito ricos e muito pobres com a inflação, algo mais teria Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 115 José Carlos de Assis de ser tentado. E foi nesse contexto que entrou o monetarismo de Volcker, no fim dos anos 70 e início dos 80. Sua lógica precária beira o fetichismo. Obviamente, é pouco provável que algum monetarista acredite que o aumento do pão esteja diretamente relacionado com a expansão monetária. Isso não acontece nem com o pão nem com qualquer outro produto. A relação de causalidade é inversa, porém de uma maneira brutal: na medida em que se faz uma contração monetária violenta, é possível reduzir a demanda de pão a um nível que trave a alta de seus preços. Tudo depende do respaldo político que se tenha para uma contração suficientemente forte1. Nos Estados Unidos, da transição dos anos 70 para os 80, esse respaldo era considerável, por causa do desconforto inflacionário, e vinha reforçado por pressões da tríade conservadora externa: Londres, Frankfurt e Tóquio. A inflação norte-americana disseminara uma instabilidade monetária global, afetando diretamente os interesses financeiros (riqueza líquida) que já se encontravam em processo de globalização. Em defesa da biografia de Volcker, deve-se dizer que ele, secretamente, tentou uma solução conciliatória antes de elevar dramaticamente as taxas de juros. Entretanto, a tríade conservadora recusou-se a entrar num acordo de controle de capitais para estabilizar o câmbio, voltando a algo como o esquema de Bretton Woods, deixando Volcker de mãos livres para a alternativa do monetarismo radical. Em que consistia essa nova política monetária que constituía uma ruptura radical com as práticas monetárias praticadas desde o New Deal? Em essência, quando se contrai o crédito e se aumenta a taxa básica de juros, o acesso ao crédito fica mais caro e restrito, mesmo para os que têm propriedade ou renda garantida. Subjacente a isso vai, pois, uma transferência de renda dos tomadores de crédito para os donos do dinheiro, sejam empresas ou famílias. Contudo, isso não afeta o conjunto das empresas. As grandes corporações não precisam muito de crédito bancário – levantamentos feitos e replicados desde o início do século XX mostram que sua estrutura de capital compõe-se, em média, de 70% de fluxo de caixa próprio, 20% de captação no mercado de capitais e apenas 10% em crédito bancário. Revela-se, assim, a mágica pela qual o sistema bancário tem como aliado “natural” na implantação de políticas monetárias restritivas – leia-se contração de crédito e juros altos – o grande capital produtivo representado pelas corporações gigantescas da vanguarda capitalista. Elas não pagam por empréstimos, ganham com eles. Seus recursos líquidos giram no sistema bancário, obtendo juros, sendo que este funciona como um instrumento auxiliar de seus ganhos globais, somando lucros produtivos e renda financeira. A isso, obviamente, corresponde uma aliança política básica, de maneira a influir na direção do Estado. A política monetária é 1 Nem sempre estive totalmente convencido disso; quem acabou me convencendo foi Celso Furtado, ao chamar minha atenção, não para o efeito agregado da contração monetária, mas para sua incidência em cadeia no sistema produtivo. 116 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria essencialmente concentracionista da renda nacional, em confronto com a política fiscal “democrática”. A luta de classes sai da fábrica para o espaço amplo da política, opondo monetaristas ortodoxos e progressistas fiscais. O jogo de poder por trás da ideologia monetarista À luz dos processos históricos anteriormente analisados, fica mais fácil compreender o jogo de poder que, por trás dos disfarces ideológicos, atualmente contrapõe a política econômica norte-americana à política europeia, liderada pela Alemanha. Os heróis são os norte-americanos; e é a Alemanha – em outro tempo a vanguarda do progresso social europeu – que conduz o resto da Europa a uma onda inexorável de convulsões sociais estimuladas por uma combinação insana de políticas fiscais e monetárias restritivas, em plena carência de demanda agregada e de demanda externa, exceto, circunstancialmente, da própria Alemanha – ou seja, num contexto totalmente inibidor do investimento privado e da retomada do emprego. Recue-se um pouco na história: o milagre alemão é o milagre da economia export-led, característica igualmente do Japão do pós-guerra e, posteriormente, a da Coreia, China e de outros países asiáticos de menor porte. Uma economia com saldos comerciais elevados pode se dar ao luxo de crescer, a despeito de políticas monetárias só aparentemente restritivas. Onde há um nível compatível de participação do trabalho na renda nacional tal situação é suficiente para fazer girar, na margem, o processo econômico em crescimento e a expansão monetária que resulta da contraparte interna das rendas oriundas de superávits de exportações, convertidos total ou parcialmente em salários e lucros realizados internamente – desde que não haja uma política de esterilização desses recursos, do tipo currency board, imposto a algumas ex-colônias por Inglaterra e França. O aumento de exportações possibilitou o aumento de produtividade, e este gerou o aumento dos salários; a concomitante expansão da renda empresarial, por fim, viabilizou o crescente investimento e formou a base tributária sobre a qual recaiu uma política fiscal redistributiva e equilibrada, fundamento sólido da socialdemocracia. A experiência alemã foi imitada no resto da Europa Ocidental, em maior ou menor grau de sucesso. Contudo, essa arquitetura de relativo equilíbrio entre políticas de renda, política externa, política monetária e política fiscal, conduzindo a um também relativo equilíbrio social, seria atropelada pelas crises cambiais desde o início dos anos 70, geradas pela instabilidade inflacionária norte-americana. Foi uma década angustiante, a começar pela ruptura dos acordos de Bretton Woods, em 1971, sobre os quais estava construída a ordem financeira internacional (câmbio fixo e controle de capitais). Os europeus tentaram diferentes fórmulas de estabilização de suas moedas em flutuação livre frente ao dólar, essencial para Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 117 José Carlos de Assis combater a inflação, a partir da forte estrutura do Mercado Comum Europeu, mas o máximo que conseguiram foram acordos precários (Rambouillet e Plaza). No início dos 80, enquanto Thatcher e Reagan desfechavam sua campanha neoliberal, a França socialista de Mitterrand fez uma tentativa de política econômica autônoma progressista, mas, sob a chantagem dos mercados, teve que capitular. Nesse contexto germinou e se consolidou a ideia da moeda comum, depois batizada de euro. A despeito dos “eurocéticos”, havia uma dupla razão para o apoio europeu ao projeto da moeda comum – do ponto de vista político, era um instrumento de consolidação do projeto de união do continente, afugentando definitivamente as sombras das guerras; do ponto de vista econômico, era a garantia, pela via do banco central independente, de uma política monetária oposta ao projeto fiscal redistributivista, herdado da social democracia europeia, acusada pelos conservadores de estimular uma apropriação crescente da renda nacional pelo trabalho, em detrimento do capital (baixa produtividade em relação ao aumento dos salários, desestimulando os investidores e a inovação). Na realidade, a própria base fiscal do projeto social democrata foi violada. O Tratado de Maastricht e o Pacto de Estabilidade e Crescimento, que instituíram o euro, limitaram o déficit fiscal a 3% do Produto Interno Bruto (PIB), e a dívida pública a 60%, para adesão à nova moeda. Tentemos penetrar na Economia Política por trás desses parâmetros. Não existe nos documentos justificadores da criação do euro nenhuma explicação técnica razoável para que o limite máximo da dívida pública na União Europeia tenha sido fixado em 60% do PIB; também, nada justifica, tecnicamente, o limite de 3% do PIB para o déficit fiscal. Trata-se de parâmetros arbitrários que viriam a ter consequências brutais na crise fiscal no sul da Europa, depois de 2008. Contudo, por um exercício elementar de aritmética, podemos concluir muito facilmente que, se 60% do PIB é o limite máximo da dívida pública e 5% é a taxa média de juros incidente sobre ela, 3% do PIB de déficit público correspondem exatamente ao volume anual de juros que se deve pagar sobre a dívida pública, sem qualquer “sobra” para despesas fiscais discricionárias. Com isso, cancela-se a possibilidade de utilização da receita de senhoriagem ou do déficit nominal em favor de parcelas mais pobres da população; ela serve exclusivamente aos ricos, para garantir-lhes seus ativos financeiros, via política fiscal-monetária. A riqueza líquida dos poderosos fica assim segurada. A operação desse sistema exigia um banco central independente, desvinculado dos tesouros nacionais europeus, pois, do contrário, haveria o risco de acomodação monetária a déficits fiscais acima dos limites admitidos. Com isso, fechava-se qualquer possibilidade de políticas fiscal-monetárias progressistas e socialmente orientadas no cenário europeu. Fechava-se, também, a possibilidade de políticas fiscais anticíclicas na região, o que se revelou um truque de mau gosto da história. Com a crise financeira mundial, a União Europeia precipitou-se em salvar os bancos 118 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria com linhas de crédito da ordem de trilhões de euros, mas não teve condição de fazer grandes programas de estímulo fiscal. Como consequência, arrasta-se na recessão, inclusive na Alemanha, onde se instalou a desaceleração depois de algum crescimento no primeiro trimestre de 2010. É fato que o programa conservador do euro não foi plenamente executado, como observou Galbraith a respeito das convicções dos ortodoxos, quando baixa a crise mandam-se às favas os princípios. No curso da crise grega, que apenas descortinou as outras crises do sul da Europa – Espanha, Portugal, Itália, Irlanda e, fora da área do euro, a própria Inglaterra – o Banco Central Europeu (BCE) admitiu comprar títulos públicos dos países afetados, embora em pequena escala. Foi e continuará sendo inútil; o comando da economia política na União Europeia, após o Pacto de Estabilidade e Crescimento, está de fato nas mãos das agências de rating. Foi a essas agências que os governos entregaram a função de determinar se um país faz ou não uma política econômica responsável, sendo assim considerada, curiosamente, a política exercida dentro dos critérios fiscais de Maastricht. Uma vez desclassificado um país por agência de rating, ele sucumbe à chantagem do mercado, que passa a exigir taxas de juros crescentes para a renovação de sua dívida pública antiga e criação de uma nova. A alternativa progressista (keynesiana) para isso, num contexto de crise geral de demanda, de investimento e de emprego, como na Europa atual, seria a aquisição em massa de novos títulos públicos pelo BCE, não apenas no mercado secundário, gerando recursos fiscais significativos para programas de estímulo à retomada da economia, a começar pelas do sul da região. Entretanto, a Comissão Europeia, dominada pela Alemanha, seguiu o inacreditável caminho de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para impor um programa de austeridade à Grécia. Imediatamente, outros países seguiram a receita, mesmo sem acordo formal com o FMI (exceto a Hungria, que repeliu o Fundo), na mais extraordinária capitulação ideológica coletiva de países desenvolvidos a uma agência multilateral, historicamente caracterizada como instrumento de violação de soberanias econômicas de países em desenvolvimento. Em que consiste o programa padrão de austeridade do FMI? Basicamente, trata-se de cortar salários, pensões e gastos públicos em geral, para fazer retrair a demanda agregada e criar excedentes exportáveis. Há variações, penduram-se às vezes no programa compromissos de privatização, aumento de impostos indiretos, desvalorização do câmbio e aumento de juros. Em qualquer hipótese, o objetivo central é aumentar as exportações, mesmo que à custa de imensos sacrifícios pessoais internos. Naturalmente que para o programa funcionar, ao aumento de excedentes exportáveis de um país em crise deve corresponder, no exterior, a disposição de aumentar suas importações. Justamente nesse ponto temos uma situação peculiar no mundo contemporâneo – todos querem exportar e todos querem restringir importações. O programa do Fundo, se alguma vez funcionou, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 119 José Carlos de Assis em circunstâncias normais da economia mundial, não tem como funcionar numa situação de colapso do comércio mundial, que se contraiu 12,2% em volume, 25% em valor, em 2009, e que, em 2010, ainda não se recuperou plenamente, sobretudo na Europa. No que diz respeito à Economia Política, o programa do FMI é óbvio e de mau gosto, pois são os pobres que pagam a conta via redução de salários e de gastos públicos, em especial quando são de natureza social. Na relação comercial com o exterior, o comando do excedente sobre uma base salarial reprimida é das empresas; assim, quanto maior é o excedente comercial, maior é a transferência de renda de pobres para ricos na relação empresarial. E à vista do que se discutiu anteriormente, não estamos diante apenas de relações sociais nas empresas, mas, também, de relações políticas, mediante a orientação que se dá ao gasto orçamentário: os incentivos diretos e indiretos às exportações prevalecem sobre as demais despesas do governo. Finalmente, convém examinar detalhadamente a Economia Política alemã e sua influência sobre a do resto da Europa. Neste caso, houve certa euforia entre os fiscal-monetaristas ortodoxos em relação à performance econômica alemã, a partir do último trimestre de 2009. Parecia a vitória da austeridade sobre a gastança, mesmo porque, tendo uma invejável posição fiscal, ainda assim a Alemanha decidiu anunciar um programa de austeridade, retirando os parcos estímulos fiscais que havia dado no início da crise. A razão da euforia era uma estimativa de crescimento do PIB de 2,2% em 2010, o maior de toda a área do euro. No segundo trimestre de 2010, os indicadores já não eram tão favoráveis. E as estimativas tiveram de ser revistas para menos de 2%. Caso contrário, estaríamos, sim, diante de um novo milagre alemão – como um país que em tempos normais exporta dois terços de sua produção para o resto do mundo, 40% dos quais para a Europa e 12% para o sul europeu em plena crise, pode crescer tão favoravelmente se a maioria dos seus compradores está em recessão? A Alemanha investiu fortemente na conquista de novos mercados na Rússia, na China, na Índia e nos próprios Estados Unidos, mas, evidentemente, seu êxito comercial não pode ser indefinido diante da situação econômica mundial. Chegará a hora em que a Alemanha se defrontará, pela primeira vez no pós-guerra, com as contradições de sua política econômica. Tendo se tornado o maior país exportador do mundo, só no ano passado desbancada pela China, a Alemanha combinou alta produtividade de sua mão de obra, tecnologia de ponta e agressividade comercial para criar uma economia de alto padrão econômico e social, na vanguarda do desenvolvimento mundial. Esse modelo só tem um defeito: não pode ser generalizado. Claro, o comércio mundial é um jogo de soma zero, no qual é aritmeticamente impossível que todos os países sejam superavitários no balanço de pagamentos ao mesmo tempo. A Alemanha poderia viver feliz eternamente se a China, o Japão e o resto da Ásia também não decidissem ser superavitários, como 120 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria bons mercantilistas. Aliás, a China começa a se reorientar muito responsavelmente para o mercado interno. Para recuperar seu equilíbrio dinâmico, também a Alemanha terá de desviar para o mercado interno parte da produção de bens e serviços que exporta. O problema é que ela exporta, sobretudo, máquinas e equipamentos empregados na produção de bens de consumo, o que funcionou muito bem no passado, quando a contrapartida de suas exportações, especialmente para a Europa, era a abertura de seu mercado a importações de bens de consumo produzidos externamente, com ajuda de suas máquinas. Agora, é necessário combinar essa estratégia com o estímulo ao mercado interno; do contrário, haverá desemprego e queda do investimento. Esse deslocamento implica uma mudança fundamental na economia política do país, o aumento do consumo interno representa uma democratização da renda real. Isso só pode acontecer por duas vias: o aumento do salário real, que é discriminatório; e o aumento do gasto fiscal social, que é redistributivo em escala universal. Essa história vale, em parte, também para o resto da Europa, notadamente a do sul, que sente o impacto maior da crise fiscal gerada pela salvação do sistema financeiro, e não por gastos sociais “irresponsáveis” dos governos, como os ideólogos do mercado alegam. De te fabula narratur, igualmente aqui. Não importa a posição fiscal no momento de decolagem de um programa de estímulo, o que importa é o nível da demanda agregada, o nível de desemprego e a inflação (em geral deflação), o que exige um influxo vigoroso de gasto público deficitário, garantido na retaguarda pela compra dos correspondentes títulos públicos pelo Banco Central. Isto é, em essência, o que pode caracterizar para a Europa e para o mundo uma economia política progressista para suplantar a crise. Déficit público é riqueza privada; numa economia em profunda recessão, a riqueza líquida privada jamais poderá realizarse sem o impulso inicial de mobilização dos próprios recursos privados pelo setor público, por meio do déficit orçamentário. Entretanto, no mundo efetivamente globalizado – e não há por que esperar o retrocesso da globalização, exceto a financeira – não há mais espaço para políticas expansivas isoladas, por mais que sejam necessárias e urgentes. Além disso, é fundamental o controle governamental sobre os fluxos financeiros, campo no qual a Europa revela-se mais progressista do que os Estados Unidos, que, até o momento, rejeitaram uma taxa sobre aplicações internacionais especulativas. Os países têm de entrar em acordo sobre uma reestruturação financeira abrangente e sobre programas de estímulo fiscal, isso é fato. Neste aspecto, Barak Obama tem insistido nessas propostas nas reuniões do G-20, mas a Europa resiste. Como consequência, o programa de estímulo norte-americano acaba “vazando” para a Alemanha, a China e o resto da Europa (ou para o mundo inteiro), sem contrapartida favorável no sentido do aumento da renda e do emprego dentro dos Estados Unidos. Ou seja, nem todos os líderes mundiais compreenderam a necessidade de uma ação Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 121 José Carlos de Assis coletiva, já que entramos inexoravelmente na Idade da Cooperação. A esse respeito, é ilustrativa a proposição apresentada por Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI, no fórum sobre desemprego promovido pela Organização Mundial do Trabalho, no início de setembro de 2010. Rompendo com a tradicional frieza dessa instituição em relação a questões sociais, Strauss-Kahn exortou os países a adotarem políticas urgentes, a fim de reduzir o desemprego, sobretudo de jovens. Num apelo retórico, digno da velha esquerda fundamentalista, o diretor-gerente do Fundo argumentou que o alto desemprego poderia colocar o mundo até mesmo no risco de guerra. Espera-se que essa seja uma tomada de consciência, não só do FMI como de outras agências conservadoras, como a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no sentido de uma ruptura com políticas fiscal-monetárias restritivas, que até aqui têm sido sua marca registrada, rumo à mencionada Idade da Cooperação. A ortodoxia falsa dos ideólogos brasileiros É extraordinário como esses temas, fundamentais para a ordem mundial futura e determinantes das condições socioeconômicas nacionais que estão se reconstituindo neste momento, sequer são considerados pelos políticos profissionais e pelos partidos. No Brasil, a campanha eleitoral presidencial passou ao largo deles. Convém afastar o julgamento pretensioso a respeito do caráter de políticos, de sua honestidade ou fidelidade ao bem público; de sua ignorância ou de quaisquer outras conotações subjetivas. O político, como qualquer um, está mergulhando num mundo de ideologias. São elas que, à falta de crítica de seus fundamentos, comandam o processo social e político. Tradicionalmente, os partidos de direita tiveram e continuam tendo em todo o mundo uma relação funcional com as ideologias. Constroem-nas e fazem delas instrumentos de defesa de seus interesses, assim como meio de dominação, no que for possível, de todo ou parte do aparelho do Estado. Os de esquerda, quando autênticos, usavam ideologias como um farol de orientação na busca e na construção do próprio poder político, ou de uma utopia. Há fundamental diferença entre essas duas atitudes: malgrado o “materialismo” de Marx, a esquerda tornou-se ideologicamente idealista, enquanto a direita manteve-se simplesmente realista. O que isso importa, afinal? Tal processo, em realidade, foi socialmente virtuoso durante muito tempo, quando os diferentes faróis de esquerda iluminavam o caminho da busca da justiça social. E, claro, isso foi facilitado pela Guerra Fria, pois a presença de uma potência mundial militarmente em pé de igualdade com a potência ocidental hegemônica era uma referência importante da luta política, também nas democracias ocidentais. Entretanto, o Muro de Berlim foi derrubado e, pouco depois, a União Soviética, revelando-se ao mundo as entranhas carcomidas 122 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria do socialismo real. Sem referência externa, os faróis de esquerda tiveram de se voltar para si mesmos. Nisso caíram numa tremenda confusão, em razão do despreparo de muitos de seus dirigentes, particularmente intelectuais europeus e, certamente, a maioria dos economistas, para a crítica econômica do mundo pós-soviético e do próprio neoliberalismo. Não há outra explicação, a não ser um estado de total alienação crítica, para que o Partido Trabalhista inglês, o Partido Comunista italiano, o Partido Social Democrata alemão, o Partido Socialista francês e o Partido Socialista espanhol – ou seja, praticamente todos os grandes partidos anteriormente progressistas da Europa – tenham, sem exceção, capitulado ao neoliberalismo, dos anos 90 para cá. Deve-se acrescentar ao grupo a maioria do Partido Democrata norte-americano nos anos Clinton. Assim como a quase totalidade dos antigos partidos comunistas da antiga Cortina de Ferro (novamente, exceto Hungria). E o que significa, nesse contexto, a capitulação ao neoliberalismo? Significa aceitar o princípio de políticas monetárias e fiscais restritivas, limitadoras do gasto público de natureza social, em nome da estabilidade monetária, e independentemente do desemprego e do ciclo econômico. Nessa situação, vejamos o Brasil dos últimos anos: o que um torneiro mecânico, dirigente sindical carismático e que se revelaria um genial líder político, condutor de um partido também originário da esquerda, poderia fazer, em matéria de economia política, quando chegasse à Presidência da República? Virar de pontacabeça a política econômica? Mas, a partir de qual referencial? O da esquerda europeia, mergulhada em confusão? Ou o dos democratas oportunistas de Clinton, também convertidos ao neoliberalismo? O fato é que, do lado da antiga esquerda, sobrou muito pouco, pois ninguém poderia levar a sério Fidel Castro como modelo; e, do lado do que poderia ser chamado de nova esquerda, escondia-se a sombra do velho liberalismo econômico anterior à Grande Depressão. O caminho seguido foi necessariamente ambíguo. Conforme uma curiosa observação do Vice-Presidente José Alencar, “Fizemos tudo errado, mas deu certo”. Alencar foi a figura política brasileira mais interessante das últimas décadas. Fez, a partir do nada, o maior conglomerado têxtil do Brasil, recentemente estendido ao exterior mediante fusão com uma grande empresa norte-americana. Sem qualquer formação acadêmica, autodidata, tornou-se um crítico acerbo da política monetária brasileira, à qual corretamente acusou de ser a maior fonte de desequilíbrio fiscal, com uma conta anual de juros da dívida pública da ordem de mais de R$ 160 bilhões. Não obstante as críticas de seu Vice, cuja recíproca lealdade seria expressa no convite a Alencar para ser o candidato à mesma posição na campanha de reeleição de 2006, Lula resistiu a interferir na política monetária, em respeito à autonomia operacional e política do Banco Central. Em que exatamente consistiu essa política, e por que, na avaliação do Presidente, ela afinal resultou bem-sucedida? Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 123 José Carlos de Assis É preciso lembrar que Fernando Henrique, o “príncipe dos sociólogos”, que chegou à Presidência brasileira com o brilho de domador da hiperinflação, foi quem efetivamente alinhou ao neoliberalismo a política econômica do Brasil. Antes dele, Collor não contribuiu para uma maior racionalização da política econômica, enquanto Itamar Franco, seu sucessor, procurou pôr ordem na casa, tanto em termos políticos, quanto econômicos, mas sem um rumo muito claro. Assim, foi Fernando Henrique, com uma equipe econômica dita ortodoxa, quem decidiu amarrar exclusivamente na política fiscal-monetária o suposto controle da inflação – que havia sido efetivamente domada, sim, mas por conta, sobretudo, da desindexação – mesmo que disso resultassem brutais transferências de renda para o sistema financeiro. No plano monetário, o Presidente-sociólogo conferiu ao Banco Central independência operacional e mesmo política, além do objetivo singular de controlar a inflação mediante simples decreto, situação que o colapso cambial de 1998 atestou como um fracasso de sua política monetária. Essa é a fonte da independência política do BC no Brasil: para controlar a inflação vale tudo, mesmo uma desnecessária taxa de juros mantida durante anos como a mais alta do mundo, gerando brutais transferências de renda dos pobres e, em especial, das classes médias, para os ricos. Enquanto a economia real evoluía com dificuldades ao longo do seu segundo mandato, Fernando Henrique cumpriu os ditames do FMI, chamado em socorro do Brasil em face da crise cambial. Paralelamente, para agrado do Fundo e da comunidade financeira internacional, escalou no programa de privatização (inclusive de praticamente todos os bancos estaduais) e no aperto fiscal ao setor público. Em termos de economia política, o que se fez e ainda se faz no Brasil é inverter o papel da política econômica na distribuição da renda nacional. Enquanto no regime de uma social democracia real o Banco Central é um auxiliar do Tesouro na ampliação de recursos fiscais, para financiar gastos públicos redistributivos, no regime brasileiro, caricaturado da ortodoxia monetária, o Banco Central gera imensas despesas financeiras para o Tesouro, que se vê obrigado a retirar recursos do orçamento fiscal conjunto – financiado por todos, inclusive, via impostos indiretos, pelos mais pobres – para pagar as exorbitantes taxas de juros da política monetária. Lula poderia ter mudado a situação? Antes de tentar responder, convém examinar a mecânica subterrânea específica desse processo fiscal-monetário no Brasil. Enquanto em todo o mundo existe uma distinção clara entre taxa básica de juros, usada para regular as reservas bancárias e a taxa de remuneração de títulos públicos, pela qual o Tesouro capta recursos do sistema bancário e do público para financiar o orçamento; no Brasil, ambas se confundem no mercado aberto. Neste, cerca de 40% da dívida pública, vinculados à taxa monetária básica, têm liquidez diária. Portanto, é uma espécie de moeda financeira que rende juros, sem ficar 124 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria indisponível para o aplicador – uma farra financeira tipicamente brasileira. Sob um ponto de vista técnico, a distinção entre taxa básica de juros (monetária) e taxa de remuneração da dívida pública (financeira) é essencial para o exercício de uma política monetária de cunho ortodoxo. Suponhamos que o modelo de metas de inflação, adotado pelo governo Fernando Henrique depois da crise cambial de 1988, não fosse estéril, como de fato é no regime desse modelo. Uma elevação da taxa básica de juros resultaria em contração do crédito e da demanda, como em todo sistema monetário normal. Portanto, presume-se que contenha a inflação pela contenção da moeda. Entretanto, na presença de moeda financeira – moeda sacável pelos bancos no mercado aberto a qualquer momento, sem punição pela iliquidez, bem como a moeda financeira dos fundos mútuos, disponível para empresas e famílias endinheiradas – um aumento da taxa básica de juros, vinculada a 40% da dívida pública, implica em aumento efetivo da disponibilidade de moeda na economia, ampliando direta ou indiretamente o poder de consumo das classes médias, dos ricos e das empresas que têm contas remuneradas diariamente. Acaso Lula é o culpado por manter esse sistema? E Fernando Henrique, Itamar, Collor, Sarney – com seus três ministros da Fazenda: Funaro, Bresser a Maílson? Registre-se que este último ministro chegou a culpar a Constituição de 1988 pela hiperinflação em curso no Brasil. E os governos militares? E os “ortodoxos” Campos e Bulhões?... Um momento! O sistema foi inventado justamente por Campos e Bulhões, os pais da ortodoxia brasileira. Eles foram os introdutores da correção monetária sobre títulos, o ovo da serpente da moeda financeira, na medida em que o Banco Central da época resolveu colocar no mercado títulos com prazo decorrido, e aceitar cláusulas de recompra dos títulos sem prejuízo de rentabilidade. Com esses precedentes e a sanção globalizante do Presidente-sociólogo o sistema financeiro brasileiro acabou ganhando dimensões de intocável. Assim, na ausência de um terremoto financeiro internacional, o torneiro mecânico Presidente e sua equipe, mesmo se quisessem, jamais poderiam mexer nessa arquitetura, sem risco de chantagem do próprio sistema financeiro e da grande mídia. Nos Estados Unidos, Barak Obama aproveitou o abalo para fazer avançar uma reforma financeira abrangente, que, assim mesmo, está incompleta. Na civilização modelada pelo capitalismo não é fácil afetar o direito de propriedade. Não se deve esquecer que dinheiro é a propriedade líquida mais sensível. Para o Presidente Lula, não sendo ele e muitos de sua equipe especialistas em política fiscal-monetária, teria sido praticamente impossível, como foi, mudar a política econômica herdada. Afinal, como disse Alencar: “Estava dando certo”. O Presidente herdou uma situação caótica: inflação galopante – não havia mais correção monetária de salários – extrema desvalorização cambial, setor público desestruturado, investimento público próximo de zero e altíssima taxa de desemprego. As contas públicas estavam em relativo equilíbrio, sim, porém à custa de contração violenta do gasto, que comprometia a própria eficácia do aparelho público. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 125 José Carlos de Assis Nesse quadro, a decisão tomada, não pelo Presidente, mas sancionada direta ou indiretamente por ele, foi elevar violentamente a taxa básica de juros (em tese, para combater a inflação) e fazer elevados superávits primários no orçamento público consolidado (para convencer o mercado dos propósitos ortodoxos do governo). Surpreendentemente, isso funcionou. E não é vantagem apontar, ex post, os motivos do êxito: o boom internacional totalmente imprevisto, iniciado pela China em 2002, fez explodir o mercado de commodities, especialmente minério de ferro e soja; a taxa cambial brasileira, por sua vez, estivera tão alta em 2002 que, mesmo se valorizando nos anos seguintes, ajudando a conter a inflação, manteve-se em patamares favoráveis às exportações também de manufaturados. A expansão das exportações animou o mercado interno de trabalho, a demanda e o investimento. E não foi tudo. Na base da pirâmide social, o Presidente – e, nesse caso, o mérito é exclusivamente dele, pois se tratava de uma decisão política direta, sem tecnicalidades – poria em marcha o programa Bolsa Família, para atender aos mais miseráveis entre os cidadãos brasileiros, e a política de aumento real do saláriomínimo, cujo efeito foi extremamente benéfico para aposentados e para a economia. A demanda interna de bens de consumo popular reagiu, favorecendo ainda mais o emprego. Esses fatores combinados mantiveram a economia contra uma recessão no primeiro mandato – já que o crescimento continuava lento, e foi abortado pelo Banco Central em 2005 – e a puseram na trilha da recuperação decisiva a partir de 2006. Seguiu-se a crise internacional, e uma nova recuperação após um eficaz programa de estímulo, depois de 2009. O que, afinal, aconteceu em matéria de economia política nesses anos Lula? Tornamo-nos sem querer, momentaneamente uma economia export led, do tipo alemão ou japonês, surpreendentemente pela via de exportações de commodities, embora também de manufaturados de baixo ou médio nível tecnológico. Mestre Celso Furtado ficaria espantado diante disso. Uma das causas do subdesenvolvimento não era exatamente a especialização do Terceiro Mundo em exportação de matériasprimas, cujos termos de intercâmbio tendiam a cair sistematicamente ao longo do tempo? Agora, vemos aumentos anuais do preço do minério de ferro em mais de 100%... É cedo dizer que Furtado e outros cepalinos estiveram errados. O futuro da economia chinesa é uma incógnita. Se ela reduzir o ritmo de importação de commodities – ou se outros mercados, como a África e algumas regiões da Ásia entrarem nesse mercado como produtores e exportadores – a situação inverte-se novamente. O surto exportador anterior, que elevou a 60% a participação de manufaturados nas vendas externas brasileiras, deu uma contribuição decisiva à expansão do mercado interno por meio dos salários e à expansão monetária, pela conversão de saldos comerciais externos. Ao mesmo tempo, ofereceu uma base objetiva ao mercado para a vinda de capitais externos na condição de investimentos financeiros 126 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria e diretos, em especial quando se percebeu a propensão do Banco Central em favorecer a valorização cambial por meio de taxas de juros básicas muito elevadas. Tudo isso pode ser atribuído a uma política monetária fundamentalmente errada, mas que, por outras razões, até o momento obteve êxito. Já para o futuro, temos uma conta aberta. A balança comercial inverteu-se, agora são as commodities que detêm 60% das vendas externas, enquanto os manufaturados, em queda livre, são menos que 40%. O superávit comercial está desabando e o déficit em conta corrente aumentando. Em poucos meses, estaremos sob ameaça de uma sangria de divisas. O pior é que essa situação não se inverte facilmente e nem sem dor. O controle da inflação, tão caro ao Presidente Lula, por sua justa preocupação com os efeitos inflacionários sobre aqueles que estão na base da pirâmide social, não se deveu a controle de demanda, como já discutido. Foi efeito da valorização do câmbio. Entretanto, essa valorização está em contradição com a retomada do equilíbrio externo; agora precisamos urgentemente desvalorizar para estimular exportações e restringir importações. Perspectivas brasileiras e mundiais diante da crise global Qual caminho tomar no contexto da crise mundial? O Brasil sobreviveu razoavelmente ao primeiro impacto da crise de 2008, por conta de uma inteligente combinação de política fiscal e financeira, embora mantendo, em larga medida, a política monetária restritiva – pateticamente, subiu a taxa de juros até janeiro de 2009, alguns meses depois que os principais bancos centrais haviam reduzido sua taxa básica a quase zero, para estimular as economias. Paralelamente, sustentou as políticas sociais com um aumento real do salário-mínimo, incremento do programa Bolsa Família e desoneração do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de automóveis e de bens de consumo popular, com efeito igualmente expansivo sobre a economia. O plano macroeconômico determinou aos bancos públicos ampliarem seus empréstimos e abriu uma linha direta do Tesouro para o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de R$ 100 bilhões, depois ampliados para mais R$ 80 bilhões, a fim de financiar o investimento. Nesse caso, não há como dizer que se fez a coisa errada. Fez-se a coisa certa, e deu certo, embora não exatamente como uma “marolinha”. O país sofreu o impacto de uma retração de 0,2% do PIB em 2009 e uma recuperação aparentemente firme teria de esperar pelo terceiro trimestre daquele ano. Já se viu, pelo movimento recente do comércio exterior brasileiro, que a perspectiva de crescimento no modelo export led dificilmente se sustentará. Há décadas dizia-se que nenhuma economia continental poderia desenvolver-se com base nas exportações. A China desqualificou esse mito. Contudo, o modelo chinês de planejamento centralizado, sistema bancário totalmente público e acelerada Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 127 José Carlos de Assis acumulação de capital por sobre salários miseráveis, por razões sociais e políticas dificilmente pode se aplicar ao Brasil. Outras economias exportadoras asiáticas, inclusive a da Índia, também não servem de modelo, por sua escala ou pelo alto grau de especialização, como havia ocorrido com o Japão. Nosso destino de economia continental nos força a colocar o peso maior de nossa estratégia de desenvolvimento no mercado interno e, especialmente, no mercado “interno” expandido da América do Sul. Queiramos ou não, é o modelo norte-americano centrado na expansão doméstica. Entretanto, para usar o mercado interno como alavanca do desenvolvimento é necessário protegê-lo das assimetrias perversas do comércio exterior, em especial dos mecanismos de livre-comércio que favorecem os países industrializados avançados e, sobretudo, de uma forma ainda mais prejudicial ao desenvolvimento interno, a liberdade irrestrita dos fluxos de capitais de entrada e saída, para simples especulação. Sem a retomada da economia interna e impossibilitados de ser uma economia exportadora de manufaturados, a crise externa, cedo ou tarde, sofrerá da antiga maldição das crises cambiais e de inflação que sempre lhes esteve associada. A razão é que com a deterioração do balanço de pagamentos – devido aos limites de compras de commodities pela China e o resto da Ásia – o BC terá de forçar abruptamente a desvalorização do câmbio. Isso, na ausência de políticas de renda para o controle dos preços e salários, implicará inevitavelmente em inflação. Com o câmbio em processo de desvalorização, haverá a compensação pelo lado do aumento das exportações de manufaturados. Porém, trata-se de um processo demorado, viscoso, e que deixa sequelas ao longo do caminho. Como sempre ocorre, a crise externa poderá ser acelerada pela repatriação de investimentos financeiros especulativos, antes atraídos pela valorização cambial; nesse caso, ocorrendo um efeito cumulativo. O BC tenderá a aumentar ainda mais a taxa de juros na direção inversa ao exigido pela política cambial, em nome do combate à inflação. Em termos de economia política, isso significaria aprofundar os processos de transferência de renda dos pobres para os ricos que têm sido examinados. Na ausência de uma reforma financeira, a manifestação explícita final seria uma carga de juros extorsiva sobre o orçamento, mais do que absorvendo o superávit primário e gerando uma escalada de déficit nominal totalmente estéril. Na institucionalidade fiscal-monetária brasileira, déficit público não tem financiado gasto governamental, mas, apenas juros – ou melhor, juros sobre juros. O Governo estabelece uma meta de superávit primário, sim, trata-se de um excedente das receitas públicas sobre as despesas não financeiras para pagar juros. À primeira vista, é contracionista, o Governo está tirando mais recursos da economia do que lhe devolve sob a forma de despesas governamentais reais. Acontece que esse superávit primário, como proporção do PIB, é inferior aos gastos com juros da dívida pública. Portanto, globalmente, o orçamento total, dito nominal, seria deficitário e expansionista – o Governo gasta mais do que arrecada. Contudo, quando se 128 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria observa a qualidade da contrapartida do gasto deficitário, ou seja, juros na forma de moeda financeira, conclui-se que ninguém sabe de antemão se é expansionista ou contracionista, pois isso vai depender do que o receptor dos juros vai fazer com esse dinheiro – se vai gastar imediatamente em consumo ou investimento (expansivo), ou se vai reaplicá-lo em títulos públicos (contracionista). Certamente, a realidade é mais confusa do que o leitor pode ter concluído do exposto anteriormente. Por exemplo, por que no sistema bancário brasileiro título de captação no mercado privado rende menos do que os títulos públicos? Não deveria ser o contrário, se eles carregam maior risco? Contudo, esse é outro efeito perverso da moeda financeira, que impede um mercado privado de financiamento do investimento de longo prazo no Brasil. A habilidade do mágico consiste em esconder com movimentos complexos o movimento real e simples das mãos. Extraordinário em nossa complexidade financeira é ela ser completamente camuflada pelos economistas neoliberais ou ortodoxos, não obstante seu caráter absolutamente heterodoxo, que em si mesmo, entretanto, desvirtua as próprias políticas ortodoxas. Nesse contexto, são dignos de registro os movimentos do Presidente Lula de contornar a rigidez fiscal de sua equipe para adotar pelo menos algumas iniciativas em favor dos pobres. Fernando Henrique não o fez. Não quis fazê-lo. A vingança dos deuses foram os doze anos seguidos de derrotas eleitorais do PSDB. Querendo ou não, estamos num mundo de democracia de cidadania ampliada, do qual só escapa o autoritarismo social chinês. Nesse mundo, a economia política da concentração de renda está com seus dias contados. Na verdade, a única coisa que falta para apressar o processo de democratização efetiva das economias – não mais que a volta aos fundamentos da social democracia europeia, antes da avalanche neoliberal – é uma atitude crítica menos ideológica das elites intelectuais. Se querem uma referência histórica, tomem Marx, antes de “O Capital” – proposta de uma revolução econômica e política que, com o seu desenvolvimento, permitiu o surgimento da Crítica da Economia Política. Em síntese, era uma forma de saber em que águas o mundo navegava para propor um caminho político racional. Os processos históricos, como se sabe desde Hegel, avançam por vias bipolares, com lutas entre opostos, sínteses, novas teses e antíteses. A confusão política do mundo contemporâneo resulta do vácuo deixado pela Guerra Fria no plano ideológico e político. Esse vácuo foi hegemonicamente ocupado, por um momento, pelo neoliberalismo. Era difícil vislumbrar a emergência de uma antítese, tão sólido parecia ser o sistema do liberalismo econômico (e filosófico) ilimitado. Na verdade, poderia durar séculos se o que preconizava fosse verdade: a eliminação completa do ciclo econômico e um tempo de prosperidade sem fim, com baixo desemprego. A crise de 2008 mudou esse quadro que ainda se arrasta. O neoliberalismo perdeu o encanto entre os próprios conservadores. O primeiro-ministro britânico Gordon Brown, no início de um encontro do G-20, em Londres, chegou a dizer que o Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 129 José Carlos de Assis neoliberalismo estava morto. No livro “A Crise da Globalização”, escrito logo depois da eclosão da catástrofe financeira, sustentei que como ideologia ordenadora da economia e da sociedade, o neoliberalismo estava liquidado. Continuo acreditando nisso, mas, surpreende-me a recomposição das forças neoliberais no plano ideológico, mesmo muito antes da superação da crise financeira. A ideologia neoliberal não mais ordena o mundo, mas sobrevive enquanto ideologia; como tal, nunca vai morrer como não morre, por exemplo, a astrologia. Em termos reais, no campo da política econômica, o mundo está se dividindo entre duas grandes correntes: uma, progressista, liderada pelos Estados Unidos de Obama e pela China; e outra, regressiva, liderada principalmente pela Alemanha. Obviamente, essas posições não refletem exclusivamente percepções intelectuais, mas são fruto da história: as lideranças democratas norte-americanas e as lideranças nacionalistas chinesas sabem que uma crise social, deslanchada pelo alto desemprego e queda de renda do trabalho, seria fatal para ambos os governos no terreno político. Já a Alemanha confia numa política errada que, a exemplo da nossa, até há pouco tempo parecia estar dando certo; voltou a exportar agressivamente, ao mesmo tempo em que retirou estímulos fiscais ao mercado interno, e, não obstante, o desemprego caiu. Isso, contudo, mudou radicalmente com a desaceleração, a partir do segundo trimestre. Como estamos diante de uma quebra geral de paradigmas históricos, importante no momento não é o passado, mas o futuro. Quais são os novos paradigmas que estão se formando no mundo a partir da economia? Pode a Alemanha continuar sustentando o crescimento de sua economia em exportações? Os dados relativos ao segundo trimestre de 2010, constatando uma forte desaceleração do PIB, indicam os limites desse modelo. Por outro lado, os outros países europeus sequer têm a válvula exportadora para ajudar. Se persistirem em políticas fiscais e monetárias restritivas como aconteceu até agora, e se não tiverem o mercado interno alemão incentivado como escoadouro, seus mercados internos desabarão e todo o edifício social europeu, antigamente um farol para o mundo, sucumbirá em crise social e política. Assim, depois de anos e décadas criticando o imperialismo norte-americano, não há a menor sombra de dúvida em recomendar aos formuladores brasileiros de política e os do resto do mundo, que se alinhem à política econômica norteamericana contra a Europa, pelo menos quanto ao aspecto fiscal. Essa é a nova polarização do mundo pós-Guerra Fria. A Economia Política por detrás dos planos de estímulo norte-americano e chinês é, inequivocamente, em favor inicialmente dos mais vulneráveis, pela renda e pelo desemprego, embora também favoreçam investimentos no setor privado e na infraestrutura, os quais atendem igualmente aos interesses dos ricos. Já a política fiscal-monetária alemã, por ela imposta a si mesma e ao resto da Europa, só favorece aos donos do dinheiro e aos detentores de altas rendas e de propriedade líquida. 130 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria Certamente ninguém seria tão ingênuo a ponto de desconsiderar as fissuras internas da política norte-americana, que opõem conservadores e democratas, e a questão ainda mais ampla dos interesses consolidados de Wall Street, muito bem defendidos pelos “neodemocratas”. Obama colocou-se inicialmente numa posição inviável de realizar um programa bipartidário. Ao contrário disso, esbarrou numa oposição feroz do Partido Republicano e de cerca de 60 “neodemocratas” na Câmara de Representantes, os quais, agindo como os quinta-colunas do Sul, que perturbavam o Governo progressista de Roosevelt, aliam-se na resistência a políticas sociais (como foi o plano de saúde para os pobres) e a políticas de reestruturação financeiras progressistas – mesmo que, nesse caso, fazendo concessões a Wall Street. A situação ideológica e política norte-americana só é menos confusa do que a da Europa e a do Brasil, porque a direita, nos países de fronteira civilizatória, não perde tempo em recobrir com ideologias róseas seus interesses de classe. Os ricos norte-americanos não se envergonham em defender as instituições que garantem sua riqueza. É o caso, por exemplo, do corte de impostos para ricos no Governo Bush que, mesmo na atual crise fiscal, os afortunados e seus asseclas julgam correto defender. Contudo, o futuro do Governo democrata de Obama é incerto, uma vez que o programa de estímulo fiscal contra o desemprego não funcionou a contento, em grande parte devido aos vazamentos para o exterior do poder de compra dele derivado, como já citado. De qualquer modo, o lado de Obama, para os Estados Unidos e para o mundo, é inequivocamente o lado da retomada da prosperidade com democracia. No caso brasileiro, alinhar-se ao lado bom da política norte-americana significa, antes de tudo, promover uma política fiscal ativa e redistributivista, reduzir drasticamente a taxa de juros básica; adotar regras amplas de controle de capitais e reestruturar o sistema financeiro, de forma a assegurar que também os bancos privados financiem o desenvolvimento. Nesse aspecto, existem dois movimentos sintomáticos. Nos próprios Estados Unidos, o Governo decidiu criar um banco de desenvolvimento no estilo do BNDES para financiar a infraestrutura e ajudar os Estados. A Inglaterra vai fazer o mesmo. Na Europa continental, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, sugeriu a criação de um título europeu vinculado a um banco de desenvolvimento para captar recursos, a fim de financiar grandes projetos de infraestrutura regional. Considerando-se que não faz muito tempo o FMI ganhou alguma adesão de tucanos internos para privatizarem nossos bancos públicos, transformando o BNDES em banco de investimento, é realmente notável como o mundo está evoluindo por força da crise. Mas o Brasil pode avançar mais. É fundamental aprofundar a estratégia de integração da América do Sul, que nos reforce reciprocamente na busca de um projeto de desenvolvimento comum. Somos um grande mercado para os nossos vizinhos sul-americanos, e eles, conjuntamente, são um grande mercado para nossa Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 131 José Carlos de Assis indústria de serviços e de bens de capital. Além disso, juntos podemos estabelecer uma política de proteção temporária de nosso mercado interno (art. 18 do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT)), sem ferir as regras da Organização Mundial do Comércio, de forma a enfrentar a violenta avalanche de exportações, não só da China, mas, também, dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos, cujos mercados internos foram estreitados pela crise. Convém registrar que Obama colocou como objetivo estratégico dos Estados Unidos dobrar as exportações em cinco anos, enquanto, também na Europa Ocidental e no Japão, programas de ajuste autoimpostos estão empurrando as empresas para o exterior. A América do Sul tem potencial próprio para alavancar um grande projeto de desenvolvimento integrado, econômico e social, baseado em seus recursos naturais, no desenvolvimento da indústria básica, na integração de cadeias produtivas, na especialização industrial. Para financiar tais empreendimentos há dinheiro em excesso no mundo, tendo em vista as atuais taxas de juros, que devem prevalecer por muito tempo em níveis baixos, em face de uma estagnação que se prevê longa nos países industrializados avançados. Se forem definidos bons projetos, haverá facilidade de financiamento; seja pela via da capitalização, seja por empréstimos. Além disso, estima-se que até 2014 os fundos soberanos terão acumulado US$ 10 trilhões em ativos, parte dos quais, em havendo projetos rentáveis, pode ser facilmente canalizada, inclusive por mediação política para projetos na América do Sul. Em setembro de 2010, o fundo soberano do Qatar anunciou que investirá US$ 5 bilhões em projetos diversos na Grécia, isso a despeito da fragilidade financeira grega. Nossas possibilidades materiais são consideráveis e não é sequer necessário referir-se ao pré-sal. Contudo, como ficou evidente no caso histórico venezuelano, exportar matérias-primas não é um caminho para o desenvolvimento. O caminho saudável do desenvolvimento econômico e social é o de instrumentalizar, pela política econômica, e notadamente pela política monetária, uma economia política progressista, favorável ao investimento produtivo com efeitos distributivos, diretos e indiretos, para o conjunto da população. Afinal, estamos numa situação de democracia de cidadania ampliada, que inviabiliza um desenvolvimento direcionado apenas para as elites. Não precisamos reinventar; precisamos dar caráter definido a nossas políticas públicas, esclarecendo quem ganha e quem perde com elas. A política fiscal tem a vantagem da explicitude: vêem-se claramente os ganhadores e os perdedores. A política monetária é elusiva e complexa – nela está situado o núcleo velado da disputa da renda nacional, o lócus escondido da luta de classes contemporânea. A política fiscal move-se a partir de demandas subjetivas das famílias, respondidas por ações objetivas do Estado; a política monetária movese a partir de demandas objetivas dos mercados e se materializa em ganhos ou perdas subjetivos de empresas e famílias. A interação equilibrada entre uma e outra, na forma de uma política econômica sob o comando da cidadania ampliada, 132 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 Banco Central: Último Reduto da Luta de Classes Depois da Guerra Fria é fundamental para o progresso econômico justo e a paz social. A busca desse equilíbrio no plano material está ao alcance da razão econômica, sendo passo essencial na aventura humana de participação no processo de criação, e na construção de uma base física ambientalmente saudável para o desenvolvimento também da espiritualidade e dos valores subjetivos de homens e mulheres. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 107-133, jan./jun. 2011 133 Antonio Celente Videira Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar Antonio Celente Videira Membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra e Mestre em Administração com foco em Gestão e Tecnologia pela Universidade Estácio de Sá Resumo O descarte excessivo dos produtos tecnológicos e o exponencial vazamento do lixo urbano vêm se tornando um problema dramático para a humanidade. Novas estratégias de gestão são encetadas, porém, têm-se demonstrado insubsistentes devido à crise decorrente da falta de espaços disponíveis para aterros, bem como o interesse por lucros maiores e retornos financeiros mais rápidos. Este artigo, além de abordar os problemas vigentes em relação ao despejo de toda espécie, propõe mudança de atitude por uma revolução comportamental individual, cujo resultado será a efetiva solução do impasse. A contaminação dos aspectos éticos de cidadania transformará a conduta do homem poluidor em um homem preservador. Essa é a proposta desta lavra, na sua essencialidade, quando procura alertar a Sociedade Empresarial e o Segmento Militar no robustecimento de suas atividades, para a garantia de um desenvolvimento nacional sustentável. Palavras-Chave: Logística Reversa. Reciclagem. Gestão. Abstract The excessive disposal of technological products and the exponential leakage of urban garbage are becoming a serious problem for humanity. New management strategies are undertaken, however, they have proven ineffectives due to the crisis for landfill space, as well as interest in higher profits and faster financial returns. This article, in addition to addressing existing problems in relation to the dumping of any kind, proposes a change in the attitude by a revolution in individual behavioral, whose outcome will be the effective solution of the impasse. Contamination of the ethical aspects of citizenship will transform the conduct of man in a man polluter preserver. Keywords: Reverse Logistics. Recycling. Management. 134 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar Introdução “A Terra está gemendo”. Essa assertiva é muito oportuna na atualidade. O esgarçamento das forças naturais, que propiciam a harmonia ambiental, vem sofrendo os mais diversos impactos em virtude da ação do homem. Atitude irresponsável, em primazia contida na busca pela competitividade, com práticas não ecológicas abusivas, buscando a redução de custos, tudo, às vezes, justificado por uma administração científica e pró-empresa, que se manifesta em quadrantes do mundo empresarial e governamental, solidifica-se de forma galopante. A alma do planeta torna-se maculada, à medida que golpes são aplicados em biomas responsáveis por reprodução e reequilíbrio da fauna e da flora. Daria para dissertar sobre as mais profundas reflexões quanto à dilapidação ambiental. A literatura e os movimentos ambientalistas são pródigos nesse tipo de argumentação. Nosso olhar, nesta lavra, vai ater-se aos mais novos e recentes impactos ambientais que vêm ocorrendo na superfície planetária. Estamos falando do lixo industrial, do entulho da construção civil, dos resíduos químicos, enfim, de todo um exercício contumaz, adotado ao longo do século passado como palavra de ordem no sistema produtivo, que, agora, não há mais como manter. A saturação das reservas biorrenováveis é fato. O tempo para que as forças naturais degradassem matériasprimas, transformando-as em outros produtos, torna-se insuficiente. Refugos perniciosos combinam com outros elementos, originando novas substâncias nocivas à vida. Esse limite entre desenvolvimento e preservação é o novo paradigma a ser observado. Sustentabilidade, palavra que surge no cenário do crescimento econômico, abriga em seu significado as mais dignas atitudes que o novo gestor deve possuir, visando à produção, com bases justas e respeitosas, por um reino natural e finito. Não há mais como o homem ser ator principal e único no jogo da sobrevivência do planeta. Parceria com outros reinos e reverência a estes são imprescindíveis na busca do sucesso extrativista. Cooperação e compreensão com os demais seres e ecossistemas são atitudes que se esperam do novo homem, ao iniciar sua marcha século XXI adentro. Por incrível que pareça, as Forças Armadas adotam a prática da Logística Reversa há muito tempo, como parte da gestão do seu material operacional. A Logística Reversa é uma prática, dentre outras mais antigas, a se perfilar como elencadora de posturas inovadoras, por uma sustentabilidade real, que se reafirme em ação perene, garantidora da exploração coerente. Neste trabalho, cujo principal objetivo é alertar para a viabilidade de um desenvolvimento limpo, diante do comportamento inteligente manifesto pela humanidade atual, essas considerações serão feitas. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 135 Antonio Celente Videira Marco Teórico Quando o conceito de Logística Reversa surgiu, nos anos 70, havia pouca literatura a respeito de métodos gerenciadores de descartes e de resíduos. Graças ao substancial apelo do Movimento Ecológico em prol da natureza, daí surgindo uma política que primava pela aplicação de processos administrativos voltados ao reaproveitamento de materiais, começam a recrudescer ensaios e trabalhos acadêmicos com esse fim. Leite (2009), define Logística Reversa como a área da Logística Empresarial que planeja, opera e controla o fluxo e as informações logísticas correspondentes, do retorno dos bens de pós-venda e de pós-consumo ao ciclo do negócio ou ao ciclo produtivo, por meio de canais de distribuição reversos, aos quais são agregados valores de diversas naturezas: econômico, de prestação de serviços, legal, logístico e de imagem corporativa, dentre outros. Um dos objetivos da Logística Reversa é retrair ações danificadoras que transformem materiais reutilizáveis em um segundo ciclo de reindustrialização. A corrida na busca de ganhos com menor custo não pode desprezar os cuidados com o meio ambiente. O desenvolvimento sustentável é o mantra deste novo milênio, no qual a globalização é a responsável. Portanto, a Logística desempenha um papel relevante diante desse desafio. Como experiência do reaproveitamento do lixo orgânico em energia alternativa, o Jornal O Globo, de 08 jun. 2008, fez uma reportagem com o seguinte teor: Para facilitar a identificação das potenciais energias limpas, a Secretária do Meio Ambiente, Marilene Ramos, assinou semana passada, um convênio com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). No encontro, a Secretária deixou claro que pretende estimular o desenvolvimento das queimas de lixo e de bagaço de cana, hoje praticamente esquecidas no Estado. O processo de escoamento do lixo doméstico, como atividade logística, tende a ser cada vez mais complexo nos grandes centros urbanos do mundo, na tentativa de concentrá-lo em aterros sanitários, tornando-os verdadeiros depósitos de insumos promovedores de energia limpa. Quanto à destinação do material inservível, mas, não deteriorável, Arima e Battaglia (2003) apresentaram profundo estudo de Logística Reversa com o objetivo de aprofundar as possibilidades para viabilizar a melhoria dos lucros da empresa, atendendo, também, às necessidades da sociedade em viver de forma mais harmoniosa com o meio ambiente. Leite (2008), diretor do Conselho de Logística Reversa do Brasil (CLRB), em seus estudos sobre o tema, mais uma vez, adverte: As condições de competição nos mercados atuais exigem maior atenção aos aspectos relacionados à sustentabilidade econômica, ambiental e social. Empresas de diversos setores procuram o equacionamento do retorno de quantidades também crescentes de produtos que 136 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar potencializam o mercado de Logística Reversa, devido também à redução do ciclo de vida dos produtos. (LEITE, 2008). A conscientização por uma política revigorada da Logística Reversa só será possível mediante uma atitude de colaboração e confiança. São condutas que irão humanizar as transações do negócio empresarial. Sem níveis básicos de confiança, os casamentos se desfazem, as famílias se dissolvem, as organizações tombam, os países desmoronam. A confiança vem do fato de uma pessoa ser confiável. (HUNTER, 2004, p. 37). Na assertiva de Schumacher (1977), é condenada a atitude do homem em querer excluir-se da natureza, tendo-a como opositora, no instante em que quer dominá-la e conquistá-la, empenhando-se nessa batalha, mas, esquecendo-se de que se vencer essa refrega estará do lado perdedor. Por haver uma necessidade de compartilhar com a natureza é que Murta e do O’(2008) estimam o tratamento de esgoto em 45% mais oneroso pela presença de óleos comestíveis nas águas servidas. Logo, defendem a extrema importância de sua reciclagem, transformando-os em biocombustível. Mas Murta e do O’ (2007) objetivam essa prática considerando que esse óleo descartado tem valor de mercado nas empresas de hidrogenação de óleos, para fabricação de saponáceos e detergentes, utilizados na limpeza doméstica e comercial, em que unidades da Marinha do Brasil se beneficiam. A Lei nº 12.305, de 02 agosto de 2010, institui a Política de Resíduos Sólidos, bem como sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos, incluídos os perigosos, as responsabilidades dos geradores e do poder público e ainda os instrumentos econômicos aplicáveis. Toda essa desordem na eliminação de materiais inservíveis tem perspectiva diante da Teoria do Caos. É Campos (2002) quem vai respaldar essa nova forma de enxergar os eventos inesperados, alegando que com o aparecimento, há cerca de trinta anos, das técnicas numéricas disponibilizadas pelos computadores, os sistemas não lineares começaram a ser estudados, apoiados em conceitos matemáticos e físicos, permitindo analisar os sistemas dinâmicos e caóticos, a fim de identificar seus comportamentos em certa ordem. Com essa expectativa, pode-se usufruir de algo irregular na sua forma de tratamento e, a partir daí, obter novos rumos na processualística da reutilização. São essas considerações, partindo de uma literatura difusa, mas produzida por especialistas e notáveis desse saber específico, quer como técnicos ou como acadêmicos, que vão criar todo um embasamento para consubstanciar o corpo de reflexões exposto anteriormente. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 137 Antonio Celente Videira O Cenário Escatológico Falar em sujar o planeta talvez se confunda com a história da origem do homem. Quando os primeiros hominídeos iniciaram o processo da manufatura rudimentar, não se preocupavam em deixar para trás os resíduos de seus utensílios: arcos, flechas, vasos, tacapes, vestimentas. Para serem confeccionados, inevitavelmente geravam refugos que nenhum mal causavam ao meio ambiente. À Época Feudal, as incipientes urbes já se defrontavam com o problema dos dejetos humanos, como fezes e urina, que eram lançadas das residências através das janelas, surgindo, assim, doenças, em consequência da insalubridade. Mas foi a partir da Revolução Industrial que começou o amontoado de lixo urbano, bem como restos de material provenientes de produtos manufaturados pela máquina a vapor. Iniciava-se a saga da poluição ambiental por resíduos sólidos – sobras do processo fabril. O agigantamento de toda essa orquestração, em decorrência da voracidade em se trabalhar a matéria-prima na busca do produto final, no menor tempo possível, dentro dos preceitos dos tempos e movimentos, vai culminar na formação da “Sociedade das Chaminés”. O século XX passa a ser o protagonizador de toda essa investida, drapejando a insígnia do progresso e de uma nova era, onde o lixo era sinônimo de uma sociedade desenvolvida. A cidade que não podia se ufanar em ter seu lixo era considerada retardatária de uma marcha, cujo ponto final consistia no acúmulo de riqueza, não importando se o ar, os córregos, as florestas, enfim, fossem danificados. A transição para o século XXI, mesmo com aplicação de tecnologia de ponta, com inovação de processos de engenharia, fez acelerar a obsolescência industrial, diminuindo o tempo de vida dos produtos com uma programação inteligente de marketing. O clímax de toda essa epopeia é um dramático quadro onde os figurantes tornam-se vítimas de suas próprias e espetaculares conquistas, na exaustão do que a Mãe Terra tem a oferecer. Atualmente, a humanidade produz dois milhões de toneladas de lixo diariamente, sendo que Nova York é responsável por 11 mil toneladas e o Brasil, como um todo, de cento e vinte cinco mil a cento e trinta mil toneladas. Quanto ao lixo eletrônico, cinquenta milhões de toneladas são descartados anualmente no planeta, consistindo em computadores e seus compostos, além de celulares, televisores, geladeiras, micro-ondas, monitores etc., tudo isso devido a ciclos de vida cada vez mais curtos. Nosso País, apesar de não se comparar aos países com vocação para a produção eletrônica, descarta esse tipo de resíduo na faixa de meio quilo per capita. Já os produtos de plástico são consumidos no orbe, anualmente, à cifra de cem milhões de toneladas. Apesar de esse material poder ser reciclado na sua totalidade, apenas 7% é reaproveitado. Fica, portanto, a impressão de total insensibilidade dos formuladores de políticas públicas, ao colocarem em perigo áreas de beleza cênica, usufruto de todos, com a possibilidade de se transformarem futuramente em depósitos para esse tipo de material. 138 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar O segmento da borracha, e aí se enfatiza a fabricação de pneus, é deveras ameaçador para o meio ambiente. A sua produção em escala mundial é da ordem de dois milhões de unidades por dia, sendo que o descarte das unidades velhas chega a oitocentos milhões ao ano. No Brasil são produzidos quarenta milhões de pneus por ano, mas a metade dessa produção, ou seja, vinte milhões são descartados nesse período. Por fim, nesse mar de mazelas ambientais, vão-se encontrar os lixões – uma área a céu aberto, receptora do lixo sem tratamento – gerando o chorume, um líquido que contamina o solo, o ar e os recursos hídricos. Infelizmente, no Brasil, por falta de legislação específica, quase a totalidade do lixo fica exposto, causando doenças e epidemias, provenientes da contaminação de bichos e insetos como ratos, baratas, mosquitos, moscas etc. O pior é atrair também as pessoas que vivem dos lixões, tornando-as vítimas da má gestão dos resíduos. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), quarenta e cinco mil crianças e adolescentes brasileiros trabalham nessas fétidas áreas, a fim de tirar o sustento de suas famílias. Essa sucinta resenha é suficiente para demonstrar como a má administração de empresas, aliada à ignorância da sociedade para com a destinação correta de resíduos e produtos, vem colocando em risco nosso habitat. Esse é talvez um dos maiores desafios com o qual a humanidade terá que se defrontar. O carreamento inteligente do lixo e a sua gestão, visando à reutilização com geração de riqueza, são a meta a ser atingida. Isso só será alcançado mediante mudanças de paradigmas, principalmente na forma como o homem-gestor passa a olhar ao seu redor e para o seu interior, a fim de se tornar um verdadeiro parceiro dos elementos ambientais nos quais está inserido. Esse é foco da sessão seguinte. A Nova Percepção Uma das afirmações mais sábias, nesta época de globalização, é: “Em tempos de crise surgem as melhores oportunidades”. Para isso, basta o gestor olhar ao seu redor e transcender os anteparos oferecidos pelos cenários vigentes. O autor bíblico em Gênesis, Capítulo 1:1-3 assevera: “No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia. E disse Deus: Haja a luz! E houve luz”. Essa figuração é uma das mais seculares escritas realistas que denota o potencial da criatura humana calcada na inteligência, definitivamente metaforizada pela “luz”. É justamente essa “luz” que incentivará a raça humana a suplantar as dificuldades surgidas ao longo da sua caminhada milenar na terra, removendo todo tipo de óbices, quer físico, quer psicológico. O caótico quadro da destinação dos refugos impõe tudo de melhor da reflexão humana, visando ao equacionamento do problema atual. Por essa razão a Teoria do Caos, profetizada por Edward Lorentz, aplica-se aos fenômenos não lineares, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 139 Antonio Celente Videira nos quais a exponenciação do descarte dos materiais pode realinhar ou reorganizar o veio da desordem. Imprimir medidas amenizadoras, considerando a tecnologia dos materiais no reaproveitamento de produtos tidos como inaproveitáveis, é a contribuição da Teoria do Caos na requalificação de oportunidades para o sustento de materiais considerados desgastados e descontinuados. A desordem mundial do lixo e da própria obsolescência industrial, implicando voracidade no consumo de produtos mais modernos, está culminando em um ponto de mutação que requer mudanças significativas nas variáveis administrativas e tecnológicas. O apelo é para o potencial desse homem que começa a conquistar o espaço sideral. A sua capacidade supersimbólica aliada à sua neuroplasticidade, ou seja, à modificação e regeneração cerebral diante das investigações científicas em todas as áreas do saber, levarão a criatura humana a inovar processos de gestão, graças ao aperfeiçoamento da tecnologia, principalmente da microeletrônica, com o advento dos novos desenhos das redes de telecomunicações. Pensar, projetar, desenvolver e construir é o quaternário da Suprema Luz intrínseca ao homem, no seu diálogo com as inexoráveis provocações contidas no progresso. A conquista científica da raça humana não obterá êxito, se não forem considerados aspectos civilizáveis no tocante ao bom relacionamento. Dentre esses, o mais destacável no mundo empresarial é a confiança. O motivo pelo qual as organizações induzem seus processos, tanto os internos como os externos, considerando os atributos da colaboração e da confiança, é a busca por ganhos globais e integrantes. A isso estão correlacionados os processos da Logística Reversa e a Reciclagem. A inexistência de um sinergismo pró-amigável entre atores de uma cadeia reversa implica em fracasso nos negócios. A Logística Reversa e a Reciclagem podem se tornar mais uma área produtiva, geradora de riquezas e empregos, em vez de um problema insolúvel para os dias atuais. Se a atitude de familiaridade é indispensável entre gestores, no jogo da gestão compartilhada, ela deve se acentuar nos processos administrativos de reaproveitamento de produtos, peças e matérias-primas. Uma das práticas em uso, por uma gestão mais humanizada, é o “Planejamento Colaborativo de Demanda” Collaborative Planning, Forescasting and Replenishment (CPRF), cujo objetivo estabelece atitudes gerenciais motivadoras para programas de cooperação e integração entre empresas. Para Julianelli (2006), Planejamento Colaborativo de Demanda é uma forma diferente de cooperação interdepartamental e entre empresas de uma cadeia de suprimento, por meio de troca intensiva de informações e de mudanças organizacionais, estruturais e tecnológicas, a fim de aumentar a eficiência do processo e das decisões relacionadas ao atendimento da demanda. James Hunter (2004), em seu best-seller “O Monge e o Executivo”, alerta que para existir um negócio saudável e próspero deve haver relacionamentos harmoniosos entre os responsáveis pelas organizações, sendo o ingrediente mais importante a confiança, que, segundo ele, “é a cola que gruda os relacionamentos”, 140 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar portanto, a percepção da boa parceria, com confiança mútua, será o ingrediente que permitirá empresas compromissadas com os fluxos reversos de materiais tornaremse triunfantes nesse novo negócio e, certamente, será erradicado o “monstro” do lixo mundial. A Logística Ecológica A hipótese Gaia é uma das mais recentes e realistas suposições sobre a Terra como um organismo vivo. O seu autor, o químico especializado em atmosfera, James Lovelock, alega que o Planeta é um organismo vivo, auto-organizador e, portanto, sensível aos impactos provenientes da voracidade humana – a busca do desenvolvimento econômico. A obsolescência industrial, propalada pelo Clube de Roma, nos anos 70, é um dos fatores desencadeadores da impactante teoria de Lovelock. A estratégia da Logística Reversa, o mais novo ramo da logística convencional, ameniza essa volúpia irracional por parte da sociedade industrial. A busca constante pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), perpetrada por todos os países, vai confirmar as posições do Clube de Roma. Em condições de crescimento rápido, novas ações e planos de atividades são impostos ao sistema, muito antes de se poderem avaliar devidamente os resultados de velhos planos de atividades e ações. A situação é pior quando o crescimento é exponencial, e o sistema está mudando cada vez mais rapidamente. (MEADOWS et al., 1972). Percebe-se que há uma roda viva – na busca por riqueza e pelo lucro rápido, neutraliza-se a mais sensível visão de gestores, que ficam indiferentes ao rastro de resíduos de todas as origens em um ambiente que se autorregule, mas, sem tempo para reagir à desordem. Barnet e Muller (1974) já alertavam sobre a necessidade de a humanidade descobrir uma escala apropriada para suas instituições políticas e econômicas, senão, correria o risco de ser substituída pelos números ou afogada em seus próprios resíduos. Esses autores profetizavam que haveria de surgir algo dentro do contexto industrial e, em especial, inserido nos processos logísticos, como elemento redutor das ações dilapidadoras da produção. A proposta da Logística Reversa, no ambiente global, é promover a reconciliação do homem com o mundo natural. Essa postura amistosa está nas bases do olhar sábio da destinação inteligente das sobras, bem como o reaproveitamento daquilo que seria dispensado e lançado nos ecossistemas. A especialização e o progresso tecnológico são essenciais ao desenvolvimento dos meios, no entanto, não se pode permitir que determine os objetivos da humanidade (SCHUMACHER, 1977). O esgotamento das riquezas e o lamaçal de impurezas são trilhas da incompetência de uma raça que se atreve a dominar a natureza. A Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 141 Antonio Celente Videira interdisciplinaridade dos saberes converge para um tipo de gestão, cuja proposta é amenizar o desperdício dos bens materiais e aplicá-los adequadamente em prol do crescimento harmonioso e a ordenação do caos. Os números são alarmantes. Na década de 90, o mundo despejou um bilhão de toneladas de lixo e resíduo a cada ano, e a projeção em 2009 é da ordem de três bilhões de toneladas/ ano. Já no início deste milênio e, precisamente em 2008, só o lixo eletrônico parametriza cinquenta milhões de toneladas e apenas 10% são reaproveitados, em consequência da inexistência de uma conscientização do desenvolvimento sustentável. Repensar o tratamento sadio de tais refugos, implementando redes e canais de retorno dos mesmos, visando ao seu reaproveitamento, é um dos desafios deste século. O Conselho de Logística Reversa do Brasil (CLRB), por intermédio do seu diretor, o Professor Paulo Roberto Leite, informa que o “Brasil produz 11 milhões de toneladas de lixo eletrônico, 10 milhões de unidades de computadores, 120 milhões de unidades de celulares, 18 bilhões de garrafas pet, 14 bilhões de latas de alumínio, 80 milhões de lâmpadas, 9 bilhões de embalagens longa vida e 55 milhões de pneus”. A cidade de São Paulo produz dezesseis mil toneladas de lixo doméstico por dia. Esses números são assustadores, ainda mais quando se almeja inserir o país em empreendimentos globais na busca de um mundo limpo e sustentável. A solução são os biodigestores, que darão destinação ao lixo doméstico lançado nos aterros sanitários, espaços geradores de grandes problemas sociais. Países da Europa e Ásia possuem setecentas usinas, número também cabalístico para o mundo. Essas unidades de reciclagem de lixo geram 12.500 megawatts de energia elétrica, o equivalente à Usina de Itaipu. No Brasil, as tentativas para reciclar o bagaço da cana e outros dejetos provenientes da industrialização são diversas. O que não se deve perder de vista é o desenho da malha de canais de retorno ou concentração dos refugos em pontos pré-estabelecidos. A Logística Reversa vem elaborando estratégias competitivas com a finalidade de produzir resultados alvissareiros à sociedade, como o envolvimento de cientistas no projeto de minibiodigestores, e a atração de mão de obra não especializada de catadores, que passam a tirar seu sustento dessa mais nova frente de trabalho. Apesar do baixo potencial de energia elétrica produzida a partir do biodigestor, em relação ao elevado volume de lixo processado, o que se busca, em última instância, é a eliminação de dejetos de toda ordem, transformando um processo unidirecional e entrópico em algo cíclico e reciclável. É a produção da energia limpa, energia essa tão ambicionada nos tempos modernos para a conquista de índices econômicos almejados por diversas nações, sem sujar ou impactar o meio ambiente. O desafio a ser enfrentado pela Logística Reversa será vitorioso se as expertises dos gestores envolvidos forem capazes de multifacetar operações distintas que envolvam o domínio do conhecimento plural e, portanto, restabeleçam o equilíbrio da natureza modificado pelo homem. 142 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar Já o refugo de itens de valor tecnológico agregado sofre outro tipo de tratamento, como por exemplo: válvula, placa-mãe, diodo, chassis, monitor, cárter de motor e tantos outros. Moreira (2005) alega que, com o término da Segunda Guerra Mundial, houve um grande volume de material descartado, como armas danificadas, restos de munição, alimentos, embalagens, roupas velhas etc. A destinação desses itens era o grande desafio. O início dos anos 50, com o pós-industrialismo, foi o marco da era do expurgo de material não deteriorável pelo tempo. Peças e acessórios mecânicos teriam que ser trabalhados ou reprocessados visando ao reaproveitamento em outros equipamentos. Nasce, assim, uma nova concepção para o destino desse tipo de material. Arima e Battaglia (2003) elencam, na fase do pós-consumo, algumas atitudes a serem tomadas em relação ao descarte do material. São elas: mercado de segunda mão, canibalização, reciclagem, remanufatura e ação institucional, incentivando a população e as empresas a doarem seus bens em desuso. O processo reverso, para itens de valor e que serão reaproveitados, conta, atualmente, com a contribuição da tecnologia: coleta e transmissão automática de dados como código de barras, etiquetas inteligentes e radiofrequência que permitem capturar informações sobre o item em processo de retorno, de forma rápida e eficiente. Os ferros-velhos e as sucatas são considerados verdadeiros santuários para técnicos focados em dar sobrevida a equipamentos fora de linha de fabricação. Essa política, além de possibilitar a reutilização de materiais, incrementa um mercado que atende às as classes de menor poder aquisitivo na continuidade da utilização de bens eletrodomésticos. As Forças Armadas sempre deram atenção ao reaproveitamento de seus equipamentos operacionais, quer comprando os remanufaturados, quer canibalizando itens em proveito de outros componentes, quer fazendo trade-in, isto é, disponibilizando o item avariado em troca do recondicionado, pagando a diferença, ou, ainda, vendendo-os a tradicionais sucateiros e obtendo parte dos recursos financeiros para a compra de equipamentos mais modernos. Inserida na Logística Militar brasileira, dentre sete funções, existe uma denominada Salvamento. Segundo o Manual de Logística para Operações Combinadas (MD 34-M01), aprovado pela Portaria nº 453, de 19 de julho de 2001, do Ministério da Defesa; e o Manual de Logística da Marinha do Brasil (EMA 400-Rev2), de 14 de fevereiro de 2003, entende-se por Função Logística Salvamento “o conjunto de atividades que são executadas visando à salvaguarda e ao resgate de recursos materiais, suas cargas ou itens específicos”. A Função Logística Salvamento é análoga à Logística Reversa do Mundo Empresarial, já que prevê proteger ou resguardar o material de uma adversidade. São consideradas atividades da Função Logística Salvamento o combate a incêndios, o controle de avarias, o controle de danos, a remoção, o reboque, o desencalhe de meios e o resgate de recursos materiais acidentados. Percebe-se, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 143 Antonio Celente Videira assim, que são ações na busca da preservação do material, procurando aproveitá-lo ao máximo, não lhe dando um tratamento de finalização em suas funções, mas, sim, uma sobrevida no serviço para o qual foi projetado. Na Força Aérea Americana (USAF) as aeronaves, em estocagem no deserto de Tucson, no Arizona, são visitadas por representantes de governo de várias partes do mundo, a fim de serem reutilizadas ou aproveitadas partes de suas seções, como asas e trens de pouso, disponibilizando-as em outras aeronaves da mesma linha de fabricação. Todo um reaproveitamento de peças em decorrência de processos decisórios amplos, tendo atividades logísticas por trás, torna-se global, na medida em que as transações no mercado de usados envolvem países diversos. No pós-fornecimento, Arima e Battaglia (2003) enfatizam que a imagem do produto pode ser ameaçada, em consequência do imperativo retorno do material por causa de erros no pedido, contaminação, excesso de estoque, linha de produção extinta, defeito e necessidade de manutenção corretiva. Esta última, principalmente quando está na garantia, não chega a ir para as oficinas autorizadas do fabricante. Este delega à própria transportadora, como por exemplo, a United Parcel Service (UPS), que dispõe de equipes de funcionários devidamente treinados pelo próprio fabricante para fazer pequenos reparos ou corrigir defeitos, na própria transportadora, eliminando, dessa forma, desnecessárias idas e vindas do item aos reparadores. Friedman (2005) denominou esse processo de insourcing (internalização), talvez um dos pertinentes à Logística Reversa direcionado à manutenção da imagem da empresa, diante de falhas e mau funcionamento de equipamentos novos e na garantia. Arima e Battaglia (2003) concluem o entendimento da Logística Reversa com as tarefas de processar a mercadoria retornada em razão de dano, sazonalidade, reposição, recall ou excesso de inventário; reciclar material de embalagem e reusar contêineres; recondicionar, remanufaturar e reformar produtos; modernizar equipamentos obsoletos; tratar materiais perigosos e, por fim, permitir a recuperação de ativos. Para encerrar, aduz-se que, diante do clima de preocupação ambiental disperso na sociedade planetária, a Logística hoje, como uma atividade global, tem como principal finalidade o desenvolvimento econômico sustentável e inteligente. A Logística Ecológica, denominação dada à Logística Reversa, é a conduta adequada praticada por empresas e organizações militares inseridas no contexto da responsabilidade social e, portanto, compromissadas com um progresso humano, buscando, em última análise, o bem comum. Soluções e Mudança de Atitude Uma luz no final do túnel começa a ser vislumbrada, diante da transformação do comportamentos de empresários, de militares, enfim, da própria sociedade. 144 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar Muito terá ainda que se avançar, visando a alcançar uma postura comedida para com o meio ambiente. Os lixões e os aterros controlados vão dando espaço ao aterro sanitário, onde o resíduo sólido é seletivo, buscando seu reaproveitamento em outros processos de manufatura. Nesse espaço já impera um tratamento específico, pela alocação do lixo em camadas, com coberturas de materiais adequados à impermeabilidade da água da chuva. Os pneus descartados são devolvidos em pontos instalados geralmente em postos de combustíveis, a partir de campanha educativa divulgada pelos meios de comunicação. A partir daí, a borracha picotada, proveniente de pneus e sucatas de câmaras de ar, vai para empresas recicladoras, com o intuito de ser aproveitada em asfalto ou na própria confecção de novos pneus. Já a garrafa plástica, tão comum nos aterros, começa a ser canalizada para retratamento, em que o pet obtido na coleta é aplicado na indústria, transformandose em embalagem ou mesmo em garrafa num segundo nível de industrialização. As latinhas de cerveja e de refrigerante, agora fabricadas em alumínio, aquecem o mercado coletor. Atualmente, as latas de alumínio representam 17% do imenso mercado de bebidas no país. Hoje, são 14 bilhões de unidades anuais produzidas no Brasil, cujo descarte flui por intermédio de uma rede de milhares de catadores, cooperativados ou não. É uma verdadeira teia de pessoas e equipamentos reciclando o material, resguardando, assim, o meio ambiente das sobras provenientes do metal utilizado. O resíduo de construção e demolição (RCD), originário da construção civil, representa 60% dos resíduos sólidos urbanos. As unidades de reciclagem, públicas ou privadas, transformam esse entulho em areia, pedrisco e pedra 1, tudo aproveitado na pavimentação de tráfego de veículos, sendo regulamentado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 15115. Os óleos comestíveis e, em especial, o de fritura, começam a ser reciclados pelo processo físico-químico da transesterificação por rota metílica e catálise básica para a fabricação de sabões, massas de vidraceiro, diversos tipos de rações de animais e biodiesel. Essa iniciativa vai reduzir, de imediato, o despejo de produtos nos córregos e lagos, salvaguardando assim a vida nos biomas aquáticos. Cabe ressaltar que as unidades militares da Marinha do Brasil, sediadas no Rio de Janeiro, vêm dando exemplo ímpar na coleta de óleo de fritura das cozinhas dos ranchos, quando são processados em usina de biodiesel e depois misturados com o diesel mineral (Murta , 2009). Após a produção do biodiesel misturado, o mesmo é escoado e armazenado em depósitos para abastecer a frota de veículos terrestres das unidades militares. Todo esse elenco de medidas saneadoras, envolvendo Reciclagem e Logística Reversa, vai contar com catadores de materiais diversos, construindo elevado efetivo de empregados nesse ramo de atividade funcional. O Brasil possui hoje aproximadamente 800 mil catadores cooperativados, desconsiderando aqueles individuais ou autônomos. A oportunidade propicia postos de serviço cujos salários Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 145 Antonio Celente Videira impactam positivamente outros milhares de pessoas, distribuídas entre parentes e familiares. Logo, a dimensão da exploração do lixo e do descarte originário do pós-consumo ou do pós-venda, gerenciado com inteligência, está transformando problemas em soluções, nos fluxos dos produtos e materiais demandados por uma sociedade cada vez mais consumista. Uma nova atitude no trato de refugos e rejeitos deve-se ao esclarecimento sobre se tirar vantagens desse tipo de prática. A informação será insumo para uma substancial transformação do indivíduo e a mídia é primordial nesse contexto. À medida que a mensagem em prol do manejo adequado dos refugos for veiculada nos diversos canais informativos, por exemplo, em produções televisivas, radiofônicas ou mesmo na imprensa escrita, como no caso dos periódicos especializados, destacando-se a revista “Reciclagem Moderna”, uma revolução vai acontecer nos corações e nas mentes das pessoas. Na semana de 03 a 08 de maio de 2010, no Jornal Nacional, exibido no horário nobre da Rede Globo, focou-se diariamente, para alguns milhões de telespectadores, um método ou processo saneador do lixo ou produto que entrou no fluxo reverso. Essa iniciativa foi exitosa, pois influenciou na aceleração da mudança de atitude da sociedade em relação à reciclagem. Painéis e mesas-redondas promovidos por federações de indústrias e associações de comércio, ou mesmo por universidades, têm favorecido na busca do novo perfil do cidadão em via de sedimentação do sentimento ecológico na competitividade produtiva. O Conselho de Logística Reversa do Brasil, idealizado pelo professor Paulo Roberto Leite, vem revolucionando as práticas empresariais nesse sentido. Indubitavelmente, o CLRB é um ator relevante no cenário da melhor destinação dos materiais descartados. Concursos de redação e submissão de artigos, incentivados por simpósios, têm inclinado as novas gerações a refletirem, apresentando soluções inovadoras na busca de medidas efetivas relativas à Logística Reversa. O Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia (SEGET), patrocinado, anualmente, pela Associação Educacional Dom Bosco, na cidade de Resende, é um exemplo de exercício reflexivo para professores e universitários exporem suas pesquisas acadêmicas na área da Gestão Social e Ambiental. Inúmeros títulos sobre Reciclagem e canais reversos são apresentados e debatidos durante três dias, denotando elevado nível, produto de brilhante inteligência dos jovens oriundos de diversos centros acadêmicos do País. Agora, o passo seguinte é incluir o assunto nas grades curriculares dos cursos de Administração, Logística e Engenharia, tanto em nível de graduação, como em pósgraduação. A Escola Superior de Guerra (ESG), polo difusor do Pensamento Estratégico Nacional, inicia sua contribuição na solidificação dos conceitos do desenvolvimento sustentável. Em um de seus cursos, o de Logística e Mobilização Nacional (CLMN), a versão de 2010 já debateu o assunto, fazendo um confronto entre a Função Logística Salvamento e a Logística Reversa. O objetivo foi e é provocar nos alunos uma ampla 146 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 Logística Reversa e Reciclagem: A Dimensão da Nova Gestão Empresarial e Militar discussão sobre o reaproveitamento dos materiais aplicados no Serviço Público, quando em desuso, visando a reduzir custos e a otimizar orçamentos anuais. Por possuírem uma sólida cultura sobre Logística Militar, as Forças Armadas podem servir de âncora, arrastando outros órgãos governamentais para uma administração de bens materiais, comprometida com o comedimento de gastos, adotando a gestão cíclica, sempre que possível, para os consumos inevitáveis e necessários. O revigoramento de uma nova tendência comportamental, envolvendo o binômio Administração e Sustentabilidade como consequência do processo educativo incorrerá, automaticamente, no aperfeiçoamento da regulamentação das parcerias entre os atores envolvidos. Isso implica no comprometimento do fornecedor ou fabricante em estabelecer linhas inversas para o recolhimento dos produtos a serem substituídos, mediante pagamento de uma taxa de retorno pelo consumidor, no ato da compra. Essa regulamentação é indispensável em uma sociedade que propugna pela ordem, diante do mais novo evento do descarte de itens, cuja praxe era e, infelizmente, ainda é revestida por desordem e não regulamentada. O amparo legal, sob a força do Direito Comercial, forjará um corpo de relacionamento indispensável à convivência harmônica entre gestão e meio ambiente, sobre as bases dos processos da Logística Reversa e da Reciclagem. Ensejando essas considerações, cabe ainda dizer que na escalada sobre a face da terra, ao deixar a escura caverna do Pleistoceno até chegar à Estação Espacial Internacional, adentrando no negrume do cosmos, contrastando-se com o reluzir das estrelas, o homem que na Gênese Bíblica foi acometido pelo Sopro da Vida, apossou-se da luz, traduzida como inteligência. Esse potencial que abriga dentro de si o fará senhor do Universo, manuseando, com sabedoria, os óbices e as adversidades oriundos das implacáveis forças naturais. Pelo contexto de tudo que foi abordado, esse homem dominará o desregramento provocador do lixo, atenuando a prática do uso e da sua destinação final, para preservar, assim, o paraíso, missão para a qual foi criado. São, portanto, iniciativas de empresários e dos profissionais de educação com visão prospectiva, que o alvorecer do Novo Mundo resplandecerá, com a aplicação efetiva dos processos de gestão da Logística Reversa e da Reciclagem dos materiais. Referências ALVARENGA, Tadeu. A Força do Líder Espiritual. Disponível em: <http://www.rh.com. br>, Acesso em: 18 ago. 2007. ARIMA, Seiso; BATTAGLIA, André. “Logística reversa – Da Terra para a Terra” in Tecnologística, São Paulo, p. 60-65; 70-76; 134-141, abr./maio/jun. 2003. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 134-149, jan./jun. 2011 147 Antonio Celente Videira BARNET, Richard J.; MÜLLER, Ronald. Poder global: a força incontrolável das multinacionais. Rio de Janeiro: Record, 1974. 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Resumo O presente trabalho apresenta os Direitos Sociais, Civis e Humanos de uma perspectiva global para, em seguida, enfocar o assunto dando ênfase à evolução da Constituição brasileira, a partir de experiência na Defensoria Pública do Estado do Pará, Brasil – órgão público que tem uma presença significativa na defesa dos Direitos acima assinalados, numa região marcada por conflitos de toda sorte – e dos fundamentos legais proporcionados por aquela Carta Magna no sentido de prover assistência jurídica aos desassistidos. Muito embora o trabalho tenha por base, até certo ponto, o conhecimento científico, grande parte dele se calca na experiência da autora, em particular na experiência de campo. No começo de sua vida profissional, foi designada para uma unidade na periferia de Belém, na pequena cidade de Benevides, onde era, e de certa forma ainda é, difícil um cidadão reivindicar seus direitos. O instituto da Defensoria Pública está presentemente disseminado pelo Brasil. A Constituição de 1988 garante, em certa medida, uma rede de proteção aos desamparados. No momento, é difícil mensurar o progresso nesse campo, apesar de se dispor de ferramentas legais mais eficientes. Nosso País é tão complexo e as disparidades regionais tão grandes, de sorte que podemos afirmar que ainda há muito trabalho a fazer. Mas alguns avanços foram conquistados. O estudo em questão aborda a Assistência Jurídica, as Evoluções Constitucionais, o Acesso à Justiça e o Surgimento Democrático sob a ótica da Defensoria Pública. Discorre sobre as questões que envolvem o Defensor Público e o Advogado, bem como mostra, de forma inequívoca, o importante papel do mediador na sociedade. Pretende, ainda, propor Políticas e Estratégias para divulgação e efetivação dos Direitos Sociais. Palavras Chave: Direitos Sociais. Direitos Humanos. Constituição. Defensoria Pública. Cidadão. 150 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais Abstract This paper presents the Social, Civil and Human Rights of a global perspective, then focus on the subject with emphasis on the evolution of the Brazilian Constitution, from the point of view of an experience as Public Defender of the State of Pará, Brazil – a public agency that has significant presence in the defense of the rights noted above in this region marked by conflicts of all sorts – and legal grounds provided by this Constitution in order to provide legal assistance to underserved. Although the work is based to some extent on scientific knowledge, a great part of it shows the author’s personal experience, specifically in the field. At the beginning of her professional life, her office was in the outskirts of Belém, in the small town of Benevides, where it was and somehow still is, difficult for a citizen to avail his social condition and claim his Social and Human Rights. The institution Public Defender’s Office is widespread in Brazil nowadays. The 1988 Constitution guaranteed, up to a certain point, a net of protection to the helpless. To this point, it is difficult to measure the progress in this field, despite the best legal tools. Our country is so complex and there are so many regional differences, that we can say we have much work to do. But some improvements have been achieved. The present text is about Legal Assistance, Constitutional Developments and Access to Justice from the Public Defender’s Office standpoint. Although it explains some questions about Public Defender and Private Lawyer, and shows with indubitable way the important function of the conciliator in the society. It intends to propose policies and strategies to spread and consolidate the Social Rights. Keywords: Social Rights. Humans Rights. Constitution. Public Defender’s Office. Citizen. Introdução O presente texto aborda a evolução dos Direitos Sociais, bem como traça alguns comentários sobre a sua aplicação no Estado brasileiro. Pretende-se, também, analisar o surgimento da Assistência Judiciária, do acesso à Justiça e da Defensoria Pública, esta entendida como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, cuja dimensão ultrapassa o positivismo jurídico, vindo a fortalecer o bem comum. O Brasil, a partir do início do século XX, seguindo tendência dos países mais avançados na questão dos Direitos Sociais, também começou a se preocupar com o assunto, tornando-o sinônimo de direito das maiorias marginalizadas e pobres, sob o nome de Direitos do Homem e do Cidadão. Vale lembrar que essas influências doutrinárias e sociais já apareciam em nossos textos constitucionais, imperiais e republicanos. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 151 Norma Maria dos Santos Borges A Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 elenca, em seu Título II, os Direitos e Garantias Fundamentais. Mais especificamente no Capítulo I desse mesmo título, encontramos os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Tratase de um marco no avanço das garantias e direitos individuais do cidadão, e na responsabilidade do Estado pela execução de políticas e serviços que resultem numa sociedade mais justa. Também constitui uma característica da nova ordem constitucional a ampla disponibilização do Judiciário para a solução de conflitos, muitos deles decorrentes da inobservância dos direitos e garantias individuais trazidos pela nova Lei Fundamental, que estabeleceu como alicerces do nosso Estado Democrático e de Direito, não somente a dignidade da pessoa humana, como também a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Para a concretização desse ideal foram alçados à categoria de Direitos Sociais aqueles relacionados à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e à assistência aos desamparados; conforme o artigo 6o da Constituição Federal. Na pesquisa realizada, observa-se que a aplicação desses direitos é feita pela Assistência Judiciária individualizada, tanto no âmbito judicial quanto no extrajudicial. A Constituição de 1988, ao consagrá-los, criou a Defensoria Pública para garantir o acesso à Justiça dos hipossuficientes. Entende-se que tudo se resume em sua luta pela sobrevivência (autodefesa), tão remota quanto a história da raça humana. O exercício da defesa, ou o exercício de seu direito, tem sua origem a partir da existência dos primeiros códigos. É na Antiguidade que se tem notícia da prática da defesa de maior notoriedade: a de Sócrates perante o Tribunal de Atenas. Segundo o relato de Platão, em “Apologia de Sócrates”, aquele filósofo foi condenado à morte em processo decorrente de uma queixa apresentada por Meletos, Anitis e Licon, que o acusavam do crime de não admitir os deuses reconhecidos pelo Estado e de cultuar novas divindades, além do grave delito de corromper a mocidade. Nas palavras de alguns autores, o relato de autodefesa do filósofo se coloca entre as mais belas páginas de eloquência legadas à posteridade. Sócrates disse: Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E agora eu, preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela mais veloz: a maldade. Assim, eu me vejo condenado à morte por vós; vós, condenados de verdade, criminosos de improbidade e de injustiça. Eu dentro da minha pena, vós dentro da vossa. E talvez essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que cada qual foi tratado adequadamente.1 1 Apologia de Sócrates apud GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro – Princípios Institucionais da Defensoria Pública, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ltda, 2007. 152 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais A Assistência Judiciária Origem A assistência aos desamparados remonta ao Estado Liberal burguês. A classe economicamente dominante, até hoje mantida, impõe a preservação de seus direitos e, ao mesmo tempo, procura assegurar, em sede constitucional, a garantia de igualdade de todos perante a lei. Para manter o equilíbrio entre as forças dominantes, “os donos do poder” e os oprimidos, é que surge a Assistência Judiciária. Essa expressão, para designar o instituto jurídico, apareceu em 22 de janeiro de 1851, com a instituição do “Code de l’Assistance Judiciaire”. No Brasil, esse sistema teve suas variações tanto no âmbito constitucional quanto na legislação ordinária. Em seguida, analisam-se as mudanças que aconteceram na histórica política do nosso País e a evolução da concepção de cidadania. Evolução da Assistência Judiciária no Brasil Para alguns autores, a trajetória da Assistência Judiciária adotada no Brasil, compreende três momentos: O primeiro que abrange sua origem nas Ordenações Filipinas, que vigoraram até 1916, dispunha, em seu Livro III, Título 84, parágrafo 10: “as causas cíveis e criminais dos miseráveis e dos indefesos em juízo seriam patrocinadas, gratuitamente, por advogados particulares”. Em 1930, o 1º Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil impôs aos advogados inscritos a prestação da Assistência Judiciária gratuita às pessoas que não tinham recursos para pagar os honorários advocatícios. No Brasil, essa assistência ganhou o sentido de garantia constitucional com o advento da Constituição de 1934, art. 113, nº 32, nos seguintes termos: “a União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais, assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”. Constitucionalmente, foi reconhecida a prestação desse serviço como dever do Estado, que seria realizado por advogados servidores públicos. Na Constituição de 1937, esses direitos e garantia individuais foram retirados do texto constitucional. Por sua vez, a Constituição de 1946 consagra-os em seu art. 141, parágrafo 35: “o poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá Assistência Judiciária aos necessitados”. Em 1950, foi promulgada a Lei 1.060, que regulamentou pela primeira vez a Assistência Judiciária no Brasil. Esse diploma legal, envolvendo apenas os atos do processo, apresentou as seguintes características: instituiu-a e a organizou, ainda com o nome de judiciária; definiu os princípios que acompanham sua instalação e seu funcionamento até hoje – como os conceitos de beneficiário Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 153 Norma Maria dos Santos Borges e necessitado e os limites desse serviço; a assistência seria prestada de forma individualizada aos necessitados, brasileiros ou estrangeiros, que residissem no país; e o campo de ação abrangeria a Justiça penal, Civil, Militar ou do Trabalho. Para melhor compreensão, a lei 1060/50, que finaliza o primeiro momento em seu artigo 2º, § único, assim definiu o termo “necessitado”: “Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários do advogado, sem prejuízo próprio ou da família”. O segundo momento se estende de 1950 até a Constituição Federal de 1988. Na Constituição de 1967 manteve-se esse direito – art. 150, parágrafo 32. A Emenda Constitucional de 1969, art. 153, parágrafo 32, reza: “será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei”. Na Constituição de 1988, essa regra se aprimora, tornando a atual prescrição mais ampla, da garantia de Assistência Judiciária, integral e gratuita, no art. 5º, inciso LXXIV, onde se lê: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Nesse texto constitucional, encontramos uma substancial ampliação da Assistência Judiciária, quando se observa que o Legislador inova ao substituir o adjetivo qualificador da palavra assistência, de judiciária para jurídica. O campo de atuação já não delimita em função do atributo “judiciário”, mas passa a compreender tudo o que seja “jurídico”.2 Além disso, a palavra assistência ainda foi reforçada pelo acréscimo da palavra “integral”, importando, assim, em notável ampliação do universo que se quer cobrir. A partir desse momento, os necessitados, ou os que comprovarem insuficiência de recursos, ou, como queiram, os hipossuficientes, passaram a fazer jus à dispensa de pagamento e à prestação de serviços, não apenas na esfera do judiciário, mas em todo o campo dos atos jurídicos como: a instauração e movimentação de processos administrativos perante quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros de natureza jurídica praticados extrajudicialmente; e a prestação de serviços de consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos. O terceiro momento, caracterizado pelas mudanças da Constituição Federal de 1988, permite que se observe o seguinte: a Assistência Jurídica no Brasil foi atingindo relevância ao longo de sua história, culminando com a organização jurídica da Defensoria sob a égide da lei complementar 80, de 12 de janeiro de 1994 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública. 2 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo. Revista de processo. São Paulo. v. 17, n 67, p. 124-134 jul./set., 1992. 154 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais Acesso à Justiça Surgimento no Estado Democrático Cappelletti e Garth produziram interessante ensaio para o “Projeto de Florença”, a fim de encontrar uma nova e compreensiva abordagem ao acesso à “ordem jurídica justa”, cuja nomenclatura passaram a adotar. Nesse estudo, os autores identificaram três grandes ondas renovatórias no sentido de solucionar a problemática de acesso à ordem jurídica justa. A primeira, com início em 1965, concentrou-se na Assistência Judiciária; a segunda tratou das reformas com o objetivo de proporcionar representação jurídica para os interesses difusos – especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e a terceira, focada no acesso à justiça, baseada nas experiências anteriores, porém indo mais além, visando a atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo. No Brasil, o direito à Justiça foi consolidado na Constituição de 1988, com a finalidade precípua de instituir um Estado Democrático, destinado não só a garantir o exercício dos direitos, como também a eleger a Justiça para assegurar o controle jurisdicional. O princípio da garantia da via judiciária consta nas Constituições brasileiras, visto que a Justiça é entendida como um dos valores supremos de uma sociedade que se pretende fraterna e pluralista. O acesso à Justiça, entendido anteriormente como acesso aos Tribunais, já não atende mais aos anseios de pessoas aflitas na busca de soluções para os seus conflitos. Hoje, deseja-se mais: a efetivação da prestação desse direito, que deve ser compreendido em nossos dias como fundamental e formal, preconizado em nossa Constituição de 1988, em contraposição aos óbices postos à sua consecução, compreendendo o desconhecimento do direito; a pobreza; a morosidade processual; e a inadequação da resposta judicial para certos tipos de conflito. Os Óbices O desconhecimento do direito Para superar há de se pensar em promover primeiramente o conhecimento, aqui entendido como direito a ter direitos. Desconhecer seus direitos deixa o cidadão completamente alienado e vulnerável para garantir sua efetivação perante os tribunais. Não é raro encontrarmos no dia a dia dos tribunais pessoas que se sintam constrangidas pelo fato de estarem em Juízo. Por uma perversão cultural, reivindicá-los passou a ser a exceção. Informar-se sobre as leis e o limite de seus direitos é fundamental. A proliferação de demandas judiciais, em sua grande maioria, poderia ser evitada, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 155 Norma Maria dos Santos Borges bastando que o cidadão soubesse como agir em sociedade. Ao desconhecer a lei e suas limitações, como poderão usufruir da garantia de legitimá-los? A proclamação dos direitos constitucionais, inclusive o acesso à Justiça, não pode ser entendida como mera retórica, pois, como é de domínio público, uma sociedade capaz de resolver seus conflitos é uma sociedade pacífica. Atualmente, ao se encaminhar os cidadãos para os tribunais, há, por vezes, uma falsa tranquilidade de consciência que ao final do percurso haverá Justiça. Não se esquecendo de que esses cidadãos, para fazerem valer os seus direitos, mesmo sendo parte prejudicada, deverão arcar com excessivo dispêndio a fim de alcançar a solução de seu conflito, muitas das vezes atingindo seu próprio sustento. O jurista Joaquim Canuto Mendes de Almeida já nos fazia a seguinte advertência: “não há direito de ação e sim ônus de ação”. Em lugar da orgulhosa proclamação da vítima: “Vou procurar os meus direitos”, vê-se a ironia do infrator: “Vá procurar por justiça”. E, com essa atitude, presenciamos a sobrecarga do Poder Judiciário. A população aumenta sem informação. Consequentemente, os conflitos também aumentam, enquanto o contingente de magistrados e funcionários fica sufocado com a demanda, originando o deturpado entendimento de que a máquina judiciária é pesada e lenta. Estabelece-se, assim, um paradoxo: quanto melhor sucedido o Judiciário, pior o acesso, em razão da demanda que ele atrai. Hoje, encara-se esse conhecimento como um direito – o direito aos direitos. Como torná-lo conhecido? Para resolver esse impasse consideram-se dois segmentos a serem examinados: um institucional e outro pessoal. No institucional os Tribunais e Associações de Magistrado, o Ministério Público e a Defensoria Pública já desempenham relevante papel com a publicação de cartilhas da cidadania, as quais contêm elencados os direitos que consubstanciam o direito a ter direitos. Como obter Assistência Judiciária, pedir alimentos, regularizar a paternidade, a separação judicial, o divórcio e a propriedade; bem como retificar o nome e abrir inventário, dentre muitas outras possibilidades. Não obstante tal empenho tem-se a plena convicção de que muito ainda terá de ser feito. No pessoal encontram-se a figura do Juiz, do Promotor de Justiça, do Defensor Público e dos operadores de direito, os quais também têm condições de disseminar o conhecimento do direito em sua lide diária. A oralidade dos processos e a simplificação da linguagem constituem marcos para a transformação social por meio da judicialização das relações humanas. A pobreza A pobreza não está afeta apenas aos países menos desenvolvidos, considerando-se que nos denominados desenvolvidos encontramos a pobreza associada aos pobres sem casa e aos subúrbios pobres. Podemos classificá-la como 156 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais carência material, falta de recursos econômicos, carência social – entendendo carência material como a de necessidade diária, compreendendo alimentação, vestiário, falta de moradia e cuidados com a saúde; falta de recursos econômicos, os rendimentos, a falta de emprego ou a riqueza –, notadamente a exclusão social, a incapacidade de pertencer a uma camada da sociedade, em razão da falta de educação e de informação. Suas causas e sua erradicação são altamente complexas, envolvendo fatores estruturais que impedem o crescimento econômico, como a falta de proteção aos Direitos Sociais. A morosidade processual Muito se fala de lentidão processual para obtenção de sentença definitiva e sua imediata execução. Costuma-se dizer que justiça tardia é justiça nenhuma. Esse pensamento remete ao Poder Judiciário, que, assim, apresenta-se como o grande vilão. O leal reconhecimento faz admitir que a primeira impressão sobre a lentidão processual do Poder Judiciário é completamente equivocada. De um modo geral, observa-se que se anda em círculo, tudo se resumindo no fator educação. Precisa-se educar, educar e educar. Ao negligenciar a educação, o País certamente não contribui para a nova consciência sociopolítica e econômica que acompanha os passos da modernidade. Sem compreensão dos direitos, fica fácil deixar de cumpri-los. O próprio Estado aparece como estimulador de demandas repetitivas. O constituinte de 1988 efetuou uma série de promessas de igualdade social, de acesso à saúde, de proteção à família e ao adolescente, que o Estado-Administração teima em postergar. Contando com dois fatores – a acomodação e a morosidade da Justiça –, o administrador adia o cumprimento de suas obrigações constitucionais, esperando que a “fatura” somente seja descontada pelo governo posterior, deixando de pensar no Estado brasileiro, que é permanente, para enxergar apenas o horizonte de quatro anos. Por acomodação entenda-se a expectativa de todos os cidadãos prejudicados por ações ou omissões do Estado, dos quais apenas uma ínfima parte vem a juízo reclamar. Assim, quando defere aumento disfarçado de gratificação especial para funcionários ativos, esquecendo-se dos inativos, o Estado confia que a maioria não irá a juízo reivindicar a paridade; quando nega remédios de uso continuado aos doentes crônicos, o Estado espera que apenas uma minoria irá servir-se da tutela jurisdicional e garantir vida digna. O Estado, assim, provoca e conta com a morosidade da Justiça para assegurar que o que é devido será pago pela administração seguinte. Cria-se, portanto, o sistema de pagamento por precatório, instituto existente somente em nosso Direito. O que foi inventado para garantir a lisura da ordem de pagamento constitui, hoje, mero instrumento de protelação. Usando o paradigma do Estado, os grandes Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 157 Norma Maria dos Santos Borges fornecedores de serviço também estimulam e se aproveitam das demandas em massa para garantir o descumprimento de seus deveres legais. A inadequação da resposta judicial para certos tipos de conflito A Justiça é justa? O Juiz deve enfrentar o litígio aplicando a regra de direito apropriada. A Justiça brasileira foi cunhada sobre a regra da “Dura lex, sed lex”. Ora, lei justa não é dura, é justa. Busca de justiça mais harmoniosa – cláusulas gerais, Código de Defesa do Consumidor (CDC) etc. Ao juiz é entregue um caderno processual no qual compreende as provas e descreve o litígio jurídico. É a parte visível do iceberg. Ao juiz não é lícito conhecer a parte invisível do conflito pessoal, alimentado pelo rancor, pelo mal entendido, e pelo não dito. Resolver o problema, via de regra, não traz resposta satisfatória aos litigantes, mas, sim, faz nascerem novos litígios jurídicos com base no mesmo litígio humano, o que faz lembrar a expressão “vitória de Pirro”. Pirro, rei de Epiro, passou à historia como um notável general da Antiguidade, ao vencer o poderoso Exército romano na batalha de Ausculum, em 279 A.C. Contudo, esse triunfo militar causou-lhe tão elevadas perdas que, segundo a tradição, teria dito: “Mais outra vitória como esta e estou perdido”. Nascia daí a expressão “vitória de Pirro”, tão cara aos nossos juristas. Disso, resulta uma insatisfação que deve encaminhar-se não para o conformismo, mas, sim, para soluções simples – o processo tem de ser meramente instrumental e simplificado. Defensoria Pública Origem A Defensoria Pública firmou-se como instituição essencial do Estado de Direito a partir da proclamação da Constituição de 1988, que, em seu art. 134 diz: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”, na forma do art. 5º LXXIV que diz: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Historicamente, tem sua origem na Assistência Judiciária do Estado liberalburguês, até hoje mantido, visando a assegurar constitucionalmente a garantia de igualdade perante a lei. Desse modo, para neutralizar os conflitos havidos entre as classes sociais, o Estado materializa essa ação por seu intermédio, no sentido de promover a postulação e a defesa dos interesses da classe economicamente oprimida, incluindo nessa categoria a classe média, devido à crise que atravessa o País. Após 1988, com a consolidação da instituição pública na defesa individual dos cidadãos, em 15 de janeiro de 2007, a Lei nº 1.448 alterou o art. 5º da Lei nº. 158 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais 7.347, de 26/07/1985, que disciplina a ação civil pública e inclui a Defensoria Pública como legitimada para propor a ação principal e a ação cautelar. Seu atuar está ainda previsto no artigo 4º, inciso VII da Lei Complementar nº 80/94, e sua finalidade é a libertação de presos, adotando medidas como livramento condicional, comutação, remissão ou progressão de regime, tudo com a finalidade de diminuir a população carcerária. Assim, a Defensoria Pública atende aos interesses individuais e coletivos de seus assistidos, exercendo atividade essencial para a consolidação do Estado Democrático de Direito, primordialmente com os Magistrados, no tocante à garantia de defesa preconizada pela Constituição (art. 5º, LV), quando estabelecida a relação processual civil, penal e administrativa, em estrito cumprimento ao princípio do contraditório mencionado anteriormente. Observa-se que a Defensoria Pública postula e defende seus assistidos, patrocinando interesses de determinada classe social, solucionando conflitos de grande repercussão social, justamente para permitir o acesso irrestrito à Justiça, sem distinção de qualquer natureza, corroborando o princípio da igualdade de todos perante a lei, sustentáculo da democracia, dos direitos individuais e do progresso social. A par dessas adversidades, essa Instituição vem impondo respeito e dignidade, com merecido destaque internacional por intermédio de seus Defensores Públicos, a ponto de ser indicada como modelo-padrão para outros países. A Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional A Defensoria como órgão destinado pelo Estado ao cumprimento de seu dever constitucional de prestar assistência jurídica integral ao cidadão, que não tem condições financeiras de pagar despesas de postulações e/ou despesas judiciais e extrajudiciais, ou mesmo de aconselhamentos jurídicos no âmbito da Segurança Pública e no contexto de Segurança Nacional, cumpre papel fundamental na condução de busca de soluções de Justiça para os menos favorecidos – que, no caso do Brasil, constituem enormes segmentos populacionais – amenizando e solucionando conflitos de toda a ordem: família, cível, criminal e fazenda pública, objetivando, assim, a paz social e o bem comum para a população menos privilegiada, social e economicamente. Na região amazônica, onde é acentuada a carência de políticas sociais e econômicas justas, destacam-se os conflitos ligados à propriedade, tanto na área urbana como na rural. Com isso, os conflitos de limites e posses se avultaram instavelmente, maculando profundamente a ordem social da região. Nesse contexto, sendo o Estado de Direito reputado como o único no sentido constitucional a garantir verdadeiramente os direitos do cidadão, dele deriva o papel a ser desempenhado pela Defensoria Pública, permitindo acesso à Justiça ao menos favorecidos, social e economicamente. Assim, cumpre-se seu papel Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 159 Norma Maria dos Santos Borges constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito. Ao assegurar ao assistido Assistência Judiciária integral e gratuita está caminhando no sentido de fazer parte de um mundo mais democrático e homogêneo, visando a amenizar as desigualdades socioeconômicas. A Constituição de 1988, ao assegurar o acesso à Justiça aos hipossuficientes como seguimento do exercício da cidadania, está promovendo o bem-estar social, colaborando de maneira efetiva para a Segurança Nacional, garantindo a igualdade substancial entre todos os cidadãos ao instrumentalizar o exercício de diversos direitos e garantias individuais, representando-os nos Poderes constituídos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 70 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, reclamando a urgente adoção de Políticas Públicas que visem a solucionar esse lamentável quadro social3. Dentre essas indispensáveis medidas está a efetiva instalação das Defensorias Públicas nos Estados que ainda não atenderam à imposição constitucional, bem como o fortalecimento daquelas já existentes. Como se observa, nosso País é o único que deu tratamento constitucional ao direito de acesso à Justiça e à Defensoria Pública aos hipossuficientes de recursos, com sua missão constitucional de garantir os princípios constitucionais de acesso à Justiça e igualdade entre as partes, e o direito à efetivação de direitos e liberdades fundamentais (o direito de ter direitos), desponta no cenário nacional e internacional como uma das mais relevantes instituições públicas, essencialmente comprometida com a democracia, a igualdade e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. A Efetivação dos Direitos Sociais Voltados para o Bem Comum Numa leitura atenta do artigo 3º da Constituição de 1988, vimos que ela confere ao Estado brasileiro o objetivo fundamental de promoção da Justiça Social. O inciso III não poderia ser mais contundente: ”[...] reduzir as desigualdades sociais e regionais”. A preocupação com esse tema nos tempos modernos refletiu-se em seu tratamento explícito em nossa Carta de 88, dando-lhe um caráter contemporâneo, que em seu artigo 6º define os direitos sociais nos quais vai se basear a moderna cidadania brasileira. O art. 6º diz: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. São diretrizes claras de amparo às maiorias oprimidas, que só podem prosperar a partir de uma reflexão profunda sobre como as práticas sociais e judiciais têm determinado a perenização das relações de dominação e subordinação entre desiguais. A igualdade de acesso ao básico, que vem resvalar na temática dos Direitos Sociais, exige uma distribuição mais justa do progresso e da riqueza entre salários, bens de produção, lucros e empregos. 3 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. 160 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 150-162, jan./jun. 2011 Defensoria Pública no Âmbito da Segurança Nacional e a Efetivação dos Direitos Sociais No caso brasileiro, não se trata apenas da dívida social com os negros. Herdamos da Colônia e do Império muito mais que problemas raciais e indígenas. Para começar, a formação da sociedade brasileira tem um traço forte de segmentação das classes sociais, com os privilégios estabelecidos pela Coroa aos senhores de engenho do Nordeste. A imensa comunidade de vítimas dos modelos socioeconômicos adotados deixou a sociedade brasileira com a sensação de banalização da inferioridade. É crescente a demanda de um Judiciário mais politizado, fenômeno oriundo da incorporação dos Direitos Sociais. É grande a expectativa da comunidade brasileira, no tocante a esse mesmo Judiciário, quanto à defesa dos direitos da coletividade, em auxílio ao Executivo e ao Legislativo. Conclusão O tema A Assistência Judiciária – Defensoria Pública no âmbito da Segurança Pública e a efetivação dos Direitos Sociais voltados para o bem comum – foi escolhido com o propósito de divulgar a experiência da Defensoria Pública. Em que pese esse vácuo deixado pela não prestação jurisdicional a contento – apesar da Constituição Federal, o Poder Público ainda não atingiu sua plena eficiência na prestação dos serviços jurisdicionais. É o cidadão quem suporta as dificuldades e prejuízos decorrentes, ferindo os fundamentos e os objetivos do nosso Estado Democrático e de Direito previstos na Lei Fundamental. A Defensoria Pública é órgão estatal legitimado constitucionalmente para pôr em prática meios alternativos de solução ou gestão de conflitos. Suas prerrogativas contribuem para a afirmação da paz social e proporcionam a segurança jurídica, seja pela celeridade, seja propiciando a gradual e sustentada transformação positiva da sua atividade, diante de seu caráter sociopedagógico O estudo em questão debruçou-se sobre as questões que envolvem Assistência Jurídica, mostrada sob a ótica das evoluções constitucionais. Abordou a difícil questão do acesso à Justiça, bem como a criação da Defensoria Pública, salvo melhor juízo, em muito contribuirão para a efetivação dos Direitos Sociais na busca do bem comum. Referências ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: RT, 1973. ALVES, Cléber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à justiça em preto e branco: retratos institucionais da defensoria pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 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Resumo Os objetivos deste artigo são examinar o papel do controle de armas nucleares na construção do relacionamento estratégico entre os EUA e a URSS / Rússia ao longo das últimas cinco décadas e explicar por que tais países optaram por instrumentos legais com diferentes níveis de precisão para o controle de sistemas atômicos. O controle de armas nucleares criou condições para a limitação da competição numa corrida armamentista acirrada, a redução de custos políticos e econômicos da preparação para o combate e a diminuição da probabilidade e do risco de guerra. A forma e o conteúdo dos instrumentos legais para a administração dos recursos de violência na área nuclear resultaram das alterações das preferências dos Executivos dessas potências em relação ao balanço entre os sistemas ofensivos e defensivos e ao papel da dissuasão. Palavras-chave: Política Externa. Segurança Internacional. EUA. Rússia. Controle de armas. Armas nucleares. Abstract The aims of this paper are to examine the role of nuclear arms control in the construction of the strategic relationship between the U.S. and USSR / Russia over the past five decades and explain why these countries opted for legal instruments with different levels of precision to control their atomic systems. Nuclear arms control created the conditions for the restriction of competition in a fierce arms race, the reduction of political and economic costs of the preparation for combat and the decrease of the probability and the risk of war. The form and the content of legal instruments for management of violence resources in the nuclear arena resulted from changes in the Executives’ preferences in relation to the balance between offensive and defensive systems and the role of deterrence. Keywords: Foreign Policy. International Security. United States. Russia. Arms control. Nuclear weapons. 1 Adaptação do artigo “De volta para o futuro: o controle de armas nucleares dos EUA e da URSS/Rússia (19602010).”, originalmente publicado na Revista da Escola de Guerra Naval, n. 16, p. 21-45, 2010, ISSN 1809-3191. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 163 Diego Santos Vieira de Jesus Introdução De acordo com Herz (1950), se um Estado não tem informação clara e confiável sobre as intenções de outro, ele pode assumir que o outro fará o possível para provocar-lhe danos e pode responder com ações que sugiram que suas intenções também não são confiáveis. Assim, pode desenvolver-se uma corrida armamentista, que reflete e acirra o conflito político existente: mesmo que a busca de armas, por um lado, tenha como objetivo apenas a autodefesa, isso pode dar ao outro razões adicionais para acreditar que tal Estado tem intenções agressivas. Entretanto, essas tensões e incertezas apresentadas pelo autor podem ser atenuadas, por exemplo, por meio de acordos robustos, detalhados e precisos sobre controle e redução do número de armas. Eles podem oferecer maior certeza sobre os níveis de forças dos Estados, ampliarem a estabilidade acerca dos desdobramentos militares e reduzir os incentivos para o primeiro ataque (BARTON; WEILER, 1976, p.311-313). Dentro da estrutura de rivalidade da Guerra Fria, os membros do Executivo dos EUA e os da URSS foram capazes de estabelecer regras em algumas das áreas mais perigosas no contexto da sua relação estratégica. Para diminuir os riscos da corrida armamentista, os representantes destes países procuraram, por exemplo, assinar acordos que estipulavam limites ou reduções do número de sistemas estratégicos e não estratégicos, ofensivos e defensivos, e restrições qualitativas na modernização e na operação de seus arsenais. Tais processos eram realizados com base em procedimentos detalhados e cuidadosos, bem como em meios robustos para verificação, que visavam a prover a segurança de que as partes cumpriam com as obrigações definidas nos acordos, ou seja, a garantia de que os representantes dos dois países não estavam trapaceando. Assim, eles poderiam continuar a cooperar, assegurando o respeito aos acordos existentes e podendo negociar novos (CHAYES; CHAYES, 1995, p.146, 189-196). Nos últimos anos da Guerra Fria e na primeira década após o colapso do bloco socialista, a relação estratégica entre os membros do Executivo dos EUA e os da URSS/ Rússia foi marcada pela ampliação da cooperação e pela maior abertura, e os acordos sobre a redução de armas nucleares assinados por eles passaram a estabelecer procedimentos ainda mais detalhados para a implementação e regimes mais intrusivos de verificação, como inspeções locais. Apesar da maior abertura, a confiança mútua ainda era reduzida. Conforme a hipervigilância da Guerra Fria recuava e representantes dos dois lados procuraram construir uma parceria genuína baseada na segurança e na confiança mútua, mostraram-se cada vez mais excessivos, em especial para a administração de George W. Bush nos EUA e de Vladimir Putin na Rússia, os custos políticos, organizacionais e financeiros de novos acordos robustos sobre controle e redução de armamentos atômicos. Tratados complexos e minuciosos imporiam um grande número de restrições à manutenção, à operação e à modernização das armas de ambas as partes. Com isso, reduziriam 164 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares consideravelmente opções militares em face de ameaças de Estados que patrocinam o terrorismo e que mantêm esforços para a aquisição de armas de destruição em massa (SOKOV, 2002, 2003). Porém, com as administrações de Barack Obama nos EUA e de Dmitri Medvedev na Rússia, é possível observar um retorno à defesa de acordos mais densos e detalhados, com regimes minuciosos para a verificação e o controle de armas nucleares dos dois países para fortalecer ainda mais a confiança mútua no contexto de uma Nova Relação Estratégica entre as duas maiores potências nucleares do planeta, mas levando em conta a necessidade de flexibilidade para enfrentar novas ameaças. Os objetivos deste artigo são examinar o papel do controle de armas nucleares na construção do relacionamento estratégico entre os EUA e a URSS / Rússia ao longo das últimas cinco décadas e explicar por que tais países optaram por instrumentos legais com diferentes níveis de precisão para o controle de seus sistemas atômicos ao longo do tempo. O argumento central aponta que o controle de armas nucleares permitiu a criação de um compromisso de regulação do tamanho, da composição técnica, dos modelos de investimento e das práticas operacionais das forças atômicas pelo consentimento para o benefício mútuo. Assim, criou condições para a limitação da competição numa corrida armamentista acirrada, a redução de custos políticos e econômicos da preparação para o combate, a diminuição da probabilidade e do risco de guerra, a redução dos prejuízos caso um conflito viesse a ocorrer, minimizando o seu escopo, e a ampliação das seguranças regional e global. A forma e o conteúdo dos instrumentos legais para a administração dos recursos de violência na área nuclear resultaram das alterações das preferências dos membros do Executivo dessas potências em relação ao balanço entre sistemas ofensivos e defensivos na política de segurança e ao papel da dissuasão em face das ameaças de potências atômicas tradicionais e de Estados-pária2 e atores não estatais no nível internacional. O Passado do Controle de Armas Nucleares: As Décadas de 1960 e 1970 Os primeiros esforços para limitar e reduzir o número de armas estratégicas não tiveram sucesso. Elas foram inclusas nas propostas de representantes norteamericanos e soviéticos para o “desarmamento geral e completo”, mas o fracasso na implementação de sistemas mais abrangentes fez com que não se estipulassem limites para tais armas. Os norte-americanos foram os primeiros a sugerir a dissociação de armas estratégicas dos planos mais gerais de desarmamento. Eles propuseram, em janeiro de 1964, no Comitê de Desarmamento das Dezoito Nações, que ambos os lados explorassem um congelamento verificado do número de veículos de lançamento ofensivos estratégicos e de sistemas defensivos (PIKE, 1995c). Os 2 O termo é utilizado em referência aos Estados acusados de patrocinar organizações terroristas e de desenvolver programas de armas de destruição em massa. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 165 Diego Santos Vieira de Jesus membros do Executivo soviético recusaram, pois o congelamento teria deixado a URSS em uma situação de inferioridade estratégica: os soviéticos tinham apenas um quarto do número de mísseis balísticos intercontinentais (em inglês, intercontinental ballistic missiles, ICBMs) e de mísseis balísticos lançados de submarinos (submarinelaunched ballistic missiles, SLBMs) dos EUA. Eles começaram a desejar discussões sobre congelamento só no fim da década de 1960, quando alcançaram paridade estratégica com os norte-americanos. Também não queriam congelamento até que fosse assinado um tratado de não proliferação, a fim de afastar o receio de que a Alemanha Ocidental desenvolvesse armas nucleares (BARTON; WEILER, 1976, p.8788). No início da década de 1970, os soviéticos tinham desenvolvido e desdobrado mísseis balísticos pesados e ultrapassado os EUA no número de ICBMs, além de terem quadruplicado o número de lançadores em seus submarinos. A grande capacidade de carga útil dos mísseis soviéticos era vista como uma possível ameaça aos ICBMs dos EUA, mesmo em locais de lançamento densamente protegidos. Os norte-americanos mantinham a liderança em bombardeiros pesados e, embora não tivessem ampliado o desdobramento de mísseis estratégicos desde 1967, conduziam um vigoroso programa de equipamento de mísseis com múltiplos veículos de reentrada independentemente direcionáveis (multiple independently-targetable reentry vehicles, MIRV), capazes de atingir alvos distintos e separados. Isso deu ao país a liderança no número de ogivas. Enquanto os soviéticos realizaram seu primeiro teste de MIRV somente em 1973, os norte-americanos desenvolveram estes veículos durante o fim da década de 1960. Começaram a desdobrá-los nas forças de ICBMs Minuteman e de SLBMs Poseidon, com os objetivos de ampliar a capacidade de atingir alvos distintos e independentes e de penetrar áreas protegidas com sistemas antimísseis balísticos. Embora os avanços no campo de defesa antimísseis fossem muito limitados, especialistas na época afirmavam que, com MIRV, seria possível elevar substancialmente o número de interceptores necessários à defesa da parte atacada. Assim, o atacante poderia exaurir e saturar rapidamente as defesas do adversário (BARTON; WEILER, 1976, p.136-137; Pike, 1995c). Enquanto os soviéticos mantinham seu sistema antimísseis em torno de Moscou, os norte-americanos abandonaram o plano inicial de defesa pequena para algumas cidades, desdobraram sistemas antimísseis em duas locações de ICBMs para proteger forças retaliatórias e vislumbravam a criação de 12 complexos. As necessidades e os compromissos de segurança e de defesa das partes também diferiam: enquanto os norte-americanos protegiam aliados bem além de suas fronteiras, como a Europa Ocidental e o Japão, os soviéticos defendiam predominantemente vizinhos. Tudo isso criou dificuldade na determinação de uma equivalência estratégica abrangente (PIKE, 1995c). Após dois anos e meio de negociação, a primeira série do SALT foi concluída numa reunião de cúpula em Moscou, em maio de 1972, quando o presidente norteamericano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista da URSS, 166 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares Leonid Brezhnev, assinaram o Tratado sobre a Limitação de Sistemas Antimísseis Balísticos (Treaty between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on the Limitation of Anti-Ballistic Missile Systems, ABM) e o Acordo Provisório sobre Certas Medidas com Respeito à Limitação de Armas Ofensivas Estratégicas (Interim Agreement between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on Certain Measures with respect to the Limitation of Strategic Offensive Arms, Acordo Provisório). O ABM tinha duração ilimitada. Se decidissem que seus interesses estavam sendo prejudicados por “eventos extraordinários”, as partes poderiam efetuar a denúncia do tratado por nota diplomática, e o prazo estabelecido para sua efetivação era de seis meses. O Acordo Provisório tinha duração de cinco anos e cobria apenas alguns aspectos centrais das armas estratégicas. Tais acordos foram acompanhados por declarações firmadas pelos líderes das delegações e, ao serem submetidos ao Congresso norteamericano, por entendimentos comuns e por declarações unilaterais feitas durante as conversações. O objetivo era esclarecer provisões específicas ou partes do processo de negociação (PIKE, 1995c). O ABM proibia a construção de defesas antimísseis balísticos estratégicos em dimensão nacional. Os representantes desses países concordaram em ter apenas duas áreas de desdobramento3: uma para a proteção da capital e outra para o resguardo de uma área de lançamento de ICBMs. Tais áreas deveriam estar separadas em no mínimo 1.300km e serem tão restritas que não poderiam criar uma defesa nacional ou se tornarem a base para o desenvolvimento de uma. Assim, seria preservada a capacidade de penetração pelas forças retaliatórias de mísseis do outro país (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1995a). Além disso, foram estipulados limites quantitativos e qualitativos precisos a tais sistemas. Cada locação não poderia ter mais de 100 mísseis de interceptação e 100 lançadores. Acordos sobre o número e as características dos radares permitidos requereram negociações técnicas complexas e extensas. As provisões sobre esses componentes foram desenvolvidas minuciosamente no tratado e, posteriormente, esclarecidas nas declarações que o acompanharam. As partes também concordaram em limitar consideravelmente a melhoria qualitativa da tecnologia sobre os sistemas antimísseis balísticos, o que significava não desenvolver, testar ou desdobrar lançadores capazes de arrojar mais de um míssil de interceptação de uma única vez e não modificar os existentes para dar a eles tal capacidade. Sistemas para rápido recarregamento dos lançadores foram proibidos. Para reduzir as pressões exercidas pelas mudanças tecnológicas, os membros do Executivo dos EUA e os da URSS concordaram em impedir o desenvolvimento, o teste e o desdobramento de sistemas baseados no mar, no ar e no espaço, bem como sistemas móveis baseados na terra. Na Comissão Permanente de Consulta, os representantes de cada parte 3 Um Protocolo sobre a Limitação de Sistemas Antimísseis Balísticos, restringindo cada parte a uma única área de desdobramento, foi assinado em julho de 1974 e entrou em vigor em maio de 1976 (ASSENOVA, 2003; Organização do Tratado do Atlântico Norte, 1996). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 167 Diego Santos Vieira de Jesus levantariam as questões acerca da implementação e da aquiescência da outra aos termos do tratado (Pike, 1995a). Já o Acordo Provisório determinava que ambos os lados não deveriam construir novos silos de ICBMs. Dentro dos limites estabelecidos, eles poderiam modernizar e substituir tais mísseis, mas, nesse processo, não deveriam ampliar significativamente a dimensão dos lançadores em silos existentes. O acordo também estipulava uma quantidade determinada para o número de tubos de lançamento de SLBMs e de submarinos que carregavam esses mísseis (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1995c). Porém, ignorava bombardeiros estratégicos e não tratava de ogivas, deixando as partes livres para ampliar forças desdobradas ao adicionarem múltiplas ogivas aos seus ICBMs e SLBMs e expandirem forças de bombardeiros. O acordo estabelecia um limite de 1.054 silos de ICBMs e 656 tubos de lançamento de SLBMs para os EUA e de 1.607 silos de ICBMs e 740 tubos de lançamento de SLBMs para a URSS (Arms Control Association, 2002). Os respectivos Estados se comprometeram a negociar um acordo mais abrangente e de maior duração o mais rápido possível. O Acordo Provisório era essencialmente uma ação temporária, destinada a complementar o ABM. Ele estabelecia limites à competição no campo de armas ofensivas estratégicas e oferecia tempo para negociações mais densas. Congelava nos níveis existentes o número de lançadores de mísseis balísticos estratégicos dos EUA e da URSS, operacionais ou em construção, e permitia o aumento no número de lançadores de SLBMs até o nível estipulado para cada parte, apenas com o desmantelamento ou a destruição de um número correspondente de lançadores de ICBMs e de SLBMs mais antigos. Isso ocorreria até que um acordo com medidas mais robustas fosse alcançado (ASSENOVA, 2003; PIKE, 1995c). Durante essa série de conversações, os membros dos Executivos dos EUA e os da URSS negociaram os primeiros acordos que estabeleceram limites e restrições a algumas de suas armas mais importantes. No ABM, apontaram para a eliminação de uma competição emergente no setor de sistemas defensivos, que ameaçava levar a disputa no campo dos ofensivos a um nível ainda superior; no Acordo Provisório, tomaram os primeiros passos para administrar a rivalidade com respeito às suas armas ofensivas mais poderosas, tanto baseadas na terra como nos submarinos. O estabelecimento de limites requeria provisões precisas, completas e robustas. Os representantes de cada lado iniciaram pesquisas sobre verificação sem a necessidade de acessar o território do outro Estado. Tanto o Acordo Provisório como o ABM estipulavam que a aquiescência às suas provisões seria assegurada por meios técnicos nacionais de verificação. Cada lado se comprometia a não interferir nos meios técnicos de verificação que pertenciam à outra parte e concordava em não utilizar medidas de encobrimento deliberadas (PIKE, 1995c). Já as negociações do SALT II (Treaty between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on the Limitation of Strategic Offensive Arms, 1979) começaram em novembro de 1972, quando os membros do Executivo dos 168 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares EUA e os da URSS deram início às conversações para se atingir um novo instrumento que seguiria o Acordo Provisório do SALT I. Num encontro em Vladivostok em 1974, o presidente norte-americano Gerald Ford e Brezhnev concordaram com uma estrutura básica para o acordo, até que a versão final foi assinada por Jimmy Carter e por Brezhnev em Viena, em junho de 1979 (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1995d). O tratado estabelecia um limite de 2.400 “veículos de lançamento nuclear estratégicos” – número reduzido para 2.250 em 1981 – e outras restrições sobre sistemas desdobrados. Porém, Carter requereu que o líder da maioria no Senado protelasse a consideração do SALT II em face da invasão da URSS ao Afeganistão em dezembro de 1979. O tratado não foi retomado. Posteriormente, os representantes das partes aderiram aos termos do acordo, embora ele não tivesse entrado em vigor. Em 1984 e 1985, o Presidente Ronald Reagan declarou que a URSS tinha violado o compromisso de observar o SALT II e, em 1986, afirmou que os EUA embasariam decisões em relação ao arsenal estratégico “na natureza e na magnitude da ameaça representada pelas forças estratégicas soviéticas e não nos standards contidos na estrutura do SALT” (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1995d). O SALT II definia como “veículos de lançamento nuclear estratégicos” lançadores de ICBMs e de SLBMs, bombardeiros pesados e mísseis balísticos arterra (air-to-surface ballistic missiles, ASBMs). Ele estabelecia um limite de 1.320 para o número total de lançadores de mísseis balísticos com MIRV e bombardeiros pesados com mísseis de cruzeiro de longo alcance; de 1.200 para o número total de lançadores de mísseis balísticos com MIRV e de 820 para lançadores de ICBMs MIRVados. Além de estipular tais limites numéricos, o tratado proibia a construção de lançadores adicionais de ICBMs fixos e a ampliação do número de lançadores de ICBMs pesados fixos e determinava o banimento de lançadores de ICBMs pesados móveis e de lançadores de SLBMs pesados e de ASBMs. Ele proscrevia os testes de voo e o desdobramento de novos tipos de ICBMs, com exceção de um novo tipo de ICBM leve para cada lado. Dentre suas provisões, estava o estabelecimento de limites ao número de ogivas em cada ICBM, SLBM, ASBM e de mísseis de cruzeiro permitidos para cada bombardeiro estratégico. Cabe destacar o banimento da conversão de lançadores de ICBMs leves para pesados; a notificação sobre certos lançamentos desses mísseis e a proscrição de alguns novos tipos de sistemas ofensivos estratégicos tecnologicamente exequíveis, mas que ainda não tinham sido desdobrados (PIKE, 1995d). O tratado incluía definições detalhadas dos sistemas, medidas de verificação e uma provisão delineando as obrigações da Comissão Permanente de Consulta em relação ao SALT II. A verificação seria feita por meios técnicos nacionais, compreendendo satélites de fotorreconhecimento. Ambos os lados concordaram em não interferir nos meios do outro nem usar medidas deliberadas de encobrimento que impedissem a verificação da aquiescência aos termos do acordo. Como as características específicas de alguns sistemas limitados pelo Acordo Provisório do Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 169 Diego Santos Vieira de Jesus SALT I tornaram-se evidentes durante os testes, também compunha um aspecto importante da verificação o monitoramento desses programas, incluindo a telemetria – conjunto de sinais eletrônicos usados para transmitir informação sobre os sistemas enquanto são testados. Os membros do Executivo dos EUA e os da URSS aceitaram não se engajar numa recusa deliberada de informação telemétrica por meio de encriptação. As regras de contagem e de distinção entre armas, bem como algumas restrições sobre sistemas específicos, foram incorporadas ao acordo. Por exemplo, a fim de facilitar a verificação dos limites de MIRV, concordaram que, uma vez um míssil fosse testado com MIRV, então todos os daquele tipo deveriam ser considerados como equipados com MIRV. O mesmo se aplicaria aos lançadores se um deles contivesse ou lançasse um míssil MIRVado. Regras semelhantes valiam para mísseis de cruzeiro e bombardeiros pesados. De acordo com um Memorando de Entendimento, os representantes dos Estados trocariam informações acerca do número de armas e manteriam uma base de dados por meio de atualizações regulares em cada sessão da Comissão Permanente de Consulta (PIKE, 1995d). Numa perspectiva geral, os primeiros acordos bilaterais que estipularam limites aos sistemas ofensivos e defensivos estratégicos, assinados pelos membros dos Executivos das superpotências na década de 1970, visavam a estabilizar expectativas e a reduzir custos de mal-entendidos, de conflitos e de disputas, trazendo ênfase na previsibilidade (CHAYES; CHAYES, 1995, p.124-174). Tinham papel central as formas de verificação, como a troca de dados, que asseguravam a cada parte que a outra cumpria com as obrigações substantivas quanto ao tamanho e às capacidades do arsenal (SOKOV, 2002). Em Busca de um Futuro: as Décadas de 1980 e 1990 Ronald Reagan chegou à presidência dos EUA como um crítico do processo de redução e de controle de armas. Ao longo da década de 1970, considerou que os EUA ficavam para trás na competição nuclear com a URSS e que seus mísseis balísticos de longo alcance estavam se tornando mais vulneráveis ao ataque soviético. Durante a campanha eleitoral de 1980 contra Jimmy Carter, disse que o SALT II era “fatalmente fracassado”. Como presidente, acelerou planos de modernização nuclear estratégica e lançou esforços para a construção de um sistema espacial de defesa antimísseis com a Iniciativa de Defesa Estratégica (Strategic Defense Initiative, SDI), ampliando as tensões na relação com membros do Executivo da URSS e causando grande preocupação quanto à possibilidade de guerra nuclear (KINBALL, 2004). A oposição inicial de Reagan às negociações sobre controle e redução de armas com a URSS gradativamente cedeu espaço a uma perspectiva mais conciliatória, coerente com a preocupação crescente em relação à ameaça da destruição mútua assegurada (mutual assured destruction, MAD). Ao fim do segundo mandato, ele vencera a relutância de conselheiros próximos com respeito à criação de uma parceria 170 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares diplomática com Mikhail Gorbachev. Tal parceria levou a alguns dos acordos mais densos e robustos da História para o controle e a redução de armas nucleares e ajudou a pavimentar o caminho para uma nova era das relações entre os EUA e a Rússia. Reagan e Gorbachev concluíram o Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário (Treaty between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on the Elimination of Their Intermediate-Range and Shorter-Range Missiles, Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty, INF, 1987) e estabeleceram as bases para o primeiro Tratado sobre a Redução de Armas Ofensivas Estratégicas (Treaty between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on the Reduction and Limitation of Strategic Offensive Arms, Strategic Arms Reduction Treaty I, START I, 1991), assinado por Gorbachev e por George H. W. Bush (KIMBALL, 2004). Na década de 1980 e no início de 1990, os membros do Executivo dos EUA e os da URSS negociaram acordos que fizeram mais do que meramente limitar a ampliação do número de armas: os novos acordos exigiram realmente reduções significativas. Como resultado do INF, pela primeira vez, uma classe inteira de sistemas nucleares – todos os mísseis de alcance intermediário – foi eliminada, e o START I foi o primeiro tratado a substancialmente reduzir o número de armas estratégicas desdobradas pelos norte-americanos e pelos soviéticos e a não somente o congelar, como o Acordo Provisório do SALT I. As comissões de implementação estabelecidas pelos novos tratados garantiram que as reduções fossem realizadas de maneira efetiva. O START I, por exemplo, contém centenas de páginas de provisões detalhadas e cuidadosas, determinando desde o tipo de equipamento que os inspetores podem utilizar até a forma como a transmissão de telemetria deve ser formatada para a troca com a outra parte (BLEEK, 2002; DAVIS, 2002). O INF e o START I abriram espaço para regimes de verificação mais extensos e intrusivos. O INF foi um tratado inovador, pois estabeleceu um regime detalhado e intrusivo de verificação sem precedentes, que criou as bases para componentes de verificação do START I nas reduções de armas ofensivas estratégicas. Tal regime estipulava a realização de inspeções locais, que previam o envio de pessoal a locações específicas para auxiliar as partes a verificar a aquiescência da outra às provisões do tratado. Elas incluíam inspeções das linhas de base para apurar o número inicial de mísseis e lançadores em cada base de operação ou instalação de apoio; inspeções para confirmar se as atividades relacionadas às forças intermediárias haviam cessado em certas instalações; inspeções para comprovar a destruição de mísseis, lançadores e equipamentos associados; monitoramento contínuo, em que uma equipe residente de inspeção verificaria as saídas principais das instalações de produção de mísseis para determinar se os itens cobertos pelo tratado estavam deixando tais locais; e inspeções eventuais com o objetivo de examinar a falta de itens em bases de operação de mísseis e em instalações Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 171 Diego Santos Vieira de Jesus de apoio. O Artigo XIII estabeleceu a Comissão Especial de Verificação (Special Verification Comission, SVC), que serviria como fórum para discussão e resolução de questões relativas à implementação e à aquiescência aos termos do tratado. Ela consideraria procedimentos que melhorassem a viabilidade e a efetividade do tratado e determinaria características e métodos de uso dos equipamentos de inspeção (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1995b). O START I, assinado por Gorbachev e George H. W. Bush em julho de 1991, estipulava reduções de armas ofensivas estratégicas, que seriam realizadas em três fases ao longo de sete anos, a partir da data de entrada do tratado em vigor (Arms Control Association, 2002; Pike, 1996). Dentre os principais limites, cabe citar um teto de 1.600 “veículos de lançamento nuclear estratégicos”, englobando ICBMs e SLBMs desdobrados e lançadores associados, bem como bombardeiros pesados desdobrados; um teto de 6.000 ogivas “atribuídas” a mísseis e a bombardeiros, contadas a partir de procedimentos detalhadamente definidos no acordo; 4.900 ogivas em mísseis balísticos; 1.540 ogivas em 154 ICBMs pesados para os soviéticos, que concordaram em eliminar 22 lançadores de SS-18 em sete anos até atingir tal nível; e 1.100 ogivas em ICBMs móveis desdobrados (Arms Control Association, 2002; PIKE, 1996). O START I não estipulava a destruição de ogivas removidas dos veículos de lançamento. As desdobradas eram restritas por meio de limites rigorosos para tais veículos e da destruição de excedentes (BLEEK, 2002; Pike, 1996). O regime intrusivo de verificação envolvia inspeções locais e trocas regulares de informação, complementando meios técnicos nacionais (Arms Control Association, 2002; Center for Arms Control and Non-Proliferation, 2002; PIKE, 1996). Ele inclui notificações sobre sistemas e instalações, com dados sobre tópicos como conversão e eliminação, medidas cooperativas para a melhoria dos meios técnicos nacionais, testes de voo de mísseis, informação telemétrica, novos tipos de sistemas, inspeções, atividades contínuas de monitoramento e dispersão operacional. Tal regime impedia a recusa de informação telemétrica e estipulava doze tipos de inspeções locais: linhas de base, atualização de informações, novas instalações, locações suspeitas, veículos de reentrada, dispersão pós-exercício, conversão ou eliminação, liquidação, instalações previamente declaradas, exibições de características técnicas de ICBMs / SLBMs e lançadores, exibições de distinguibilidade de bombardeiros pesados e ALCMs nucleares de longo alcance e exibições de linhas de base de bombardeiros pesados usados para testes de ALCMs não inspecionados antes. Ele previa também monitoramento contínuo de instalações de montagem de ICBMs móveis e medidas cooperativas para a exibição de sistemas. Os dados relevantes sobre a aquiescência seriam trocados continuamente e sumarizados duas vezes ao ano num Memorando de Entendimento. A Comissão Conjunta de Aquiescência e Inspeção definia procedimentos minuciosos que as partes deveriam seguir na implementação. Eles cobriam detalhes que faltavam nos documentos principais e eram destinados a construir confiança (Center for Arms Control and 172 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares Non-Proliferation, 2002; PIKE, 1996; WOLFSTHAL et al., 2001). A entrada do START I em vigor foi atrasada devido ao colapso da URSS cinco meses após sua assinatura e aos esforços para desnuclearizar Ucrânia, Cazaquistão e Belarus. Em maio de 1992, pelo Protocolo de Lisboa, a Rússia e esses três países tornaram-se partes do START, e os representantes desses últimos concordaram em assinar o NPT como Estados que não têm armas nucleares. Representantes dos três Estados se comprometeram a transferir as ogivas para a Rússia, e os EUA os ajudaram a destruir veículos de lançamento (BLEEK, 2002). Em 1994, as partes trocaram instrumentos de ratificação em Budapeste, e o START I entrou em vigor. A implementação e a verificação procederam suavemente na segunda metade da década de 1990 (Davis, 2002; Pike, 1996). Em dezembro de 2001, foram concluídas as reduções mais amplas de armas estratégicas da História. Porém, como o START I não requer destruição de ogivas, norte-americanos e russos as armazenaram em quantidade considerável. O tratado vigorou até dezembro de 2009, período no qual as partes puderam requerer inspeções (Arms Control Association, 2002; BLEEK, 2002; Center for Arms Control and Non-Proliferation, 2003; Pike, 1996). O arsenal estratégico foi reduzido em mais de 40%. Com a desintegração da URSS, membros da administração George H. W. Bush buscaram negociar reduções de armas ofensivas estratégicas ainda mais abrangentes que as determinadas pelo START I. O segundo Tratado sobre a Redução de Armas Ofensivas Estratégicas (Treaty between the United States of America and the Russian Federation on Further Reduction and Limitation of Strategic Offensive Arms, Strategic Arms Reduction Treaty II, START II, 1993) sistematizava o Entendimento Conjunto de Bush e de Boris Yeltsin na Cúpula de Washington, D.C., em junho de 1992, de assinar um acordo que seguisse o START I. O START II estipulava a redução dos arsenais estratégicos desdobrados de cada lado a 3.000 – 3.500 ogivas e proibia o desdobramento de um dos sistemas mais desestabilizadores no contexto da relação estratégica entre os dois países: os ICBMs MIRVados. O tratado utilizava regras de contagem de ogivas que eram semelhantes às do START I e previa a destruição de veículos de lançamento, mas não de ogivas estratégicas (Arms Control Association, 2002; Center for Arms Control and Non-Proliferation, 2003; BLEEK, 2002; PIKE, 1995e). Ao fim da primeira fase, cada lado deveria ter reduzido seu número total de ogivas estratégicas desdobradas a 3.800 – 4.250 e, ao término da segunda, a 3.000 – 3.500 unidades. Nenhuma delas poderia estar em ICBMs MIRVados; somente aqueles mísseis com uma única ogiva seriam permitidos, e não mais que 1.700 – 1.750 delas poderiam estar desdobradas em SLBMs, que poderiam ser MIRVados. O tratado incluía um Protocolo sobre Procedimentos para a Eliminação de ICBMs pesados e para a Conversão de seus lançadores em silos, um Protocolo sobre Exibição e Inspeção de bombardeiros pesados e um Memorando sobre Atribuição. O regime de verificação do START I aplicava-se ao START II, e novas medidas seriam inclusas, como a observação da conversão dos silos de SS-18, procedimentos para eliminação Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 173 Diego Santos Vieira de Jesus de mísseis, exibições e inspeções de bombardeiros pesados, inclusive daqueles que seriam reorientados para missões convencionais. Um protocolo prorrogou o prazo no qual as reduções seriam concluídas e no qual os limites provisórios deveriam ser atingidos. Isso foi necessário devido à dificuldade expressa por membros do Executivo russo de seu país cumprir as datas estipuladas inicialmente. Nos EUA, o START II recebeu consentimento para ratificação em janeiro de 1996. A resolução de ratificação proibia a redução unilateral de armas ofensivas estratégicas norte-americanas antes da entrada do START II em vigor e sem o consentimento do Senado. Ademais, apontava que uma forma de dissuasão baseada apenas em armas ofensivas não poderia por ela mesma dar conta do ambiente estratégico emergente, caracterizado pela proliferação de mísseis balísticos de longo alcance e por esforços dos membros dos Executivos norte-americano e russo para a construção de uma nova relação baseada na confiança (WOLFSTHAL et al., 2001). Questões relacionadas à verificação do START II emergiram, como a capacidade dos membros do Executivo russo de cumprir as obrigações estipuladas e de arcar com os custos da aquiescência aos termos do acordo, além da necessidade de investimentos de longo prazo na modernização dos meios técnicos nacionais de verificação (Center for Arms Control and Non-Proliferation, 2003). Yeltsin submeteu o START II à Duma – câmara baixa do Parlamento russo – em 1995. A lei sobre ratificação que o presidente propôs não tinha qualquer interpretação, limitação ou condição para o Executivo, mas a mensagem de Yeltsin apontava que o START II poderia apenas ser implementado sob as condições de preservação e de interpretação estrita do ABM pelos EUA. A demora na votação russa resultou da forte oposição ao START II pelos membros da Duma. Muitos deles expressaram preocupação quanto à construção de novos ICBMs de apenas uma ogiva a fim de alcançar o limite de 3.500. Esses sistemas poderiam ser eliminados para atingir o limite imaginado de 2.000 – 2.500 ogivas para um START III ainda a ser negociado. Outro motivo de preocupação foi a capacidade significativa que os EUA têm de retornar ogivas armazenadas para os veículos de lançamento. Para os norteamericanos, grande parte das reduções poderia ser atingida pela simples remoção de ogivas dos veículos de lançamento, enquanto a maioria dos mísseis russos seria sujeita à eliminação física. Os membros da Duma consideravam 2003 uma data inatingível para a implementação. O programa de Defesa Nacional Antimísseis norte-americano (National Missile Defense, NMD) foi também uma preocupação do Parlamento russo. Os russos se opuseram a modificações significativas no ABM e consideraram os limites sobre a NMD como pré-condição para a redução do número de suas armas ofensivas desdobradas (WOLFSTHAL et al., 2001). Em março de 1997, Bill Clinton e Yeltsin assinaram, na Cúpula de Helsinki, a Declaração Conjunta sobre os Parâmetros de Reduções Futuras nas Forças Nucleares. Dentre os principais pontos definidos, cabe destacar: 1) adotar o protocolo que prorroga o prazo de implementação do START II para 31 de dezembro de 2007; 174 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares 2) iniciar negociações do START III imediatamente após a entrada do START II em vigor; 3) desativar os sistemas marcados para eliminação sob o START II por meio da remoção de ogivas nucleares ou de outras medidas acertadas até 31 de dezembro de 2003, a fim de evitar uma ampliação significativa do período em que as forças desdobradas manter-se-iam acima dos níveis do START II; 4) estabelecer duração ilimitada para todos os acordos correntes da plataforma START (KINBALL; KUCIA, 2003; WOLFSTHAL et al., 2001). Os parâmetros para a negociação do START III estipulados pela Declaração Conjunta incluíam a redução do número de ogivas estratégicas desdobradas a 2.000 – 2.500 até o fim de 2007. Além de estabelecer a destruição de veículos de lançamento, o START III deveria determinar a destruição de ogivas nucleares estratégicas para promover a irreversibilidade das reduções (Arms Control Association, 2002). Os presidentes concordaram que o START III conteria medidas relacionadas à transparência quanto aos inventários de ogivas estratégicas e aos materiais nucleares e disseram que explorariam medidas sobre SLCMs e armas táticas (BLEEK, 2002; WOLFSTHAL et al., 2001). Em 1997, a secretária de Estado, Madeleine Albright, e o Ministro das Relações Exteriores, Yevgeniy Primakov, assinaram em Nova York uma declaração conjunta que consolidava o compromisso de Helsinki de desativar os ICBMs marcados para eliminação sob o START II – os russos SS-18 e SS-24 e o MX Peacekeeper – até dezembro de 2003. Firmaram também protocolos sobre o ABM, que remetiam a preocupações russas. Clinton e Primakov concordaram em iniciar consultas informais, no nível de especialistas, sobre o START III antes da aprovação do START II pelo Parlamento russo (KINBALL; KUCIA, 2003; WOLFSTHAL et al., 2001). Uma série de discussões e de crises políticas levou ao adiamento da votação do START II pela Duma: o bombardeio dos EUA ao Iraque em dezembro de 1998, as propostas norte-americanas de emendar o ABM com o objetivo de desenvolver a NMD em janeiro de 1999 e o bombardeio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) à Iugoslávia sobre a questão de Kosovo em abril. A votação favorável ao START II foi obtida sob a administração de Vladimir Putin, em abril de 2000. A lei sobre a ratificação definia circunstâncias extraordinárias que permitiriam a denúncia do START II, como a denúncia do ABM ou o desdobramento de armas nucleares dos EUA em territórios de novos membros da OTAN. Ela determinava que o START II entraria em vigor somente com o consentimento norte-americano para a ratificação dos acordos de 1997 relacionados ao ABM. A controvérsia em torno do desdobramento da NMD tornou-se um obstáculo à entrada do START II em vigor e às negociações do START III. Em 1999, o Congresso norte-americano aprovou o desdobramento da NMD assim que “tecnologicamente possível” para proteger o país da ameaça emergente de programas de mísseis balísticos. Os membros do Executivo dos EUA tentaram – de forma fracassada – persuadir os russos no sentido de que tais defesas não minariam a segurança russa (WOLFSTHAL et al., 2001). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 175 Diego Santos Vieira de Jesus Após negociações intensas, Clinton e Putin tiveram, em junho de 2000, em Moscou, uma reunião de cúpula, na qual diversos analistas esperavam a aceitação, por parte dos membros do Executivo russo, de emendas ao ABM em troca da aprovação, dos integrantes do Executivo norte-americano, de um limite de 1.500 ogivas para o START III. Porém, os representantes norte-americanos rejeitaram a ideia de reduções mais abrangentes. Embora a reunião não tivesse produzido muitos resultados significativos, os presidentes assinaram uma Declaração Conjunta sobre os Princípios da Estabilidade Estratégica, que reafirmava o papel do ABM como pilar dessa estabilidade, mas simultaneamente reconhecia que a comunidade internacional enfrentava a ameaça da proliferação de WMD e de seus veículos de lançamento. Os líderes apontaram que o ABM considerava possíveis mudanças no contexto estratégico e solicitaram aos membros de suas equipes que preparassem uma análise sobre medidas concretas para endereçar ameaças emergentes e, ao mesmo tempo, preservar a estabilidade estratégica. Eles notaram a importância do processo consultivo e expressaram o desejo de mantê-lo no futuro. Posteriormente, o Ministério das Relações Exteriores apontou que a medida não significava que os integrantes do Executivo russo concordavam em emendar o ABM. Membros do Executivo russo avisaram que a denúncia unilateral do ABM pelos EUA iniciaria a denúncia de uma diversidade de acordos sobre controle e redução de armas pelos russos. O chefe das Forças de Mísseis Estratégicos Vladimir Yakovlev declarou que as atividades de inspeção e de verificação poderiam ser extintas e apontou possíveis alterações, como o equipamento de mísseis Topol-M com MIRV, a mudança do desdobramento de armas táticas, a ampliação do número de ALCMs nucleares e a retomada da produção de mísseis balísticos de alcance intermediário (WOLFSTHAL et al., 2001). A Morte e a (nova) Vida do Controle de Armas: A Década de 2000 Em 24 de maio de 2002, os presidentes George W. Bush e Vladimir Putin assinaram, em Moscou, o Tratado sobre Reduções Ofensivas Estratégicas (Treaty between the United States of America and the Russian Federation on Strategic Offensive Reductions, Strategic Offensive Reductions Treaty, SORT), mais conhecido como o “Tratado de Moscou”. Ele estipula a redução do número agregado de ogivas nucleares estratégicas dos EUA e da Rússia, de modo que, em 31 de dezembro de 2012, não exceda 1.700 a 2.200 para cada país. Esse foi o primeiro acordo bilateral sobre reduções ofensivas estratégicas firmado por ambas as partes em quase uma década e representou, junto à Declaração Conjunta sobre a Nova Relação Estratégica assinada pelos dois presidentes, um marco do novo relacionamento entre os EUA e a Rússia. Para Bush, o SORT liquidou o legado de hostilidade nuclear da Guerra Fria. Putin caracterizou o tratado como um “passo adiante”, que oferecia uma base forte para darem continuidade à resolução dos pontos críticos nas relações bilaterais, à 176 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares administração das diferenças e à criação de oportunidades para os dois países, em conjunto com os aliados (WOOLF, 2002). Ao contrário dos acordos bilaterais anteriores sobre controle e redução ofensivos estratégicos assinados pelos membros do Executivo dos EUA e pelos da URSS / Rússia, o SORT não é minucioso, preciso ou completo. Ele não inclui definições detalhadas de sistemas, regras de contagem, procedimentos rigorosos para eliminação ou provisões próprias para verificação e monitoramento. O tratado não define quais ogivas nucleares estratégicas cobre – as desdobradas, as na reserva ou ambas – nem como serão contadas. Além disso, não estabelece limites ao número total de mísseis e de bombardeiros estratégicos e admite que, cada lado, determine a composição de suas forças ofensivas estratégicas desdobradas, não definindo contorno para elas no curso das reduções. O acordo não estipula como as reduções devam ser realizadas. Já que não determina a destruição de ogivas, possibilita que elas sejam simplesmente removidas do desdobramento e armazenadas para possível redesdobramento. O cronograma das reduções é incerto, pois o acordo não inclui limites provisórios. Isso permite que cada lado tenha autonomia para estipular como e quando, dentro do limite estabelecido, reduzir ogivas nucleares estratégicas. Ademais, o fato de as datas de implementação e de expiração do acordo serem as mesmas leva a crer que é tecnicamente impossível violá-lo. A cláusula de denúncia é distinta das de acordos anteriores. Cada parte pode efetuá-la por nota diplomática, e o prazo estabelecido para a sua efetivação é de apenas três meses. O denunciante não precisa justificar sua decisão citando eventos extraordinários que ameacem seus interesses supremos. O acordo aponta que a Comissão Bilateral de Implementação deva se reunir pelo menos duas vezes ao ano, mas detalhes como sua composição e o cronograma dos encontros não foram definidos. Com respeito à verificação, ambas as partes decidiram continuar confiando nas provisões do START I, mas o acordo expiraria em 2009 e não houve iniciativa de prorrogá-lo ou de estabelecer provisões para verificação específicas para o SORT (WOOLF, 2002). O Senado norte-americano aprovou a resolução de conselho e consentimento para a ratificação do tratado, por 95 votos a zero, em 6 de março de 2003. Em 14 de maio de 2003, a Duma aprovou a lei federal sobre a ratificação do SORT por 294 votos a 134. Em março, ela tinha decidido adiar a votação do tratado por tempo indeterminado, em face da preocupação com possíveis impactos políticos da então iminente ação dos EUA no Iraque. O Conselho da Federação russo votou favoravelmente ao acordo em 28 de maio (BOESE, 2003). Com a finalização de tais procedimentos pelo Senado norte-americano e pelas duas casas do Parlamento russo, Bush e Putin trocaram instrumentos de ratificação do SORT em São Petersburgo, em 1o de junho de 2003, e o tratado entrou em vigor imediatamente. O SORT denotava, naquele momento, o compromisso inovador dos membros dos Executivos dos EUA e da Rússia de efetuar reduções ofensivas estratégicas de uma Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 177 Diego Santos Vieira de Jesus forma ao mesmo tempo juridicamente vinculante e maleável. Assim, o SORT é um novo instrumento para reduções ofensivas estratégicas, que tem, ao mesmo tempo, um alto nível de obrigação e um baixo de delegação – como seus antecessores –, mas um baixíssimo nível de precisão – de forma distinta aos que o precederam. O Presidente George W. Bush – bem como os principais membros do Executivo que o auxiliam em assuntos de política externa e de segurança nacional – visava à maximização da flexibilidade estratégica norte-americana para atender a contingências imediatas, imprevistas ou potenciais. Ele desejava autonomia para definir a forma como implementar as reduções, para com isso armazenar parte das ogivas nucleares estratégicas removidas do desdobramento, que poderiam ser redesdobradas em resposta a contingências potenciais. Ademais, desejava determinar, dentro de um limite agregado para o número de ogivas nucleares estratégicas, a composição e a estrutura das suas forças ofensivas estratégicas a fim de responder a contingências imediatas e imprevistas, evitando limites ao número total de veículos de lançamento estratégicos e sublimites numéricos ou banimentos de categorias de forças. Tendo conquistado o apoio de grande parte do Senado norte-americano, Bush firmou o compromisso de realizar reduções somente do número de ogivas nucleares estratégicas de um modo legalmente vinculante, mas de maneira a evitar excessivos custos políticos, organizacionais e financeiros de novos tratados robustos, detalhados e extensos, que, por exemplo, impusessem um grande número de restrições à manutenção, à operação e à modernização de suas armas nucleares estratégicas. A flexibilidade do tratado abria espaço para a maximização da flexibilidade estratégica, desejada pelos membros do Executivo dos EUA e por grande parte do Senado norte-americano. Mesmo cientes da falta de meios adicionais de verificação das reduções, de um cronograma para sua implementação até 2012 e de provisões para eliminação das ogivas e dos sistemas de lançamento, os senadores republicanos e alguns democratas ofereceram consentimento para a ratificação do tratado porque acreditavam que o SORT permitia maximizar a flexibilidade estratégica para que o país atendesse a contingências imediatas, imprevistas ou potenciais. Parcela significativa da bancada de democratas deu consentimento para a ratificação do SORT porque observou que ele, pelo menos, oferecia uma plataforma para acordos mais densos e substantivos no contexto do novo relacionamento estratégico entre os EUA e a Rússia – um acordo que era “melhor que nada”. Poucos meses antes da assinatura do SORT, alegando que o ABM impedia os EUA de se protegerem contra ataques de mísseis perpetrados por “Estados párias” ou por organizações terroristas, Bush disse que os EUA efetivariam a denúncia do tratado. Os russos não expressaram apoio à ação norte-americana, mas consentiram: Putin considerou a decisão de Bush “equivocada”, mas declarou que ela não ameaçava a Rússia nem colocava em risco o futuro das relações russoamericanas (BOESE, 2002). Bush destacou que os EUA precisavam de liberdade 178 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares e de flexibilidade para desenvolver as defesas antimísseis e que a decisão de denunciar o ABM não deveria implicar a eliminação dos laços com a Rússia (BOESE, 2002). O secretário de Defesa Donald Rumsfeld, um dos principais oponentes do ABM na administração Bush, sugeriu que, com o tratado fora do caminho, o desenvolvimento de uma melhor relação entre os dois países era mais provável, porque se removia um “ponto problemático presente por tanto tempo”. Já o secretário de Estado Colin Powell, que foi o membro da administração Bush que menos ofereceu apoio à denúncia unilateral do tratado, descartou os receios de possíveis corridas armamentistas com a Rússia e com a China. Powell disse que as maiores indicações de que a Rússia não se sentia ameaçada eram os fatos de que Putin propusera reduções ofensivas estratégicas a um nível inferior ao sugerido por Bush – a aproximadamente 1.500 ogivas nucleares ou até menos, reafirmando, em dezembro de 2001, o que dissera em meses anteriores – e de que gostaria de formalizá-las num acordo. O secretário de Estado explicou que as defesas norteamericanas não se destinavam à proteção em relação a um ataque dos governos russo ou chinês, mas de Estados “irresponsáveis” (BOESE, 2002; WOOLF, 2002). Putin, que havia recusado insistentes propostas norte-americanas para denúncia conjunta do tratado, garantiu que a decisão não ameaçava a Rússia, pois o país tinha armas capazes de vencer defesas antimísseis. O presidente russo deixou claro que a Rússia consideraria o START II, que ainda não tinha entrado em vigor, como definitivamente morto quando a denúncia do ABM fosse efetivada. Segundo Putin, a Rússia adquiriria “o direito aos MIRV” assim que o ABM e todas as restrições associadas tivessem sido abolidos. O presidente russo descreveu a lógica por trás da decisão norte-americana como “não convincente”, já que nem os terroristas nem os “Estados párias” “têm ou possivelmente teriam mísseis balísticos estratégicos”. Porém, afirmou que a decisão norte-americana não minaria as relações russas com os EUA ou com o Ocidente e enfatizou a importância da construção de uma maior interação entre a Rússia e a OTAN. Os representantes dos Estados-membros da aliança e os da Rússia se comprometeram a criar um novo conselho que permitiria a eles identificar e buscar uma série de oportunidades para a ação conjunta (BOESE, 2002). Nos últimos anos da administração Bush, os EUA mantinham uma postura de maximização de sua flexibilidade estratégica e de abandono, negligência ou descaso em relação a compromissos mais densos no que dizia respeito ao controle de armas e ao desarmamento nucleares. Quase quinze anos depois do fim de Guerra Fria, os Estados Unidos continuavam a gastar bilhões de dólares anualmente na manutenção e na melhoria de suas forças atômicas. A administração Bush estava desdobrando uma capacidade nuclear de ataque preemptiva maior e mais precisa na Ásia-Pacífico e mudando a doutrina rumo ao direcionamento das forças atômicas estratégicas para complexos e centros de comando de armas de destruição em massa. O Departamento de Defesa estava atualizando os planos de ataque nuclear a fim de Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 179 Diego Santos Vieira de Jesus refletir a nova diretriz presidencial e a transição no planejamento de guerra de um plano operacional integrado pesado da época da Guerra Fria para planos de ataque mais flexíveis e menores destinados a derrotar novos adversários. Os objetivos maiores eram garantir a segurança dos EUA e de seus aliados e dissuadir, deter e, se necessário, derrotar adversários num conjunto amplo de contingências. Um desses novos planos apontava para o uso rápido de capacidades de guerra nuclear, convencional e informacional para eliminar – preemptivamente, se necessário – alvos “urgentes” em qualquer parte do mundo (NORRIS; KRISTENSEN, 2006a). Em resposta, a Rússia anunciava seus planos para novos sistemas e melhorias em alguns existentes. Em face das condições econômicas mais favoráveis do país, o governo buscava reafirmar sua força atômica depois de anos de declínio. Putin disse que a Rússia estava restabelecendo exercícios militares de larga escala, enquanto muitos funcionários do Kremlin faziam declarações sobre a relevância da postura nuclear (NORRIS; KRISTENSEN, 2006b). Entretanto, desde 2009, uma mudança na direção da política dos EUA com relação ao controle de armas e ao desarmamento nucleares parece estar ocorrendo. Com o início do mandato de Barack Obama como presidente em janeiro daquele ano, ele e os membros de sua equipe demonstraram a intenção de reverter algumas das principais políticas da Era Bush nessas áreas. No Executivo norteamericano, os atores centrais concordavam na maior parte dos pontos substanciais da segurança, como a negociação de novos acordos densos para o controle e a redução de armas nucleares estratégicas com a Rússia. Obama, a secretária de Estado Hillary Clinton e outros membros do Executivo norte-americano disseram que desejavam mais reduções, em especial porque o START I expirou em dezembro de 2009. Clinton inclusive sinalizava que a não proliferação nuclear e as negociações sobre reduções ofensivas estratégicas eram sua “mais alta prioridade” (HARVEY, 2009). No nível internacional, embora ainda ressaltasse a importância das armas nucleares não estratégicas na política de segurança em face da superioridade do arsenal convencional norte-americano, do alargamento da OTAN e da presença de sistemas atômicos dos EUA no território de países europeus (KELLEHER; WARREN, 2009), o novo Presidente russo, Dmitri Medvedev, enfatizou o comprometimento de seu país com a busca do desarmamento nuclear sob o Artigo VI do TNP. O presidente ressaltava que os dois países estavam reforçando seu compromisso em atingir um mundo livre de armas nucleares, aspiração constantemente ressaltada por Obama. Nas palavras de Clinton, arsenais enormes como os da Guerra Fria não eram necessários para proteger os EUA e seus aliados das ameaças principais do mundo contemporâneo: a proliferação nuclear e o terrorismo (KINBALL, 2010). Segundo Collina (2009), os russos viam positivamente a disposição dos norteamericanos de negociar questões também relacionadas a veículos de lançamento com capacidade atômica, como ICBMs que poderiam ser armados com ogivas não nucleares, e desejavam que esse novo tratado trouxesse uma ligação clara e explícita 180 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares entre as armas ofensivas e o desdobramento da defesa antimísseis na Polônia e na República Tcheca. Entretanto, seria improvável que se tocasse nessa ligação no novo acordo sobre armas ofensivas estratégicas em face dos obstáculos que ela poderia causar à ratificação desse novo tratado no Senado norte-americano. Ainda assim, uma declaração conjunta assinada pelos presidentes, em julho de 2009, unia os temas, mas não os incorporava no texto de um novo ato juridicamente vinculante. No mesmo mês, Medvedev e Obama assinaram um acordo definindo as provisões do novo tratado, que poderia apontar para a redução de arsenais estratégicos desdobrados a 1.500-1.675 ogivas e 500-1.100 veículos de lançamento, o que representava uma redução ainda maior do que aquela prevista no START I e no SORT (COLLINA, 2009). Esse novo tratado foi concluído após um ano de intensas negociações entre norte-americanos e russos, permeadas por altos e baixos. O Novo START limita cada lado a não mais que 700 veículos de lançamento estratégicos nucleares desdobrados e 1.550 ogivas estratégicas desdobradas, ou seja, uma redução de 30% em relação aos limites de ogivas existentes em 2010. Tal tratado também substituiu o regime de verificação do START I por um sistema mais efetivo e atualizado para o monitoramento da aquiescência nos seus dez anos de vida, podendo ser prorrogado por mais cinco. As reduções devem estar completas dentro de sete anos depois da entrada do tratado em vigor. Com isso, Obama e os membros de sua administração têm a intenção de restabelecer uma maior previsibilidade no relacionamento bilateral com a Rússia em padrões distintos aos buscados por Bush, reforçando o compromisso de fortalecimento do TNP na sua próxima Conferência de Revisão, em maio de 2010 (KINBALL, 2010). A assinatura do novo tratado significa, segundo os membros da administração Obama, somente o primeiro passo na busca da redução do número e do papel das armas nucleares, tendo em vista sua aspiração a retomar as consultas para uma próxima rodada de negociações com os russos para discutirem a eliminação verificável de ogivas estratégias e não estratégicas, desdobradas ou não, e a convidar outros Estados a se engajarem em negociações com o objetivo de ampliar a transparência sobre as capacidades nucleares, a confiança e a eliminação das armas atômicas. No nível doméstico, além de contar com o apoio de grande parte dos congressistas democratas e das ONGs ligadas à área de controle de armas e de desarmamento, Obama e sua equipe vêm se empenhando em mobilizar os senadores para que considerem e aprovem o acordo até o fim de 2010, enfatizando particularmente o apoio do Secretário de Defesa Robert Gates – no cargo desde 2006 – e de importantes republicanos, como os ex-Secretários de Estado George Shultz e Henry Kissinger e o senador Richard Lugar, membro do Comitê de Relações Exteriores do Senado (KINBALL, 2010). A minoria republicana pode, contudo, não estar disposta a abrir o caminho para um voto sobre o tratado antes das eleições parlamentares de 2010, o que pode atrasar a ratificação até o fim do ano ou até mesmo para 2011 (COLLINA, 2010). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 181 Diego Santos Vieira de Jesus Além disso, senadores republicanos, como Jon Kyl, continuaram a criticar possíveis negociações sobre limitações de programas de defesa antimísseis e a verificação do Novo START. Na barganha internacional com os russos, Obama levou em conta a preferência desses atores, tendo em vista a recusa a propostas dos negociadores de Moscou sobre limitações em torno dos desdobramentos da defesa antimísseis destinada a conter mísseis de pequeno e de médio alcance do Irã. Como os acordos anteriores, o Novo START apenas reconhece a relação entre armas ofensivas e defensivas na linguagem preambular e, quanto à verificação, conta com um método de mais efetivo e transparente que exige trocas mais rápidas de informação que o START I, bem como novas técnicas de identificação dos veículos de lançamento e dos níveis de desdobramento de ogivas (KINBALL, 2010). Considerações Finais Com as administrações Obama e Medvedev, é possível observar que acordos mais densos e detalhados, com regimes minuciosos para a verificação, voltam a ter um papel importante para o controle de armas nucleares dos EUA e da Rússia a fim de fortalecer ainda mais a confiança mútua no contexto de uma Nova Relação Estratégica entre as duas maiores potências nucleares do planeta, mas levando em conta a necessidade de flexibilidade para enfrentar futuras ameaças. Analisando a história do controle de armas nucleares entre os EUA e a Rússia, nota-se que a forma e o conteúdo dos instrumentos legais, para a administração dos recursos de violência na área nuclear, resultaram das alterações das preferências dos membros do Executivo de tais potências em relação ao balanço entre sistemas ofensivos e defensivos na política de segurança e ao papel da dissuasão em face das ameaças de potências atômicas tradicionais e de Estados-pária e atores não estatais no nível internacional. Porém, por mais que tenha havido variações com relação ao conteúdo, tais acordos viabilizaram a criação de um compromisso de regulação do tamanho, da composição técnica, dos modelos de investimento e das práticas operacionais das forças atômicas pelo consentimento para o benefício mútuo. Assim, geraram condições para a limitação da competição numa corrida armamentista acirrada, a redução de custos políticos e econômicos da preparação para o combate, a diminuição da probabilidade e do risco de guerra, a redução dos prejuízos caso um conflito viesse a ocorrer e a ampliação das seguranças regional e global. Os acordos detalhados, extensos e precisos sobre estabelecimento de limites ou sobre redução efetiva do número de armas estratégicas e não estratégicas dos EUA e da URSS / Rússia negociados durante a Guerra Fria, e na década que a seguiu, tiveram papel central na construção de uma relação estratégica mais segura entre as partes. Os regimes que eles estabeleceram permitiam o acesso à informação sobre o conteúdo de regras e as atividades das partes, oferecendo a segurança de que os representantes de um lado não tirariam vantagem do outro. Eles ampliavam 182 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 Além da Guerra Fria: A Flexibilidade Estratégica e o Controle de Armas Nucleares expectativas de que as partes comportar-se-iam segundo as regras, monitoravam a aquiescência em face dos altos incentivos para ruptura das normas e continham atores que contemplavam não anuir a acordos (Chayes & Chayes, 1995, p.135-153). Embora a relação política entre esses países fosse marcada pela suspeita e pela rivalidade, os acordos reduziam custos e incertezas da corrida armamentista, além de limitarem riscos militares da cooperação. Os procedimentos extensos, detalhados e rigorosos para verificação, por exemplo, asseguravam que qualquer tentativa de ruptura fosse detectada a tempo de permitir contramedidas apropriadas. Como a possibilidade de descoberta do comportamento desertor era alta e a de alcançar vantagem militar significativa era baixa, poder-se-ia ganhar pouco com a violação dos acordos (Center for Arms Control and Non-Proliferation, 2003; CHAYES; CHAYES, 1995, p.174-179). Na primeira década do século XXI, o papel de acordos complicados e minuciosos sobre controle e redução de armas nucleares foi questionado, tendo em vista seu nível excessivo de intrusão e os altos custos das atividades. Em termos financeiros e organizacionais, cabe destacar que as inspeções do INF custaram aos EUA cerca de US$ 105 milhões por ano nos quatro anos iniciais de operação. Estimativas apontam que os custos de verificação do START I estariam na faixa de US$ 100 milhões a US$ 290 milhões ao ano (CHAYES; CHAYES, 1995, p.191). As provisões complexas e detalhadas – especialmente no ponto de vista de membros da administração de George W. Bush – apresentavam custos políticos e estratégicos, já que impunham restrições à operação e à modernização do arsenal nuclear, limitando a flexibilidade estratégica em face da emergência de ameaças (SOKOV, 2002, 2003). Nesse contexto, inseriu-se o SORT, que não é altamente preciso ou complexo, nem mesmo tem provisões próprias para verificação. Porém, Obama e Medvedev recuperaram as lições da Guerra Fria e retornaram ao antigo padrão de tratados densos e minuciosos para o controle de armas nucleares, visando a garantir maior estabilidade no relacionamento entre as duas grandes potências atômicas para o futuro, ao passo que ainda tentam acomodar a necessidade de fazer frente a Estadospária e a organizações terroristas. O desafio para o futuro do controle de armas nucleares entre os EUA e a Rússia será a acomodação da responsabilidade dos instrumentos densos bilaterais e da flexibilidade estratégica para enfrentar as principais ameaças à segurança na contemporaneidade. Referências ARMS CONTROL ASSOCIATION. U.S. - Soviet/Russian nuclear arms control. Arms Control Today, v. 32, n. 5, jun. 2002. Disponível em: <http://www.armscontrol.org/ act/2002_06/factfilejune02.asp>. Acesso em: 24 jul. 2004. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 25, n. 52, p. 163-186, jan./jun. 2011 183 Diego Santos Vieira de Jesus ASSENOVA, M. The debate on NATO’s evolution: a guide. Washington, D.C.: Center for Strategic and International Studies, 2003. Disponível em: <http://www.csis.org/ ee/NATO_Debate_guidebook.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2004. BARTON, J.H.; WEILER, L.D. (Ed.). International arms control: issues and agreements. Stanford: Stanford University Press, 1976. BLEEK, P.C. U.S., Russia complete START I reductions. 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A ESG desenvolve estudos sobre política e estratégia, destinados ao desenvolvimento do conhecimento e de metodologia de planejamento político-estratégico, em especial nas áreas da segurança e da defesa. Atuando como centro permanente de estudos e pesquisas, competelhe, ainda, ministrar os cursos que forem instituídos pelo Ministério da Defesa. A ESG está localizada na área da Fortaleza de São João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. A Fortaleza foi mandada construir, em 1565, por Estácio de Sá, na várzea entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, e marca a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Revista da Escola Superior de Guerra Av. João Luís Alves, s/nº Fortaleza de São João - Urca 22291-090 - Rio de Janeiro - RJ www.esg.br - E-mail: [email protected] 0102-1788