Introdução Neste ensaio será proposta uma interpretação expandida do conceito de Ecologia (no que diz respeito à Filosofia), com base no modelo ontológico delineado pela Ontologia Objeto-Orientada, que passará a abranger todo tipo de relação entre entes de qualquer espécie, e não apenas a relação entre organismos e habitats. Essa ampliação decorre da maneira como entes outrora excluídos desse campo do pensamento hoje impingem sobre o cotidiano, as decisões e o futuro dos seres humanos. 1 Atualmente questões ecológicas estão presentes nas mais variadas esferas da vida, das decisões domésticas a respeito do lixo a decisões políticas intergovernamentais com relação às emissões de carbono. Sendo assim, um conceito de Ecologia que permeie todas essas esferas é desejável, se não necessário, para que seja possível lidar com as questões que as condições atuais do planeta suscitam. Está a ser negociada a inclusão de uma nova época na escala temporal da Geologia - chamada Antropoceno, a "Idade do Homem" - caracterizada pelas marcas claramente discerníveis do impacto humano na crosta terrestre; uma camada de carbono depositada ao longo dos séculos, cuja origem é a queima de combustíveis fósseis, e uma camada de matéria radioativa, depositada a partir de 1945, com as primeiras explosões nucleares. 2 Somando-se a isso a constatação indiscutível de que os ritmos acelerados da atual fase de aquecimento global são de origem antropogênica, é fácil construir uma narrativa na qual o ser humano é o vilão. Porém, demonizá-lo, como 1 2 Morton, 2010, pp. 11, 28 Morton, 2013-B, pp.4-5 1 aponta Bruno Latour, significa tomá-lo ainda como um ente excepcional, e é exatamente isso que este ensaio procura evitar ao fundamentar seu conceito de Ecologia sobre bases objeto-orientadas.3 A Ontologia Objeto-Orientada (cujo preceptor é o filósofo americano Graham Harman) define os objetos como os entes individuais específicos que compõem o cosmos.4 São objetos: entes de qualquer escala, materiais ou não, contanto que possuam unicidade, ou seja, resistam ser reduzidos a suas partes, efeitos ou relações. De raquetes a elefantes, de Hamlet às cataratas do Iguaçu, todos são igualmente objetos. Este modelo fornece o esquema para uma ontologia plana, não-hierárquica, que problematiza o papel coadjuvante ao qual o correlacionismo prevalecente - a noção, cuja origem atribui-se ao pensamento de Immanuel Kant, de que há uma fenda entre o sujeito transcendental (humano) e a coisa em-si - relega tudo o que não abrange, em outras palavras, a Ontologia Objeto-Orientada estabelece um patamar ontológico único, compartilhado por todo tipo de objeto, sem que um deles (ou uma categoria de objetos) possua estatuto privilegiado ou especial acesso à realidade (por via da racionalidade ou de qualquer outra forma).5 Ao localizar todo tipo de ente num mesmo nível ontológico, o papel de cada um na constituição da realidade é reconhecido, o que abre caminho para um pensamento mais ecologicamente consciente, ou seja, que leva em consideração a maneira como objetos de toda sorte existem, conjugam-se e interagem - sejam eles humanos ou nãohumanos, visto que, nos moldes desta orientação, o humano consta como mais um objeto entre muitos.6 3 Latour, 1994, p. 123 Harman, 2011-A, pp.5-6 5 Latour, 1994, p. 56 Morton, 2013-B, p. 9 6 Morton, 2013-A, pp. 62-4 Harman, 2012-A, p.17 4 2 A crise ambiental anuncia uma crise no pensamento; quando Etienne Turpin cita a formulação deleuziana que afirma que a capacidade de elaborar problemas é a tarefa fundamental da Filosofia, ele aponta para a maneira como a concepção do Antropoceno representa uma oportunidade para a descoberta de novos rumos, e para uma profunda transformação na trajetória do pensamento. O Antropoceno (e a crise ambiental que o acompanha) convoca discussão por parte não só da comunidade científica, mas também das humanidades, da classe política e do público em geral. 7 Na base deste debate está o lugar ocupado por cada objeto (natural, vivo, senciente, humano, ou não) no plano ontológico, o tema deste ensaio encontra-se, assim, no ponto de partida para tais transformações e descobertas. A primeira parte deste ensaio ocupar-se-á, nomeadamente, dos objetos. Inicialmente será apresentada a crítica ao chamado correlacionismo. A fenda entre o sujeito e o objeto em-si, tradicionalmente uma exclusividade humana, será distribuída pela Ontologia Objeto-Orientada entre todos os objetos. Estes, da mesma maneira como o sujeito humano, serão incapazes de acessar qualquer outro objeto diretamente, toda interação acontecerá sempre através de simulacros sensíveis produzidos no ato da interação. Em seguida, será delineada a maneira como os objetos vem sendo abordados ao longo da história da Filosofia. Serão descritas as duas principais estratégias usadas para anular o objeto (o minar e o dissipar) em favor de um outro ente. Na seção ´Os Objetos e suas Relações` serão introduzidas algumas das principais noções que constituem a estrutura deste modelo; o objeto real e o objeto sensível (a essência que se retira de qualquer contato e o perfil estético que se mostra, respectivamente), a estrutura do como (a maneira como um objeto tem acesso ao 7 Turpin, 2013, p.10 “(...) problems get the solutions they deserve according to the terms by which they are created as problems.” 3 outro) e a causalidade vicária (causalidade indireta, a forma como objetos reais jamais se encontram diretamente, mas são sempre mediados pelos objetos sensíveis). Na segunda parte do ensaio o tema da Ecologia será posto em foco e desenvolvido, sempre em relação às bases ontológicas estabelecidas na primeira parte. Será discutida a maneira como a Ecologia hoje sofre com a imprecisão, pois, sua própria definição encontra-se muitas vezes apoiada sobre conceitos problemáticos (a Natureza ou o natural, por exemplo) mas que, ainda assim, questões relacionadas à Ecologia são cada dia mais variadas e mais presentes - dada a compreensão de que o ser humano transformou-se em uma das mais potentes forças planetárias ao mesmo tempo que foi apontado como responsável pelos atuais transtornos climáticos. Contudo, o objetivo deste ensaio não é tornar precisos esses conceitos; alguns deles serão rejeitados (como o próprio conceito de ´Natureza`, que não existe à parte dos entes que a constituem), outros serão apresentados em toda a sua nebulosidade e imprecisão, traços que, como será observado, são comuns aos objetos em geral.8 Em seguida, o estranho-estranho será apresentado como contraparte do discurso ecológico ao objeto real do discurso ontológico; o ente individual, que se afasta de qualquer encontro direto mas que, ainda assim, é o elemento fundamental na constituição do ambiente. A interconexão entre todos os estranhos-estranhos compõe aquilo a que Morton dá o nome de malha que, nos termos de Harman, corresponde ao éter sensível no qual todos os objetos encontram-se submersos.9 O encontro com estranho-estranho será apresentado como um evento essencialmente inquietante, pois, no coração de cada ente existe um hiato entre sua essência (o objeto real em plena execução) e sua aparência (seus traços estéticos, a parte que se mostra aos entes com os quais interage), ou seja, o objeto não pode jamais 8 9 Morton, 2013-A, p. 48 Morton, 2010, p.8 Morton, 2013-A, pp. 75-6 Harman, 2005, pp.33-44, 77, 81-4, 84-7 4 ser totalmente identificado com a maneira como ele aparece para outro objeto. Assim, será descrito também o modo como dessa inquietação ontológica nasce a ansiedade fundamental (intrínseca ao ser humano) que motivou o desenvolvimento e o estabelecimento da agrilogística - o programa agricultural surgido no período Neolítico (por volta de dez mil anos atrás), que desde então veio a dominar as técnicas de produção de alimentos (a agricultura e a criação de animais) em todo o planeta.10 Devido a sua grande eficiência a agrilogística possibilitou o desenvolvimento civilizacional nos moldes (e escala) existentes hoje mas, por outro lado, ao mesmo tempo em que aparentava eliminar a ansiedade e a contradição, ela estabeleceu barreiras rígidas entre as esferas humana e não-humana, e reduziu a qualidade de existência à mera quantidade (nos moldes da conclusão repugnante de David Parfit).11 As condições de possibilidade do Antropoceno têm, assim, raiz na maneira como a agrilogística impele o ser humano a enquadrar o ambiente de modo a transformá-lo num armazém de materiais.12 Desta maneira, uma perspectiva objeto-orientada para a Ecologia no Antropoceno - encapsulada na Ecologia Sombria desenvolvida por Timothy Morton não só problematiza o privilégio do sujeito humano na Filosofia, mas sugere caminhos para o desenvolvimento de relações mais equilibradas entre humano e não-humano, visto que estas duas esferas não existem em separação absoluta mas, pelo contrário, determinam-se mutuamente. Ao estabelecer entes autônomos como elementos primários, anteriores às relações que engendram esta abordagem concede a cada um deles existência real, que exige reconhecimento. A Ecologia Sombria está em linha com a fenomenologia de Alphonso Lingis, que descreve a realidade como um espaço interobjetivo no qual cada 10 Morton, 2014-A, segundo seminário Parfit, 1984, pp. 381-90 12 Morton, 2013-B, pp.106-7 Heidegger, 1977, p.17 11 5 objeto emana "uma ressonância (...) que invade nossa sensibilidade". Eles expedem directivas - comandos - sobre os objetos com os quais interagem, e a coexistência tornase uma questão de sintonia (attunement) em meio a profusão de entes que existem radicalmente próximos ao mesmo tempo que absolutamente separados pela fenda irredutível que cerca cada objeto. 6 I - As bases ontológicas Esta primeira parte do ensaio procurará demonstrar a maneira como a realidade é quantizada, ou seja, composta por partes, e ainda, como são os chamados objetos estes elementos constituintes fundamentais.13 Objetos serão, portanto, descritos na qualidade de entes ontologicamente primários, que existem sinceramente - um termo ao qual Harman dá (seguindo Emmanuel Levinas) um significado específico, a saber, o modo como entes existem "absorvidos em ser exatamente aquilo que são".14 Será discutido ainda, o modo como estes objetos existem cindidos entre sua essência e sua aparência: a primeira, a pura execução de uma realidade específica e individual, que o define ao mesmo tempo que permanece obscura e retirada; enquanto a segunda, o perfil estético que aparece, aquele que é apreendido por um outro objeto no momento da interação, ou seja, a representação que lhe corresponde).15 Correlacionismo A OOO surge em meio a uma gama de filosofias recentes, agrupadas sob a denominação Realismo Especulativo, que vêem de maneira crítica aquilo a que Quentin Meillassoux dera o nome de correlacionismo - a noção, de origem kantiana, de acordo 13 Harman, 2002, pp.34, 43-4 Morton, 2013-A, p. 42 14 Harman, 2005, pp. 59-60, 136 15 Harman, 2011-A, pp. 20-50 (especialmente pp. 29, 39) Harman, 2005, pp. 76, 86 7 com a qual um indivíduo tem acesso somente àquilo que se encontra circunscrito na correlação entre a esfera subjetiva (do indivíduo humano) e a esfera objetiva (das coisas no mundo).16 A OOO busca expandir o escopo desta correlação afirmando que todo objeto acessa de fato a realidade, porém, à sua maneira. Também fazem parte deste grupo nomes como Quentin Meillassoux (e seu materialismo especulativo), Ray Brassier (que defende um niilismo transcendental), Iain Hamilton Grant e Jane Bennett (que subcrevem ao materialismo transcendental e ao neo-vitalismo, respectivamente), entre outros. Quando Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura, aponta para o hiato intransponível existente entre a coisa-em-si e o objeto da experiência humana, ele cimenta uma noção central para a Filosofia moderna, conhecida hoje como sua correlação. Esta, consiste na proposta de que os princípios do entendimento puro não possuem uma correspondência direta com a realidade objetiva, mas contêm em si, e a priori, o “esquema da experiência possível”.17 Para Kant, objetos são dados ao indivíduo por via da sensibilidade, que o provê com intuições que, por sua vez, referem este objeto (externo) ao entendimento (interno).18 Desta maneira, um abismo é situado à volta da experiência (humana), uma noção subsequentemente passada adiante através da história da Filosofia. Bruno Latour reconhece a penetrância desta herança quando afirma que o kantianismo fora responsável por transformar uma mera distinção numa separação total: a coisa-em-si tornou-se algo remoto e inacessível enquanto, simetricamente, o sujeito transcendental foi posto numa esfera infinitamente retirada, e as relações entre os dois passaram a ser mediadas pelos fenômenos. 19 Hoje, essa correlação vem sendo questionada pelo Realismo Especulativo por diferentes vias e razões, mas principalmente porque ao aderir-se a esta correlação, nos 16 Meillassoux, 2010, pp.5-7 Kant, 1989, pp. 257-258 18 Kant, 1989, pp. 21-23 19 Latour, 1993, pp. 55-56 17 8 termos estabelecidos por Kant, o campo da Filosofia (juntamente com a Arte e a Ciência) fica restrito à pequena região da realidade acessível ao humano (ou a um grupo limitado de entes racionais), uma região que existe dentro de um espaço muito maior, a dimensão da causalidade, que não se restringe àquilo que acontece entre entes racionais, ou entre ente racionais e o mundo, mas inclui átomos de hidrogênio, vento, narcisos, chips de silicone, meteoros e engrenagens; "O trabalho anônimo da existência acontece na pura execução das coisas sendo aquilo que são, e não em um suposto acesso que possamos ter a esta execução".20 São duas as preocupações principais deste ensaio no que concerne a chamada revolução copernicana de Kant, a derrubada definitiva da ponte entre a experiência do sujeito racional (em outras palavras, humano) e a coisa-em-si, a saber, a) o privilégio do ser humano como ente designador de realidade; b) a maneira como, inadvertidamente, Kant dá continuidade a um processo que começara mais cedo, com Descartes, e que pode ainda ser observado, no qual questões epistemológicas gradualmente assumem o papel de destaque na investigação filosófica, e a especulação a respeito daquilo que jaz fora do eixo entre a mente humana (ou racional) e o mundo é posta de lado, tornandose uma tendência menor no cenário da Filosofia moderna.21 Segundo Latour, no espírito do método cartesiano, cujo alicerce é a dúvida insistente, nasce no século XVII o ´fato científico` - uma descrição física precisa do mundo, com base na matemática dos cálculos e na experiência empírica das medições e este é, a partir de então, tomado como fundamento de toda a realidade, além de ser ainda frequentemente usado para encerrar discussões, uma vez que tradicionalmente nenhum outro tipo de conhecimento possui igual valor como garantia de verdade.22 Husserl já identificara esta tendência: “Tornou-se quase um lugar comum (...) afirmar 20 Harman, 2002, p. 239 Latour, 1999, p.6 Morton, 2013-A, p. 79, 210 22 Latour, 1993, p.33 21 9 que só pode haver um método cognoscitivo comum a todas as ciências e, portanto, também à Filosofia. Esta convicção corresponde perfeitamente às grandes tradições da Filosofia do séc. XVII, a qual também defendeu que a salvação da Filosofia depende de ela tomar como modelo metódico as ciências exactas e, acima de tudo, pois, a matemática e a ciência natural matemática”.23 Este favorecimento do saber ôntico, conclui Meillassoux, exclui da prática filosófica justamente aquilo que constitui o caráter revolucionário do conhecimento científico: seu teor especulativo, pois, devido aos mecanismos da correlação kantiana a Filosofia fica impedida de fazer asserções em relação ao modo de existir dos objetos do mundo, por estar restrita à maneira como estes percolam o entendimento humano. Assim, a metafísica deixa, em grande parte, de apresentar-se como guarida de compreensão acerca daquilo que se encontra fora da articulação entre a subjetividade humana e a esfera objetiva.24 Harman dá a parte da Filosofia continental recente a alcunha de Filosofias do Acesso (Philosophies of Access), por tomarem a área circunscrita pela fenda kantiana como sítio privilegiado, espaço exclusivo no qual toda filosofia verdadeiramente rigorosa pode ser desenvolvida.25 É exatamente na direção contrária a esta tendência que surge a OOO, como braço ontológico do Realismo Especulativo, um grupo bastante diversificado, cujo traço comum é a posição crítica em relação ao correlacionismo kantiano. Porém, enquanto Meillassoux, por exemplo, discorda do correlacionismo por este afirmar a impossibilidade do acesso direto à esfera real e a consequente finitude do conhecimento humano acerca do mundo (Meillassoux defende que o acesso a um conhecimento absoluto é possível através da matemática que, para ele, escapa correlações), a OOO junta-se ao coro de críticas num outro tom. Harman reivindica a possibilidade de ir-se além da tendência para uma abertura relacional especial e exclusiva, da qual o ser humano consta como único beneficiário, à maneira das 23 Husserl,1986, pp. 46-47 Meillassoux, 2010, pp. 119-121 25 Harman, 2011-A, p.136 24 10 Filosofias do Acesso, e procura lidar com todo tipo de objeto dentro de um sistema compreensivo.26 Correlacionismo distribuído Em contraste com o método cartesiano o pensamento de Harman não parte da dúvida radical, mas da ingenuidade sincera, uma ingenuidade que possui uma significação precisa e específica, a saber, a maneira como todo objeto existe constantemente absorvido na atividade de ser aquilo que ele é, um papel que nenhum outro ente é capaz de exercer. - "aquela forma primitiva de inocência com a qual todo ente já está tingido desde o início". (Harman, 2005, p.130)27 A experiência humana imediata é povoada por objetos que ´mobiliam` seu ambiente e, assim, é daí que parte uma descrição ontológica cujo foco recai exatamente sobre estes objetos. É importante realçar como a categoria dos objetos (na OOO) engloba entes de toda variedade “canela, microondas, partículas interestelares e espantalhos” (Morton, 2013-A, p.42)28inclusive entes que não são considerados objetos no sentido corrente do termo, como cores ou números - “afinal, é perfeitamente possível discutir o sentido de ´número` e fazer novas descobertas sobre entes matemáticos - a prova mais simples concebível de que as propriedades dos números não se encontram visíveis num vislumbre (...). É neste sentido que até mesmo as ideias devem ser consideradas objetos”. (Harman, 2002, p.36)29 26 Harman, 2011-A, pp.136-8 Harman, 2011-A, p.6 Harman, 2005, pp. 71, 128, 130, 135-6, 141 "(...) sincerity, that bedrock form of innocence with which all being is laced from the start". Harman ecoa conceitos de ingenuidade e sinceridade de José Ortega y Gasset e Emmanuel Levinas, respectivamente, em sua concepção da sinceridade do objeto . Gasset: "Es vano todo empeño que pretenda desalojar del mundo la ingenuidad. Porque, en definitiva, lo que verdaderamente hay no es sino la sublime ingenuidad, es decir, la realidad" (Ortega y Gasset, J. Obras Completas, Vol. VIII, p.50) 28 Morton, 2013-A, p.42 “(...) cinnamon, microwaves, interstellar particles and scarecrows” 29 Harman, 2002, p. 36 27 11 Se inicialmente parece estranho ter a experiência humana como plataforma de partida para uma ontologia que visa quebrar a restrição correlacionista que tende a favorecer o humano, cabe aqui um esclarecimento. Kant impõe duas limitações epistemológicas, a) o em-si é posto mais além de qualquer possibilidade de acesso direto e, b) esta impossibilidade é inerente ao esquema da experiência possível característica do ser humano. A OOO concorda com a primeira limitação, porém, um de seus pilares principais consiste na negação da segunda. Enquanto Kant privilegia a articulação entre a subjetividade do indivíduo humano (ou, numa leitura generosa, do ser racional) e a realidade em-si (“...o que é realmente característico da posição de Kant é que a relação humano-mundo tem prioridade sobre todas as outras”, afirma Harman), a OOO expande o escopo da abordagem: “Colisões inanimadas devem ser tratadas exatamente da mesma maneira que percepções humanas, mesmo que estas sejam formas de relação obviamente mais complicadas.” (Harman, 2011-A, pp.45-6)30 Posto de outra forma, um objeto, em seu existir enquanto aquilo que ele é (em sua sinceridade fundamental), encontra-se absolutamente afastado de qualquer outro. A pedra ou o lagarto que o ser humano toma como tema de suas reflexões escondem-se dele na mesma medida em que ele distancia-se dos dois; e ainda, esta pedra e este lagarto nunca se revelam completamente um ao outro, ou mesmo a si próprios. Todo ente encontra-se envolvido num carnaval de objetos, porém, nenhum deles corresponde ao ente em-si, nem mesmo seu próprio corpo.31 Da mesma forma como se retiram do contato direto com a subjetividade humana, os objetos retiram-se também do contato direto com qualquer outro ente, e em defesa desta “After all, it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a glance (...). It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.” (minha ênfase) 30 Harman, 2011-A, pp.45-6 “(...) what is truly characteristic of Kant's position is that the human-world relation takes priority over all others.” “Inanimate collisions must be treated in exactly the same way as human perceptions, even if the latter are obviously more complicated forms of relation” 31 Morton, 2014-B, em conferência. 12 afirmação a OOO sustenta que a existência de uma hierarquia ontológica não faz sentido, pois, todo objeto (de qualquer natureza) respeita o mesmo esquema básico no executar de sua realidade e nas relações nas quais se envolve - "a existência no interior de objetos é definida pela sinceridade e pelo envolvimento, não pela transcendência e pela análise crítica".(Harman, 2005, p.255)32 Para a OOO as coisas-em-si encontram-se eternamente fora do alcance humano, o que não se dá devido a uma marca trágica específica de sua espécie mas, é comum a entes de qualquer qualidade. 33 Se a posição correlacionista situa uma fenda entre a mente humana e os objetos do mundo (o primeiro jamais desvela o segundo em sua totalidade); a OOO situa esta mesma fenda à volta de todo e qualquer objeto. Assim, todos os entes são incapazes de desvelar uns aos outros total e completamente, “quando objetos retiram-se para o interior de suas escuras realidades subterrâneas, não se distanciam somente dos seres humanos, mas também uns dos outros”. (Harman, 2002, p.2)34 Mais acerca da maneira como se dão as relações entre objetos será apresentado à frente, mas é importante que desde já fique claro a forma como a OOO não busca abolir o correlacionismo kantiano, pelo contrário, assevera-se que o mesmo é válido para todo tipo de objeto; a privação do em-si é democraticamente multiplicada e distribuída através de toda a paisagem ontológica: “[a OOO] sustenta que a relação que o humano tem com o pólen, o oxigênio, as águias ou os moinhos de vento não é de um tipo diferente da interação destes objetos entre si”.(Harman, 2005, p.1)35 A perspectiva que um ser humano tem acerca da realidade é essencialmente antropomórfica na 32 Harman, 2005, p. 255 "Existence in the interior of objects is defined by sincerity and involvement, not transcendence and critique." 33 Harman, 2011-B, p. 171 34 Harman, 2002, p. 2 “When the things withdraw from presence into their dark subterranean reality, they distance themselves not only from human beings, but from each other as well.” 35 Harman, 2005, p.1 “(...) object-oriented philosophy holds that the relation of humans to pollen, oxygen, eagles, or windmills is no different in kind from the interaction of these objects with each other.” 13 mesma medida em que a perspectiva de uma pedra é “lito-mórfica”, ou a de um gato é “felino-mórfica”.36 Há momentos em que a OOO é acusada de aproximar-se do pampsiquismo, uma doutrina muitas vezes vista como absurda dentro da esfera do privilégio da subjetividade humana na Filosofia desde Kant.37 Entretanto, a OOO diferencia-se do pampsiquismo - que consiste na tese que atribui algum grau de senciência a todo ente que compõe a realidade física - na medida em que não atribui senciência, ou mente, aos objetos em geral, mas ela afirma que os objetos (todos ocupando o mesmo patamar ontológico) interagem sensivelmente, ou seja, através de suas qualidades sensíveis (estéticas), pois sua essência (real) retira-se de todo e qualquer contato, deixando para trás somente sua aparência, seus traços perceptíveis.38 Todo objeto é, para a OOO, dotado da capacidade primitiva de produzir e interpretar fenômenos, uma capacidade que consiste simplesmente no modo como ele traduz os traços sensíveis dos objetos com os quais se relaciona, enformado por suas limitações próprias.39 Isso não deve ser entendido como a antropomorfização das capacidades dos objetos, pois, como afirmado anteriormente, cada objeto possui seu próprio estilo de interpretação da realidade, sua própria perspectiva; por exemplo, o estilo “lito-mórfico” de percepção é enformado pela execução da realidade específica daquela pedra. Ao descansar sobre a mesa o copo a interpreta como uma superfície sólida que suporta seu peso e, por isso, não cai ao chão. A chama que queima a folha de papel a traduz como algo inflamável, e apesar de não ser capaz de encontrar outras características desta mesma folha (como sua cor, sua textura, o odor de perfume nela impregnado, a beleza da caligrafia antiga ali registrada, a intensidade da paixão expressa no texto que esta folha de papel - parte de uma carta de amor - contém) a chama ainda assim consome o papel. 36 Morton, 2013-A, pp. 82, 120 Harman, 2011-A, p.120 38 Sprigge, 2000, p.654 39 Harman, 2005, pp.19, 165, 174, 186, 192 37 14 Desta forma, neste ensaio serão usados verbos como interpretar, traduzir, ou mesmo perceber para descrever a maneira como um objeto encontra outro objeto. É fundamental que estes termos sejam tomados num sentido muito básico e rudimentar, que pode ser estendido a todos os objetos. Aqui, este encontro consiste em todas as formas nas quais o objeto é afetado, aquilo que o toca, não necessariamente de forma física. No exemplo acima, a chama encontra a folha de papel como combustível, enquanto a folha interpreta a chama como algo que a consome. Também vale chamar a atenção para o uso da palavra estética (e termos associados); esta expressão, derivada do verbo grego αισθάνομαι (aisthánomai), fora originalmente identificada por Alexander Gottlieb Baumgarten com o latim sentio, no sentido da percepção por meio dos sentidos.40 Porém, assim como a ideia de tradução é neste ensaio empregada em sensu lato, também é ampla a interpretação dada ao termo estética, que passa a guardar relação com tudo aquilo que diz respeito à esfera sensível, nos moldes acima descritos. Um evento estético é, portanto, a maneira como um objeto (qualquer) impinge sobre outro.41 De acordo com o modelo da OOO, objetos são entes de escalas variadas, materiais ou não, naturais ou não, simples ou compostos, duráveis ou efêmeros, que compõem o universo; de forma que martelos, sobreiros, embriões congelados, times de futebol, bancos de dados, números irracionais, a maratona de Nova Iorque e a Liga da Justiça são todos igualmente objetos.42 Eles são ainda compostos por objetos, e existem no interior de objetos - “Toda a realidade desenrola-se no interior de um objeto - ou melhor, no interior de incontáveis objetos, que se estendem por cima e por baixo uns dos outros indefinidamente” - no entanto, eles não podem ser reduzidos a um conjunto de 40 Budd, Townsend e Martin, 2000, pp. 7-10, 78, 664-5 Morton, 2013-B, p. 51 42 Harman, 2005, pp. 76-7 Harman, 2011-A, p.5 41 15 partes, tampouco a mera parte de um todo maior, em outras palavras, não podem ser minados. (Harman, 2005, p.193)43 Objetos não podem ser reduzidos a suas partes ou à sua percepção por parte de outros entes, assim como não podem ser reduzidos a seus efeitos sobre o ambiente em que se encontram. Assim, objetos existem paradoxalmente divididos, confinados no isolamento da execução de suas realidades específicas (fora do alcance de qualquer outro objeto), ao mesmo tempo que exibem traços estéticos (sensivelmente perceptíveis) que, ao contrário de seu núcleo executor, não se escondem ou recuam. 44 A este núcleo isolado a OOO dá o nome de Objeto Real, enquanto o perfil estético (aquilo que se mostra) recebe o nome de Objeto Sensível. Objetos devem, nestas condições, ser concebidos (mesmo que um tanto contraditoriamente) como indivíduos discretos e autônomos que, ao mesmo tempo, não se encontram inteiramente desconectados de seus componentes ou de outros objetos, pois, todos encontram-se submersos no oceano de traços sensíveis emanados pelos objetos reais, que este ensaio chama de plano estético-causal, a esfera na qual existe a possibilidade de interação e contato.45 Uma crítica da história da ontologia Harman, numa análise das diferentes estratégias adotadas ao longo da história da Filosofia na abordagem dos objetos, afirma que, em geral, filósofos procuram evitar tratá-los como fundamento da realidade e, para tal, tomam uma de duas saídas: por um lado, escapam para um nível mais profundo, subjacente aos objetos, por outro, dão preferência a um nível acima, do qual objetos são apenas instanciações pontuais. A busca por um nível mais profundo é o chamado minar (undermine) dos objetos, o 43 Harman, 2005, pp. 85, 193 “All reality unfolds in the interior of an object - or rather, in the interiors of countless objects, stretching above and below each other indefinitely” Morton, 2013-A, pp.43, 169 44 Harman, 2005, pp. 33-44, 76-7 45 Harman, 2013-A, p.238 16 movimento oposto é seu dissipar (overmine); estes dois movimentos podem ainda ser combinados.46 Minando o objeto Os filósofos pré-socráticos foram os primeiros a adotar a estratégia que mina objetos em busca de um plano mais profundo. Nas teorias dos elementos, por exemplo, o cosmos seria composto por um elemento em diferentes graus de compressão (Tales, Anaxímenes) ou pela combinação de um pequeno grupo de elementos básicos (Empédocles), e o atomismo (Demócrito) é ainda, mais uma variação do mesmo tema. Também em busca de um nível mais profundo que o dos entes que se mostram no mundo e na experiência humana houve, ainda entre os pré-socráticos, aqueles fundiram tudo o que existe num grande todo ou άπειρον (Apeiron) que existiu no passado mas fragmentou-se, que existe no presente e faz da multiplicidade de objetos uma ilusão dos sentidos, ou que existirá no futuro quando as diferentes forças em ação hoje já houverem cancelado umas às outras (Pitágoras e Anaxágoras, Parmênides, Anaximandro, respectivamente).47 Outra alternativa, mais recente mas que ainda parte da mesma estratégia, são as teorias processuais, como as de Henri Bergson ou Gilles Deleuze, que procuram pensar a realidade como algo fluido mas que, no entanto, ao tomarem o Ser como algo dinâmico (o devir, o jogo da diferença) acabam também por rejeitar os objetos na qualidade de elementos constituintes básicos, descrevendo-os como instanciações (estáticas pontuais) de tais fluxos ou processos dinâmicos, que são tidos como mais profundos ou fundamentais.48 Todas estas abordagens debilitam o objeto, e têm em comum o fato de que os anulam em favor de uma realidade subjacente, seja esta constituída por pequenas 46 Harman, 2011-B, pp. 172-5 Harman, 2011-A, pp. 8-9 48 Harman, 2011-A, pp. 9-10 47 17 partículas, por um todo omni-englobante ou por um processo fundamental. Todas elas têm, ainda, dificuldades em explicitar o motivo pelo qual a unicidade do fluxo (ou do todo mais primário) fragmentar-se-ia, ou, no caso de múltiplos elementos ou processos, como e por que o que é plural viria a combinar-se. Estas teorias também têm dificuldade em justificar qualidades emergentes - aquelas identificadas quando o objeto como um todo apresenta características que seus componentes não possuem isoladamente.49 Dissipando o objeto Outra maneira de retirar o objeto do centro da investigação filosófica e tomá-lo como uma hipótese desnecessária é dissipá-lo. Isto ocorre quando o objeto é definido relacionalmente: pela maneira como se mostra a um observador, como um feixe arbitrário de qualidades imediatamente percebidas, como eventos ao invés de substâncias subjacentes, ou ainda, quando objetos são considerados reais apenas na medida de seus efeitos.50 Para Harman, o Empirismo consta no grupo de filosofias que dissipam o objeto, pois afirma que a mente humana é o responsável por interligar traços díspares em feixes que formam unidades maiores, apreendidas segundo o hábito.51 Para usar o exemplo de Harman, se a palavra “maçã” for simplesmente o apelido dado a uma série de qualidades discretas habitualmente ligadas (vermelho, doce, sólido, etc), o objeto maçã é incapaz de sustentar-se e já não pode ser tratado como um ente autônomo, pois, o que existe realmente são impressões individuais, entrelaçadas pela mente (humana) que as percebe. Contudo, este modelo falha, pois, na experiência são encontrados objetos unificados; “as qualidades individuais das coisas já se encontram imbuídas com o estilo ou um senso da coisa como um todo. Mesmo se exatamente o 49 Harman, 2013-B, em conferência Harman, 2011-A, pp. 10-1 Harman, 2011-B, p.172 51 Harman, 2005, p. 92 50 18 mesmo tom de vermelho da minha maçã puder ser encontrado numa camisa ou numa lata de tinta spray que esteja por perto, as cores terão uma sensação distinta em cada um dos casos, já que elas estão ligadas à coisa à qual pertencem”. (Harman, 2011-A, p.11)52 Apesar do objeto não poder ser reduzido às suas qualidades estéticas, estas encontram-se definitivamente ligadas ao objeto, constituindo sua parte visível. 53 Outro exemplo manifesto da dissipação dos objetos pode ser encontrado no idealismo absoluto de George Berkeley, que não admite a existência de objetos fora da mente.54 Se “esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), como afirma o filósofo, mais uma vez, e de modo radical, toda a realidade fica dependente da mente humana, impossibilitando a existência de objetos reais autônomos. Enquanto a posição correlacionista defende objetos que dependem de uma mente (racional), Alfred North Whitehead e Bruno Latour são dois exemplos de uma outra possibilidade, eles sustentam que objetos existem de maneira co-determinante, ou seja, um dado objeto só pode ser determinado em relação a outros entes - neste caso entes de qualquer qualidade - com quem ele estabelece alguma forma de relação. Os objetos de Latour são definidos como aquilo que transforma, modifica, perturba ou cria outro(s) objeto(s).55 Similarmente, os objetos de Whitehead são delineados a partir da soma de suas preensões - a forma como um objeto apreende outros.56 Note como estes entes já não dependem da mente humana, tampouco de mente alguma, para que sejam estabelecidos; este é um traço importante, pois, desta maneira toda a esfera do não-humano pode ser incluída na tarefa da determinação do real, enquanto as relações entre quaisquer objetos passam a ocupar o mesmo nível ontológico - um dos objetivos 52 Harman, 2011-A, p.11 "(...) the individual qualities of things are already imbued with the style or feel of the thing as a whole. Even if the exact hue of red in my apple can also be found in a nearby shirt or can of spraypaint, the color will have a different feel in each of these cases, since they are bonded to the thing to which they belong." 53 Harman, 2011-A, pp. 48-49 54 Downing, 2013 55 Latour, 1999, pp. 303, 308, 311 56 Whitehead, 2010, p.63, para uma definição das preensões positivas e negativas. Harman, 2011-A, p.12, 46 19 deste ensaio. Entretanto, esta co-determinação implica a redução dos objetos ao modo como se manifestam para um outro, pois, nenhuma parte de sua realidade intrínseca fica guardada em reserva, fora do alcance de outros entes.57 Como é possível concluir, objetos podem ser dissipados de diversas formas, basta que seus contornos sejam definidos relacionalmente, roubando-lhe de sua primordialidade ontológica e autonomia. Porém, este não é o único problema criado pela dissipação dos objetos. Se um ente (ou a realidade como um todo) correspondesse estritamente ao modo como fosse dado num certo momento, não haveria motivação para que mudança alguma ocorresse, pois, não existiriam no objeto reservas que efetivassem tal mudança; o objeto encontra-se-ia esgotado naquela expressão pontual.58 Harman aponta ainda para a maneira como o filósofo francês Tristan Garcia combina as duas possibilidades (o minar e o dissipar do objeto) quando define o objeto como a diferença entre seus componentes internos e o contexto externo. 59 Desta maneira, é primeiro necessário determinar as partes componentes do objeto (minandoo), e na sequência é executada a ação dissipadora da listagem dos efeitos que este objeto tem em seu contexto, só então é possível traçar seus contornos, obtidos através da subtração da parcela de elementos constituintes do contexto geral. Esta posição é problemática na medida em que o objeto torna-se algo absolutamente frágil, que deixa de ser o mesmo ente caso qualquer mudança, mesmo ínfima, ocorra em seu contexto ou partes.60 57 Harman, 2011-A, The Quadruple Object, p.12 Harman, 2011-A, The Quadruple Object. pp.12-13 59 Harman, 2012-B, p. 8 60 A esta combinação das estratégias que minam (undermine) e também dissipam (overmine) o objeto Harman dera o nome de duomining. 58 20 Devido a todas essas dificuldades uma ontologia objeto-orientada busca prevenir que objetos sejam quebrados em pequenas partes ou engolidos por objetos maiores (minados), além de evitar eles sejam definidos simplesmente como projeções ou reflexos de outros entes (dissipados). Tal objeto-orientação incide, portanto, sobre um nível intermediário, povoado por entes autônomos que se retiram e isolam, elevando-se acima de seus componentes - que fazem do objeto algo demasiado superficial - mas mergulhando sob as manifestações mentais e efeitos-para (outros entes) - que os condena à dissolução. Harman aponta Aristóteles como o primeiro filósofo (ocidental) a tomar objetos individuais como tema central, “para ele [Aristóteles], o abismo importante já não se encontra entre as formas perfeitas e suas manifestações imperfeitas na matéria. Ao invés disso, existem duelos acontecendo no coração dos próprios objetos: entre um gato individual e seus traços acidentais fugazes, ou entre aquele gato e suas qualidades essenciais”. As próprias mônadas postuladas por G.W. Leibniz são, assim como os objetos de Harman, herdeiras de Aristóteles, pois, são descritas como entes não só individuais, como também unificados. Todas estas teorias (Aristóteles, Leibniz, Harman) podem ser descritas como filosofias que lidam com substâncias.61 Entretanto, se tradicionalmente substâncias devem ser naturais, simples, indestrutíveis e reais (ou possuir ao menos algumas destas características), os objetos da OOO não são obrigados a apresentar nenhum destes traços, podendo até tomar a forma de um objeto artificial, composto, fictício e passível de ser aniquilado. 62 Os contornos de um objeto são traçados pela maneira como ele não pode ser minado ou dissipado, ou seja, reduzido a suas partes ou definido em relação a outro objeto; pessoas, bonecas de plástico, sardinhas e raios solares, são todos objetos. 63 61 Harman, 2011-A, pp. 17-18 Harman, 2005, pp.85-86 63 Morton, 2013-A, p.222 62 21 A decisão de tomar-se o objeto, nestes moldes, como fundamento ontológico parte tanto dos problemas que outros modelos apresentam, como também da maneira como objetos hoje, com a (recente) compreensão de que a História não é exclusivamente humana, mas consiste na interseção entre múltiplos entes e diferentes temporalidades, fato que o Antropoceno demonstra de maneira especialmente reveladora. Objetos, como a máquina a vapor ou o plutônio, que incidem violentamente não apenas sobre a existência humana, mas também sobre o planeta e todos os seus (outros) habitantes, exercem agora larga influência sobre todo tipo de decisão humana. Novas políticas, novos hábitos e novos desafios são impostos sob a sombra do aquecimento global e seus efeitos perturbadores de escala planetária.64 Os objetos e suas relações A seguir o conceito de objeto será aprofundado e será também descrita a forma como estes objetos estabelecem relações entre si. A proposta a ser desenvolvida consagra os objetos como entes ontologicamente primários, irredutíveis (a seus fenômenos, relações, usos ou efeitos), portanto, autônomos que, independentemente de suas naturezas específicas, encontram-se no mesmo patamar ontológico.65 Esta desierarquização põe em questão a centralidade, e mesmo a necessidade, do ser humano na determinação do real (a postura correlacionista), e distribui tal papel democraticamente entre os variados entes. Será defendido que os diferentes objetos executam suas realidades específicas segundo um mesmo modelo, de acordo com o qual eles existem divididos entre um nível profundo - o objeto real - que se retira e isola 64 Morton, 2013-A, p.49 Morton, 2013-B, pp.4-5 65 Harman, 2011-A, pp. 142-143 Harman, 2005, pp.79, 85, 110, 190, 192 Morton, 2013-A, pp.17-8, 30, 55, 169 22 de qualquer contato, e uma superfície de efeitos estéticos - o objeto sensível - que funciona como o intermediário nas relações entre objetos.66 Dois filósofos merecem destaque nesta seção - o pai da fenomenologia, Edmund Husserl, e seu herdeiro rebelde, Martin Heidegger - pois, as ideias de ambos serviram como base para a concepção do objeto nos moldes descritos acima - como componente ontologicamente primário, autônomo e irredutível a suas partes ou a seus efeitos. Dos objetos intencionais de Husserl, Harman deriva o objeto sensível, e numa reinterpretação da análise do instrumento de Heidegger, ele chega à noção de objeto real. O objeto sensível Através da chamada redução fenomenológica (ἐποχή - epoché) - que consiste na suspensão das considerações a respeito de tudo que é transcendente à mente - “O eu como pessoa, como coisa do mundo, e a vivência como vivência desta pessoa, inseridos (...) no tempo objetivo: tudo isso são transcendências e, enquanto tais, gnoseologicamente zero” - Husserl busca atingir o conhecimento das essências imanentes dos objetos.67 Esta suspensão completa de toda consideração acerca do mundo natural objetivo é uma maneira radical de manter-se circunscrito na correlação kantiana, e faz com que os objetos intencionais da fenomenologia sejam fundamentalmente dependentes da consciência (humana).68 Ao dirigir sua atenção a um certo objeto, ao tomá-lo como tema, o indivíduo o “intenciona”; o que é desta maneira “intencionado” - o objeto dos atos mentais de um indivíduo - é aquilo a que Husserl dá o nome de objeto intencional. Estes objetos 66 Harman, 2011-A, pp. 5, 20-50 Husserl, 1986, pp.69-72 68 Harman, 2011-A, p.22 67 23 intencionais são sempre realidades mentais íntegras, ou seja, não são simples maços de atributos perceptíveis, mas sim, objetos (intencionais) unos.69 Da mesma maneira, os chamados objetos sensíveis da OOO são aqueles que apenas existem relacionalmente. São eles os “perfis sensíveis”, ou fenômenos, que um objeto apreende com base em outro, com quem entra em contato. Nas palavras de Harman: “objetos sensíveis são aqueles que existem apenas na experiência de um outro objeto - como as imagens mentais de gatos ou árvores em contraposição a estes objetos em-si”. (Harman, 2012-A, p.18)70 No âmbito deste ensaio, a principal diferença entre os objetos intencionais de Husserl e os objetos sensíveis da OOO encontra-se na maneira como a OOO não limita a capacidade intencional a indivíduos dotados de mente. 71 Objetos estão constantemente construindo “modelos sensíveis” dos objetos com os quais interagem (segundo a estrutura do como, que será apresentada à frente); estes modelos são a própria condição de possibilidade para o contato entre objetos (como também ficará explícito na discussão acerca da causalidade vicária); "um objeto sensível é uma aparência-para outro objeto". (Morton 2013-B, p.118)72 A maneira como Husserl rejeita a entrada de quaisquer preconceitos com origem na realidade objetiva em sua análise fenomenológica, e privilegia exclusivamente a esfera subjetiva humana é, em grande parte, fonte do mesmo tipo de antropocentrismo presente, e exacerbado, em Heidegger - que, por sua vez, sustenta que somente através da interrogação acerca do sentido do Ser do Dasein (e para Heidegger Dasein é exclusivamente humano) é possível atingir-se uma interpretação do sentido do Ser 69 Harman, 2011-A, p.24-5 Harman, 2012-A, p.18 “In my own philosophy, sensual objects are those that exist only in the experience of another object such as mental images of cats and trees in distinction from these objects themselves.” 71 Harman, 2005, p.19 72 Morton, 2013-B, p. 118 "A sensual object is an appearance-for another object." 70 24 (Sein) em geral.73 Ambos (Husserl e Heidegger) mantêm-se fiéis aos limites traçados por Kant, que em sua Crítica da Razão Pura declara: “toda a nossa intuição nada mais é do que a representação do fenómeno; (...) as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas como nos aparecem (...), se fizermos a abstração dos sentidos em geral, toda a maneira de ser, todas as relações dos objectos no espaço e no tempo e ainda o espaço e o tempo desapareceriam; pois, como fenómenos, não podem existir em si, mas unicamente em nós”.74 Neste movimento Kant extingue a possibilidade de conhecimento humano acerca de tudo que jaz para além dos fenômenos. A OOO assegura ser necessário abandonar-se o pressuposto tácito que afirma que a fenda entre o humano (ou o Dasein) e o mundo é a única abertura filosoficamente significante, o único caminho ao longo do qual os problemas da Filosofia podem desenrolar-se; “todo preconceito vago em relação à suposta gradação entre os diferentes tipos de entes (...) não devem ser contrabandeados para dentro da esfera das distinções ontológicas básicas”. (Harman, 2005, p.190)75 O objeto real Assim como Harman toma como base para seu objeto sensível o objeto intencional de Husserl, ele faz uso da compreensão heideggeriana a respeito da esfera objetiva (visto que Heidegger não restringe sua investigação ao âmbito dos fenômenos) ao delinear o, já mencionado, objetos real, que consiste no desempenho de uma 73 Harman, 2005, p.74-5 Morton, 2013-B, p.14 Heidegger, 1977, p. H15 74 Kant, 1989, p.78-79 75 Harman, 2005, p.190 “All loose initial prejudice concerning the supposed gradation between different types of living and inanimate entities must not be smuggled into the realm of basic ontological distinctions.” 25 realidade específica da qual somente ele é capaz; uma execução que se dá de maneira oculta, em total isolamento.76 Apesar da prescrição fenomenológica, presente na introdução ao segundo volume de suas Investigações Lógicas, que exorta a Filosofia a voltar-se para as “próprias coisas”, Husserl toma a consciência da primeira pessoa como epistemicamente básica, afirma que seu estudo sistemático é a tarefa fundamental da Filosofia e, paradoxalmente, acaba por tratar das coisas do mundo somente na medida em que estas se mostram à consciência.77 E é exatamente sobre este ponto (a insistência em lidar apenas com aquilo que se encontra de alguma forma presente na mente) que gira a crítica de Heidegger àquele que fora seu mestre, pois, ele acredita que os atos mentais conscientes compõem apenas uma pequena fração de tudo aquilo que constitui a experiência de um indivíduo, na maior parte das vezes as coisas com as quais ele interage não chegam a irromper à consciência, pois, o objeto retira-se em favor de sua execução.78 No terceiro capítulo da primeira parte de Ser e Tempo, Heidegger desenvolve sua célebre análise do instrumento, na qual demonstra como o Dasein, em grande parte, não encontra os entes do mundo na forma de uma simples percepção pura, mas em seu “uso”.79 A não ser que o instrumento sofra alguma espécie de avaria, esteja ausente, ou ainda, servindo de obstáculo aos objetivos do Dasein, ele encontrar-se-á retirado - na execução silenciosa de seus efeitos, que é a expressão de sua realidade única e específica - além de fundido numa grande rede de atribuições e referências à qual todo instrumento pertence, e da qual Dasein é o referente máximo. 80 Assim, toda ação 76 Harman, 2011-A, pp.73-4 Husserl, 2007, pp.29-30 Harman, 2011-A, p. 21 78 Harman, 2011-A, pp. 36-7 79 Heidegger não limita o termo “uso”, bem como o termo instrumento (das Zeug), a seu sentido corrente; por “uso” ele designa a forma como o ser humano conta com estes objetos de maneira não temática, e por instrumento, qualquer tipo de objeto passível de ser encontrado (e “utilizado”) pelo Dasein. Heidegger, 1977, p.H67 80 Heidegger, 1977, pp.H68-76 77 26 humana dá-se em meio a uma multiplicidade de instrumentos: “os debates mais matizados em um laboratório estão à mercê de um fundamento silencioso de piso, parafusos, ventiladores, gravidade e oxigênio atmosférico”. (Harman, 2002, p.18)81 Heidegger evidencia o modo como, no desenrolar de seu dia a dia, o Dasein não encontra objetos como agregados de matéria física mas, ele conta com, e faz uso de seus efeitos. Uma cerca de arame, antes de ser encontrada como tópico da preocupação do carteiro (caso isto ocorra), é encontrada de maneira não temática (Zuhanden), como um instrumento do qual ele faz uso na medida que a cerca ajuda a constituir uma realidade na qual o cão não o consegue morder.82 Esta constatação - de que usualmente as coisas não aparecem simplesmente como fenômenos, mas escapam para uma esfera despercebida e velada - é novamente ampliada e redistribuída pela OOO, que remove o Dasein do papel de herói fundador de toda a realidade e afirma que todo tipo de objeto possui esta mesma capacidade, muito básica e primária.83 Assim como para Whitehead, para Harman todo tipo de relação está situado no mesmo nível ontológico, independentemente do envolvimento humano.84 Se o carpinteiro utiliza o martelo sem, ao mesmo tempo, dar-se conta de sua composição química, da maneira como o cabo prende-se à cabeça metálica, ou da evolução histórica daquela ferramenta, ou seja, apenas fazendo uso de seu efeitomartelo, então, da mesma maneira, o martelo “fará uso” do prego, sem que seja imprescindível que ele tenha consciência de que material específico aquele prego é composto, qual é sua cor ou peso, mas simplesmente encontrando um ente que naquele momento expressa uma realidade específica (de algo rígido, que resiste às marteladas e pode ser enterrado num pedaço de madeira). 81 Harman, 2002, p.18 “(...) the most nuanced debates in a laboratory stand at the mercy of a silent bedrock of floorboards, bolts, ventilators, gravity, and atmospheric oxygen.” 82 Daí a oposição Zuhanden / Vorhanden, na qual o primeiro termo expressa a modalidade não temática, e o segundo a modalidade temática do encontro do Dasein com os entes no mundo. 83 Harman, 2011-A, p. 44 84 Harman, 2011-A, p. 46 27 Entretanto, a OOO rejeita a noção de que enquanto não tomados teoreticamente (Vorhandenheit) os objetos encontram-se fundidos num grande todo instrumental, pois, esta seria uma maneira de minar (a autonomia de) cada ente específico. No modelo objeto-orientado, o objeto executa constantemente aquilo que ele próprio é, uma realidade una, não-permutável, autônoma, e a única maneira de fazer-lhes jus é considerá-los a) livres de toda relação, e b) mais profundos que qualquer reciprocidade.85 Objetos reais, declara Harman, “são a krypto ousia [κρυπτώ ουσία] indomável ou a realidade que de fato constitui cada ente: sua execução irredutível em meio ao cosmos, absolutamente distinta da execução de qualquer outra coisa”. (Harman, 2005, p.110)86 Enquanto uma superfície de efeitos estéticos é apreendida por objetos que entram em relação, a essência real ou, o Ser em sentido profundo, encontra-se infinitamente retirado e inacessível. Posto de outra forma, todo objeto possui estes dois lados: uma essência, que se afasta e isola de qualquer contato sendo, ainda assim, responsável pela determinação daquele objeto específico, e sua aparência - dotada de múltiplos traços, porém, unificada - o modo como ele é percebido por outros objetos. Tanto um estudo científico aprofundado, quanto o uso não-temático que um objeto faz de outro, não são capazes de alcançar totalmente a realidade expressa por tal objeto; em outras palavras, nem a teoria, nem a prática o esgotam.87 Harman elabora: “Uma faca tem obviamente uma realidade muito diferente quando usada na cozinha de um restaurante, num banquete de casamento ou num triplo homicídio macabro. Mas (...) não existe uma oposição real entre uma faca isolada na consciência e uma faca invisivelmente usada (...) em ambos os casos ela é tratada apenas em relação a outro 85 Harman, 2011-A, p. 47 Harman, 2005, p. 110 “(...) the unmasterable krypto ousia or hidden reality that actually makes up each entity: its irreducible execution amidst the cosmos, utterly distinct from the execution of anything else.” 87 Harman, 2011-A, p.39 86 28 algo, não em si própria”. (Harman, 2011-A, p.43)88 Por isso, ele afirma que a real oposição presente na análise do instrumento de Heidegger não é aquela entre teoria e prática - como muitos comentadores afirmam - mas aquela que existe entre a realidade retirada de um objeto real (jamais encontrada por outro) e a apreensão parcial e sobredeterminada que dele é feita por um outro objeto, enformado por suas respectivas capacidades e limitações.89 A estrutura do como A possibilidade de um objeto ser encontrado como aquilo que ele é (aquele objeto específico) por outros entes (ex.: uma cadeira é uma cadeira para os seres humanos, que desfrutam de sua qualidade de assento) confirma sua primordialidade ontológica, pois, os contornos específicos de um objeto correspondem aos contornos específicos da diferença ontológica que Heidegger insiste em manter clara: a diferença entre os entes em geral (Seiendes) e o Ser (Sein) desses entes - “aquilo que determina entes como entes”. (Heidegger, 1977, p. H6)90 Para Harman, “todo fenômeno é necessariamente uma aparência tomada ´como´ algo, seja este algo uma alucinação vazia ou um fato inquestionável. Mas a coisa ´como´ coisa não é o mesmo que a coisa-em-si, que não pode, nunca, ser abertamente encontrada”. (Harman, 2002, p.69)91 Assim, a coisa-como-coisa corresponde ao 88 Harman, 2011-A, p. 43 “A knife obviously has a very different reality when used in a restaurant kitchen, at a wedding banquet, or in a grisly triple homicide. But (...) There is no real opposition between an isolated knife in consciousness and an invisibly used knife (...) in both cases it is treated only in relation to something else, not in its own right.” 89 Harman, 2011-A, p.42-3 90 Harman, 2002, p. 238 Heidegger, 1977, p. H6 “Das Gefragte der auszuarbeitenden Frage ist das Sein, das, was Seiendes als Seiendes bestimmt, das, woraufhin Seiendes, mag es wie immer erörtert werden, je schon verstanden ist. Das Sein des Seienden ´ist` nicht selbst ein Seiendes” 91 Harman, 2002, p. 69 29 fenômeno, o objeto da experiência de um ente (qualquer); enquanto a coisa-em-si é a substância determinante do objeto, aquela essência que recede e retira-se de qualquer relação, jamais podendo ser acessada diretamente. Harman deriva este encontrar-como, em grande parte, da noção da estrutura do como (Als-Struktur) desenvolvida por Heidegger: “Aquilo que é revelado pelo entendimento - aquilo que é compreendido - encontra-se já acessível de tal forma que seu ´como` pode ser destacado explicitamente. O ´como` compõe a estrutura da clareza de algo que é compreendido. Ele constitui a interpretação. Ao lidar com aquilo que se encontra à mão [Zuhandenen] no ambiente e interpretá-lo circunspectamente, nós ´vemos` algo como uma mesa, uma porta, um carro, ou uma ponte; mas o que assim interpretamos não precisa ainda ser decomposto em uma afirmação que o caracterize definitivamente. Qualquer visão pré-proposicional do que está à mão é, em-si, algo que já compreende e interpreta”. (Heidegger, 1977, p.H149)92 Entretanto, para a O.O.O. esta interpretação, este encontrar algo como aquilo que ele é, novamente em contraste com Heidegger, é algo comum a toda e qualquer espécie de objeto, não estando restrita à relação que o Dasein (humano) tem com os entes do mundo; “Se de alguma forma o papel não encontrasse a faca ´como` faca, ele jamais poderia ser danificado por tal faca. Isto para dizer que o tipo específico de dano que ele sofre demonstra que o papel encontra, sim, a faca como faca e não como uma chama ou uma pedrinha inofensiva”. (Harman, 2002, p.32)93 Com este exemplo Harman “Every phenomenon is necessarily an appearance taken ´as` something, whether it be empty hallucination or unshakeable fact. But the thing ´as` thing is not the same as the thing itself, which can never be openly encountered.” 92 Heidegger, 1977, p. H149 (minha ênfase) “Das im Verstehen Erschlossene, das Verstandene ist immer schon so zugänglich, daß an ihm sein ´als was` ausdrücklich abgehoben werden kann. Das »Als« macht die Struktur der Ausdrücklichkeit eines Verstandenen aus; es konstituiert die Auslegung. Der umsichtigauslegende Umgang mit dem umweltlich Zuhandenen, der dieses als Tisch, Tür, Wagen, Brücke ´sieht`, braucht das umsichtig Ausgelegte nicht notwending auch schon in einer bestimmenden Aussage auseinander zu legen. Alles vorprädikative schlichte Sehen des Zuhandenen ist an ihm selbst schon verstehendauslegend.” 93 Harman, 2002, pp. 32, 70 30 deixa clara a maneira como um objeto é experimentado como aquilo que ele é por um outro objeto qualquer (não somente pelo ser humano), além da forma como senciência, consciência, inteligência ou mente, não são, de forma alguma, atributos essenciais para que experiência, pecepção ou interpretação exista, ao menos no sentido primitivo e rudimentar aqui adotado: a versão caricatural e sobredeterminada que um objeto faz de outro. Assim, todos os objetos (ser humano, palmeira, drosophila, tupperware, muralha da China, cometa ou grão de pó) experienciam a realidade através de descrições individuais que são capazes de produzir a partir deste contato - certamente diferentes e provavelmente menos complexas que os fenômenos da experiência humana, porém, qualitativamente da mesma espécie e, portanto, tratadas como fenômenos por este modelo. Visto que ente nenhum se pode fazer presente de maneira a desvelar sua realidade mais profunda completamente, a estrutura do como é, já de partida, sempre um simulacro.94 Em seu existir, cada objeto está constantemente a interpretar a realidade na qual encontra-se presente; ele a traduz em fenômenos congruentes à sua própria estrutura; pode-se dizer, por exemplo, que a percepção humana é uma tradução antropomórfica enformada pelos limites do organismo humano, sistemas simbólicos específicos e condições socialmente mediadas de construção de conhecimento - dos objetos do mundo. As ideias de Alphonso Lingis, apesar de baseadas numa definição de objeto mais estreita (restrita a entes materiais), assemelham-se ao pensamento objeto-orientado quando ele afirma que através de sua forma um objeto é secretamente em si mesmo ao mesmo tempo que o é para quem o percebe; “sob as formas que fizeram os objetos palpáveis e domesticados, suas naturezas internas estão vestidas e ocultas”. (Lingis, “(...) if paper did not somehow encounter knife ´as` knife, it could never be damaged by that knife. That is to say, the special kind of damage it undergoes shows that it does encounter the knife as a knife, rather than as a flame or harmless pebble.” 94 Harman, 2002, pp. 71-5 31 1998, p.77)95 Harman dá o seguinte exemplo: uma truta que teve a infelicidade de habitar um lago poluído pode descobri-lo venenoso, entretanto, ´venenoso` não é um atributo estático estacionado na superfície do lago à espera de ser encontrado, mas uma propriedade relacional que requer a truta não menos que o lago para efetivar-se. Este exemplo demonstra como independentemente das propriedades usadas na definição do lago, elas serão sempre relacionais. Por este motivo não é possível especificar o Ser do lago (ou de qualquer objeto) diretamente, pois, seus contornos são sempre traçados através da perspectiva de um outro objeto. 96 Porém, isto não significa que o lago não existe em-si mas antes, que não é possível para ente algum acessar o lago-em-si diretamente. Causalidade vicária Porém, possível alcançar os objetos indiretamente, e apenas indiretamente. É exatamente nisso que toda relação entre entes (sejam eles humanos ou não) consiste: o que é encontrado, - uma vez que a essência fundamental de um objeto está sempre escondida - são perfis sensíveis, manifestações estéticas, aparências. É característico da própria relacionalidade o modo como o contato entre objetos reais nunca acontece diretamente, mas sempre através de um objeto sensível. A forma como o objeto obrigatoriamente se afasta de todo e qualquer tipo de contato não significa que ele esteja escondido (espacial, material ou temporalmente) podendo ainda ser encontrado; retirado de toda relação implica que a essência deste objeto - o que o determina como aquilo que ele é - encontra-se absolutamente isolada, fora do alcance de qualquer tipo de acesso, qualquer forma de percepção, mapeamento, 95 Lingis, 1998, pp.74-7 “Under their forms which have made things graspable and domesticated, their inner natures are clothed and concealed.” 96 Harman, 2002, p. 224 O termo ´aparência`, neste texto, não está restrito ao conjunto de características apreendidas visualmente, mas refere-se ao conjunto global de atributos que podem ser encontrados num dado objeto. 32 narrativa, teste ou extrapolação heurística.97 O objeto “não é um prático ´universal` em funcionamento, mas sempre um indivíduo, sempre a execução discreta de uma realidade localizada não-permutável”. (Harman, 2002, p.270)98 Se não existe contato direto entre objetos reais, ao mesmo tempo que, de alguma forma, correntes causais são de fato estabelecidas entre os entes no mundo (como atesta a experiência humana), estas relações devem dar-se obrigatoriamente de maneira indireta, via objetos sensíveis. A esta conexão indireta, a maneira como todo tipo de encontro entre objetos ocorre, Harman dá o nome de causalidade vicária. "Assim como a percepção explícita, a reação causal é sempre apenas uma resposta a uma gama limitada de fatores no ente causativo; outros traços são preteridos, [e permanecem] escondidos do objeto que vai a seu encontro". (Harman, 2002, p.223)99 Lingis descreve precisamente este mecanismo quando declara que um objeto é “ao engendrar imagens de si próprio, reflexos, sombras, máscaras, caricaturas de si mesmo”, e ele afirma ainda que objetos não podem ter sua realidade reduzida aos “puros fatos” da observação empírica, tampouco a seu perfil prático; todo objeto possui uma profundidade inascessível. (Lingis, 1998, p.114)100 A única espécie de contato possível é aquele que acontece entre o objeto real e o objeto sensível que ele experiencia. Assim, as relações entre objetos são sempre assimétricas, ou seja, ocorrem numa única direção.101 O objeto-real-barco encontra o objeto-sensível-mar como algo com uma densidade específica, sobre o qual ele 97 Morton, 2013-A, p. 54 Harman, 2002, p. 270 “The tool-being is not a handy functioning ´universal`, but always an individual, always the discrete execution of some localized and unexchangeable reality.” 99 Harman, 2007, pp. 187-221. Harman, 2002, p. 223 "Just like explicit perception, causal reaction is always only a response to a limited range of factors in the causative entity; other features are passed over, concealed from the object that runs up against it." 100 Lingis, 1998, p. 114 “A thing is, we argue, by engendering images of itself, reflections, shadows, masks, caricatures of itself. Things are not reduced to their reality by being reduced to facts; the ´pure facts´ of empirical observation are abstracts of intersecting scientific theories, logics, and effects of technological engineering. But things are also not reduced to their reality by being perceived in their practicable format.” 101 Harman, 2011-A, pp.75-8 98 33 consegue flutuar; o segundo é, assim, uma tradução produzida pelo primeiro (enformada por sua composição material, sua forma, etc), cuja base é o perfil sensível irradiado pelo objeto-real-mar. A ligação inversa (entre o objeto-real-mar e o objetosensível-barco) constitui uma outra relação. Através da estrutura do como e mediados pelos objetos sensíveis os objetos reais fazem contato (sempre indireto), influenciando-se e tomando parte nas correntes causais. Ao passo que a esfera sensível (em outras palavras, o domínio estético) abriga toda e qualquer relação possível entre objetos, conclui-se que toda relação causal é, essencialmente, uma relação estética, uma afirmação que Harman qualifica da seguinte maneira: “(...) se agora dizemos que o universo tem uma estrutura estética ou metafórica, isso não tem relação alguma com o tema já gasto do artista humano projetando seus valores sobre um universo arbitrariamente perspectivo. Pelo contrário, esta é uma afirmação metafísica sobre o modo como as gotas de chuva ou as tempestades de areia interagem entre si mesmas quando não há ser humano algum em cena. Esta ideia não consiste no velho conto pós-moderno da ´vida como literatura`, mas sim, na própia causalidade como música, escultura e teatro de rua”. (Harman, 2005, p.174)102 Aquilo a que se dá o nome de causalidade depende, assim, das duas fendas abordadas acima, aquela que existe dentro do próprio objeto - cindindo-o entre sua essência retirada (o objeto real) e seus efeitos estéticos (o objeto sensível) - e a fenda 102 A conclusão de que toda relação causal é uma relação estética aparece em múltiplos livros e artigos tanto de Harman como de Morton. Por este motivo, no artigo On Vicarious Causation (que, como o título indica, é inteiramente dedicado a este tema) ele defende a Estética como primeira filosofia. Morton dedica todo o seu livro Realist Magic - Objects, Ontology, Causality ao desenvolvimento desta única afirmação, sendo assim uma fonte ampla de argumentação neste sentido. Harman, 2007, p. 221 Morton, 2013-A, especialmente pp. 20-1, 24, 30-6, 64-74, 82, 90-101 Harman, 2005, p.174 “For this reason, if we now say that the universe has an aesthetic or metaphorical structure, this has nothing to do with the shopworn theme of a conscious human artist projecting values onto an arbitrary perspectival universe. Instead, it is an actual metaphysical statement about the way that raindrops or sandstorms interact among themselves even when no humans are on the scene. The point is not the old postmodern chestnut of ´life as literature`, but rather causation itself as music, sculpture, and street theater.” 34 intransponível que existe ao redor dos diferentes entes. 103 Sem estas duas tensões o cosmos poderia ser resumido na maneira como é ele dado em um instante qualquer, não havendo uma fonte plausível para o dinamismo que possibilita qualquer mudança; o resultado seria um universo estático.104 Entretanto, exatamente porque um objeto nunca é uma expressão adequada de si próprio, já que entes são sempre aparências, e aparências são sempre para-um-outro-ente, é possível afirmar que objetos são dialeteicos (do grego διαλέθεια - dialetheia - dupla verdade), ou seja, são aquilo que mostram e, ao mesmo tempo, não são redutíveis àquilo que se mostra. Existe, assim, dentro de cada objeto uma certa instabilidade que, no entanto, concede dinamismo suficiente para impulsionar toda causalidade.105 Morton afirma que “objeto não significa objetificado. Antes, significa totalmente incapaz de objetificação”; com esta afirmação ele pretende ilustrar a maneira como objetos existem sempre fendidos entre a execução íntima de sua realidade específica e única - o objeto real - e seu perfil estético, que se mostra sinceramente e influencia outros objetos, envolvendo-se nas correntes da causalidade - o objeto sensível.106 Este ensaio abordou até aqui esta contradição no coração do objeto; foi também apresentada a maneira como objetos são os elementos componentes do universo de maneira geral, possuindo primordialidade ontológica em relação a seus efeitos e suas partes. Outro ponto aqui discutido foi a maneira como entes de toda espécie são considerados objetos pela OOO, sejam eles materiais, simples, duradouros, naturais, ou não; e todos eles ocupam o mesmo patamar ontológico, pois, obedecem as mesmas regras no que diz respeito ao modo como existem e interagem. 103 Morton, 2013-B, p.83 Harman, 2011-A, p.12 105 Morton, 2013-A, especialmente pp. 31-2, 74-6 106 Morton, 2013-A, p.176 104 35 O restante deste ensaio ocupar-se-á das implicações que uma base ontológica nestes moldes tem para a Ecologia. Será defendido que com o encetamento do Antropoceno, esta maneira (não-antropocêntrica) de pensar tornou-se não só possível, mas incontornável. 36 Ecologia Objeto-Orientada Ecologia: ubíqua e imprecisa Se, por um lado, é reconhecida a maneira como, apesar de abranger uma grande variedade de subdisciplinas, a Ecologia desempenha um papel marginal dentro da Filosofia, por outro, ´filosofias ecológicas` abundam fora da academia. 107 A partir de meados do séc. XX - quando as evidências dos transtornos ambientais causados pelo ser humano no planeta atingiram uma magnitude incontornável - considerações especificamente ligadas ao meio ambiente, e à influência humana sobre este, começaram a emergir de maneira semelhante a como nos séculos XVIII e XIX as alterações na paisagem, provocadas pelo início e subsequente instalação da indústria, induziram filósofos e poetas românticos a refletir acerca do mundo à sua volta e a exaltá-lo, tendo como foco de sua reflexão todo o meio ambiente - em outros termos, a Natureza.108 O livro Silent Spring, de Rachel Carson, que documenta os efeitos prejudiciais do uso indiscriminado de pesticidas, é o primeiro exemplo significativo de obras, surgidas ao longo do último meio século, que tomam o meio ambiente como tema central e é muitas vezes reconhecido como impulsionador de toda uma onda de outras considerações.109 107 Sarkar, 2014 Morton, 2014-A, primeiro seminário 108 Luke, 1997, p. xi Hay, 2002, pp. 4-11 109 Luke, 1997, p. 211 37 Como justificativa parcial para esta ausência de investigações filosóficas abertamente dedicadas à Ecologia este ensaio aponta para dificuldades na definição dos limites do próprio conceito (de Ecologia), que são inúmeras, além da difícil relação entre teoria e ativismo ecológico (ou ambiental) que, por vezes, são equivalentes e confundem-se mas, por outras, apresentam objetivos contrastantes (o primeiro mais focado na estruturação teórica e no desenvolvimento das bases conceituais e o segundo nas questões de ordem prática, de efeitos mais imediatos).110 Muitas vezes associada a, quando não dependente de, dicotomias e conceitos problemáticos (como Natureza/Cultura, vida/não-vida, humano/não-humano) a Ecologia tende a tratar de certas porções do cosmos em detrimento de outras; florestas, recifes de coral e ursos panda são incluídos, enquanto eletricidade, balões de festa e teclados de computador parecem situar-se totalmente fora de seu escopo. De maneira intuitiva, com base nas significações correntes, é fácil reconhecer uma associação de observadores de pássaros como uma instituição de alguma forma ligada a questões ecológicas, enquanto o mesmo não ocorre com um grupo que faz campanha para salvar o parque infantil do bairro.111 Este exemplo hipotético demonstra como ideias acerca do significado e da abrangência da Ecologia são imprecisamente determinadas, pois, recorrem a limites vagos, como as fronteiras entre o que é natural ou não (o que, por sua vez, levanta a pergunta o que se encontra ´fora` da Natureza?). Entretanto hoje, já na segunda década do séc. XXI, mais que nunca questões relacionadas à Ecologia estão sendo pensadas e postas em prática em diferentes esferas. A Ecologia - em sentido corrente, restrito ao tratamento das relações entre organismos e o meio ambiente, conceito que será alargado mais à frente Outra obra influente, que data do início da década de sessenta, é Our Synthetic Environment, escrita por Murray Bookchin, sob o pseudônimo Lewis Herber. Esta obra também trata do uso de pesticidas, e de defende uma visão de mundo condizente com o entrelaçamento primordial entre os entes no mundo. Para mais, Luke fornece uma longa e exaustiva lista de referências abrangendo as variadas tendências ecocríticas do séc. XX nas notas ao longo da obra, pp.211-47. 110 Hay, 2002, p.1 111 Hay, 2002, p. 2 38 presentemente já informa (e enforma) variadas áreas da vida, da cultura e da sociedade.112 Transformações estão a ocorrer como consequência do despertar de consciência em relação ao impacto que o estilo de vida humano exerce sobre o planeta, bem como mudanças impostas pelas próprias alterações dos sistemas terrestres (como alterações climáticas, de nível e acidificação dos oceanos, ou da composição atmosférica); de novos hábitos no cotidiano - como a separação e reciclagem do lixo, ou o abandono do uso de sacos plásticos em supermercados (para citar dois exemplos patentes) - à maneira como planos e decisões políticas têm agora de levar em consideração a crise ambiental - com a implementação de impostos “verdes”, e o surgimento de inúmeros partidos cuja bandeira principal guarda relação com o meio ambiente - ou ainda, a maneira como questões ecológicas mostram-se cada vez mais influentes e importantes para as artes (vide o surgimento de inúmeras vertentes da chamada arte ambiental nas últimas décadas), a arquitetura (cada vez mais preocupada em encontrar opções sustentáveis), a ciência e a tecnologia (que avançam a passos largos no desenvolvimento de implementos e modelos cada vez mais compreensivos e complexos de ecossistemas, do clima, etc.). A Ecologia, como se vê, já permeia diferentes aspectos da vida humana. Devido a esta abrangência, infinitamente profunda e ampla, é imprescindível que a Ecologia seja pensada e discutida seriamente, de maneira transdisciplinar, a combinar insights da biologia com as artes, a computação, a Filosofia, etc, pois, todas essas disciplinas encontram-se (ecologicamente) ligadas e podem acrescentar perspectivas igualmente importantes a esta discussão, num debate que toca absolutamente todos os entes do planeta, como afirma Rajendra Pachauri, atual presidente do IPCC.113 “(...) Existe simplesmente um sem-número de entes únicos (fazendeiros, cães, íris, lápis, LEDs, e assim por diante) a quem devo obrigação pelo simples fato de que 112 113 Morton, 2010, pp.13, 28 IPCC, Assessment Report 5 Working Group II Report Press Conference 39 existência é coexistência”, se a simples existência de um objeto implica sua coexistência (num mesmo patamar ontológico) com uma infinidade de outros objetos, de modo a impingir sobre eles sua realidade específica, isso significa que não existe um espaço ´fora` ou ´além` dessa malha de interconexões. (Morton, 2013-B, p.125)114 Este enredamento inescapável transforma a consciência da proximidade (por vezes difícil e perturbadora) entre todos os entes em algo inevitável. O espaço de possibilidade para a reflexão ecológica encontra-se envolto em objetos e é composto por objetos, num ambiente abarrotado e claustrofóbico do qual o ser humano é (mais uma) parte. Tal conjugação significa ainda que, como Derek Parfit aponta, são necessárias novas teorias da beneficência, pois, tanto a moralidade do senso-comum, quanto princípios do interesse próprio falham frente à complexidade da malha de interconexões, formada pelos objetos em relação. "Apesar de cada ato ter efeitos triviais, é frequentemente verdade que juntos nós impomos grandes prejuízos sobre nós próprios e outros. Alguns exemplos são poluição, congestionamento, esgotamento de recursos, inflação, desemprego, recessão, sobrepesca, sobrexploração da agricultura , erosão do solo, fome e superpopulação". (Parfit, 1984, p.443-4)115 Ações estatisticamente insignificantes, en masse, têm efeitos potencialmente gigantescos - como a própria alteração da composição atmosférica do planeta, uma realidade pela qual a ação humana (a queima de combustíveis fósseis e liberação de outros poluentes) contínua e generalizada é responsável, apesar da impossibilidade de culpabilização de indivíduos.116 Deixar de lado teorias que defendem o interesse próprio envolve um contato mais íntimo com outros entes, além de indivíduos futuros.117 114 Morton, 2013-B, p.125 “(...) there are simply a number of unique beings (famers, dogs, irises, pencils, LEDs, and so on) to whom I owe an obligation through the simple fact that existence is coexistence.” (minha ênfase) 115 Parfit, 1984, p. 443-4 “(...) though each act has trivial effects, it is often true that we together impose great harm on ourselves or others. Some examples are pollution, congestion, depletion, inflation, unemployment, a recession, overfishing, over-farming, soil erosion, famine, and overpopulation." 116 IGBP, 2013 pp. 12, 15 117 Morton, 2013-B, p.128 40 O termo Ecologia foi originalmente cunhado pelo zoólogo alemão Ernst Haeckel em 1866 com o objetivo de designar as ´economias` das formas vivas - uma definição biocêntrica (hoje muitas vezes equivalente ao termo Bionomia) que também leva em conta o inorgânico, porém, apenas na medida em que este é ambiente para, e influencia, o orgânico.118 Desde então os contornos exatos do conceito variaram, tornando-se mais ou menos abrangentes de acordo com o foco escolhido (conservacionismo, gerenciamento de recursos, planejamento urbano, etc). Seguem abaixo três definições de Ecologia, a primeira advinda da Filosofia, a segunda dos Estudos Ambientais e a terceira da Ecologia Profunda: a) Ecologia trata “[d]as interações entre organismos individuais e o meio ambiente, incluindo as interações com membros da mesma e de outras espécies” ; (Sarkar, 2014)119 b) Ecologia “como o estudo da totalidade das interrelações entre uma sociedade humana e tudo em seu ambiente”; (Luke, 1997, p.xii) 120 c) A Ecologia é “o estudo científico interdisciplinar das condições de vida de organismos em interação uns com os outros bem como com o ambiente, orgânico e inorgânico”. (Naess, 1989, p.36)121 Inúmeros pressupostos transparecem nestas interpretações, conceitos usados na definição (como ambiente e organismo) são, muitas vezes, disputados, ou sofrem da mesma imprecisão daquilo que buscam definir. Também chama a atenção o antropocentrismo sem disfarce da segunda acepção, flagrantemente correlacionista, que coloca o ser humano como único organismo a ocupar um lado da equação 118 Haeckel, 1866 p. 286 Sarkar, 2014 “The science of ecology studies interactions between individual organisms and their environments, including interactions with both conspecifics and members of other species. “ 120 Luke, 1997, p. xii “´ecology` (...) as the study of the totality of all interrelations between a human society with everything in its environment.” 121 Naess, 1989, p.36 “the interdisciplinary scientific study of the living conditions of organisms in interaction with each other and with the surroundings, organic as well as inorganic.” 119 41 ecológica, enquanto todo o resto, tudo aquilo que não é humano (e o que exatamente é o humano?), é posto, em contraposição, do outro lado.122 No âmbito da Ética Ambiental - sem dúvida a área da Filosofia na qual a Ecologia figura com maior proeminência - o problema da determinação de limites fica ainda mais claro. Na busca de um critério universal para a atribuição de direitos a entes nãohumanos, por exemplo, muitas opções existem, porém, a questão parece estar ainda longe de um acordo unânime. Enquanto Peter Singer, em seu célebre trabalho Animal Liberation, defende que a capacidade para o sofrimento deve constituir o limite de consideração moral123, ele próprio afirma, em Ética Prática, que a posse de um conceito de si próprio como ser vivo com um futuro talvez seja um critério mais adequado. 124 Há ainda aqueles que chamam atenção para o perigo do especismo com a criação de novas hierarquias, para o interior das quais alguns não-humanos são movidos, enquanto os excluídos continuam a ser tratados simplesmente como recursos naturais, desprovidos de interesses moralmente significativos.125 Assim, muito da discussão acerca da definição de conceitos e da instauração de critérios e limites, em toda a extensão do pensamento ecológico, gira à volta de quanto e que partes do universo não-humano são dignas de consideração. Na falta de referências o próprio ser humano torna-se referência e uma espécie de utilitarismopadrão passa a subtender a maneira como questões de cunho ecológico são ponderadas. Morton dá o nome de agrilogística a essa tendência, e remete sua origem aos primórdios da agricultura, há cerca de dez mil anos, no Crescente Fértil.126 122 Vale apontar que Luke formula esta acepção a partir de diversas definições dadas por correntes variadas (de movimentos ambientalistas radicais ao consumismo ´verde`) que ele apresenta criticamente em seu livro, assim, exatamente por colocar-se criticamente, ele enfatiza tal correlacionismo. 123 Singer, 1990, pp. 8-9 124 Singer, 2000, p. 145 125 Francione, 2008, p.144 126 Morton, 2014-A, primeiro e Segundo seminários 42 Uma noção expandida de Ecologia “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”127 - José Ortega y Gasset Este ensaio não pretende adotar nenhuma das definições correntes do termo Ecologia, ao contrário, ele procura estabelecer novos contornos, mais largos, pois, os limites estreitos impostos pelo contexto no qual originou-se o termo (o universo das chamadas ciências biológicas) não se mostram adequados a outros contextos, ou sob a luz do Antropoceno e das mais recentes constatações de outras áreas científicas. Como visto, muitas vezes a Ecologia é descrita como a economia das relações estabelecidas entre organismos e outros organismos, e também entre estes e tudo aquilo que compõe seus habitats. São chamadas ecológicas relações como: mutualismo, simbiose, inquilinismo, predação, competição, parasitismo, entre outras. Porém, no âmbito deste ensaio a Ecologia não está restrita a estas relações, e também deve ser distinguida da economia, e também da política, na medida em que não lida exclusivamente com relações de produção e consumo, ou com relações de poder, mas ocupa-se da análise, descrição e heurística de relações de todo gênero, entre objetos de toda espécie, e o modo como estes delineiam os contornos do mundo e do próprio pensamento. Objetos não podem ser determinados através de suas relações, ao contrário, somente objetos discretos autônomos podem-nas estabelecer; entretanto, uma vez ligados objetos influenciam-se uns aos outros por vezes sutil, por vezes drasticamente.128 Esta influência, de maneira geral, e as relações que nela resultam, constituem o objeto de investigação da ecologia. 127 128 Ortega y Gasset, 2004, Vol. I, p. 757 Harman, 2011-A, p. 19 43 Assim, um dos objetivos deste ensaio é estabelecer uma base objeto-orientada para a Ecologia, incomensuravelmente mais ampla que o campo exclusivo de organismos e habitats. Isto significa que, deste ponto em diante, sob o rótulo Ecologia (ou ecológico) cairão todas as relações estabelecidas entre entes de qualquer tipo. A Ecologia guarda relação com quaisquer objetos e não apenas com os habitantes ameaçados da Amazônia, as criaturas abissais das Marianas ou os pinguins do Atacama. A porcentagem de dióxido de carbono na atmosfera concerne a vida e o bem-estar de grande parte dos organismos na Terra, a temperatura e taxa de acidificação dos oceanos e o ritmo de derretimento da neve nos Alpes suíços, mas também guarda relação com companhias aéreas low cost, políticas de planejamento urbano, laptops e moinhos d´água, pois, o dióxido de carbono é apenas um exemplo de objeto, e os objetos encontram-se todos interconectados numa esfera de influência mútua, a dimensão estético-causal, descrita como uma malha (um termo que sugere tanto os fios de uma rede, como os espaços entre eles, refletindo não só a unicidade e coesão dos objetos e suas relações, mas também a fenda que os caracteriza e a fragilidade dessas conexões).129 “A existência de um objeto é irredutivelmente uma questão de coexistência”, todavia, esta coexistência não significa que objetos existem unicamente em relação mas, ao contrário, devido ao modo como objetos reais retiram-se de toda relação eles jamais se esgotam em suas aparências (seu objeto sensível correspondente), há sempre uma reserva de possibilidades, um excesso mantido à parte de qualquer relação (sua essência real). (Morton, 2013-A, p.45)130 129 Morton, 2010, p. 28 Morton, 2013-A, p. 45, 113, 145-6, 159-60, 211 “The existence of an object is irreducibly a matter of coexistence.” 130 44 O estranho-estranho e a malha de interconexão “Quand je me joue à ma chatte, qui sçait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay d'elle?”131 Michel Montaigne Na primeira parte deste ensaio foi argumentado que todo tipo de ente (seja ele material, natural, simples, durável, ou não) deve ser considerado como objeto. Os objetos foram descritos como elementos ontologicamente primários, ou seja, anteriores a quaisquer relações das quais possam fazer (ou vir a fazer) parte, pois, são absolutamente irredutíveis tanto a essas relações, quanto a uma (ou a soma) de suas partes, eles não podem ser fundidos numa totalidade holística, além de não poderem ser resumidos a seus efeitos sobre outros objetos. Foi também demonstrada a maneira como os objetos existem cindidos entre sua essência real, que se retira de toda forma de contato enquanto é responsável pela execução daquela realidade específica, e seu perfil sensível, a representação que cada outro objeto dele produz a cada encontro. Esta breve recapitulação serve para que sejam aqui apresentados dois dos conceitos fundamentais a figurar nesta segunda parte do presente ensaio - o estranhoestranho e a malha - introduzidos pela primeira vez na obra The Ecological Thought, de Timothy Morton. Nesta obra Morton utiliza tais termos de maneira ainda estreita, em referência aparentemente exclusiva aos organismos (vivos) e à rede de relações que estes estabelecem com outros organismos e com entes não-vivos, respectivamente; “(...) os estranhos-estranhos [são] todas as formas vivas com as quais encontramo-nos conectados”, já a malha inclui “todas as formas vivas (...), assim como todas as formas mortas, além de seus habitats, que também são compostos por entes vivos e não-vivos”. 131 Montaigne 1947, pp.172 45 (Morton, 2010, p.28-9)132 Porém, em obras subsequentes, com a aproximação de Morton ao movimento da Ontologia Objeto-Orientada, ambos (estranho-estranho e malha) são alargados e passam a incluir não só os seres vivos e suas relações mas, todo objeto e toda a esfera estético-causal (região na qual o encontro entre objetos - reais e sensíveis - acontece, a esfera da causalidade vicária). Atualmente, Morton afirma que a estranheza (termo com significado preciso em sua ecocrítica) é condição ontológica de todo ente; “a interconexão de todas as coisas é uma trama finamente tecida que paira frente àquilo a que eu (...) dera o nome de estranhos-estranhos: todos os entes, de esferovite e ondas de rádio a amendoins, cobras e asteróides, são irredutivelmente inquietantes”. (Morton, 2013-A, p.75)133 Das afirmações acima nascem perguntas como: em que exatamente consiste este aspecto inquietante que Morton atribui aos objetos, será mesmo necessário articular uma conexão entre todos os entes, e ainda, qual é a relevância desta estranheza para a deliberação acerca da Ecologia? Qual é a diferença entre a malha de interconexão e um conceito totalizante, como mundo ou Natureza (ambos conceitos que Morton considera contra-produtivos para o discurso ecológico)?134 Abaixo, segue a tentativa de responder a estas e outras questões, assim como a de traçar as implicações que decorrem da perspectiva (objeto-orientada) assumida por este ensaio para a Ecologia no Antropoceno. Se é o caso que objetos reais nunca se encontram de forma direta, mas o fazem sempre vicariamente, através de simulacros sensíveis (a maneira como aparecem para um outro objeto), parte desse objeto encontrar-se-á eternamente fora do alcance de 132 Morton, 2010, pp. 28-9 “(...) strange strangers, the life forms to whom we find ourselves connected.”; “All life forms are the mesh, and so are all dead ones, as are their habitats, which are also made up of living and nonliving beings.” 133 Morton, 2013-A, p. 75 “The interconnectedness of everything is a finely woven tissue that floats in front of what elsewhere I have called strange strangers: all entities, from Styrofoam and radio waves to peanuts, snakes and asteroids, are irreducibly uncanny.” 134 Sua obra de 2007, por exemplo, tem o título Ecology Without Nature, e nela ele desenvolve o argumento de que o conceito de Natureza já não é heuristicamente útil, pois, ele abafa a existência real e específica de cada um dos entes que constituem tal Natureza. 46 qualquer outro ente, inclusive dele próprio. Qualquer descrição do objeto jamais corresponde ao objeto em-si; “Um bloco de cimento é duro e frio para uma mosca, é áspero para o meu dedo, é frágil para um golpe de karatê bem posicionado. Ele é invisível para um neutrino.”, apesar das múltiplas interpretações possíveis (a da mosca, do dedo, do golpe, ou do neutrino) o bloco é, ainda, um objeto real específico, impermutável, e não se resume a nenhuma delas. “Posto de outra forma, nenhum ente é redutível ao hic et nunc das energias que libera”. (Morton, 2013-A, p.27; Harman, 2002, p.224)135 Sendo assim, todo objeto é em certa medida um estranho (no sentido de algo que é desconhecido), pois, parte da realidade de cada objeto retira-se e esconde-se de todo contato, permanecendo sempre inatingível atrás das pesadas cortinas ontológicas, mais além de qualquer possibilidade de descrição, análise ou uso. Porém, o objeto é duplamente estranho, como indica a repetição do adjetivo na composição do termo. Ele é estranho para os objetos que o encontram (por possuir uma parte sempre velada), ele é inquietante, em sentido freudiano - da sensação de familiaridade e estranhamento simultâneos136 - mas, também é estranho em si (e talvez mais estranho por este motivo que por qualquer outro), pois, não pode ser reduzido a seus atributos, partes, relações ou efeitos, ao mesmo tempo que só pode ser percebido como objeto através destes. O objeto “falha em coincidir com sua aparênciapara um outro objeto”, ele apenas deixa um rastro de signos indiciais, correspondente à forma como são percebidos, enquanto escapa a apreensão total. (Morton, 2013-B, p.196)137 Morton argumenta que neste sentido a OOO segue e sustenta a descoberta 135 Morton, 2013-A, p. 27 “A cinder block is hard and cold for a fly, it´s stubbly to my finger, it´s fragile to a well-placed karate chop. It´s invisible to a neutrino.” (minha ênfase) Harman, 2002, p. 224 “Put differently, no entity is reducible to the hic et nunc of its specific unleashed energies.” 136 Morton, 2010, p. 50 Freud, 2003, pp.123-62 137 Morton, 2013-B, pp. 77, 176, 196 “An object fails to coincide with its appearance-for another object, no matter how accurate that appearance-for.” 47 fenomenológica que descreve a maneira como objetos não são percebidos na forma de uma multiplicidade de sensações, só posteriormente agrupadas numa unidade, mas que, ao contrário, o objeto como um todo é já ´intencionado´ pelo indivíduo.138 Estes estranhos-estranhos, em sua existência contraditória, encontram-se não somente próximos (sendo compostos por objetos e situados no interior de objetos) mas, em conjunto compõem a chamada malha que, ao contrário de um sistema fechado, consiste em “uma vasta e espalhada malha de interconexão, sem centro ou borda definidos. Ela é intimidade radical, a coexistência com outros entes, sencientes ou não - e como é que podemos tão claramente fazer tal distinção?”. (Morton, 2010, p.8)139 A pergunta ecoa a hesitação, a incerteza, a ironia e a atitude contemplativa fundamentais para o pensamento ecológico “crítico e auto-crítico” promovido por Morton, que admite a impossibilidade de chegar-se a uma posição exterior a quaisquer contextos, a partir da qual seja possível analisar a malha, ou traçar esses limites e determinar fronteiras sem preconceitos ou inclinações.140 A malha nunca é percebida diretamente, ela só pode ser conhecida através dos estranhos-estranhos. A malha aponta para as formas de conexão e separação simultâneas que existem entre os objetos do mundo sem estabelecer uma substância subjacente (comum a todos os entes - como a extensão cartesiana, a noção de matéria ou mesmo de Natureza); a malha aponta, portanto, para a existência de entes Um exemplo de signo indicial são as pegadas, indícios de uma pessoa ou animal; ou ainda, a fumaça, signo indicial do fogo, como no ditado popular “onde há fumaça, há fogo”. 138 Morton, 2013-A, p. 61 139 Morton, 2010, p. 8, 28-30 “It is a vast, sprawling mesh of interconnection without a definite center or edge. It is radical intimacy, coexistence with other beings, sentient and otherwise - and how can we so clearly tell the difference?” 140 Morton, 2007, pp. 13, 67 Morton, 2010, p. 16 Morton, 2013-B, pp. 2, 22, 134-58, 160 - Nesta obra Morton aborda essa impossibilidade e dá a ela o nome de hipocrisia. Ele argumenta que, hoje em dia, a humanidade vive constantemente sob a sombra desta hipocrisia, pois, descobriu-se protagonista de todo um período geológico (o Antropoceno) ao mesmo tempo em que descobriu-se, ela própria, vilã da crise ambiental. 48 singulares - os estranhos-estranhos - que se encontram profundamente ligados apesar de jamais se conhecerem totalmente.141 A interconexão generalizada representada pela malha corresponde, em Heidegger, a sua contextura instrumental (a rede de referências e atribuições na qual está fundido todo objeto encontrado circunspectamente à mão - Zuhanden), porém, a malha diferencia-se da contextura instrumental global (na qual os instrumentos não existem separadamente) pois, concede unicidade e autonomia a cada elemento que a compõe, e salienta a extrema proximidade, apesar da separação absoluta, entre eles. 142 “Existência é coexistência”, mas não a coexistência hamônica e equilibrada com base na fundamental intuição de um princípio (transcendental) de Natureza e do modo como o ser humano é parte dela, como defende, por exemplo, a Ecologia Profunda. Morton está disposto a lidar com a imprecisão, a incerteza, a inquietação e as consequentes (e inúmeras) dificuldades que existem anexadas a uma ideia de Ecologia nestes moldes; “O pensamento ecológico, o pensar da interconexão, possui um lado sombrio que está presente não numa estética hippie da vida sobre a morte, ou a Bambificação sádico-sentimental dos entes sencientes, mas em uma afirmação ´gótica` da ideia contingente e necessariamente estranha de que queremos permanecer com um mundo que morre: uma ecologia sombria”. (Morton, 2007, pp.184-5)143 141 Morton, 2010, p. 57 Morton, 2013-B, p. 83 Heidegger, 1977, p.H68 143 Morton, 2013-B, p.125 Morton, 2007, pp.184-5 “The ecological thought, the thinking of interconnectedness, has a dark side embodied not in a hippie aesthetic of life over death, or a sadistic-sentimental Bambification of sentient beings, but in a ´goth` assertion of the contingent and necessarily queer idea that we want to stay with a dying world: dark ecology.” (minha ênfase) Naess, 1973, pp. 95-100 Devall, Sessions, 1985, pp. 67, 75-6 142 49 Agrilogística Cerca de dez mil anos atrás, em diferentes partes do mundo pessoas começaram a domesticar plantas e animais, fora este o início da chamada Revolução Neolítica.144 O impacto das inovações técnicas e culturais nascidas neste período não pode ser subestimado, elas viriam a definir o modo de vida do ser humano através do globo pelos milênios subsequentes, transformando-se no padrão que ainda hoje prevalece. O surgimento da agricultura deu-se em um momento de invenção e desenvolvimento profundos, cuja abrangência e poder transformativo só seria equiparado pelas transformações nascidas com a Revolução Industrial. Morton argumenta que a agrilogística - nome que ele dá à estratégia agricultural, originada no Crescente Fértil - surge da tentativa de aplacar duas formas de ansiedade. A primeira, e mais óbvia, é a ansiedade que quaisquer comunidades dependentes da caça e/ou da coleta como fonte exclusiva de alimento enfrentam constantemente: a insegurança e a incerteza de como ou quando virá a próxima refeição. 145 É fácil imaginar como um campo de cultura que assegura a produção de uma certa quantidade de alimento, dentro de um certo período de tempo, além de representar mais comida por menos esforço, é atraente, visto que a outra opção não fornece garantias. Uma comunidade nômade (ou semi-nômade) de caçadores/coletores está constantemente dependente da riqueza, abundância e generosidade da paisagem local, o que nem sempre assegura o suprimento das necessidades da população. A segunda forma de ansiedade descrita por Morton é, entretanto, ainda mais primordial, trata-se do anseio e do desassossego, de origem ontológica, despertado pelo encontro com o estranho-estranho, e pela existência contraditória em meio a uma multidão heterogênea de entes em uma realidade que nunca se revela totalmente. Na 144 145 Diamond, 1987, pp.64-6. Morton, 2014-A, primeiro seminário 50 tentativa de fixar horizontes e combater a contradição que existe no coração de todo objeto - a fenda entre ser (o objeto real) e parecer (o objeto sensível) - o humano recorreu à abertura ostensiva de campos firmemente delimitados e à monocultura. Numa luta contra o estranho e o acidental o campo é reconfortante, pois, está sempre presente - visivelmente demarcado, quando não fisicamente cercado. O campo de agricultura funciona como uma tela em branco sobre a qual seres humanos podem violentamente (porque a abertura de um campo implica a remoção de tudo que lá estava antes) projetar a satisfação de suas necessidades.146 A agrilogística é, assim, aquela que Heidegger chamara de metafísica da presença posta em prática - uma noção que remete a um conceito de Natureza que a equipara a um simples estoque de materiais (Bestand) e conduz à sua exploração nestes mesmos termos. O campo destaca-se da paisagem transformando-se num armazém. Para Heidegger, a metafísica da presença representa uma ameaça à possibilidade de respeito autêntico pela Natureza, pois, limita o conhecimento das características e qualidades do meio ambiente a suas propriedades ônticas; seu Ser (em sentido ontológico) é ignorado, restando apenas o escrutínio do modo como seus elementos podem vir a ser úteis ou danosos para quem os considera.147 A progressiva adoção da agricultura teve como resultado a gradual transformação do modo de vida da população humana ao redor do planeta. Uma fonte relativamente segura e abundante de alimento (porque o rendimento de cada safra de vegetais plantados é inúmeras vezes maior que o da coleta de frutos, raízes e bagas, e o pastoreio mais eficaz que a caça) permitiu que um estilo de vida sedentário fosse adotado em lugar do nomadismo. Como consequência alimentos começaram a ser armazenados para garantir a nutrição durante os meses de inverno, comunidades mais numerosas puderam desenvolver-se, bem como novas tecnologias (utensílios e 146 147 Morton, 2014-A, primeiro seminário Blackburn, 1994, p. 300 51 ferramentas para a agricultura e criação de animais, tijolos e argamassa, moinhos), surgiram ainda novas estruturas sociais.148 Entretanto, esse passo evolutivo sem par no desenvolvimento civilizacional humano, ao contrário do que inicialmente possa parecer, veio acompanhado de uma série de inconvenientes. Foi constatado que cerca de três mil anos após o encetamento da prática da agricultura também haviam aparecido os primeiros indicadores da desigualdade social e sexual (a transformação da mulher em parte do ´mecanismo` do campo e a ascenção de uma classe dominante), do surgimento e da proliferação de uma série de doenças, diminuição da estatura média e expectativa de vida, empobrecimento da dieta (agora dependente de uma ou duas variedades de plantas amiláceas, como o trigo, o arroz e o milho), aparecimento de uma ideologia voltada para a guerra (pela necessidade de defesa dos campos e das comunidades que se desenvolviam à sua volta), além de indícios de que a carga de trabalho pesado aumentara significativamente em comparação a períodos anteriores (pré-agriculturais) devido a novas necessidades: a aragem dos campos, corte de árvores, fabricação de tijojos de barro, preparação de argamassa de cal, moagem de cereais, abertura de pedreiras, etc. 149 Tudo isso aponta para a maneira como o modelo agrilogístico pode de fato sustentar um número maior de pessoas que a caça e a coleta. Porém, apesar dos benefícios a estratégia agrilogística também traz consigo uma série de desvantagens e, como sugerem descobertas recentes no ramo da arqueologia e da paleopatologia, em última instância, a agricultura representa menos prêmios que prejuízos, pois, maximiza a existência em detrimento da qualidade de vida, num exemplo perturbador daquilo 148 Diamond, 1987, pp.64-6 Diamond, 1998, pp. 33-191 Hershkovitz, Gopher, 2008, pp. 441-479 149 Whittle, A. 2003, pp. 162-167 Hershkovitz,, Gopher, 2008, pp. 441-479 52 que Derek Parfit chama de “a conclusão repugnante”, a conclusão de que é melhor que existam mais pessoas do que pessoas mais felizes.150 O modelo agrilogístico é estruturado de forma a suprir exclusivamente as necessidades humanas; da horta e do pomar são excluídas todas as espécies que não as selecionadas pelo agricultor. No momento em que todo ente que não tem serventia direta para o humano é banido, um padrão utilitarista emerge, e é este padrão que subjaz e é responsável pela transformação da espécie humana no principal agente geofísico deste período - o Antropoceno. A agricultura, herdada deste passado distante e incrementada ao longo da História, chega aos dias de hoje numa versão extrema, a da agricultura industrial, com base no uso de fertilizantes sintéticos e modificações genéticas. Com base em uma distorção dos recursos - abertura de campos de cultivo (e consequente destruição do que ocupara a área), irrigação, fertilização, controle de insetos, fungos e nematóides, etc - é criada uma abundância artificial e transiente que não pode ser mantida indefinidamente. Num sóbrio conto sobre como o efeito cumulativo de ações aparentemente desprezíveis podem ter consequências inesperadas que, por sua vez, podem atingir magnitudes devastadoras, Jared Diamond enumera exemplos de povos que durante séculos usufruiram dos recursos naturais disponíveis desta maneira (cultivando e controlando a paisagem) até atingirem uma proporção insustentável e entrarem em colapso, num processo que, pelo menos em parte, fora fruto de problemas ecológicos oriundos da destruição involuntária dos recursos naturais, dos quais tais sociedades dependiam. Ao redor do globo constam exemplos de ecocídios deste gênero - os Anasazi e Cahokia na América do Norte, as cidades maias na América Central, as sociedades moche e do Tiahuanaco ao Sul, a Grécia micênica, a Creta minóica, o Grande Zimbabué no continente africano, Angkor Wat e as cidades do Indo na região de 150 Diamond, 1987, pp.64-6 Morton, 2014, primeiro seminário Parfit, 1984, pp. 381-90 53 Harappa na Ásia e, talvez o exemplo mais célebre, a Ilha de Páscoa na Polinésia.151 Um paralelo entre estas comunidades (uma vez prósperas) em suas respectivas regiões e a população humana no planeta Terra, apesar de parecer simples e automático, não funciona na prática, pois, cada um desses casos possui tantas especifidades que linhas gerais não podem ser traçadas a partir de seu conjunto. Esta é uma situação frequente na Ecologia, pois, a criação de modelos com base na (extremamente) complexa teia de relações é uma tarefa que somente nas últimas décadas tem-se provado possível, através do uso de potentes computadores. Ciente de que uma parcela significativa das causas do aquecimento global advém da agricultura e da criação de animais (da remoção da cobertura vegetal original para o plantio aos gases de efeito estufa emitidos por bovinos) e do caráter insustentável do estilo de vida moderno (baseado na exploração constante, crescente e sem limites dos recursos disponíveis) a humanidade já não pode ignorar o fato de que a estratégia agrilogística é, a longo prazo, auto-destrutiva. Porque o impacto humano vem se mostrando de tal forma profundo e furiosamente transformador, a ponto de sobrepor sua História à dos sistemas terrestres, é necessário que a conduta humana (enquanto espécie) seja reavaliada. O Antropoceno inaugura e o aquecimento global exige o pensar a longuíssimo prazo, uma necessidade que o IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) escolheu descrever com as seguintes palavras: "a Terra como um todo é agora um campo de testes global à medida que a humanidade acelera seu experimento involuntário em escala planetária com seus próprios meios de suporte de vida". (IGBP, 2004, p.35)152 151 Diamond, 2005, pp. 18-23 152 IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme), 2004, p. 35 “In fact, the Earth is now a global test bed as humanity accelerates its unintended planetary-scale experiment with its own life-support system.” 54 O Antropoceno Marcas significativas nas camadas rochosas da crosta terrestre delimitam o início/fim de cada época/período geológico. Estas marcas podem ter origem em eventos como deslocamentos tectônicos, impacto de grandes meteoros, glaciações, vulcanismo ou outras alterações na dinâmica do sistema planetário. Porém, entre meados do séc. XVIII e início do séc. XIX (com o início e posterior estabelecimento da indústria, cuja principal fonte de energia são, até hoje, os combustíveis fósseis) as modificações antropogênicas sobre o meio ambiente intensificaram-se radicalmente - fato que pode ser observado claramente através dos inúmeros gráficos representando mudanças globais (população, uitlização de recursos hídricos, consumo de fertilizantes, urbanização, e diversas outras) elaborados por cientistas de áreas variadas nas últimas duas décadas153, bem como através da inspeção da fina camada de carbono depositada no leito de lagos profundos e núcleos de gelo, cuja origem é a queima de combustíveis fósseis.154 Diferentemente de períodos de aquecimento planetário anteriores, os fatores responsáveis pelas atuais mudanças são inerentemente sociais, “atividades humanas levaram a mudanças globais na atmosfera, clima, litosfera e biosfera terrestres sem precedentes na história humana, quiçá na história do planeta”; o ser humano pode ser considerado o principal fator geofísico contribuindo atualmente para a configuração do planeta.155 Em 2000 foi publicado o artigo seminal, de co-autoria de Paul Crutzen e Eugene F. Stoermer, no qual o termo Antropoceno aparece pela primeira vez em referência ao 153 Como, por exemplo, os inúmeros gráficos presentes nos relatórios de entidades multinacionais como o IPCC e o IGBP retratando as mudanças globais. Este ensaio toma como base o quadro construído pelo IGBP em 2004 mostrando a maneira como índices diversos sofreram, nas últimas décadas, alterações em ritmo acelerado, sem precedentes na história do planeta. Ver Anexo I. IGBP, 2004, pp.15,17 154 Em 1999 foram publicados os dados extraídos do núcleo de gelo de Vostok, na Antártida, que permitiu a análise da atmosfera e da variação de temperatura no planeta nos últimos 420.000 anos. Esta análise foi fundamental no desenvolvimento da ideia do planeta como sistema complexo. Petit, 1999, pp. 429-436 155 Ellis, 2013, p.32 IGBP, 2004, p.23 55 intervalo temporal geológico presente, no qual condições e processos geologicamente significantes foram, e continuam sendo, profundamente afetados pela atividade humana. A raiz grega do termo - Άνθρωπος (anthropos) - põe em foco o papel fundamental do ser humano, na qualidade de espécie dominante, no descortinamento deste período, papel que nenhuma outra espécie jamais desempenhara com semelhante eficiência em toda a história da vida na Terra.156 Apesar da oficialização do termo pela Comissão Internacional de Estratigrafia (ISC - International Commission on Stratigraphy) encontrar-se ainda pendente, a ideia de que a Terra encontra-se neste período - o Antropoceno - é já amplamente aceita dentro de áreas variadas (em especial no ativismo ambiental, estudos climáticos e do sistema terrestre, mas também nas Artes e na própria Filosofia), tendo adquirido desde a data de publicação do artigo de Crutzen e Stoermer enorme força retórica.157 Os limites que definem o início do Antropoceno permanecem sob discussão. A proposta original foi a de começar a contagem a partir do encetamento da Revolução Industrial na Europa, porém, datas anteriores (o estabelecimento da agricultura, ou mesmo antes) e posteriores (o começo da Era Nuclear) também já foram sugeridas.158 Morton escolhe uma data precisa, abril de 1784, dia no qual o multifuncional motor a vapor, desenvolvido por James Watt, foi patenteado na Inglaterra, um momento chave, pois, foi ele (o motor a vapor) quem alimentou e permitiu o florescer da Revolução Industrial.159 Em 16 de julho de 1945, com o primeiro teste nuclear (chamado Trinity Test - no Novo México, Estados Unidos) uma nova camada, desta vez de materiais 156 Crutzen, P. e Stoermer, E.F. 2000 “The ´Anthropocene´”, Global Change Newsletter 41 (IGBP). pp. 17-18 Um outro exemplo de transformação radical de origem biótica no planeta é o Grande Evento de Oxigenação (GOE). Bactérias fotossintetizantes começaram a excretar oxigênio (subproduto da fotossíntese), este acumulou-se na atmosfera ao longo de bilhões de anos, num processo responsável pelo maior evento de extinção em massa da história do planeta, mas também responsável pela composição rica em oxigênio da atmosfera hoje, da qual depende a maior parte da vida que existe atualmente no planeta. Holland, 2006, pp. 903–915 157 Chakrabarty, 2013, em conferência 158 Ellis, 2013, pp.32-35 159 Morton, 2013-B, pp.4-5 56 radioativos, passou a ser depositada sobre a superfície do planeta, dando início ao período hoje conhecido como a Grande Aceleração, no qual o ritmo do impacto humano sofreu um incremento drástico.160 Dipesh Chakrabarty chama atenção para o modo como este aumento - uma elevação aguda nos níveis da agricultura, da industrialização e do consumo de água e energia - reflete a crescente democratização dos padrões de consumo em âmbito global.161 A validação oficial do Antropoceno tem o potencial de ajudar a integrar discussões entre diferentes disciplinas, porém, a inclusão do humano na categoria de força geofísica não depende desta oficialização. A classe científica, de modo geral, já reconhece e salienta o fato, também observável no próprio cotidiano quando analisado cuidadosamente. O Antropoceno consiste na interseção de escalas temporais absolutamente distintas - a escala temporal do sistema terrestre, difícil de imaginar por ser contada em bilhões de anos, a escala temporal da vida no planeta, também muito mais extensa (milhões de anos) que a terceira escala, a da História humana (que não se estende além de alguns milhares de anos). O que fora parte exclusiva do domínio geológico e do domínio evolutivo - as transformações gigantescas, quase inimaginavelmente profundas e retiradas da experiência humana - agora é também parte e agente na História, que, por sua vez, deixa de ser domínio exclusivo do humano, ao passo que todo tipo de objeto força entrada no horizonte de suas preocupações na forma da crise ambiental. O que, por um lado, descreve um novo nível (geofísico) de influência e poder humanos, por outro, vem acompanhado de uma ameaça à própria existência da espécie e faz com que o Antropoceno seja muitas vezes interpretado de maneira lúgubre e 160 A população do planeta mais que dobrou na segunda metade do último século, a produção de grãos triplicou, o consumo de energia quadruplicou, e atividades econômicas quintuplicaram. IGBP, pp.15-17 161 Chakrabarty, 2013, em conferência O que também afirma o IGBP quando, já em seu primeiro relatório do gênero, declara que "these global changes are accelerating as the consumption-based Western way of life becomes more widely adopted by a rapidly growing world population." IGBP, 2004, p. 38 57 apocalíptica. Além disso, a confluência radical de diferentes temporalidades problematiza velhas distinções - entre humano/não-humano, natureza/cultura, organismo/máquina, público/privado, primitivo/civilizado - oferecendo uma chance para que a validade destas distinções seja reavaliada. Os próprios contornos daquilo que significa ser humano - expressão na qual a palavra ´ser´ pode ser lida tanto como substantivo, quanto verbo - tornam-se difusos (e, por que não, confusos?) na tentativa de torná-los precisos. O humano revela-se como um ente fundamentalmente prostético, que só existe, enquanto tal, em conexão com a tecnologia característica de sua espécie (linguagem, cultura, sistemas simbólicos).162 A isto soma-se o fato de que somente com o (muito recente, mesmo em termos históricos) desenvolvimento de tecnologias em áreas como a computação (com o aumento da capacidade de processamento e armazenamento), inteligência artificial, análise de sistemas complexos, física estatística, dinâmica não-linear, etc. - todos estes elementos não-orgânicos, cujas condições de possibilidade são o próprio Antropoceno163 - os seres humanos foram capazes de ´descobrir´ (ver, interpretar e compreender) os sinais que confirmam esta nova época: “a forma na qual a informação foi entregue foi precisamente a das fórmulas instrumentais e matemáticas da própria modernidade”. De maneira circular e irônica, a separação entre o natural-biológico e o tecnológico-maquínico é também obscurecida. (Morton, 2013-B, p.19)164 Já é conhecida pelas ciências a maneira como processos biológicos interagem fortemente com processos físico-químicos na construção do ambiente que mantém o planeta habitável para a vida, uma relação de co-determinação que é uma das 162 Wolfe, 2013, em diálogo com Claire Colebrook Donna Haraway descreve em seu célebre ensaio ´A Cyborg Manifesto´: “By the late twentieth century, our time, a mythic time, we are all chimeras, theorized and fabricated hybrids of machine and organism; in short, we are cyborgs.” Haraway, 1991, p.150 164 Morton, 2013-B, pp.19, 128-129 “There we were, trolling along in the age of industry, capitalism, and technology, and all of a sudden we received information from aliens, infomation that even the most hardheaded could not ignore, because the form in which the information was delivered was precisely the instrumental and mathematical formulas of modernity itself.” 163 58 condições de possibilidade para o próprio surgimento e evolução dos diferentes tipos de organismos.165 O papel fundamental desempenhado por objetos de todo gênero tem motivado autores, como Jane Bennett, a apontar para a vitalidade intrínseca da chamada matéria bruta. Bennett, em Vibrant Matter, reivindica os “poderes animados das formações materiais”, suas trajetórias, propensões e tendências próprias que, quando não são negadas são, em grande parte, ignoradas. Buscando imaginar o impacto que o reconhecimento verdadeiro e sincero desta vitalidade abiótica acarretaria na resposta a problemas públicos, (não restritos a questões ambientais) ela apresenta inúmeros exemplos do papel real e ativo que os variados objetos desempenham - das reações químicas provocadas em meio ao lixo nos depósitos, bem longe dos olhos humanos, ao efeito que ácidos graxos podem vir a ter sobre o humor e o comportamento de indivíduos - e descreve a maneira como humano e não-humano, vida e não-vida, agem e interagem intimamente naquilo que ela chama de “materialidade compartilhada”.166 Paralelamente, Morton pergunta (em The Ecological Thought) “Como seria um encontro verdadeiramente democrático entre entes verdadeiramente semelhantes - será mesmo possível imaginarmos?”. (Morton, 2010 p. 7)167 Ambas as questões, de Bennett e Morton, permanecerão sem resposta enquanto a classificação ontológica dos entes (que em conjunto compõem tudo aquilo que há e tudo aquilo que é) consentir que objetos que compartilham de certos traços (materialidade, vida, consciência, ou outro) sejam tomados como particularmente significativos. 165 Por exemplo: processos biológicos contribuem significativamente para a absorção de CO2 atmosférico pelos oceanos, o que por sua vez controla os níveis de CO2 na atmosfera durante longos intervalos de tempo. A fotossíntese do fitoplâncton reduz a quantidade de CO2 na superfície do oceano, permitindo assim que mais CO2 da atmosfera seja dissolvido. Cerca de 25% do carbono fixado pelo fitoplâncton na superfície desce para o interior, onde é armazenado por centenas de milhares de anos, contribuindo para a não-acumulação deste gás na atmosfera. IGBP, 2004, p. 9 166 Bennett, 2010, pp. vii, 4-5, 40-43 167 Morton, 2010 p. 7 “Ultimately, this includes thinking about democracy. What would a truly democratic encounter between truly equal beings look like, what would it be - can we even imagine it?” 59 É justo, portanto, afirmar-se que a conjugação entre humano e não-humano e suas implicações decorrentes têm-se mostrado cada vez mais conspícuas, e que a descoberta do Antropoceno ao mesmo tempo que revela a ligação estranha, ainda que íntima, entre todos os entes, levanta questões fundamentais (como as duas questões propostas por Latour na epígrafe à este ensaio); o esforço em reponde-las é o que ajudará a traçar caminhos, tanto para a teoria quanto a prática (humanas), que admitam e reconheçam esta interconexão como condição ontológica de todos os objetos. A maneira como entes de todo tipo existem estreitamente emaranhados (bolos de chocolate, bicicletas, sinais de internet sem fio, bancos e bactérias) é refletida no modo como o pensamento ecológico (o pensar-se a própria Ecologia) guarda relação direta não só com ideias ditas "verdes", mas com seu próprio suporte, o conjunto de objetos que são suas condições de possibilidade. Morton exemplifica este fato com uma breve e fascinante passagem na qual descreve o modo como Descartes, apesar de frequentemente vilipendiado pela ecocrítica tradicional, inicia suas Meditações descrevendo o ambiente no qual se encontra - sentado à beira do fogo, segurando em suas mãos o papel sobre o qual escreve - uma estratégia típica da nature writing (de figuras como Henry Thoreau), que busca justamente ofuscar a separação entre o Eu e o ambiente. Morton chama atenção para a forma como o raciocínio que segue tal descrição (a fase de dúvida radical que culmina no cogito) apoia-se exatamente sobre o contexto, a ambiência que o envolve, sendo impossível designar um (o Eu), ou outro (o meio) como ontologicamente anterior. “´Eu penso` depende do ´Eu estou` do ´Eu estou aqui sentado ao pé da lareira` (...) Penso, logo existo (aqui, sentado à beira do fogo)”. (Morton, 2007, pp. 176-7)168 168 Morton, 2007, pp. 176-7 ““I think” depends upon the “I am” of “I am sitting here by the fire.” Moreover, the very philosophy of the self depends upon this environment, as Descartes starts to subject his innocent situatedness to a series of doubts that hollow out that comfortable place by the fire. “I am here” depends upon a sense of doubt, which leads to the cogito: I think therefore I am (that is here, sitting by a fire)." (minha ênfase) 60 De modo semelhante, Morton descreve o próprio pensar como um evento ecológico, o que emerge do enredamento simbiótico de uma multiplicidade de objetos no caso humano, bilhões de organismos (suas próprias células e microbioma) que, em conjunto, constituem e permitem o funcionamento do corpo. (Morton, 2010, pp. 7-8)169 Assim, consciência e senciência transfor qualidades emergentes de sistemas complexos, ao mesmo tempo que se evita o quadro simplista do eliminativismo, pois, os elementos componentes deste sistema além de não serem exclusivamente materiais, mantêm parte de si (que se retira de qualquer contato) sempre em reserva. Georges Bataille, em seu livro Teoria da Religião, contrapõe a animalidade, caracterizada pela continuidade entre o ente e o ambiente - “como água na água” - à condição humana de separação e dualidade que, segundo ele, o homem procura resolver com a invenção do sagrado, através de ritos e sacrifícios. Ele afirma que a essência da religião é a busca pela intimidade perdida - “O homem é o ser que perdeu, até mesmo rejeitou, o que é obscuramente intimidade indistinta”.170 Por esta perspectiva a religião não é a busca por algo maior que o próprio humano, algo com o qual este deseja fundir-se, mas, pelo contrário, é a busca pela intimidade com o Outro (no caso da religião, o sagrado), com aquilo que é diferente do sujeito, a alteridade que lhe é dessemelhante e estranha, resultado da condição humana de separação que ele próprio assevera. Hoje, uma ansiedade profunda e generalizada, fruto do leque de ameaças e incertezas com relação ao futuro - a população a multiplicar-se, o planeta a aquecer, a abundância de discursos apocalípticos e falta de soluções efetivas - um indicador de que o ser humano talvez esteja à procura de algo análogo é justamente o tom de fervor religioso que permeia grande parte do discurso e da retórica ambientalista. O humano não inaugurou o Antropoceno (a "Idade do Homem") sozinho, 169 Morton, 2010, pp. 7-8 “Thinking itself is an ecological event.” Standen, 2013 170 Bataille, 1993 p. 27 61 mas em estreita colaboração com outros objetos - sílex, barro, ferro, cavalo, petróleo, bicho-da-seda, sistemas de governo, etc - busca aproximar-se dessa estranha intimidade entre a res cogitans cartesiana e o ambiente que a constitui, suporta e revela. A crescente conscientização acerca das inumeráveis relações entre formas de vida, entre vida e não-vida, e também de elementos não orgânicos entre si, começa a derrubar lentamente a antiga noção do meio ambiente como ´caixa contentora´, pois, revela a maneira como o ambiente é, simultaneamente, meio e produto das relações entre objetos de naturezas diferentes. Tal constatação permite que uma apreciação ecologicamente superior emerja, e o encontro com entes, que juntamente com o humano constituem esta malha, torna-se profundo e significativo.171 O aprimoramento do senso de proximidade faz ruir a ilusão de um lugar ´fora`, de uma esfera (imaginária) infinitamente remota para onde iria o lixo deitado fora. Hoje todos sabem que o destino do lixo são as usinas e os aterros, que o esgoto não vai para o além, mas para a usina de tratamento - este espaço `acolá´ já não se pode manter porque questões como as ilhas de plástico nos oceanos ou o lixo espacial são de conhecimento geral.172 A perspectiva objeto-orientada Uma abordagem objeto-orientada para a Ecologia é significativa exatamente porque admite e reconhece a existência e a paridade ontológica de todo tipo de ente, além das incontáveis relações que estes engendram entre si (envolvendo diretamente o humano ou não), ao mesmo tempo que compartilha do discernimento ecológico fundamental: a noção de que os elementos nos quais consiste o meio ambiente encontram-se interconectados, de diferentes maneiras. “Os objetos da OOO encontramse simultaneamente fechados [em si] e emaranhados [uns nos outros] num éter sensível (interobjetivo)”. (Morton, 2013-A, p.68)173 171 Morton, 2013-B, p.128 Morton, 2011, p. 82 173 Morton, 2013-A, Realist Magic - Objects, Ontology, Causality. p.68 172 62 Apesar dos objetos serem definidos com base em sua autonomia, a OOO também descreve a maneira como eles são, essencialmente, constituídos por objetos, além de existirem dentro de objetos, o que remete à própria etimologia do termo ecologia - cuja raiz grega οίκος (oikos) significa casa - pois, pode-se afirmar (metafórica-, mas também literalmente) que objetos servem de casa para outros objetos, bem como, objetos habitam o interior de objetos.174 Como citado na primeira parte do ensaio, Harman identifica a sinceridade (seguindo Levinas) como uma estrutura universal, comum a todo objeto; uma estrutura semelhante ao que José Ortega y Gasset chamara ingenuidade.175 Esta sinceridade consiste na "atividade anônima da existência", a pura execução de cada objeto, e independe de qualquer suposto acesso humano a esse desempenho, em outras palavras, a sinceridade (neste sentido específico) significa simplesmente que objetos existem inescapavelmente absorvidos em suas respectivas execuções.176 A existência nessa teia (sempre constituído por, e no interior de, objetos) é definida por esta sinceridade e pelo envolvimento.177 O objeto individual, anterior às relações nas quais encontra-se envolvido (o objeto autônomo e irredutível descrito na primeira parte deste ensaio) pode ainda ser visto como algo distintamente ecológico por outra virtude. Caso seja admitido que para relações serem estabelecidas são logicamente necessários - antes de tudo - elementos componentes que se relacionem, são concedidos a cada objeto específico valor e importância que ele não receberia caso fossem favorecidas as relações (dissipando-os), ou caso objetos fossem entendidos como partes (substituíveis) de uma totalidade, componentes de um objeto-topo dentro do qual todos os outros existem - nos moldes “OOO objects are simultaneously enclosed and entangled in a sensual (interobjective) ether.” 174 Morton, 2013-A, p. 45 Morton, 2013-Bpp. 116-9 175 Morton, 2013-A, p. 67 176 Harman, 2002, pp. 238-9 Harman, 2005, pp. 39, 43-9, 128-35, 194 177 Harman, 2005, p. 255 63 da Natureza. Além disso, como aponta Levy Bryant, a posição contrária (que especifica cada objeto segundo suas relações) “debilita nosso senso da fragilidade das relações, de que elas podem ser facilmente quebradas, e que a destruição destas relações frequentemente tem consequências destrutivas incalculáveis”.178 Um dos principais resultados da adoção de uma visão objeto-orientada da Ecologia (para a Filosofia) é a expansão de sua esfera de abrangência; a Ecologia deixa de estar associada apenas a uma parcela reduzida de entes (ecossistemas ameaçados, derramamentos de óleo e calotas polares), passando a referir-se a todo tipo de objeto (de átomos e novos prédios em Dubai a pedaços de satélites para sempre perdidos na exosfera). Esta abertura de escopo é absolutamente fundamental, pois, hoje a crise ambiental lança ao humano o desafio de lidar com este imenso e confuso conjunto de objetos; as variadas ciências atestam sua conjugação íntima e generalizada, além do modo como estes objetos podem influenciar uns aos outros profundamente. Para que o ser humano seja capaz de avaliar a situação e tomar decisões inteligentes (em relação a sua própria conduta) é imprescindível que ele leve em consideração esta multiplicidade de perspectivas - representadas pelos estranhos-estranhos. Como resultado, toda ação torna-se ecologicamente significativa. Quando estão em jogo todos os (pequenos e grandes) componentes da realidade e temporalidades que extrapolam a escala humana, qualquer alteração pode vir a ter repercussões imprevisíveis, pequenos gestos podem ser (positiva- ou negativamente) amplificados numa escala de tempo tão estendida, um fato que Parfit exemplifica com o problema do lixo nuclear. Não existem teorias do interesse-próprio capazes de abarcar a (longa) escala temporal do decaimento radioativo - materiais radioativos podem permanecer letais por mais de vinte e quatro mil anos - o que significa que absolutamente todos os humanos eventualmente vivos dentro deste período serão afetados pelas decisões 178 Bryant, 2012, em seu blog Larval Subjects “The idea that relations are internal undermines our sense of the fragility of relations, that they can be all too easily broken, and that the destruction of these relations often has incalculable destructive consequences.” 64 tomadas no presente no que diz respeito ao armazenamento do lixo nuclear, numa espécie de efeito cascata.179 Este é um exemplo claro de como pensar as relações na escala imposta pelo foco no objeto obriga o humano a dar-se conta, estar atento, e procurar lidar (antecipadamente) com potenciais repercussões inesperadas, nãoplanejadas, e muitas vezes indesejadas, de cada ação presente, dando origem àquela que Ulrich Beck chama de sociedade de risco.180 A Natureza, uma tradução humana do grande carnaval de objetos que compõem o ambiente circundante, pode, segundo Morton, ser entendida como um objeto sensível, pois, o que ela designa é sempre Natureza-para (um dado ente - construída de acordo com a estrutura do como, descrita na primeira parte deste ensaio), sempre um fenômeno, uma interpretação.181 Lembrando que um objeto sensível é aquele que existe unicamente quando objetos reais estabelecem uma relação (é a interpretação sensível que um objeto faz de outro)182, a Natureza é, portanto, incapaz de subtender ou conter objetos (reais). Pensá-la como um pano de fundo sobre o qual se desenrolam as estações do ano, a vida dos diferentes organismos, ou as grandes catástrofes naturais, é adotar a perspectiva da metafísica da presença, o que significa afirmar que a Natureza possui presença objetiva constante ("Natureza" como horizonte). Sob esta perspectiva a rede de relações torna-se mais importante, ou mesmo mais real, que seus componentes, tendo sobre eles um efeito dissipativo. Mas o que significa afirmar que tudo está interconectado? Harman indica duas possibilidades: se tomada no sentido de uma conectividade forte, a afirmação aponta para uma visão holística, na qual tudo é determinado com base em suas interações com todo o resto; enquanto uma conectividade fraca significa simplesmente que objetos de toda sorte fazem parte de uma mesma trama, livres de classificações dicotômicas como 179 Parfit, 1984, p. 443 Morton, 2011, p.87 180 Morton, 2013-B, p. 140 181 Morton, 2013-B, p.119 182 Harman, 2012-A, p.18 65 mente/matéria, natural/não-natural, humano/não-humano, ou de uma hierarquia.183 É no segundo sentido (da conectividade fraca) que Morton afirma que todos os objetos encontram-se interconectados; “A crise ecológica que encaramos é tão óbvia que se torna fácil - para alguns, estranha ou assustadoramente fácil - ligar os pontos e perceber que tudo está interconectado. Este é o pensamento ecológico”. (Morton, 2010, p.1)184 Assim, uma ontologia plana, fundamentalmente democrática, emerge, na qual todos os objetos possuem o mesmo estatuto ontológico. Uma ecologia construída sobre tais bases claramente põe em causa noções de hierarquia ou privilégio, mas, principalmente, vai além do correlacionismo que dá ao ser humano dignidade ontológica exclusiva. Morton afirma que pensar-se a Ecologia nos termos da malha significa abandonar a noção de um centro, de um ente que determina todo o restante, bem como a ideia de uma separação entre ´dentro` e `fora`; a malha estende-se por todas as escalas - dentro de um objeto existem mais objetos, e o mesmo à sua volta. 185 Numa ontologia plana não existe um pano de fundo sobre o qual se destacam os objetos, por consequência, também não há um primeiro plano; nenhum ente é considerado especial em relação a qualquer outro. Na obra Jamais Fomos Modernos, Latour apresenta aquilo a que dá o nome de quase-objetos, que são compostos através de associações entre humanos e nãohumanos em “íntima fusão através da qual os rastros dos dois componentes da natureza e da sociedade se apagam”.186 Nesta obra, ele implode separações salientando como a relação de dependência e determinação mútuas entre essas duas dimensões (Natureza e Cultura) precisa ser devidamente admitida para que possam ser acomodadas a multiplicidade e a ubiquidade destes híbridos, fornecendo-lhes “um nome, uma casa, 183 Harman, 2012, p.16 Morton, 2010, p. 1 “The ecological crisis we face is so obvious that it becomes easy - for some, strangely or frighteningly easy - to join the dots and see that everything is interconnected. This is the ecological thought.” (minha ênfase) 185 Morton, 2010, pp. 38-9 186 Latour, 1994, pp. 54-5 184 66 uma filosofia, uma ontologia e, (espero) uma nova constituição”.187 “Escrever sobre ecologia”, afirma Morton, “é escrever sobre a sociedade, e não simplesmente no sentido fraco, de que nossas ideias acerca da ecologia são construções sociais. Condições históricas aboliram a natureza extra-social à qual teorias da sociedade podem apelar, enquanto, ao mesmo tempo, fizeram com que entes que se encaixam sob este título [extra-social] passassem a impingir ainda mais urgentemente sobre a sociedade”. (Morton, 2007, p.17)188 Em outras palavras, aquilo que recebe o nome Natureza está hoje presente, e em verdade esteve sempre, no seio do espaço social. O Antropoceno período geológico atual, caracterizado pela influência humana sobre a crosta terrestre atesta exatamente a impossibilidade desta separação. Ecologia Sombria “This is the way the world ends This is the way the world ends This is the way the world ends Not with a bang but a whimper”189 - T.S. Eliot O desenvolvimento de um conceito de ecologia baseado na forma como uma miríade de objetos autônomos afetam uns aos outros e existem em proximidade radical, não tem como objetivo a simples expansão da esfera de inclusão da Ecologia, mas busca principalmente salientar o encontro profundamente íntimo entre objetos - de toda natureza e toda escala - que são, e serão sempre, estranhos uns aos outros apesar 187 Latour, 1994, pp. 8-11, 55 Morton, 2007, p. 17 “To write about ecology is to write about society, and not in the weak sense that our ideas of ecology are social constructions. Historical conditions have abolished an extra-social nature to which theories of society can appeal, while at the same time making the beings that fell under this heading impinge ever more urgently upon society.” 189 Eliot, 1936, pp.87-90 188 67 dessa proximidade (afinal, objetos nunca são descobertos em sua totalidade); um encontro que estreita laços ao mesmo tempo que realça diferenças. Morton afirma que meditar acerca da Ecologia é difícil, “envolve tornar-se aberto, radicalmente aberto”, exige uma atitude crítica de constante reavaliação e questionamento, "é um pensar que é ecológico, um contemplar que é ação", pois, tomar consciência de um objeto (ou ´intencioná-lo´, em termos husserlianos) é fazer-se vulnerável a este objeto, é estar aberto e receptivo às directivas que ele emite.190 Se por um lado o modelo de ecologia promovido por Morton - ao qual ele dera o nome Ecologia Sombria (Dark Ecology) - procura questionar problemas, conceitos e padrões, por outro ele sugere uma postura específica, que parte da ansiedade, da hesitação e da incerteza frente a uma realidade essencialmente estranha. Claramente, o objetivo de uma abordagem nestes moldes não é o de estabelecer critérios normativos rígidos de conduta, tampouco, o de reduzir ou simplificar as inúmeras questões que a Ecologia (como princípio das relações entre todo tipo de objeto) levanta, a Ecologia Sombria, ao contrário, propõe uma postura contemplativa, aberta e não-violenta como estratégia para desenvolvimento de uma "lógica de coexistência futura"; uma coexistência que reconhece o modo como diferentes objetos desempenham diferentes papéis enquanto engajados em uma multiplicidade de relações inerentemente frágeis.191 A possibilidade que se revela ao humano com a ´descoberta` do Antropoceno, e que o aquecimento global exige e impõe, de pensar-se numa escala espaço-temporal expandida (que abarque os limites extensos e imprecisos de entes como a biosfera, bem como as longas e lentas transformações do sistema terrestre) envolve encarar a 190 Morton, 2013-B, p.7 “Thinking the ecological thought is difficult, it involves becoming open, radically open”, “it is a thinking that is ecological, a contemplation that is doing”. Harman, 2002, p. 226 191 Morton, 2014-A, nos três seminários 68 perturbadora ausência de uma ´conduta adequada´ determinada (ou determinável) em relação ao planeta e aos entes que nele habitam, além da inescapável hipocrisia nas fronteiras do cuidado ecológico, uma vez que as próprias condições de possibilidade para a vida (humana ou não) implicam perturbações no meio ambiente.192 O conceito de ´Natureza` chega a ser contra-produtivo para o projeto ambientalista por inúmeras razões. Uma delas é a maneira como uma Natureza normativa baseia-se em sua capacidade de excluir aquilo que não é considerado natural, entretanto, a decisão cabe sempre ao humano. Por vezes a natureza é a mais palpável realidade, por outras é o princípio transcendente que rege alguns entes (ditos naturais) e não outros. Mas, talvez o grande problema seja a maneira como aquilo a que se refere o termo não coincide com o que de fato constitui o ambiente terrestre. O conceito moderno de Natureza, herdado da tentativa de resistência à industrialização por parte dos românticos, a estabelece como um ciclo harmonioso e periódico, algo que, sob a perspectiva da geologia por exemplo, não passa de uma ficção.193 O ambiente terrestre é um exemplo de um conjunto de transformações e mudanças radicais contínuas- períodos de aquecimento e resfriamento extremos, extinções em massa, etc. - mesmo antes do surgimento da espécie humana (a História humana, da espécie como ela é reconhecida hoje, teve início há cerca de cinquenta mil anos), que por sua vez, já enfrentou inúmeros períodos de mudanças climáticas anteriores. Os últimos doze mil anos da história terrestre, o período oficialmente denominado Holoceno, cujo início é marcado pelo fim da última era glacial, caracterizase exatamente pelo aquecimento inicial e pela subsequente estabilidade de um clima relativamente ameno, propício a uma grande variedade de espécies, inclusive a humana. 192 193 Colebrook, 2013, em diálogo com Cary Wolfe Morton, 2014-A, primeiro seminário 69 Assim, a partir do início do Holoceno (o fim da última glaciação) o ser humano foi, obrigado a traçar estratégias para lidar com um planeta em aquecimento. A arqueologia fornece evidências de movimentos migratórios e do desenvolvimento de novas tecnologias; é também neste momento que a agrilogística surge como alternativa particularmente atraente pelos motivos já citados (a confiabilidade dos resultados, maior rendimento por menor esoforço, etc), sendo gradualmente adotada ao redor do globo. Discutivelmente esta fora a mais fundamental das transformações efetivadas pelo ser humano no ambiente; seu gigantesco impacto sobre os sistemas terrestres contribuiu para a manutenção da estabilidade climática (ainda que temporária) no planeta, ao tentar evitar as consequências do aquecimento global que os humanos do início do Holoceno enfrentavam, foi desenvolvida uma estratégia lógica (a agrologística) cujo resultado a longo prazo é justamente o aquecimento global em curso hoje.194 As transformações acumuladas (especialmente nos últimos dois séculos) vieram perturbar esta aparente estabilidade, inaugurando um novo período de aquecimento global com o qual o humano (enquanto espécie) tem de lidar, desenvolvendo novas estratégias de adaptação e tendo em mente a maneira como as atividades humanas têm consequências tão amplas e profundas que afetam o planeta (hoje mais que nunca) numa escala verdadeiramente global, de maneira complexa, interativa e acelerada. 195 O aspecto sombrio deste modelo de Ecologia é derivado do inquietante encontro com o estranho-estranho, e da proximidade claustrofóbica da convivência com as multidões de objetos que não só constituem o ambiente mas o próprio humano. Esta lugubridade vem ainda da postura destas ideias em relação ao chamado ´fim do mundo` - um recurso retórico tão frequentemente encontrado no discurso ambientalista, discussões sobre a crise ambiental, o aquecimento global e consequentes mudanças 194 195 Morton, 2014-A, primeiro seminário IGBP, 2004, p. 6 70 climáticas, e cada dia mais presente na cultura popular. Existe uma crescente variedade de narrativas (especialmente no cinema) que retratam futuros distópicos, nos quais a humanidade (ou o que resta dela) é obrigada a enfrentar um leque variado de horrores, muitas vezes de sua própria autoria. Em geral, tais narrativas retratam o futuro (mais ou menos distante) ao mesmo tempo que situam o presente sob a sombra deste (eco)apocalipse, que apesar de muitas vezes iminente, é representado como algo que ainda está por vir.196 Especialistas afirmam que "Muito mais provável que um cenário de fim de mundo, envolvendo a extinção humana ou um colapso apocalíptico da civilização industrial, será ´apenas` um futuro com padrões de vida significativamente mais baixos, com riscos cronicamente mais elevados e com a destruição daquilo que hoje consideramos alguns de nossos valores fundamentais".197 O quadro descrito por Diamond parece tão retirado da realidade atual. Ao contrário dos filmes de desastre ele apresenta um ´fim do mundo´ muito mais gradual, que acontece antes que os envolvidos se dêem conta dele. Morton insiste que o fim do mundo já aconteceu - o subtítulo de seu livro mais recente, Hyperobjects, é justamente "Filosofia e Ecologia Após o Fim do Mundo" - e ele especifica um momento preciso a partir do qual o mundo (enquanto conceito definido em relação exclusiva ao humano) começou a desmoronar: Abril de 1784.198 Esta mesma data foi anteriormente mencionada neste ensaio para determinar o início do Antropoceno - o momento da história do planeta no qual o humano juntou-se ao grupo dos principais agentes geofísicos sobre a Terra, um estatuto que só pôde ser atingindo através da íntima associação entre o humano e um sem número de outros entes (não196 Uma breve listagem (de modo algum exaustiva) de exemplos que tiveram êxito de público inclui: Melancholia, 2011, dir. Lars Von Trier, Zentropia Entertainment The Road, 2009, dir. John Hillcoat, Dimension Films Wall-e, 2008, dir. Andrew Stanton, Pixar Animation Studios I am Legend, 2007, dir. Francis Lawrence, Warner Bros. 197 Diamond, 2005, p. 22 198 Morton, 2013-B, pp. 7,16-17, 21 71 humanos como pás, motores, teares, fábricas, raios gama e moedas) que de forma direta ou indireta são enformam suas ações. É exatamente devido à tomada de consciência de sua inextricabilidade em relação ao contexto, ao modo como o meio ambiente já não pode ser tomado como um simples ´pano de fundo´ para o drama humano (pois, o pano de fundo invadiu o centro do palco), que Morton argumenta que o conceito de ´mundo` é, hoje, insustentável. "O fim do mundo está correlacionado ao Antropoceno, a seu aquecimento global e subsequente mudança climática drástica, cujo alcance preciso permanece incerto enquanto sua realidade é verificada de maneira inquestionável". (Morton, 2013-B, p.7)199 Este ´fim do mundo`, portanto, não é sinônimo da extinção do planeta ou da espécie humana, mas o fim de uma noção de ´mundo` como efeito estético baseado em sua imprecisão e distanciamento, além de sua presença constante - nos moldes da Natureza como armazém de recursos (vítima da metafísica da presença) criticada por Heidegger. Assim, a crise ambiental vem acompanhada de uma crise dos hábitos do pensamento filosófico, e confronta a humanidade com problemas que desafiam não só sua capacidade de controle, mas de entendimento; “Entes não humanos são responsáveis pelo próximo momento da história e do pensamento humanos". 200 Porém, a Ecologia Sombria não é sinônimo de uma filosofia de rendição niilista. Depois do fim do mundo, em outras palavras, hoje, o humano começa a reorientar-se a fim de conseguir fazer sentido de mais este descentramento, que segue o que Freud considerara as três grandes humilhações do humano (ou três feridas narcísicas), as descobertas de Copérnico, Darwin e a sua própria, que retiraram o humano do centro do universo, da genealogia de origem divina (com início em Adão) e do centro da 199 Morton, 2013-B, p. 7 “The end of the world is correlated with the Anthropocene, its global warming and subsequent drastic climate change, whose precise scope remains uncertain while its reality is verified beyond question.” 200 Morton, 2013-B, p. 201 “Nonhuman beings are responsible for the next moment of human history and thinking." 72 própria atividade psíquica, respectivamente. Morton acrescenta a esta lista de humilhações o deslocamento efetivado pela OOO ao situar o Ser (do) humano no mesmo patamar ontológico que qualquer outro ente. (Morton, 2013-B, p.201)201 Harman, em contraposição a Heidegger, afirma que "O mundo não é apenas um, é também muitos. Ele não é composto somente por partes que se empurram para além de si próprias e perdem suas identidades numa contextura cósmica de sentido, antes, suas partes são também pontos finais, vizinhanças fechadas que retêm suas identidades locais apesar dos sistemas mais amplos nos quais se encontram parcialmente absorvidas”, em outras palavras, o mundo não se constitui somente para o humano.202 O reconhecimento do Antropoceno implica o reconhecimento, dentro e fora da ciência, da maneira como entes discretos existem intimamente ligados. A crise ambiental trouxe consigo aquela que Morton chama de "náusea da coexistência", pois, o não-humano passou a impingir decididamente sobre a História e muitas vezes a oprimir e ameaçar o humano.203 A estrutura circular do Antropoceno (reminiscente dos romances noir e de tragédias como Rei Édipo, de Sófocles, nos quais o protagonista descobre ser o próprio vilão) também concede tons sombrios a esta conscientização. 204 A "abertura radical" que Morton declara imprescindível para que uma convivência ecologicamente superior emerja é também descrita como uma forma de sintonia (attunement) entre estranhos-estranhos.205 Com base na reinterpretação do imperativo categórico kantiano efetuada por Lingis (na obra The Imperative), Morton afirma que estar em sintonia com os objetos à volta é tornar-se suscetível e vulnerável às directivas por eles emitidas.206 E ele sugere uma ética do Outro, baseada na proximidade com o estranho, semelhante ao que Jacques Derrida propõe quando ele 201 Morton, 2013-B, pp. 16-17 Harman, 2002, p.34 203 Morton, 2014, terceiro seminário 204 Morton, 2014, Segundo seminário 205 Moton, 2013-C, em conferência 206 Morton, 2014, terceiro seminário 202 73 afirma que um princípio da ética é a obrigação que convoca a responsabilidade no que diz respeito ao mais dissimilar, o "irreconhecível" (méconnaissable).207 Lingis situa o a priori transcendental no que ele chama de níveis (que Morton rebatiza zonas) - as áreas dentro das quais objetos exercem seu poder de influência correspondente ao ´éter sensível´ da OOO, a dimensão estético-causal na qual objetos deixam sua impressão sobre outros objetos.208 Segundo o próprio Lingis, a correspondência entre estes níveis convoca o indivíduo como uma directiva - que não é recebida pelo entendimento conceitual ou pela razão, não é o imperativo para conceber-se cada padrão sensível como categoria universal e necessária, nem um imperativo para que os objetos reconhecidos conceitualmente sejam conectados a leis necessárias universais mas, é recebida pelo corpo sensório-motor, finalizando a percepção feita do objeto em direção a um campo definido, ao invés de um caos de padrões transitórios. A ética de Lingis depende, portanto, de um tipo de harmonização ou sintonia (uma Stimmung), ou uma correspondência entre objetos que independe de raciocínios ou cálculos éticos, pois, "a obediência aos níveis precede e torna possível qualquer iniciativa, qualquer liberdade, de sensibilidade ou movimento". (Lingis, 1998, p.38)209 No decorrer de sua existência, e envolvido em objetos, as estruturas materiais dos caminhos, dos implementos e dos obstáculos aparecem como directivas que regulam a ação do indivíduo.210 Estes níveis, ou zonas, correspondem ao ´éter sensível´ no qual todos os objetos encontram-se submersos, que Morton chama de um “campo 207 Derrida, 2009 p.108 Harman, 2005, p.42-4 Neste livro, Harman dedica-se à investigação desse ´éter`: "In Tool-Being, I focused on objects as withdrawn unities that never come to presence. In the present book, what interests me is the cloud of gaseous qualities that are present, in which objects do take form and become manifest”. 209 Lingis, 1998, p.38 “Obedience to the levels precedes and makes possible any initiative, any freedom, of sensibility and movement.” 210 Lingis, 1998 p. 171 Morton, 2013-B, pp.140-1 208 74 ilusório de ironia”; o objeto e sua zona são, posto em outros termos, a coisa-em-si e seu fenômeno, ou ainda, o objeto real e o objeto sensível.211 Em um belíssimo exemplo da maneira como objetos (entes reais e autônomos) convivem de maneira absolutamente próxima, exercendo influência uns sobre os outros de modo a constituirem a chamada malha de interconexão, e de como estes objetos entram em sintonia ou dissonância, pode ser encontrado no ensaio A Defense of Poetry, do poeta inglês Percy Bysshe Shelley, com ecos em Heidegger e também em Lingis. Shelley traça um paralelo entre a maneira como uma harpa eólica produz som e o poeta escreve poemas, ambos o resultado do encontro entre diferentes entes - a harpa e o vento, o poeta e seu tema - ou seja, a tradução que um faz do outro no próprio ato da interação. O instrumento, muito popular na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, consiste em um caixa retangular de madeira, sobre a qual cordas correm longitudinalmente, estendidas sobre pontes em cada extremidade e ligadas a cravelhas. Posicionada no peitoril de uma janela, a harpa vibra com a pulsação das correntes de ar produzindo som. Shelley afirma que o ser humano é, de certa maneira, análogo a essa harpa eólica na medida em que "O homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões externas e internas são movidas", ele percebe passivamente uma corrente de estímulos e ressoa em conformidade.212 Se deixada sozinha num ambiente externo a harpa eólica emitirá, vez ou outra, suas vibrações estranhas, que soam surpreendentemente futuristas aos ouvidos atuais, causadas pela fricção das correntes de ar sobre as cordas. Heidegger afirma que o som do vento em-si nunca é ouvido, o que se ouve é o assobiar do vento na chaminé, o sussurro do vento nas folhas de uma árvore, o vento roçando as cordas de uma harpa eólica.213 Em outras palavras, ouve-se a tradução que o vento faz das cordas; a tradução, 211 Morton, 2013, p. 143 Shelley, 1904 p.13 213 Heidegger, 2002, p. 8 212 75 em ondas de pressão amplificadas que a caixa oca faz da vibração das cordas. Ao entrar no ouvido estas ondas serão novamente traduzidas pela cóclea, que age como um transdutor, traduzindo vibrações mecânicas em sinais eletromagnéticos. 214 Assim, uma série de conversões, traduções, ou interpretações são necessárias para a ocorrência dos processos perceptivos. Lingis, por sua vez, apresenta uma extensa série de exemplos que descrevem esta sintonia, quando na escuridão de uma caverna "tateamos as rochas, nosso tato espalha seu relevo pedregoso diante de nós enquanto a massa de nossas mãos pressionadas contra a rocha escorregam sobre ela. A força de nossas mãos é extraída da força que sustenta nossa postura arqueada que é extraída da força que sustenta o chão e as paredes da caverna". Ele fala da maneira como objetos existem em interação íntima e constante, além de necessária para que o ambiente seja constituído como tal, "ouvimos o grito da águia com os ventos e as paredes de rocha do canyon". E ele insiste “os meios que nos fazem perceber nosso ambiente como tantas rotas e caminhos e interconexões dinâmicas são exteriores e nos comandam”. (Lingis, 1998, pp.282-4)215 Assim, o momento em que o humano dá-se conta da extensão e penetrância de sua influência sobre o "mundo" coincide com o momento em que o humano percebe que ele também é influenciado pelos objetos que o constituem em igual medida. Como resultado dessa dupla apreciação a Ecologia passa, no Antropoceno, a concernir tido tipo de relação entre todo tipo de objeto, e esta compreensão levanta uma série de questões desagradáveis. Do que fazer com os dejetos, passando pelo cálculo dos riscos, até o enfrentamento da "conclusão repugnante" (delineada por Parfit), hoje, essas perguntas vêm à tona continuamente, a todo momento. O lixo, por exemplo, está mais 214 Morton, 2012, p. 206 Lingis, 1998, p. 82-84 "(...) we grope at the rocks, our touch spreads their gritty relief before us as the mass of our hands press up against the rock and skid across it. The force of our hands draws on the sustaining force of our sprung stand which draws on the sustaining force of the cave floor and walls." “We hear the scream of the eagle with the winds and the rock walls of the canyon” “The ends which make us perceive our environment as so many routes and pathways and dynamic interconnections are exterior and command us.” 215 76 presente que nunca no cotidiano, na forma de contentores coloridos espalhados pelas ruas e pelas cozinhas, na maneira como deitar algo fora agora inclui a pergunta se aquilo é ou não reciclável, no modo como se sabe que o lixo não é simplesmente "jogado fora" mas sim, depositado em algum lugar (às vezes em locais indevidos, causando uma série de problemas, outro fato que poucos hoje ignoram), onde o fluxo de reações e transformações continua longe da presença humana, porém, intimamente ligado à ela. A ansiedade primordial da existência, a inquietação perturbadora frente ao estranho-estranho (o objeto contraditório que é aquilo que se mostra ao mesmo tempo que não o é retorna na figura de entes como o aquecimento global (que apesar de real nunca é encontrado diretamente, apenas em seus efeitos). Tudo isso impõe sobre o pensamento uma escala esmagadoramente vasta, talvez mais difícil de imaginar que o próprio infinito abstrato.216 Aceitar que o fim do mundo já aconteceu implica parar de tentar salvar o mundo, o que à primeira vista pode parecer o exato oposto daquilo que uma teoria da Ecologia e da coexistência poderia querer promover. Porém, após o "fim do mundo" tudo o que resta são entes individuais em coexistência, uma profusão de estranhos objetos que cintilam, cada um a seu modo. Este ensaio defende que neste momento, quando o ser humano começa a reconhecer o modo como o próprio humano consiste numa multiplicidade de não-humanos é uma incumbência da Filosofia assistir no desenvolvimento dos termos que serão usados na formulação dos problemas inaugurados com o Antropoceno. 216 Morton, 2010, pp. 40, 118 77 78 Conclusão A proposta desenvolvida ao longo deste ensaio foi a de delinear um conceito renovado de ecologia para a Filosofia, capaz de responder ao desafio lançado pela compreensão de que o ser humano, enquanto espécie, nos últimos dois séculos tornouse a principal força geofísica em ação no planeta, inaugurando a mais recente época geológica: o Antropoceno. O ensaio foi dividido em duas partes, na primeira delas foi apresentada aquela que serviu de base para o desenvolvimento deste conceito alargado de ecologia, uma teoria geral dos objetos - a Ontologia Objeto-Orientada - que lida com um mundo quantizado, na qual entes existem como realidades unificadas, herméticas e discretas, os chamados objetos. 217 A segunda parte tratou das implicações de uma perspectiva objeto-orientada para a Ecologia no momento específico do Antropoceno. Ao definir os objetos como entes que possuem existência unificada e autônoma, em excesso de suas relações, acidentes, qualidades e momentos, que se retiram de qualquer contato direto e mantêm uma faceta sempre isolada, a Ontologia Objeto-Orientada aproxima-se daquilo a que Manuel Delanda dá o nome de ontologia plana - formada exclusivamente por indivíduos únicos, singulares, que diferem na escala espaço-temporal mas não em estatuto ontológico. 218 Como foi discutido, este modelo argumenta que o plano ontológico possui dois tipos diferentes de objetos, os objetos reais e os objetos sensíveis. 219 O termo objeto é aplicado universalmente, e abarca toda 217 Harman, 2011-A, pp.5-6 DeLanda, 2002, p.58 219 Harman, 2011-A, pp.20-50 218 79 espécie de ente - de cães, canhões ou castelos a eléctrons, emails e escolas de samba. 220 Para Harman nem mesmo entes imateriais, como os números, escapam desta categoria, pois, “é perfeitamente possível discutir-se o significado de ´número` e fazer novas descobertas acerca de entes matemáticos - a prova mais simples concebível de que as propriedades dos números não são visíveis num relance(...). É neste sentido que mesmo as ideias devem ser concebidas como entes reais”, em outras palavras, entes imateriais, efêmeros, compostos, ficcionais - que muitas vezes são excluídos das categorias mais gerais da ontologia - são, aqui, também considerados objetos, pois, assim como os entes materiais, eles não podem ser reduzidos nem a sua estrutura ou nem a seus efeitos sobre outros entes. 221 Foi apresentada a forma como a Ontologia Objeto-Orientada desenvolve a estrutura básica do objeto a partir de noções elaboradas por Husserl e Heidegger: “Heidegger estabeleceu que o Ser de um objeto não é jamais completamente apreendido, mas aparece sempre como uma caricatura cada vez que surge enquanto fenômeno. Nenhuma aparência do martelo, nenhuma relação para com ele, pode apreender as profundezas do Ser-martelo. Na esfera fenomênica, Husserl mostrou que existe uma segunda fratura. O martelo fenomênico, o objeto intencional ´martelo`, permanece uma unidade durável enquanto giro-o em minhas mãos, observo-o de perto ou à distância, e continuo a observá-lo enquanto meu humor altera-se da euforia à absoluta depressão suicida”. 222 Assim, o objeto da OOO existe fendido entre seu 220 Harman, 2005, pp. 73-87 Harman, 2002, p.36 “(...) it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a glance, not merely vorhanden. It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.” 222 Harman, 2008, pp. 3, 10 “Heidegger established that the being of an object is never fully grasped, but always appears as a caricature whenever it appears as a phenomenon. No appearance of the hammer, no relation to it whatsoever, can grasp the depths of hammer-being. Within the phenomenal sphere, Husserl showed that there is a second fracture. The phenomenal hammer, the intentional object ´hammer`, remains an enduring unit as I rotate it in my hands, view it up close or from a distance, and continue to view it as my mood shifts from euphoria to utter suicidal depression.” 221 80 executar autônomo e isolado e a apreensão sensível que dele é feita; entre a parte do objeto passível de ser traduzida por um outro objeto e a parte que se afasta de toda e qualquer forma de contato. Outra característica distintiva da ontologia abordada neste ensaio é a maneira como as relações entre os variados tipos de objetos são também colocadas no mesmo patamar. Foi mostrado como as relações entre uma pedra e uma vidraça, ou entre Pedro e a pedra podem ser descritas da mesma forma, pois, acontecem por via de simplificações que um objeto (a pedra, a vidraça, Pedro) produz acerca de outro. Porque acontecem através desta interpretação sensível, foi também afirmado que todas as relações entre objetos são, essencialmente, de cunho estético. 223 Na segunda parte do ensaio, denominada ´Ecologia Objeto-Orientada`, as variadas constatações da Ontologia Objeto-Orientada foram tomadas como fundamento para uma concepção filosófica ampliada do significado do termo ´Ecologia`. Foi afirmado que esta ampliação é particularmente relevante no atual momento de crise ambiental no qual o humano precisa incluir-se num contexto geral maior, de uma escala espaço-temporal distendida, a fim de avançar um modo de pensar menos antropocêntrico.224 Procurou-se demonstrar a forma como, apesar do termo Antropoceno ainda não ter sido oficializado pela geologia, o termo já se encontra difundido em outras áreas e disciplinas, além de ter também adquirido enorme poder retórico, pois, contém claramente em sua raiz - do grego Anthopos - a marca do ser humano, extamente aquilo a que se refere. Apesar de sugestões situarem o início desta época geológica séculos no passado, quando não milênios, o estabelecimento do Antropoceno só pôde ser constatado retrospectivamente, 223 Harman, 2005, pp. 169-234 Morton, 2013-B, pp.19-20 224 Chakrabarty, 2013, em conferência em parte, 81 devido ao desenvolvimento de computadores cada vez mais potentes e à criação de modelos suficientemente sofisticados (ainda que incompletos e em constante aperfeiçoamento) das complexas relações entre os diferentes sistemas terrestres. 225 Foi argumentado que o Antropoceno é um período no qual se cruzam diferentes temporalidades - sobretudo as da história física do planeta e a História social humana - problematizando o papel privilegiado do humano, no sentido de que ele está no foco e de que ele é favorecido em detrimento do não-humano, de maneira geral. Na Filosofia, exatamente no princípio do Antropoceno, Kant propôs que um objeto jamais corresponde ao seu fenômeno, o indivíduo está infinitamente separado da coisa em-si. 226 Entretanto, Kant limitou-se a estabelecer essa fenda exclusivamente à volta do ser humano (o a priori pertence ao intelecto humano). 227 Desde então a correlação entre a realidade, o mundo, e o pensamento humano tem sido o espaço no qual se concentra grande parte de toda a investigação filosófica; dificilmente uma postura que reflete uma compreensão da influência mútua, quando não da interdependência (ou ainda a imprecisão das fronteiras), entre humano e não-humano – um discernimento fundamental para a Ecologia. 228 Portanto, para que a Filosofia seja capaz de pensar a Ecologia hoje - no Antropoceno - ela precisa ser capaz de não só abarcar as grandes escalas do espaço e do tempo, mas também a enorme diversidade de objetos que se multiplicam em todas as escalas. Fundamentar o conceito de Ecologia sobre bases objeto-orientadas resulta numa Ecologia inclusiva, que reconhece a unicidade de cada um de seus elementos, ao mesmo tempo que observa seus laços estreitos. Todos são contemplados com a falha fundamental que impede um objeto de acessar qualquer objeto diretamente. As três 225 Crutzen, Stoermer, 2000, pp.17-18 Morton, 2013-B, pp.4-5 Ellis, 2013, p. 32-35 226 Morton, 2013-B, p.18 227 Latour, 1993, p.33 228 Meillassoux, 2010, pp.119-121 82 principais implicações de um conceito de Ecologia nestes moldes são a) a Ecologia deixa de estar restrita ou associada apenas a um seleto grupo de entes (sejam eles espécies em extinção, rios poluídos ou o dióxido de carbono), b) a pluralidade de ângulos (de pontos de vista além do humano) vem à tona, assim como o fato de que existir é já, e sempre, coexistir, c) toda ação torna-se ecologicamente significante. Para lidar com a enorme carga de ansiedade gerada por esta terceira implicação, foi apresentada a Ecologia Sombria de Timothy Morton, que põe foco sobre a descrição da estranheza intrínseca aos objetos (os estranhos-estranhos) que se encontram ligados direta e indiretamente no que é descrito como uma malha de interconexão, sem margens ou centro definidos. 229 Também estranha e sombria é a noção, que esta concepção de Ecologia apresenta, de que o fim do mundo (o mundo como caixa contentora, sempre presente, e totalmente determinado em relação ao humano) já aconteceu, de que hoje já se vive a realidade pós-apocalíptica imaginada pela ficção. 230 Entretanto, buscou-se demonstrar o modo como o fim (desta concepção de) mundo realça a existência específica de cada ente, e aponta para uma "lógica de coexistência futura" baseada em uma abertura radical ao estranho-estranho, em uma sintonização com as directivas emanadas pelo objeto - comandos que convocam, seduzem e tocam aqueles que se encontrem suscetíveis. E é exatamente essa suscetibilidade, o estar-se aberto ou vulnerável, que Theodor Adorno sugere como definição para o que ele chama de comportamento estético. Adorno afirma que a própria subjetividade é a "ansiedade cega do estremecimento", que a vida no sujeito é justamente aquilo que nele reverbera na presença do outro. Esse estremecimento, essa vibração consiste no ato de ser ´tocado` pelo outro. E ele acrescenta ainda que o comportamento estético é a postura que se 229 Morton, 2010, pp. 8, 17, 29 Morton, 2013-A. pp. 75 Morton, 2014-A, toda a série de seminários 230 Morton, 2013-B, pp.16-17, 21 83 assimila ao outro - aquela que entra em sintonia com o outro - ao invés de subordinálo.231 Para a Ontologia Objeto-Orientada toda relação entre objetos é uma relação estética. Um conceito de Ecologia que pressupõe esta afirmação (que faz de toda relação ecológica também uma relação estética) é capaz de extrapolar da definição de Adorno a preocupação em acomodar o outro, encapsulada também na injunção pela abertura ao estranho-estranho da Ecologia Sombria. Assim, este ensaio termina com a proposta de que a Ecologia no Antropoceno deve adotar contornos mais amplos, para que a especificidade dos variados entes seja admitida, distribuindo todos os seus objetos num mesmo patamar ontológico, e deixando de considerar a perspectiva de uma só categoria de entes (o humano) como locus de abertura para a realidade. 231 Adorno, 2013, p.437 84 Lista de referências bibliográficas Monografias, artigos, relatórios e recursos digitais serão listados juntamente, de acordo com o autor e a data de publicação Bibliografia principal Harman, G. 2002, Tool-Being - Heidegger and the Metaphysics of Objects, Open Court, Chicago Harman, G. 2005, Guerrilla Metaphysics - Phenomenology and the Carpentry of Things, Open Court, Chicago Harman, G. 2007, “On Vicarious Causation”, Collapse Vol. II: Speculative Realism, R. 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