PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO - 34ª CÂMARA
APELAÇÃO COM REVISÃO No 818.666-0/6 - BOTUCATU
Apelantes: Vera Lúcia Cândido, Antonio Carlos da Silva e Marcela Benedita
Martins da Silva
Apelada: Companhia Paulista de Seguros
Processos conexos:
No 10/1998 – Vera Lúcia Cândido
No 08/2000 - Antonio Carlos da Silva e Marcela Benedita Martins da Silva
AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE VIDA. PERSONALIDADE CIVIL.
NATIMORTO A personalidade civil da pessoa começa do nascimento
com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro. Diz-se: 1. “natimorto”, o feto viável que foi expulso morto do
útero materno; 2. nascituro, aquele que vai nascer, ou o ser humano
que foi concebido e que tem o nascimento como certo.
FÉ PÚBLICA. INDENIZAÇÃO. NATIMORTO E NÃO FILHO COM VIDA. NÃO
VIABILIDADE.
Essas
certidões
referindo-se,
distintamente,
a
“natimorto”, têm fé pública. Somente poderiam ser invalidadas se
tivessem sido produzidas provas formais e concretas de que seriam
falsas.
Voto nº 8.633.
Visto,
VERA LÚCIA CÂNDIDO ingressou com Ação de
Execução, que foi retificada para Ação de Cobrança
contra COMPANHIA PAULISTA DE SEGUROS, dizendo-se
beneficiária no contrato de seguro de vida em grupo
havido entre ela e a Requerida em 19 de outubro de
1995, para indenização ou satisfação de parto
prematuro de 5 de janeiro de 1997, indo a filha ao
óbito, com o assento lavrado na forma do art. 53, da Lei
no 6.015, de 1973. Recebeu os benefícios da assistência
judiciária.
ANTONIO CARLOS DA SILVA e MARCELA BENEDITA
MARTINS DA SILVA ingressaram com Ação de Cobrança
contra a COMPANHIA PAULISTA DE SEGUROS, como
beneficiários do contrato de seguro de vida havido entre
eles e a seguradora, para indenização ou satisfação do
parto, indo o filho ao óbito por anóxia intra-uterino em
16 de fevereiro de 1997. Receberam os benefícios da
assistência judiciária.
Foram distintas as citações e as contestações, não
tendo havido conciliação em audiências, sendo reunidos
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os processos em razão da conexão, para julgamento
único.
Vencidas as diligências, houve a entrega da
prestação
jurisdicional
(dois
processos)
e,
improcedentes as pretensões, constou do dispositivo da
decisão: “... condeno à autora ao pagamento das custas
processuais e honorários da advogado que fixo em 10% do valor
da causa, sendo ela isenta ...” (folha 105).
VERA LÚCIA CÂNDIDO, ANTONIO CARLOS DA
SILVA e MARCELA BENEDITA MARTINS DA SILVA
interpuseram “RECURSO ORDINÁRIO”, que foi recebido
como “Apelação” (folhas 107 e 110). Perseguem a reforma da
decisão dando especial destaque:
“Não há como exigir dos apelantes, que (...)
apresentem certidões de nascimento de seus filhos, com
nome e sobrenome, sendo que (...) nasceram e morreram,
pois existem inúmeras teorias na medicina para definir o
que seja nascer com vida, e elas baseiam-se ora nos
batimentos cardíacos, ora no momento dos músculos
voluntários, ora na respiração.” (folha 109)
COMPANHIA PAULISTA DE SEGUROS deixou de
oferecer contra-razões (folha 111).
É o relatório, adotado no mais o da r. sentença.
O recurso passa a ser apreciado nos limites
especificados para satisfação do princípio tantum
devolutum quantum appellatum, refletindo-se, desde
logo, pela diretriz sumular sobre o não-reexame em
caso de recursos constitucionais, tanto sobre o reexame
das provas como em relação à interpretação da cláusula
contratual1.
A pretensão dos Autores nos dois processos
conexos, funda-se na indenização de cada “natimorto”,
e não de nascituro, sob o enfoque de que os óbitos
teriam ocorrido após alguns momentos de vida.
1 - STF. Súmula 279: "Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário".
STJ. Súmula 7: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial".
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Registra a certidão de óbito lavrada pelo Cartório do
Registro Civil das Pessoas Naturais e Anexos do Distrito
de Rubião Júnior, que a filha da Requerente Vera Lúcia
Cândido (e de Jackson de Jesus Silva), nasceu em 5 de
janeiro de 1997, no Hospital das Clínicas da UNESP,
Campus de Botucatu, deste Estado, com 28 semanas de
vida intra-uterina, como “natimorto” (folha 17 deste processo).
O assento de óbito lavrado pelo Cartório do Registro
Civil das Pessoas Naturais e Anexos do Distrito de
Rubião Júnior, mostra que o filho dos Requerentes
Antonio Carlos da Silva e Marcela Benedita Martins da
Silva, nasceu em 16 de janeiro de 1997, do Hospital das
Clínicas da UNESP, Campus de Botucatu, deste Estado,
com 37 semanas de vida intra-uterina, como
“natimorto” (folha 8 do processo apenso).
A personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro2.
Diz-se: 1. “natimorto”, o feto viável que foi expulso
morto do útero materno; 2. nascituro, aquele que vai
nascer, ou o ser humano que foi concebido e que tem o
nascimento como certo.
Não houve nascimento com vida; caso contrário,
não haveria referência a um natimorto, não seria
lavrado o assento num livro auxiliar, mas um assento de
nascimento e outro de óbito3. Portanto, não se
constituiu a personalidade jurídica, nos termos do artigo
4° do Código Civil de 1916.
“A responsabilidade securitária deve ser interpretada
nos estritos termos da cláusula que a define, não
comportando interpretação extensiva. Prevendo o contrato
como segurado a pessoa do filho, nesse âmbito não se
enquadra o natimorto, que não chegou a adquirir
2 - Código Civil de 1916, artigo 4º.
3 - Lei sob n° 6.015, de 1973, artigo 53.
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personalidade jurídica, que decorre apenas do nascimento
com vida.” 4
Essas certidões, referindo-se, distintamente, a
“natimorto”, têm fé pública. Somente poderiam ser
invalidadas se tivessem sido produzidas provas formais
e concretas de que seriam falsas.
Trata-se de documentos que trazem consigo a fé
pública substancial, irradiam a validade formal do ato
jurídico e impõem erga omnes o dever da legalidade, da
legitimidade e da fidedignidade.
“... A essência está na segurança que o Estado confere
aos atos que são praticados pelos agentes, a fim de que sejam
efetivamente merecedores da fé pública.
A fé pública constitui pressuposto da ordem jurídica. No
dia-a-dia dos contratos privados o instrumento público está
acima de toda e qualquer suspeita infundada. Os atos jurídicos
notariais têm o encargo de superar essas suspeitas e
tranqüilizar a sociedade.
É um dogma jurídico. Prevalece enquanto não houver
prova em contrário. Impõe erga omnes o dever da
legalidade, legitimidade e fidedignidade ao ato jurídico
realizado. É, assim, a aceitação ou credibilidade social
imposta pelo direito pela publicidade emanada de
autoridade com poderes para assim editá-la.
Sustenta Pedro de Castro Júnior que ‘O fundamento da
fé pública é o mesmo em que descansa toda a fé. Os atos
que procedem do Poder Público não são presenciados pela
maioria dos cidadãos e necessitam ser criados para que
sejam cumpridos e respeitados. Se negarmos ou pusermos
em dúvida a verdade das disposições cuja formação e
promulgação não presenciamos, seriam ineficazes as
resoluções dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e
nada con-seguiriam os particulares ainda que seus atos
jurídicos fossem autorizados por funcionários públicos. O ato
jurídico com a fé pública, se tem por autêntico, palavra
derivada do grego que significa certo, verdadeiro, o que há
de ser crido, o que é fidedigno; portanto, afirma-se a sua
certeza como se presente fosse, ao ditar a lei, o
4 - 2° TACivSP - Ap. c/ Rev. 633.843-00/3 - 7ª Câm. - Rel. Juiz ANTONIO RIGOLIN - J. 16.4.2002.
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preconceito, a sentença, na celebração do ato ou do
contrato’. 5
Outra não é a posição de Antonio Augusto Firmo da
Silva ao consignar que ‘Então a fé pública tem como fim ou
como objetivo primordial atender essa necessidade social,
para que em determinado momento se possa ter por
absolutamente certos os fatos e atos jurídicos da
administração, da justiça e dos particulares. É, assim, um
elemento da técnica jurídica, criado através de um processo
secular de adaptação que veio dar uma solução adequada
às necessidades do comércio jurídico e da organização
social’. 6
Assevera, em seguida, que na fé pública distinguem-se
diversas espécies: A fé pública administrativa, a judicial e a
notarial administrativa tem por objeto dar publicidade, valor
e autenticidade aos atos emanados da administração
pública. A judicial tem por objeto os atos praticados pelos
escrivães judiciais e outros funcionários do judiciário. A fé
pública notarial é o poder que a lei atribui aos notários em
virtude da sua nomeação para o cargo pelo Estado, para
que, a pedido das partes e sob determinadas formalidades
assegure a verdade de fatos e atos jurídicos que lhe
constem ou lhe sejam solicitados. As afirmações dos
notários gozam do benefício legal de serem tidas como
autênticas até prova em contrário.
A fé pública notarial é de caráter pessoal. Logo,
atestação notarial é da responsabilidade exclusiva do
signatário. A fé pública da administração é diferente, posto
que origina-se diretamente do Estado. ‘A idéia de fé pública,
que, genericamente, se exterioriza não só pela lealdade e
sinceridade de quem afirma, como também pela adesão
confiante de quem recebe a afirmação, estaria parcialmente
frustrada, pois seu campo não se limita à autenticidade,
mas, também, à legalidade, certeza da lisura e possibilidade
de que o ato praticado produza plenos efeitos, não só no
mundo jurídico, como também na esfera negocial’. 7
A fé pública tem supedâneo na presunção legal de
autenticidade dada aos atos que são praticados pelas
pessoas que exercem cargo ou ofício público. É a
credibilidade que se tem a respeito dos documentos
5 - Profissão de Escrevente Habilitado. Funções notariais. São Paulo, 1961.
6 - Compêndio de Direito Notarial. F.M.U. São Paulo, 1977.
7 - Decisões Administrativas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, 1982, pág.
156.
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emanados das autoridades públicas ou de serventuários da
justiça, exatamente em razão da função ou ofício. O notário
dá fé quando percebe pelos próprios sentidos ex propii
sensibus e, isto é fé pública. Tenha-se em mente, em
princípio, que fides bona contraria este fraudi et dolo (A boa
fé é contrária à fraude e ao dolo)’. 8
A fé pública é um fenômeno social afiançado pelo
Estado para desenvolvimento normal dos cursos dos
negócios jurídicos, avaliando-se, daí, o interesse jurídico
coletivo organizado e necessário à garantia enérgica da
tutela penal, a todos os atos e fatos que possam iludir a
confiança do homem e que sejam suscetíveis de induzir a
engano as autoridades constituídas ou a coletividade em
geral. Examine-se, v.g., uma certidão qualquer expedida
por Notário público (nascimento, óbito, matrícula de imóvel)
e sinta-se a segurança que o instrumento transmite. Então,
pode-se desde logo dizer que esse processo rápido, pela fé
pública reconhecendo e/ou garantindo como verdadeiro o
instrumento, regula as funções da vida privada e pública
...”. 9
Em face ao exposto, nega-se provimento ao
recurso, mantendo-se os benefícios da assistência
judiciária aos Requerentes.
IRINEU PEDROTTI
Desembargador Relator.
8 - Paulo, L. 3, § 3º, Dig. Pro Socio = A favor do sócio.
9 - TJSP - A.I. 898.864-0/8 - 34ª Câm. - Rel. Des. IRINEU PEDROTTI - J. 17.08.05.
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PODER JUDICIÁRIO - Desembargador Irineu Pedrotti