MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA: TRAJETÓRIAS DE INVISIBILIDADE E EXCLUSÃO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES. André Luiz Freitas Dias 1 Ariana Oliveira Alves 2 Bárbara El-Dine Breguez Cunha 3 Breno Pedercini de Castro 4 Julia Álvares Campos 5 Maria Cecília de Alvarenga Carvalho 6 Vivian Barros Martins 7 Resumo: O presente trabalho está inserido na pesquisa Mulheres com trajetórias de rua, desenvolvida pela equipe Polos Pop de Rua do Programa Polos de Cidadania da UFMG, que tem como objetivo investigar trajetórias de vida de mulheres em situação de rua em Belo Horizonte. A história de vida é o procedimento metodológico por meio do qual se foi ao encontro do universo dessas mulheres. O artigo apresentará as análises das histórias de vida de duas mulheres trans com trajetórias de rua, problematizando as seguintes categorias: família, afeto, trabalho e violência institucional. A partir do material obtido, espera-se evidenciar as especificidades do processo de construção identitária dessas mulheres, permeado por uma série de vulnerabilidades que evidenciam uma lógica de invisibilidade, exclusão e pobreza. Palavras-chave: mulheres em situação de rua; identidades trans; exclusões, pobreza e invisibilidade. INTRODUÇÃO A existência de pessoas que vivem nas ruas marca a sociedade brasileira desde a formação das suas primeiras cidades (CARVALHO, 2002 apud BRASIL, 2008). Fazse relevante evidenciar, entretanto, que, nas últimas décadas, assiste-se ao aumento exponencial de pessoas que vivem nessas condições, revelando, com isso, o quanto o processo de modernização do país tem sido pautado pela lógica da produção residual. 1 Doutor em Ciências pelo Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR/Fiocruz-Minas). Graduado em Psicologia pela Universidade Federal e Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG. Coordenador Geral e Acadêmico do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda em Ciências do Estado pela UFMG e estagiária da Equipe Pop de Rua do Programa Polos de Cidadania da UFMG. E-mail: [email protected]. 3 Graduada em Processos Gerenciais com ênfase em Gestão de Organizações do Terceiro Setor pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Graduanda em Ciências Sociais pela UFMG e estagiária da Equipe Pop de Rua do Programa Polos de Cidadania da UFMG. E-mail: [email protected]. 4 Graduando em Psicologia pela UFMG e estagiário da Equipe Pop de Rua do Programa Polos de Cidadania da UFMG. E-mail: [email protected]. 5 Graduanda em Ciências Sociais pela UFMG e estagiária da Equipe Pop de Rua do Programa Polos de Cidadania da UFMG. E-mail: [email protected]. 6 Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Graduada em História pela UFMG. Graduanda em Direito pela PUC-MG. Orientadora de Campo do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: [email protected]. 7 Mestre em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharela em Direito pela UFMG. Coordenadora Técnica do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: [email protected]. Segundo Bauman (2005), fenômenos como o da população em situação de rua, ocorrem não por uma falha do sistema capitalista, mas pela sua própria lógica de funcionamento, que se baseia na produção de excessos, tanto materiais quanto humanos. Com isso, um enorme contingente populacional torna-se “resíduos humanos”, que, em algum momento, é considerado descartável ao modo de produção e consumo capitalista, mas que pode também, em um momento considerado oportuno pelo sistema, participar novamente do mesmo. Nas palavras do autor: A produção de "refugo humano", ou, mais propriamente, de seres humanos refugados (os "excessivos" e "redundantes", ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar), é um produto inevitável da modernização, e um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população como "deslocadas", "inaptas" ou "indesejáveis") e do progresso econômico (que não pode ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de "ganhar a vida" e que, portanto, não consegue senão privar seus praticantes dos meios de subsistência)." (BAUMAN, 2012, p. 12) Essa concepção de “resíduos’’ ou "refugos humanos" de Bauman, dialoga com a ideia de “descarte’’, trabalhada por Melazzo e Guimarães (2010), segundo os quais existem dois tipos de descarte: o de resíduos sólidos e o da pessoa humana, que já não são necessários para a sociedade, pelo menos por um período, e dos quais esta não quer mais cuidar. A despeito das especificidades e heterogeneidade que caracterizam a população em situação de rua, conforme mencionado acima, parte dos "refugos humanos" produzidos pelo sistema capitalista, a opressão, a invisibilidade e a violência física e simbólica marcam as suas trajetórias de vida como um todo, as quais, em geral, são ainda reforçadas por outras exclusões, multidimensionais e socialmente compartilhadas, ligadas às questões de gênero, classe, raça, idade, orientação sexual e atividade laboral. Nos espaços de debate frequentados pelo Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG relativos à população em situação de rua de Belo Horizonte, tais como, o Fórum da População de Rua, o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua e audiências públicas, os problemas vividos por mulheres em situação de rua há algum tempo tem sido recorrentemente suscitados. São relatados fatos concretos de violações de direitos dessas mulheres, que se verificam no modo como sofrem intensamente as condições sociais impostas e estabelecidas, seja no ambiente da rua, expressa pelas inter-relações, bem como pelas instituições, que as tornam “invisíveis” e negligenciadas diante de suas necessidades específicas. O trabalho conduzido por Prates, Abreu e Cezimbra (2004 apud PRATES; PRATES; MACHADO, 2010) no Sul do país constatou uma maior fragilidade das mulheres em termos de saúde mental e uma desvalorização da própria imagem associada a sua condição de gênero, que se expressa numa postura de subalternidade, seja na busca por trabalho, no modo de relacionar-se com o parceiro, ou mesmo na banalização da violência sofrida no espaço da rua. Além disso, quando se problematiza a questão do gênero, no sentido de compreendê-lo de forma mais ampla, e, com isso, incluir, além das mulheres cisgênero8, também as mulheres trans9, emergem ao debate mais uma série de negligências e invisibilidades. As especificidades das mulheres trans vem sendo cotidianamente marginalizadas, uma vez que submetidas ao enquadramento heteronormativo fortemente institucionalizado. Essa violência simbólica é evidenciada por diversas agressões físicas e psicológicas que sofrem por apresentarem uma performance tida como socialmente estranha e perpassada por diversos preconceitos. A profunda inquietação com esse cenário que constitui as trajetórias de vidas das mulheres em situação de rua motivou o Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG a ir ao encontro do universo das mesmas, por meio da realização da pesquisa social aplicada Mulheres com trajetórias de rua. \ Por meio da investigação de trajetórias de vida de mulheres cisgênero e trans em situação de rua de Belo Horizonte, pretendeu-se analisar como os processos decisórios que marcam a entrada, a permanência, a vida e a saída das ruas de mulheres que vivem ou viveram em situação de rua se relacionam com as exclusões multidimensionais socialmente compartilhadas de gênero, classe e raça. O presente artigo tem como finalidade apresentar alguns resultados relativos às análises das histórias de vida de duas mulheres trans com trajetórias de rua, problematizando as seguintes categorias: exclusão por identidade de gênero; violência institucional; trabalho; afeto; e família. 8 Termo utilizado para se referir a pessoas que foram designadas com um gênero, baseado no sexo biológico, e que se identificam com ele. 9 Termo utilizado para se referir a pessoas que foram designadas com um gênero, baseado no sexo biológico, e que não se identificam com ele. O termo engloba as transexuais, travestis e transgênero. Para essa análise, três conceituações são fundamentais: as concepções de situação de rua, de gênero e de cidadania, sendo que as duas primeiras cumprem a missão de delimitar o seu objeto e a terceira é referenda como marco teórico principal da investigação. Tendo por base o Decreto Federal nº 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, entende-se por população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que compartilha da condição de pobreza extrema, vínculos familiares fragilizados, ausência de habitação convencional e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas das cidades como locais de moradia e sustento, ou, quando possível, os equipamentos públicos de acolhimento, como residência provisória (BRASIL, 2009). No que se refere à concepção de gênero, conforme já explicitado, adota-se um sentido amplo, ou seja, não definido pelo aspecto naturalizante relativo ao sexo biológico. Nessa perspectiva, busca-se romper com o conceito de gênero como um meio discursivo/cultural pelo qual o sexo natural é produzido e estabelecido prédiscursivamente: papéis de gênero estabelecidos socialmente de maneira impositiva e externa ao indivíduo, tornando-o objeto e não sujeito do próprio ser (BUTLER, 2003.p 24-25, 58). Das duas conceituações explicitadas acima, fica evidenciado que as questões postas e advindas do tema correlacionam-se com a multidimensionalidade dos direitos abarcados pelo conceito contemporâneo de cidadania, haja vista, sobretudo, os direitos individuais, trazidos pela questão da autonomia e das diferenças de gênero, e os direitos sociais, que envolvem a situação de rua propriamente dita e enseja questões afetas à saúde, educação, moradia, trabalho, entre outros. Essa delimitação tem como base Gustin (2005), segundo a qual: Conceitua-se Cidadania como a democratização de relações para sustentação da diversidade. Essa diversidade pode ser étnica, religiosa, de gênero, sócioeconômica, dentre outros. A cidadania pode ser construída e realizada em espaços domésticos, produtivos e político-comunitários. Os pressupostos de democratização são: a) desocultação das variadas formas de violências; b) resgate do ‘princípio de comunidade’; c) relações horizontalizadas e coextensivas; d) estímulo ao desenvolvimento de competências individuais, interpessoais e coletivas. (GUSTIN, 2005, 321). Por fim, como metodologia, foi escolhida a história de vida, por meio da qual se busca desvelar, nas biografias individuais, as causalidades estruturantes que contribuíram para que se interpusesse a situação de rua na vida dessas mulheres. Embora a história de vida tenha como ponto de partida a biografia individual, seus desdobramentos metodológicos não implicam em uma análise centrada exclusivamente no indivíduo, já que se pode compreender o universo social e cultural no qual o indivíduo está inserido, assim como as práticas sociais e as formas como o sujeito atua no mundo e no grupo do qual ele faz parte (SANTOS; SPINDOLA, 2003). Portanto, o objetivo dessa metodologia não se encerra na trajetória pessoal, mas nas relações interpessoais que o sujeito estabelece dentro de um grupo social, observando suas regras e seu funcionamento. (TINOCO, 2004). As histórias de vida permitem explorar não apenas os eventos do passado, mas também os horizontes de expectativas e as situações cotidianas, por meio das quais se podem compreender as características e atitudes do grupo social no qual o indivíduo está inserido e todo um conjunto de significações que formam a vida cotidiana (SANTOS; SPINDOLA, 2003). No caso das mulheres em situação de rua, submetidas a uma gama de violências físicas e simbólicas, a história de vida mostra-se bastante apropriada, haja vista que possibilita maior aproximação e o desenvolvimento de relação de confiança entre pesquisador e pesquisado. Sendo assim, tendo como pontos de partida as conceituações de situações de situação de rua, de gênero e de cidadania, a partir do material obtido nas histórias de vida, espera-se evidenciar, neste artigo, as especificidades do processo de construção identitária dessas duas mulheres, permeado por uma série de vulnerabilidades que evidenciam uma lógica de invisibilidade, exclusão e pobreza. 1. ELAS As análises parciais das trajetórias de vida que serão apresentadas abaixo são de duas mulheres com as quais tivemos contato por meio dos espaços frequentados pela Equipe Polos Pop de Rua, do Programa Polos de Cidadania da UFMG. Conhecemos Silvia10 em 2014, nas reuniões mensais do Fórum da População de Rua de Belo Horizonte. Nesse espaço destinado ao debate e à articulação política acerca dos direitos das pessoas em situação de rua, Silvia chamou atenção paras as especificidades das mulheres travestis em situação de rua. Sua fala, sempre pungente, nos provocou de tal forma que resolvemos dedicar esse tema à pesquisa que aqui apresentamos. 10 Silvia é nome fictício. O verdadeiro nome social da colaboradora foi preservado, tendo em vista aspectos éticos e de sigilo da pesquisa. Nosso encontro com Paloma11, por outro lado, se deu um pouco mais ao acaso. Conhecemos-a na semana de mobilização nacional em defesa das pessoas em situação de rua, promovida pelo Ministério Público de Minas Gerais, quando ela esteve, juntamente às demais colegas, expondo a obra “Guernica: o clamor das rua” produzida em uma oficina do CREAS - Centro Pop de Belo Horizonte. Além da própria expressividade da obra - uma reprodução em esculturas da pintura homônima de Pablo Picasso - a irreverência de Paloma foi para nós tão marcante que, posteriormente, fomos ao seu encontro para conhecê-la um pouco mais e convidála para construir conosco o trabalho que ora apresentamos. 1.1. Silvia Com discurso sempre marcante, Silvia, como é carinhosamente chamada, contou-nos diversos eventos de sua trajetória de vida, marcada por idas e vindas, alegrias e tristezas, constituindo uma trama complexa de episódios, perpassada pela poesia em sua fala. Nascida em Aimorés, no interior de Minas Gerais, Silvia tem hoje 58 anos e reside em Belo Horizonte em uma Casa de Apoio vinculada à política de Assistência Social do município. Quando perguntada, em um de nossos encontros, sobre quais aspectos não poderiam deixar de ser mencionados a seu respeito, Silvia responde sobre a família, o HIV/Aids, a prostituição e a trajetória de rua. Tomemos então sua própria fala como ponto de partida, na tentativa sempre lacunar de traduzir em palavras sua personalidade ímpar e tão especial. Silvia vem de uma família de quinze filhos, dos quais treze são ainda vivos. A partir de diversos acontecimentos que contribuíram para a fragilização dos laços familiares, nota-se a relação atual prejudicada com sua mãe e irmãos, principalmente impactada pela sua identidade de gênero. Todavia esses eventos não impedem a emergência, por vezes, de lembranças com afeto associadas a essas figuras, como quando recebeu o apelido carinhoso dado por sua mãe, além da relação de amizade e parceria estabelecida com seu pai, como expressa no trecho a seguir: (...) ele cumpriu o papel de pai de uma trans com muita dignidade, muito respeito, e muito amor para comigo (...). 11 Paloma é nome fictício. O verdadeiro nome social da colaboradora foi preservado, tendo em vista aspectos éticos e de sigilo da pesquisa. Conta-nos também de sua história de superação em relação à Aids, em um contexto de descrença acerca do tratamento da doença na década de 90. Silvia fala da ressignificação de sua trajetória de vida a partir de então, coincidente com seu retorno ao Brasil, já diagnosticada com o vírus em Lisboa. (...) se até a Copa de 94 eu não tiver morrido, como já passou dos cinco anos de sorologia positiva é que eu não vou morrer mais, aí eu vou começar a viver. Atualmente, ela sinaliza os desafios para esse grupo de senhoras que chegam à terceira idade com o diagnóstico, denominado por ela como trans-aidéticas e o preconceito que lhes atingem, a trans-aids-fobia. Em relação à prostituição, nossa colaboradora rememorou as contingências que a levaram a esse contexto de trabalho, pontuando, por vezes, a dificuldade dessa realidade, diante da falta de outras perspectivas: “(...) nem sei se eu gostava não, foi a única saída que me deram, está entendendo?”. Ainda assim, ela apontou algumas conquistas que a prostituição lhe proporcionou, como a oportunidade de conhecer vários lugares no Brasil e outros países na Europa, ou uma condição financeira que lhe permitiu adquirir bens, ainda que tenham se perdido pela instabilidade de sua trajetória. Suas vivências na rua, portanto, tem grande ligação com a prostituição, em uma lógica de alternância entre os extremos que a vida pode apresentar, “Era do luxo ao lixo, do luxo ao lixo...”. 1.2 Paloma “[...] eu estou na rua, tenho que sobreviver, então não vou fazer isso tipo, ficar chato, ficar ruim, ficar pesado...vou tentar fazer da forma mais suave possível” Essa fala representa muito o que Paloma nos transmitiu, no sentido de ser uma pessoa sempre em busca e com um olhar positivo para a vida, tentando viver ao máximo e intensamente. Sendo ela uma mulher jovem, de personalidade irreverente e muito dinâmica, característica principal para se manter na rua. Essa dinamicidade se fez muito presente no início das entrevistas, pois o tempo de Paloma, de alguma forma, fluía mais rápido que o nosso, de forma que precisamos encontrar medidas para contrabalancear essa dinâmica. Optamos por fazer duas entrevistas curtas a cada semana e, à medida que o nosso vínculo se estreitava, as entrevistas tomaram uma dimensão diferente. O interesse de Paloma em participar tornou-se mais evidente e o nosso cada vez mais aguçado. Com o tempo, Nega surgiu nas entrevistas em referência às entrevistadoras, junto à confiança mútua que se tornava ainda mais presente em cada encontro. Paloma tem 34 anos, atualmente está em situação de rua e frequentemente acessa o serviço CREAS – Centro Pop. Nasceu em Congonhas do Campo – MG e com nove anos mudou-se do interior para a capital, Belo Horizonte, com sua mãe e seus cinco irmãos. Em nossas entrevistas foram recorrentes as falas sobre sua família, na qual lembra de momentos difíceis, de perda, mas também de muito carinho, como ao falar de sua mãe, do orgulho que sente de sua irmã Rosilene e da saudade de seu irmão Gleidison, já falecido. Suas histórias perpassam vários lugares e relações que somente quem vivencia a rua tem conhecimento, como os códigos presentes na construção e constituição das malocas, nas formas de trabalho e sobrevivência. Uma característica marcante de sua trajetória de rua é contada em suas viagens, nos trechos que percorreu, conhecendo algumas cidades e pessoas ao longo dos caminhos; algumas amizades, algumas paixões, alguns babados. Mesmo que muitas vivências tenham um peso de dor, seja simbólica ou física, Paloma nos conta como se fosse uma página virada, superada, que faz parte das várias histórias malucas de sua vida. Apesar do tom irreverente ao contar suas histórias, Paloma reconhece que está em constante construção e busca, sempre nos falando de seus projetos e objetivos de vida, uma tentativa de transpor tudo o que lhe é e/ou foi cerceado ao longo do seu percurso. Ela não está aquém da sua realidade, pois possui consciência das suas dificuldades, enquanto mulher travesti, negra e prostituta. 2. IDENTIDADES INTERCRUZADAS: INTERAÇÕES ENTRE E A IDENTIDADE DE GÊNERO E A SITUAÇÃO DE RUA A partir do material obtido por meio das entrevistas realizadas com Silvia e Paloma, foi possível, então, estabelecer intercâmbios significativos entre os conteúdos abordados por elas. Desse modo, as categorias que se seguem focalizam elementos comuns às suas trajetórias de vida no tocante à família, ao afeto, ao trabalho e à violência institucional, apresentando-se como chaves de análise de percursos por vezes muito semelhantes, embora sempre singulares. Essas categorias se colocam como um recorte, a partir de um conjunto mais amplo de elementos de diferentes ordens contidos nas falas dessas mulheres e que, neste momento, revelam questões impactantes na construção de suas identidades. É possível verificar de que modo se dá a fragilização dos laços familiares de Silvia e Paloma e as relações de afeto que são (re)construídas no âmbito da rua, atualizando as representações de família. A rua se coloca como espaço de estabelecimento de parcerias e redes que se constituem a partir de diferentes contextos de interação. Uma vez nas ruas, a prostituição também se apresenta como oportunidade de trabalho, quase sempre única, evidenciando a difícil e dura realidade a que essas mulheres estão submetidas, em uma lógica de intensificação da violência institucional, tão experimentada em outros espaços. Pretende-se demonstrar que as diferentes vivências enquadradas nessas categorias compartilham dois elementos que estão fortemente imbricados, a exclusão pela identidade de gênero e a situação de rua. A questão de gênero se torna um atravessamento inevitável de consideração na história dessas mulheres, já que as travestilidades e transexualidades ocasionaram uma ruptura em suas trajetórias pessoais, seja no foro íntimo ou nas relações com outros. A partir do preconceito e não-aceitação vivenciados ainda no âmbito familiar, Silvia e Paloma precisaram encontrar formas de sustentar sua identidade de gênero, tomando, então, outros rumos nem sempre esperados ou desejados, como a situação de rua. Nesse sentido, o âmbito da rua e seus códigos de organização e sobrevivência funcionam como o pano de fundo no qual a família, o afeto, o trabalho e a violência institucional tomam forma e atingem as mais diversas configurações ao longo de seus caminhos. Não é possível, portanto, supor um entendimento sobre as trajetórias dessas mulheres sem considerar a marca que a exclusão pela identidade de gênero e a situação de rua imprimiram na construção de suas identidades, impactando a emergência dos fenômenos de que tratam as categorias de análise a seguir. Os conteúdos de sua falas, muitas vezes, são suficientes para expressar por si só toda a complexidade das tramas constituídas em seus percursos, ao mesmo tempo que impactadas pela beleza das palavras, que deixam transparecer tanto o sofrimento quanto a força dessas mulheres. 2.1 Família A família, enquanto instituição, está em constante transformação, embora muitas vezes alicerçada em valores moldados por questões morais e religiosos que, em vários aspectos, reproduzem certos preconceitos reforçadores de estigmas sociais. A exclusão pelo núcleo familiar presente nas histórias de Silvia e Paloma não é deliberada, mas parte de um processo de construção em que a sua alteridade é considerada inexistente ou menor, sendo as transexualidades e as travestilidades algo completamente aquém a realidade possível. Dessa forma, a população transgênero, historicamente marginalizada, é tratada como anormal, patológica, uma vez que foge ao que é considerado natural ou aceitável, além da expressão da sexualidade ser tomada como algo imoral e repugnante à sociedade/família. Assim, a repressão e exclusão tem sua emergência dentro do próprio núcleo familiar dessas mulheres, potencializando a saída de casa para outros espaços, dentre eles a rua. Ambas apresentam trajetórias em que a violência simbólica e física se fazem presentes, por meio da insistência de suas famílias em referir-se a elas pelo gênero masculino, em tratar a identidade de gênero como transtorno mental e nas agressões que ameaçam a própria integridade corporal. A exclusão familiar se dá de maneira multidimensional, com diversos atravessamentos, mas, principalmente, pelo não reconhecimento da identidade de gênero que culmina no rompimento de Silvia e Paloma com a submissão às regras que anulam a sua liberdade. 2.2 Afeto As relações afetivas na rua perpassam a ressignificação da ideia de família, dando ensejo a novos arranjos familiares, estabelecidos em instituições assistenciais e de articulação política em torno da condição de situação de rua. Observamos que nos espaços de moradia coletiva construídas pelas próprias, como as malocas, em seu interior se reproduzem as relações interparentais, podendo haver o pai e a mãe da maloca, assim como as irmãs. Entrelaçado por relações de afeto e solidariedade, o espaço da maloca representa a proteção para mulheres em situação de rua, pois a morada coletiva, com bichas e mulheres, dispensa inclusive a presença do marido. Isso porque, embora ele possa remeter à relação afetiva e amorosa típica das relações conjugais, a “escolha” do parceiro não é atravessada necessariamente pelo afeto, mas antes pela necessidade de proteção diante da vulnerabilidade às agressões físicas e sexuais a que as mulheres encontram-se sujeitas no universo da rua. Por isso, a escolha do parceiro com quem se relacionar passa a ter como critério a própria malvadeza, por considerar o homem com este atributo aquele mais capacitado para oferecer proteção em face da vulnerabilidade à violência indiscriminada. Assim, tais mulheres passam a se submeter às violações de um único homem, e não de tantos, pois aquele é, ao mesmo tempo, o agressor e o protetor. Embora seja possível se apaixonar na rua, os relatos que ouvimos não são de experiências amorosas, pois os relacionamentos estão antes perpassados por estratégias de sobrevivência. 2.3 Trabalho A principal fonte de renda de Silvia e Paloma advém da prostituição, uma vez que as travestilidades e transexualidades dificultam ou até inviabilizam a inserção produtiva no mercado formal de trabalho. Observamos que um dos principais fatores de exclusão social presente nas relações de emprego se deve ao rompimento com o binarismo de sexo/gênero promovido por essas mulheres. Ainda que elas estejam capacitadas para exercer variados tipos de trabalho, a transfobia é evidente nessas relações, já que os corpos, identidades e desejos dissidentes dessas mulheres são visíveis e confrontam as práticas identitárias “legítimas” e "formais", nas quais o gênero deve estar sempre atribuído ao sexo. Tais elementos, somados à ausência de políticas públicas que abordem a inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho, acentuam ainda mais essas exclusões, não restando a elas alternativas senão a prostituição. Essa realidade vivida e apresentada por Silvia e Paloma vai ao encontro dos dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), segundo os quais, 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil por razões diversas que, além da ausência de mecanismos para a inserção produtiva das pessoas trans, relacionam-se à evasão escolar precoce e à falta de apoio da família. Apesar de a prostituição comportar realidades múltiplas, ela tem como elemento comum o estigma e a exclusão, uma vez que a profissão, por não ser reconhecida como um trabalho formal, e sim como uma ocupação, subtrai dessas mulheres os direitos sociais relacionados ao trabalho. Tendo em vista os códigos de organização da prostituição, como a valorização da jovialidade dos corpos e a organização da rotina de trabalho, a ausência da seguridade social e a dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho apontam para um cenário de envelhecimento pouco promissor para essas mulheres, dificultando a sua saída das ruas. Apesar de considerarmos que a prostituição não deva ser um destino para essas mulheres, e sim uma escolha, torna-se necessário o reconhecimento da cidadania e dignidade das profissionais do sexo. 2.4. Violência Institucional É possível verificar a sobreposição de três exclusões nas trajetórias de Paloma e Silvia, no sentido de que estão em situação de rua, são mulheres e travestis. A articulação desses fatores é intensificada no âmbito das instituições, na medida em que elas incorporam em seu funcionamento a lógica vigente de estigmatização e preconceito presentes na sociedade. Assim, a partir das falas das duas entrevistadas, pudemos verificar que a violência institucional não está divorciada do contato com os equipamentos públicos acessados por essas mulheres. Ela se faz sentir tanto nas condutas dos funcionários quanto nas próprias regras institucionais. As travestilidades e transexualidades, historicamente patologizadas e discriminadas, são fatores adicionais para as diversas violações já praticadas em instituições voltadas para a população em situação de rua. Em nosso primeiro contato com o CREAS – Centro Pop, a exemplo, observamos como os profissionais da instituição se referiam, reiteradamente, à Paloma pelo seu nome de registro civil, negligenciado e violando sua escolha pelo nome social. Além disso, a questão da identidade de gênero era invisibilizada, no momento em que outra funcionária tentou nos alertar sobre o fato de Paloma não ser mulher, mas um homem gay. Silvia nos contou como chegou a ser internada pela família em um hospital psiquiátrico e levar choques elétricos com certa frequência devido a sua identidade de gênero. Fala ainda sobre a lógica perversa de interação nesse espaço, em que se submetia a relações sexuais com os profissionais que lá atuavam como forma de negociação acerca da aplicação dos choques, administração de medicamentos ou até a sua liberação da instituição. Em outro relato de extrema violação, a integridade física de Silvia foi violentada, a partir de um estupro coletivo sofrido diante de seu marido, praticado por usuários de uma instituição de acolhimento em que se encontrava. A invisibilidade das identidades trans dessas mulheres também é motivada nos sistemas de acolhimento, na medida em que são alocadas em alas masculinas dos equipamentos pelos funcionários, não respeitando suas escolhas de gênero. Esse tipo de conduta ocasiona situações de grande violação como a exposição forçada de seus corpos em banheiros sem uso de portas, ferindo ainda mais sua privacidade. Constatamos, assim, que as condições físicas e organizacionais dos equipamentos públicos de assistência à população de rua acabam por subverter a função para a qual se propõem. Longe de constituírem uma alternativa à saída da situação de rua, acabam por reiterar essa condição, uma vez que as entrevistadas enfatizam a violação reiterada de seus direitos nessas instituições em comparação à própria rua. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da história de Paloma e Silvia percebemos como o não reconhecimento da identidade de gênero é multidimensional e transversal. A expressão da travestilidade é marcadamente estigmatizada e marginalizada, em que a preservação das relações de um modo geral se tornam frágeis, uma vez que, inseridas num contexto sociocultural no qual a transfobia é socialmente estruturada, negando a cidadania das pessoas transexuais e travestis (DE JESUS, 2012). Como demonstrado nas análises categóricas acima, no momento em que assumem sua identidade de gênero, Paloma e Silvia são expostas à discriminação que vai desde a invisibilização à agressão direta. Podemos considerar a família, enquanto instituição, a primeira a iniciar esse processo de exclusão, muitas vezes não consciente, mas também oscilante entre a aceitação e não-aceitação e pressionada internamente e socialmente. As colaboradoras da pesquisa se veem em uma situação insustentável, e já advindas de um contexto de várias outras vulnerabilidades, marcadas por uma exclusão multifacetada, que abrange gênero, classe e raça. Essas vulnerabilidades, é claro, estão também permeadas por sua identidade transgênero. A inserção no mercado de trabalho formal é extremamente dificultada tanto pela resistência dos empregadores de contratarem uma funcionária travesti, quanto pela baixa escolaridade, devido ao alto índice de evasão escolar e à discriminação que já vem desde a infância e adolescência. Assim, a prostituição, apesar de ser o único destino possível, é onde podem se expressar, buscar a sobrevivência e ter uma certa liberdade. Entretanto, até onde vai essa liberdade? Sua própria existência exige uma postura política, pois suas identidades rompem com os papéis de gênero considerados naturais (DE JESUS, 2012), e, de acordo com Silvia, como não podem se disfarçar do papel imposto pela sociedade, são vinte e quatro horas por dia uma porta-bandeira de sua causa. A soma dessa exclusão que se expressa nos vários âmbitos de suas vidas resulta em uma situação de vulnerabilidade que agrava a outra. Os equipamentos públicos que se propõem a proteger tanto a população em situação de rua quanto a LGBT acaba por violentá-las ainda mais, tanto ao invisibilizar sua transgeneridade, e assim expô-las a riscos e humilhações, quanto no descaso e negligência apresentados à população de rua em geral. A violência institucional, ao desestimular a saída da rua pelos equipamentos públicos, causa uma situação em que nos códigos da rua se faz uma ordem para as vidas de ambas. De acordo com Paloma, a rua é “um lugar de treta, um lugar de babado”, mas também de relações de afeto. Na fala das colaboradoras, é visível que elas encontram alegrias nas relações travadas na rua, nas aventuras, na prostituição, e apesar dos pesares não se fazem pessoas infelizes ou sem perspectivas. É tanto nesse conforto para se expressarem quanto na repressão que as duas fortalecem sua identidade transgênero. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, L. C. & PRADO, M. A. M. 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