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ID: 54712121
07-07-2014
Tiragem: 34442
Pág: 43
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 19,69 x 23,03 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Ainda sobre Sophia
e a paixão pela liberdade
João Carlos Espada
Cartas do Atlântico
á quase tudo foi dito sobre a
justa homenagem prestada
a Sophia de Mello Breyner
Andresen. A beleza tranquila da
sua poesia foi recordada. O seu
amor à liberdade foi justamente
enaltecido. Mas não é seguro
que todos tenhamos presente a
singularidade dessa paixão pela
liberdade que distinguiu Sophia
— nos tempos sombrios do antigo regime e
no PREC que se lhe seguiu.
Numa cultura política marcada pela
estéril oposição entre dois monismos
rivais — o do dr. Salazar e o do dr. Cunhal
e seus satélites — a voz de Sophia recusava
essa falsa dicotomia fatal. A opção dela
era outra. Chamava-se, simplesmente,
liberdade.
Ao longo desta última semana,
interroguei-me várias vezes sobre se a
causa da liberdade realmente estabeleceu
sólidas raízes entre nós. A liberdade
não está obviamente ameaçada. Mas
há recorrentes sintomas de que a nossa
cultura política está ainda profundamente
marcada por instintos monistas que
convivem mal com a liberdade — e com
o pluralismo que ela acarreta e que a
alimenta.
Um caso intrigante tem sido o das
reacções dominantes, se não mesmo
uniformes, à séria crise que atingiu
o grupo Espírito Santo. Não segui os
detalhes — nem estou a planear seguir
— desse triste episódio. Mas vejo com
profunda apreensão mais uma crise em
mais um grupo financeiro privado. Depois
do BCP, vem agora o BES. Não sei o que
se passou — e, repito, não conto estudar
o assunto. Se houve irregularidades, o
regulador central fez bem em intervir e
o primeiro-ministro fez bem em recusar
situações de favor. Mas, em termos de
discussão pública, isso não pode fazer
J
esquecer o simples mérito de o BES ter
sido reconstruído a seguir ao PREC, e de
existir como entidade não-estatal. Sem o
pluralismo de grupos económicos fortes,
o monismo centralizador é reforçado e a
liberdade é enfraquecida.
Outro estranho sintoma de uma
atmosfera monista parece-me residir
nas ameaças da Comissão da Carteira
Profissional de Jornalista contra o
PÚBLICO. A Comissão quer proibir
— e cobrar multas avultadas em caso
de desobediência — a publicação de
artigos escritos por estagiários. E quer
determinar o tipo de trabalhos que os
estagiários podem fazer. O PÚBLICO
argumenta persuasivamente que um
estagiário “não aprende nada se, durante
o estágio, se limitar a fazer ‘exercícios’
que não visam a publicação”. Mas, antes
da questão substantiva, existe uma
questão procedural: por que motivo
deveriam as actividades dos estagiários
ser uniformemente definidas por uma
autoridade central?
Deve ser o mesmo motivo que
levou já o sindicato dos professores
a protestar contra um tímido ensaio
de descentralização de competências
na área da educação estatal, ao nível
do ensino básico e secundário. “Nem
pensar”, declarou a Fenprof acerca de
uma eventual transferência da tutela
dos professores para os municípios. Mas
“nem pensar” porquê? Por que motivo
deve o sistema escolar ser centralmente
dirigido a partir do Ministério da
Educação? Compreende-se que essa
tenha sido a opção do dr. Salazar — que
o dr. Cunhal, sintomaticamente, nunca
contestou. Mas por que motivo deve ser
a nossa?
Uma visão do mundo muito diferente
pode ser vislumbrada na recente decisão
do Tribunal Supremo norte-americano
sobre o seguro de saúde obrigatório.
Tratava-se de saber se empresas
comerciais, que alegassem motivos
religiosos, podiam ou não recusar custear
seguros dos seus empregados relativos a
práticas anticoncepcionais. O caso não é
simples, e pode vir a ter consequências
não intencionais, mas o que importa
aqui sublinhar é que o Tribunal decidiu
a favor da isenção — para proteger a
liberdade. Não porque tomasse uma
posição substantiva sobre a justeza de
uma ou outra posição substantiva, mas
porque tomou
uma posição
procedural
que protege
a liberdade
de existirem
diferentes posições
substantivas.
Esta distinção
entre matérias
substantivas
e matérias de
procedimento
é fundamental
numa cultura
de liberdade.
Ao escolher
a liberdade,
certamente
não podemos
garantir que
vamos concordar
com tudo o
que a liberdade
vai permitir
que os outros
façam. Podemos
mesmo garantir
o contrário: a
liberdade vai
permitir que outros façam muitas escolhas
com as quais discordamos. Mas, se as
escolhas pacíficas dos outros carecessem
da nossa concordância — ou da
concordância de uma autoridade central,
ou da concordância de todos reunidos em
colectivo — o que restaria da liberdade?
Há recorrentes
sintomas de
que a nossa
cultura política
está ainda
profundamente
marcada
por instintos
monistas que
convivem
mal com a
liberdade
Professor universitário, IEP-UCP
Escreve à segunda-feira
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Ainda sobre Sophia e a paixão pela liberdade