As características, o modo de funcionamento e as contribuições que a agricultura familiar (AF) pode
dar ao desenvolvimento de um país geralmente é tema pouco conhecido, mesmo em universidades, nas
instituições de pesquisa e extensão rural e nos governos. Dos muitos campos em que ela pode contribuir,
vamos destacar o econômico, o sócio-cultural, o ambiental, o de segurança alimentar e o de segurança
nacional, através da ocupação e defesa do território.
Pelo Censo 2006 do IBGE, a AF do Brasil conta com 4,368 dos 5,175 milhões de estabelecimentos,
ocupa 12,32 dos 16,57 milhões de pessoas, responde por 54,37 dos 143,32 bilhões de reais do valor produzido
(38%) e utiliza apenas 80,25 dos 329,94 milhões de ha de terras (24%). A AF toma cerca de 10% do crédito
oficial e conta com terras qualitativamente marginais, dados estes que por si só impressionam, e muito. Ou
seja, com menos e piores terras, a AF toma uma fração menor do crédito, ocupa uma proporção maior do
pessoal e, mesmo assim, responde por uma fração maior do valor produzido. Os críticos dizem que o nível de
renda dessas pessoas ocupadas é menor do que em outros modos de produção, e é verdade, mas não significa
que não possa ser igualado, desde que em condições equiparadas. Mas no mundo do terceiro milênio é mais
difícil, estratégico, importante e urgente alocar pessoal com intuito de distribuir renda, e com ela gerar
consumo, do que expandir produção, que é mais fácil.
A AF contribui para regular e reduzir os preços dos alimentos e matérias-primas agropecuárias e, com
isso, ajuda a controlar a inflação e aumentar a competitividade industrial, já que reduz o custo dos alimentos
dos trabalhadores. Esta é uma das formas da AF transferir mais renda para outros setores de um país, mais do
que outros modos de produção. Isto se dá porque, na condição de gestor, trabalhador e proprietário do
estabelecimento agrícola, a maioria dos agricultores familiares utiliza a remuneração mínima do seu trabalho e
do seu patrimônio, como critério básico para decidir se continua ou não na agricultura, geralmente ignorando
taxas de gestão, parte dos direitos dos trabalhadores e o aluguel ou juro da própria terra, entre outros.
Como exemplo, se os 20 bilhões de litros de leite comercializados no Brasil fossem produzidos co m
mão-de-obra assalariada, com um trabalhador para cada 20 vacas que produzam 4.500 litros/vaca/ano, tendo
salário de R$ 800/mês, os hipotéticos 22.220 trabalhadores necessários, além do salário, teriam direitos a, pelo
menos, R$ 3.400,00/ano, decorrentes do 13º salário, férias, 60 feriados e domingos e uma hora-extra/dia
(50% de acréscimo) e FGTS. Ou seja, um montante de R$ 75,55 milhões/ano seria transferido pela AF a outros
setores da sociedade (agentes a jusante da cadeia de produção e consumidores), sem considerar taxas de
gestão e aluguel da terra.
A AF transfere mais renda que outros modos de produção, ainda, através da doação de alimentos e
ajuda financeira aos demais integrantes da “família estendida” (filhos, netos, irmãos, tios e outros) que atuam
em outros setores da economia, a maioria no ambiente urbano. Estes casos ocorrem com a maioria dos AF.
Outra parcela da AF transfere renda através da hospedagem, em seu domicílio, para pessoas da “família
estendida”, o que é mais frequente em regiões rurais de agricultura em tempo parcial, ou mesmo para
trabalhadores urbanos que residem no estabelecimento rural, recebendo hospedagem, alimentação, roupa e
mesmo os serviços pessoais2.
Na partilha da herança a AF também transfere renda, mas nesse caso, dado aos limites de escala,
uma parcela das unidades produtivas familiares pode ser inviabilizada se não houver a intervenção de política
pública específica, visando resolver esse “dilema” da herança.
A contribuição da AF para a segurança alimentar, a segurança nacional e para a estabilização de governos será
abordada na próxima matéria.
Importânica agricultura familiar II
Na primeira matéria vimos os dados gerais da agricultura familiar (AF) brasileira e como as
características e seu modo de funcionamento pode contribuir para o desenvolvimento de um país no campo
econômico relacionado à produção de alimentos e de matérias-primas de origem agropecuária. Nesta, vamos
comentar como a AF pode contribuir estrategicamente para a segurança alimentar, segurança nacional, defesa
do território e para a estabilidade dos governos.
Essa contribuição se dá especialmente através da oferta e da regulação dos preços dos alimentos e
das matérias-primas. Os agricultores familiares são numerosos e, por suas características intrínsecas,
geralmente sua produção é diversificada; no entanto, eles não têm muita capacidade de carregar estoques de
alimentos. Por isso, eles mantêm a oferta regularizada e diversificada de seus produtos. Essa contribuição fica
mais clara quando analisamos a recente crise (2007) ocorrida na Argentina, onde a AF tem pouca expressão.
Os poucos, grandes e bem organizados produtores rurais argentinos encurralaram o governo, que se viu refém;
por sua vez, a população urbana, exposta ao desabastecimento e ao aumento dos preços dos alimentos,
também pressionou o governo, que se fragilizou ainda mais. Indiretamente tudo isso acabou afetando a
segurança nacional daquele país.
Outra forma de contribuição da AF para a segurança nacional e a defesa do território pode ser
observada também no custo governamental com a segurança do território. Territórios com baixa ocupação
populacional implicam em custos maiores para manutenção de suas fronteiras. O contrário ocorre em regiões
intensamente ocupadas pela AF, que têm alta densidade demográfica rural, cujas atividades sócio-culturais,
civis e econômicas facilitam e reduzem os custos de manutenção das fronteiras. Evidência disso é o alto custo
do governo brasileiro para manter as fronteiras das pouco povoadas regiões Norte e Centro Oeste, quando
contrastada com o custo na região Sul, intensamente ocupada pela AF. Além disso, em territórios pouco
povoados fica facilitado o tráfico de drogas, de armas, de bens (p.ex, veículos e cargas, animais, etc), de
material genético e mesmo de doenças. Nos casos de doenças, basta lembrarmos que Santa Catarina é o
Estado com maior proporção de AF, e é pioneiro e excelência em defesa sanitária animal no Brasil. Prova disso
é que a última entrada de aftosa no Brasil se deu nas regiões pouco povoadas e não na região Sul do Brasil,
onde predomina a AF.
As especificidades da AF também a qualificam a dar contribuições singulares no campo ambiental.
Entre essas formas de contribuição podem ser destacadas a adoção de sistemas produtivos energeticamente
mais eficientes, usando menos energia fóssil e mais energia renovável; o uso de sistemas que respeitam mais a
harmonia ambiental e entre as espécies, aproveitando as sinergias naturais entre atividades exploradas
economicamente; modos de produção orgânica e agro-ecológica, cujos produtos são mais saudáveis aos
consumidores; e, ainda, maior contribuição para manutenção dos chamados “serviços” prestados pela natureza.
Mas este é um tema que merece ser tratado de forma mais detalhada oportunamente.
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