ID: 22680463 07-11-2008 | Ípsilon Há super-homens maiores que outros Teatro Albano Jerónimo e António Durães são os gigantes com que Ricardo Pais transforma “O Mercador de Veneza” numa coisa maior do que “O Mercador de Veneza”. Era para ter sido um choque de titãs (tudo por meio quilo de carne), e foi. A partir de hoje, no S. João, Porto. Inês Nadais Tiragem: 58094 Pág: 30 País: Portugal Cores: Cor Period.: Semanal Área: 28,79 x 35,83 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 2 ID: 22680463 07-11-2008 | Ípsilon Tiragem: 58094 Pág: 31 País: Portugal Cores: Cor Period.: Semanal Área: 28,18 x 36,28 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 2 de 2 Não há nada que seja exactamente da altura de Albano Jerónimo e de António Durães em todo “O Mercador de Veneza” - é o tipo de sítio em que tudo o que se passa se passa “down under”, entre um cão judeu e um carneiro próprio para abate, e isto numa cidade que se afunda à velocidade de seis centímetros por década. O naufrágio é em toda a parte, aqui, mas eles estão sempre acima disso: para fazer o que tinha a fazer (um “O Mercador de Veneza” “bigger” than “O Mercador de Veneza”), Ricardo Pais não precisava de dois actores. Precisava de dois gigantes, e teve-os. Ficaram a saber ao que iam na primeira sessão de trabalho: “Entrámos para a sala, cumprimentámo-nos e o Nuno M. Cardoso [assistente de encenação] disse: ‘Foi a primeira e a última vez’ [que o judeu e o mercador se cumprimentam]. Ando por este teatro há muitos anos e nunca tinha havido lugares marcados, mas desta vez houve. Nunca estivemos lado a lado. A encenação começou logo no trabalho de mesa quando nos puseram frente-afrente”, diz António Durães. Também os pusemos frente-afrente, esta semana, para ficarmos à altura do espectáculo que se estreia esta noite, no S. João: é a altura deles. “A expressão que ouvimos aqui mais vezes foi choque de titãs. Cada um deles é um titã no seu mundo - por mais fechado que seja o mundo do judeu e por mais moderno que seja o mundo do cristão, eles são grandes nos seus universos e é essa grandeza que trazem para o palco, como se fossem dois gigantones a lutar um contra o outro até à morte”, continua Durães - usa uma estrela amarela: saberemos imediatamente que é o judeu, apesar de o corpo dele ser exactamente o oposto do corpo que toda a tralha da tradição interpretativa shakesperiana, e já agora toda a tralha do imaginário antisemita, pôs nas costas de Shylock. É um programa físico: “O lado plástico da nossa presença não é um dado secundário, mas em vez de irmos pelo efeito nós vamos pelo defeito: usamos a nossa estatura como uma desvantagem”, explica Albano Jerónimo. Mas é sobretudo um programa ideológico. É tecnicamente possível (mais do que isso: é praticamente um imperativo moral) ler “O Mercador de Veneza” à revelia de todo o cânone ocidental - Harold Bloom, para quem “somente um cego, surdo e mudo não constataria que (...) ‘O Mercador de Veneza’ é uma obra profundamente antisemita”, incluído -, propõe Ricardo Pais na entrevista distribuída no Manual de Leitura do espectáculo. Esta montagem existe para que a peça de Shakespeare “não obstante a sua tortuosa história cénica”, não seja do tamanho daquilo que viram nela, mas do tamanho que mais quatro séculos de anti-semitismo e um Holocausto impõem ao que quer que seja o ADN original do texto: se não acreditasse nisso (e se não acreditasse que no ADN original do texto está mais a desconstrução do preconceito do que o preconceito), Ricardo Pais não teria decidido encená-lo. Humanizar Decidiu encená-lo, e decidiu que para isso precisava de dois superhomens (mesmo que, no fim, um dos super-homens fosse maior do que o outro). Somos obrigados a olhar para aquela estrela amarela - aquela estrela amarela que tem “um discurso espantosamente claro sobre a lei de Veneza” e, pior, que tem um discurso espantosamente claro sobre Auschwitz, 400 anos antes de a Europa ter ido parar a Auschwitz - e a ver um super-homem. “A via que definimos que era mais interessante, desde as primeiras leituras, era a via que implicava transformar o judeu numa pessoa, humanizar aquela figura e fazê-la descolar do estereótipo do velho mais ou menos decrépito e mais ou menos estrepitoso na sua vingança. O facto de ele ser tão grande como António, o mercador de Veneza, faz com que não entre já em desvantagem” (pelo menos não em desvantagem, digamos, numérica), nota António Durães. A equivalência foi um dos pressupostos políticos da montagem Ricardo Pais montou “O Mercador de Veneza” com “o peso enorme da responsabilidade de estar a tratar uma questão grave, que é a questão das relações entre judeus e cristãos, no âmago de uma peça que ainda por cima se travestiza muito facilmente de comédia shakesperiana não o sendo propriamente, e num país onde a consciência da questão judaica é muito limitada”. Apesar disso, Shylock continua a ser o “underdog”, o cão judeu que o tribunal priva de todos os bens, incluindo a fé. Não é nesse sítio de onde se vê tão “A expressão que ouvimos aqui mais vezes foi choque de titãs. Cada um é um titã no seu mundo - por mais fechado que seja o do judeu e por mais moderno que seja o do cristão, eles são grandes nos seus universos e é essa grandeza que trazem para o palco” quantas centenas. O que nos parece ser o fim não é o fim”, diz Durães. Depende do que nós achamos que é o fim. “Ficar vivo também é perverso - naquele caso, no caso de milhões de judeus do século XX, ficar vivo é um castigo, como se alguém decidisse que eles ficariam vivos, sim, mas para passar por isto tudo”, sugere Albano Jerónimo. Não há maneira de isto acabar bem, nem quando não se vai pelo castigo: “O resto também é devastador. O resto é mesmo o fim, porque não há continuidade possível para este judeu: a filha dele converte-se ao cristianismo, para todos os efeitos o Shylock não tem descendentes.” Meio quilo de carne nitidamente para o Holocausto que este “O Mercador de Veneza” acaba - acaba longe de Veneza, em Belmonte, com Jessica, a filha do judeu, a ouvir música - mas é desse sítio que não conseguimos sair. “Tivemos o presidente da Comunidade Israelita do Porto a assistir a um ensaio e para ele foi muito difícil digerir o texto, porque o que este judeu diz, o meio quilo de carne cristã que o alimenta, é demasiado perverso. Se quisermos pensar no que acontece ao judeu a seguir, o que acontece é ele ficar sem nada. Mas nós sobrevivemos a Shakespeare e sabemos que estes judeus continuaram a ser judeus na clandestinidade, sabemos tantas coisas sobre estes 40 anos de caminhada no deserto que já vão em não sei Havia uma maneira, mas era outra peça (e isto é Shylock, o judeu, a falar): “Se o judeu conseguisse que o António fosse à faca, se lhe conseguisse tirar meio quilo de carne, era um castigo extraordinário. Tínhamos exactamente o contrário da História: um cristão circuncidado, em vez de um judeu baptizado.” Temos o que temos: um cristão-novo, e isso diz mais sobre nós do que sobre eles (e isto é António, o cristão, a falar). No seu anti-semitismo instrumental, “O Mercador de Veneza” é sobretudo anti-cristianismo: “O que o Shakespeare nos dá é o ‘modus operandi’ de Roma relativamente aos judeus, portanto isto é tão violentamente anti-semita como violentamente anti-católico.” Era para ter sido um choque de titãs (entre dois super-homens, e entre as duas grandes religiões monoteístas), e foi. No fim toda a gente tem o seu meio quilo de carne (e é carne humana, a mesma carne humana de que se alimentou a máquina hitleriana), menos o judeu, mas até ao fim Shylock e António pesam exactamente o mesmo - o judeu ganha corpo, mas o mercador de Veneza também, e isso também está no oposto de toda a tralha da tradição interpretativa shakesperiana, que sempre fez mais para que António desaparecesse do que para que ele aparecesse. Albano Jerónimo viu várias adaptações da peça para cinema e é como se o mercador de Veneza nunca tivesse existido, a não ser no título. Aqui ele existe depois do título: “É uma personagem em fuga para a frente, sem nada a perder: a única motivação dele parece ser aquele impulso sacrificial que o faz levar tudo até ao fim, até ao abate. Como os hamsters dentro daquelas rodas: às vezes parece que vão mais depressa, mas nunca saem dali.” Podiam ter sido ratos, chegaram a pensar no assunto - há de resto, toda uma sessão de trabalho de mesa, transcrita no Manual de Leitura, sobre o significado da “ratazana” do texto original -, mas em vez disso foram super-homens. Não fogem de Veneza quando Veneza começa a afundar-se: afundam-se com ela. Ver agenda pág. 50 e 51