Entrevista com a socióloga Vera Malaguti Batista, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora da Universidade Cândido Mendes. 1) Do seu ponto de vista, o que são políticas públicas? Políticas públicas são um conjunto de ações coletivas, que podem ser feitas diretamente pelo Estado, mas que sejam produções coletivas e não privatizantes. O princípio mor das políticas públicas é que elas sejam dirigidas ao atendimento público, nessa ideia de público. 2) Qual é a diferença entre políticas públicas, políticas de Estado e políticas de governo? Não sei se existe uma separação, mas acho que as políticas públicas são uma consequência de uma política de estado e uma política de governo; a política pública seria o desdobramento concreto. Vejo as políticas de Estado como uma formulação mais ampla; uma política de governo como uma formulação mais política; e políticas públicas como um desdobramento dessas duas outras coisas. 3) Como você vê a forma como as políticas públicas são conduzidas hoje no Brasil? Eu venho de uma tradição que foi interrompida pelo golpe militar de 1964, que é uma tradição de gestão pública que vem do getulismo, do janguismo e do brizolismo, de uma concepção de políticas públicas universais, mas compreendendo o sentido singular da formação do povo brasileiro. Entendo, diferentemente da esquerda tradicional, que a classe trabalhadora brasileira é composta dos escombros da aniquilação dos povos indígenas e da escravidão; nós não temos uma classe trabalhadora como está nos manuais de esquerda. Então, venho dessa tradição de políticas públicas dirigidas aos pobres, ao povo brasileiro. Se olharmos para a história do Brasil veremos que o Estado brasileiro foi construído por essa força política que foi derrotada politicamente por esse modelo no qual estamos agora. Acho que dentro das ruínas impostas pelo capital hoje, o governo do PT e do Lula faz uma espécie de redução de danos. Eu reconheço que esse governo conseguiu distribuir riqueza para o mais pobres, e admiro isso. Mas, por outro lado, acho que é uma gestão que mistura, que não propôs nenhuma transformação do estado das coisas. Então, nesse ponto, há uma confusão grande do público com o privado, desde a telefonia até energia, educação pública etc. Reconheço que não sei se seria possível fazer outra coisa, mas acredito que vivemos um momento em que teríamos que repensar principalmente a ideia de Estado. Por exemplo, a política de educação pública do Brizola, que foi o ponto mais alto que a educação chegou nesse país – ninguém no Brasil nunca propôs algo tão profundo quanto a escola de tempo integral, laica de qualidade. Mas hoje eu repensaria isso tudo. Essa crise do capitalismo que estamos vivendo, que o Marildo Menegat chama de barbárie – ele trabalha como “ruínas” -, é o momento de voltarmos a utopias, desde as utopias abolicionistas até recuperar tanto a proposta de fim do Estado que o marxismo propunha como outras maneiras de construir formas coletivas de gestão. Falo de políticas públicas não no sentido de parcerias públicoprivadas, mas no sentido de reforçar as cooperações, as organizações coletivas, os encontros populares. Nesse ponto, uma das coisas que acho mais triste no Rio de Janeiro é a parceria entre prefeitura, governo do estado e governo federal. O resultado disso no Rio de Janeiro é primeiro uma privatização completa nos serviços públicos, o massacre dos pobres e de suas estratégias de sobrevivência. Então, para mim, choque de ordem, unidade pacificadora, o que aconteceu nos transportes públicos mostram que quem governa o Rio de Janeiro hoje é o poder privado. Um exemplo disso: a praia do Rio de Janeiro, que sempre foi o lugar da liberdade e da convivência democrática para nós que amamos os vendedores de queijo coalho, os flanelinhas, os vendedores de mate, os barraqueiros; a praia sempre foi esse encontro. Então, é um exemplo de como as políticas públicas no Rio de Janeiro viraram a favor dos produtos industrializados, das grandes franquias, da privatização do espaço público pelo capital. Então, acho que o primeiro e o segundo governos Brizola foram bem utópicos no sentido de produzir projetos indo ao encontro dessas organizações populares, reforçando essas estratégias populares de sobrevivência, nunca olhando-as com esse olhar do choque de ordem, que tem um discurso moral por um lado e, por outro lado, como diria o Chico Buarque, tenebrosas transações o tempo todo; um governo privado da coisa pública. Faço uma diferenciação para o governo federal, porque reconheço os ganhos e lamento muito que não tenhamos tentado sair da ditadura do capital, não tenhamos tentado coisas utópicas, mas não sei se teria sobrevivido politicamente. Como eu disse, minha força política, que foi quem fundou o Estado brasileiro e quem dirigiu políticas públicas para o povo brasileiro, não uma parcela dele, foi derrotada cabalmente. Talvez a sobrevivência desse projeto tenha sido também um pouco sua capitulação, mas com ganhos para o povo brasileiro. Quero frisar que reconheço os ganhos e os vejo como uma coisa positiva. 4) Hoje, vemos muitas ações violentas partindo do próprio Estado. Qual a legitimidade de uma política pública que viola os DH? Acho que o Rio de Janeiro é um laboratório e nisso eu lamento muito o governo federal ter investido tanto nessa domesticação da liberdade carioca e do estado do Rio de Janeiro pelas forças do capital. O Rio de Janeiro é um laboratório de experiências do Estado policial, daquilo que uma aluna da Cecília Coimbra, que é policial civil, chama de “gestão policial da vida”. Além dos números estarrecedores de extermínio oficial no Rio de Janeiro – oficial e dado como vitória, como números positivos -, há essa coisa de gerir policialmente as favelas. O projeto que está em curso no Rio de Janeiro é um projeto de transformar as regiões pobres do Rio, sua vida cotidiana, seu lazer, seu deslocamento numa gestão policial. Por mais que coloquem no comando alguém “bonzinho”, é um campo de concentração transformado para turista ver, “para inglês ver”, para usar a expressão do século XIX. Cito também que essa ocupação na Zona Sul é uma remoção pasteurizada das favelas; o objetivo é liberdade total para a especulação imobiliária. O projeto lacerdista, que vem do higienismo do século XIX, agora está vitorioso no Rio, e com apoio do governo federal. Todas as políticas públicas em torno, por exemplo, dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo não são políticas públicas, são subordinação a interesses políticos transnacionais. O controle violento da pobreza é um dos dados essenciais disso, do ponto de vista das políticas urbanas, que vão desde a gestão da orla à gestão do carnaval, por exemplo. O governador está sempre viajando para fora, o modelo de cidade deles é Miami, o pântano do desengano, o lugar onde todos os direitistas da América Latina se concentraram. Não é a toa que o irmão do Bush é governador da Flórida. Aquele lugar é o modelo. Toda a coisa popular que nós celebrávamos, e que causavam grande medo às elites, é hoje a tônica da repressão. A tônica hoje é o privado, a concentração de capital. Você vai ter o ordenamento do carnaval, essa coisa de prender. Hoje, na primeira página de um jornal tem um menininho fazendo xixi na rua - esse é o grande inimigo. É um olhar sobre uma cidade, que é uma cidade meio africana, meio indígena - nós não somos uma cidade francesa nem o pântano do desengano, a Flórida, somos uma cidade rebelde, onde se tem a história dos quilombos, dos povos indígenas, dos imigrantes pobres socialistas e anarquistas, das polacas, das prostitutas francesas, dos marinheiros, do Porto. Hoje é tudo Oi, Telemar, Vivo, o carnaval do patrocínio da cervejaria, Disneylândia na festa de Iemanjá. No Brasil, nem sei que política pública temos hoje, isso se perdeu. Para nós, poderia ser um grande momento de invenções utópicas. Nesse ponto, diferenciando o governo federal do municipal e estadual, acho que perdeu-se uma ocasião de recuperarmos o fio da história. Não de pensar agora a reconstrução do Estado a partir da década de 1930, nem de 1960 nem de 1980, mas acho que podíamos estar pensando coisas além do capital. Porque o capital, como diz o Marildo Menegat, o capital é barbárie, o capital é destruição, em nome da acumulação do privado. Estamos em um momento que, no Rio de Janeiro, é o reinado do capital sobre a população pobre. As classes médias demoram a se dar conta de que vai acabar sobrando para elas também. 5) Você vê formas de mudar essa situação? Acho cada vez mais que a via eleitoral, da representação, está muito privatizada, o voto virou uma mercadoria – e quem fala isso é uma pessoa que participou intensamente de todos os processos eleitorais desde a abertura democrática, da saída da ditadura. O sistema eleitoral está tão dominado pelo capital, primeiro com a compra de votos, segundo pelo poder do marketismo, da publicidade, e ninguém tem coragem de sair da linguagem marketeira, que é a linguagem do capital. Acredito nas resistências e nas organizações. Sempre existem fissuras nos diques, e podemos sempre tentar romper essas barreiras. Acho que as coisas bonitas sempre irrompem, sempre brotam. Perdemos a chance de inovar, apesar de que comemoro que os pobres no Brasil estejam comendo melhor, mas perdemos a chance de transformação, de criar espaços utópicos. A coisa pior que aconteceu nisso tudo foi a captura dos desejos de projetos utópicos, de projetos libertários. O Estado brasileiro ficou muito na repressão em termos de políticas públicas, na govermentalização da Segurança Pública. 6) Você vê algum avanço nas políticas públicas desde a redemocratização? No Brasil, a polícia hoje mata muito mais do que nos tempos da ditadura. Não estou defendendo a ditadura, pelo contrário, mas tudo isso vem de muito antes da ditadura. A violência estatal começa na colonização e continua na escravidão. Hoje, a banalização da tortura e da truculência policial é muito pior. No tempo da ditadura, nós resistíamos muito mais a isso. Hoje, temos um deputado de esquerda, que é o cara dos direitos humanos, que é consultor de Tropa de Elite 2. Temos também a privatização da segurança pública pelas milícias, que foram, em certo momento da história do Rio de Janeiro, incentivadas pelos governos. Na verdade, a milícia é o segundo emprego do policial, do bombeiro. São coisas que cresceram dentro dessa perspectiva da ampliação do privado sobre o público. Para mim um dos sinais mais preocupantes é a capitulação das subjetividades em torno do dogma da pena, da punitividade, o amor às prisões, às algemas como solução para a conflitividade social emana das relações humanas nessa fase do capitalismo.