1 AS CRÔNICAS: UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO Ester A. v. de Oliveira Dialogar sobre crônica, texto breve e saboroso, uma linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária, com que nos deparamos diariamente no interior de um jornal ou de uma revista, constitui um prazer e uma tarefa árdua, como a de qualquer questionamento sobre gêneros. Mas essa maneira de ser publicada já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições. Os tipos de crônicas são variáveis. Pode ser descritiva, narrativa, (na 3ª pessoa do singualar), lírica (prosa poética), descritiva, dissertativa (com opinião explícita), narrativo-descritivo, humorística, histórica,1 mas sempre obediente a uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, obediente a um eixo temático em torno de uma realidade social, política ou cultural, avaliada pelo cronista em um tom de protesto ou de argumentação. Um texto informativo (jornalístico) e uma crônica se assemelham por se inspirarem em acontecimentos diários, mas se diferenciam na maneira de abordá-lo, pois o cronista dá-lhes um toque próprio e inclui elementos verossímiles, ficção, fantasia e criticismo e estilísticos que não devem conter num texto jornalístico. De Aristóteles para cá, a história da Poética problematiza a questão dos gêneros. O espaço que ocupam é mutável e, ao longo dos séculos, os gêneros sofrem transformações ideológicas. A percepção histórica e dinâmica dos gêneros começa a ter importância desde a época românica (séculos XI a XIII, quando as línguas neolatinas estão em ebulição) e a sua concepção mais importante, hoje, é a dos formalistas russos2, que vêem em cada época o progressivo esgotamento dos principais modelos anteriores, relegados a lugares periféricos, e a ascensão de um gênero secundário ou popular, como aconteceu no século XIX com a carta, o diário íntimo ou o romance folhetinesco, que passaram de discurso periférico para romanesco. Naturalmente, isso aconteceu por ser o romance uma ficção verossímil que permitiu a confluência de códigos próprios a um relato não ficcional, e a fusão com outros gêneros. Esse aspecto o diferencia do jornal. A língua literária é um sistema dinâmico de estilos e, quando se dá a transição de um gênero para outro, muda o estilo e renova o gênero, pois o estilo está vinculado com o enunciado e com os gêneros discursivos. A crônica consiste na relação de uma série de sucessos cujo relato se apega à cronologia em que ocorrem. Etimologicamente, conforme o Diccionario Corominas3, em 1275 essa palavra aparece no léxico romântico provinda do latim choronica, -orum, 1 2 Phttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B4nica_(g%C3%AAnero) O formalismo russo é uma corrente de crítica literária que se desenvolveu na Rússia a partir de 1914 e, por decisão poilítica, foi interrompida em 1930. O objetivo da crítica formalista é o estudo da linguagem. Da escola formalista fazem parte russos e sovieticos considerados fundadores da crítica literária (Viktor Chklovsky, Vladmir Propp, Yury Tynyanov, Boris Eichenbaum e Roman Jakobson) que exerceram influência em pensadores como Mikhail Baktin e Yuri Lotman. 3 COROMINAS, Joan. Breve Diccionario etimológico de la lengua castellana. Madrid: Editorial Gredos, 1964. 2 coma significação de “livros de cronologia” (crônicas, pl. neutro do adj. Chonicus “cronológico” oriunda do grego khrónos, ´tempo`). Para o conceito de crônica cito Antonio Cândido (1992, p. 13):4 “A crônica não é um `gênero maior`. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nadal a um cronista por melhor que fosse.” Pese a esse julgamento desse eminente crítico, esse gênero, um dos pontos dos estudos pósmodernos que procuram resgatar a marginalização, é estudado nas academias. Aos que se dedicam a escrever nessa forma prestam-se a homenagens e organizam-se congressos com esse tema e estudam-se obras de cronistas como Rubem Braga. Em jornais, quer em Vitória, A Gazeta, ou fora dessa cidade, em São Paulo, Folha de São Paulo, ou no Rio de Janeiro, O Globo, ou em Madrid, El País e ABC, há seções de crônicas e seções de “Opinião (que não deixam de ser, muitas delas verdadeiras crônicas), que nos deliciam por seus textos assinados por Fernando Veríssimo, Heitor Cony, Paulo Mendes Campos, Francisco Aurélio Ribeiro, João Moraes, Marilene Shoneghetti, Ferreira Gullar, Fabrício Corsaletti, citando bem poucos nomes e jornais. Algumas opiniões recolhem a essência da veracidade de um fato corriqueiro, do qual temos conhecimento, para nos apresentar essa verdade, numa atitude lúdica, num discurso entremeado do pessoal e do impessoal, numa linguagem híbrida entre a poética e a informativa jornalística, humorista e séria. O objetivo é fazer-nos meditar a seriedade do acontecimento à nossa volta, a dimensão dos fatos, das pessoas e das coisas no nosso entorno, e das instituições, que nos dirigem. As opiniões jornalísticas pretendem fazer coincidir o eixo temporal do ocorrido com o narrado. Elas reproduzem uma informação apresentada no setor notícias do jornal. Seu autor é um leitor diário do seu periódico. Seu discurso heterogêneo resulta na mescla da forma jornalística em que se apóia o autor e da literária em que se apresenta a opinião. Na configuração dos tempos modernos, é importante a difusão da palavra, sendo o veículo de maior captação a imprensa, e o veículo de maior alcance, o jornal, dado os eu caráter de notícia imediata e os eu aspecto de oralidade escrita. Vejamos um exemplo dessa afirmação. Em 25 de setembro de 2000, às vésperas das eleições municipais, Márzia Figueira5, com o título “Imaginação por que te quero”, na seção “Opinião”, de A Gazeta, elogiou a atuação de universitários capixabas que se apresentaram no Programa do Jogo do Milhão, do apresentador Silvio Santos, no SBT. Programa de perguntas e respostas da televisão que concedia um prêmio máximo de um milhão. Nesse show, com “erros & tropeços”, como a jornalista define, muitos estudantes universitários eram desclassificados por equívocos nas respostas sobre conhecimentos gerais, básicos. Essa situação serviu para Márzia ter um ponto de apoio para criticar a retirada (ou como diz ela, “suposta retirada”, dos exames de seleção às universidades, para denunciar o ensino fundamental (ou seja o do primeiro e do segundo graus) no preparo do alunado, frágil ao conhecimento que o habilita ao exame de vestibular, apresentando, como esclarecimento dessa ocorrência de despreparo do candidato, textos bizarros, conceitos, escritos por candidatos à vaga universitária no último desses exames. Da lista segue o último de que a cronista se serve para criticar o instante político do momento e para concluir a sua crônica e dar a típica pitada de nota irônica. “A diferença entre o romantismo e o realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas mostram como está a situação do país.` Não é por nada não, mas 4 CÂNDIDO, Antônio. A crônica o gênero, a sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, setor de Filosofia e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. 5 Em dezembro desse mesmo ano, Márzia, a jornalista de A Gazeta, Vitória, faleceu. 3 a esse último, esse eu fosse a professora seria capaz a de dar nota 10... Um sábio, o rapaz. Arguto! Sagaz! Astuto! Perspicaz”. A crônica como se faz atualmente, no seu discurso ameno, dá ênfase a algum acontecimento do dia-a-dia, rompendo a linha que separa o popular do literário. Na sua publicação no jornal, veículo de duração limitada, mostra-se sem a pretensão de durar como é a característica da arte literária. Ela se diferencia do discurso narrativo da história, pois realiza a análise do futuro e rompe com os cânones do gênero em sua estrutura, mas depende de um poder, o do diretor do jornal, berço da crônica impressa, à semelhança das crônicas antigas que dependiam do poder real. Por ser o jornal um veículo de circulação para uma rápida leitura, menos marcante que a executada em um livro, em cuja impressão pensa-se em um lugar fixo, haja vista a lombada apropriada para identificação na estante, e por ser o jornal abandonado depois de lidas as notícias nele contidas, o cronista, para lançar permanência na coluna, lugar de sua sobrevivência, deve procurar confirmar o público para o jornal. De acordo com a sua etimologia, guarda a crônica a idéia de tempo, pois sua informação política, social e/ou artística é da atualidade do fato. Algumas vezes as crônicas, recolhidas do jornal, onde participam intimamente da relação leitor/ vida, passam para o livro. Como tal, sua dualidade cresce. As reflexões tornam-se mais sérias e, às vezes, as informações ficam mais afastadas da realidade. O conceito de crônica é muito variável. Como comprovação desta afirmativa, citamos alguns livros que são compilações de textos publicados em jornais e algumas vezes estão em prosa poética: As melhores crônicas de Fernando Sabino (Editora Record); Os inocentes, de Márzia Figueira (Ed.. Multiplicidade, 1999); A cidade e a roça , de Rubem Braga (crônicas publicadas de janeiro de 1953 a fevereiro de 1955, no Correio da Manhã, Ed. Sabiá); Elenco de cronistas modernos (Ed. José Olympio, 1969) recolhe textos de crônicas de Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga) e Adeus, amigo e outras crônicas, de Francisco Aurélio Ribeiro (Formar, 2012). Nessas obras os textos englobam páginas de memória, lembranças da infância, flagrantes do cotidiano, comentários metafísicos, considerações literárias, observações de viagens. Alguns alcançam a qualidade de um pequeno conto. COMO NASCEM AS CRÔNICAS NO BRASIL? As crônicas nascem nos jornais. Na imprensa, em 1799, no Jornal de Débats, foi quando apareceu a primeira crônica, Na América Latina elas surgem na segunda metade do século XIX. A sua origem, no Brasil aconteceu com o desenvolvimento da imprensa e quando o jornal se tornou cotidiano e acessível a um número maior de pessoas. Elas se localizavam, no rodapé da primeira página do jornal — “sótano’ (porão) - à imitação do que se fazia na Inglaterra e França. Esses textos tratavam de questões do dia, da política, do aspecto social, artístico e literário. Nesse aspecto, destacamos dessa época, no Rio de Janeiro, José de Alencar, no Correio Mercantil, na seção “Ao correr da pena”. Esse tipo de apresentar opinião estava em moda em outras capitais. Por exemplo, em Madri, com o pseudônimo de Fígaro, Mariano José de Larra satirizava os costumes sociais, a política, o teatro e a cultura de seus concidadãos, entre outras coisas. No México, Manuel Gutiérrez Nájera comentava ironicamente frívolos acontecimentos semanais, viagens pelo México ou críticas literárias. Contudo, o sério discurso crítico-informativo, no Brasil, vai tomando um tom leve, de tamanho mais reduzido, adquirindo um caráter lúdico, na intenção de divertir. Nesse caminho, temos vários cronistas de renome a partir de Machado de Assis, 4 Olegário Mariano, Lima Barreto, João do Rio, Mendes Fradique, Oswald de Andrade, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Rachel de Queiroz (O Cruzeiro), para nomear alguns escritores “clássicos” que apresentam um texto com uma linguagem cada vez mais descompromissada afastando-se de um discurso crítico político e penetrando, pouco a pouco, numa linguagem poética e natural, com sabor humorístico, próxima da fala própria da oralidade. Os textos se organizam sem grandes ambições, sem rigor nas informações. Essa mudança, visando ao circunstancial e ao episódico, segundo Cândido (1992), passa a acontecer no Brasil a partir de 1930. Se no Brasil a crônica foi crescendo a partir dos artigos folhetinescos, isso não aconteceu em outros países latino-americanos, onde esses informativos mantiveram um leve toque de poesia e de humor, numa delicadeza de estilo, escorregando para a literatura. SE NÃO EXISTE O UNO POR SI MESMO, O QUE VEM POR TRÁS DO ALVORECER DAS CRÔNICAS ATUAIS? QUAL É O PAPEL DO CRONISTA? A História é a exposição sistemática dos acontecimentos dignos de memória, sejam os públicos e políticos relativos aos povos, sejam os que afetam às suas instituições, ou qualquer atividade de pesquisa ou de informação de alguma ciência ou arte. Segundo o pensamento grego, o historiador é aquele que vê e conta a partir de seu próprio olhar. Heródoto, considerado “Pai da História”, documenta usos e costumes dos povos antigos que visita, reproduzindo lendas e mitos. Dessa forma ele realça mais a Etnografia que a História e, por sua vez, a história se identifica com as antigas crônicas, cuja função, no passado, desenvolve-se procurando transmitir com fidelidade um tempo que estava sendo vivido ou que se mostrava em documentos e cabia aos reis zelarem pela memória dos acontecimentos importantes. Nesse aspecto o cronista era um compilador. A crônica constitui uma época cíclica. Ela nasce na Península Ibérica, raiz de nossa literatura, como forma de inspiração ou cópia dos cantares de gestas; eliminadas as manifestações exageradas dos poemas épicos elas concedem ao leitor, por sua forma em prosa, maior credibilidade. Seus textos são transcrições da literatura latina, árabe e hebraica, línguas do saber da época. Elas participam, na Idade Média, do (re)nascer da prosa, ou do nascimento da prosa, no romance medieval. Haja vista a novela de cavalaria Amadis de Gaula, em que a ficção se desenvolve na narração da vida e obra do herói, narrada, para a posteridade, por um personagem cronista, e El Ingenioso Dom Quixote de la Mancha, obra renascentista que no Amadis bebe e que Cid Hamete cunha as aventuras de um herói sábio e louco. Logo as crônicas são um elo entre a poesia e a história, porém desta se diferenciam porque sua cronologia é imediata e não crítica. As primeiras crônicas absorvem os cantares de gestas — poemas de extensão considerável como La Chanson de Roland e El Cantar de Mio Cid — relatos cuja existência admite uns fatos verídicos e outros fabulosos, e nascem num espaço de História na linha da historiografia e do registro de uma genealogia dinástica. As crônicas provêm da evolução dos “cronicões”6 latinos, prosa medieval, onde se registravam dados locais. Na Catalunha, do século XIII, foram organizadas quatro crônicas, que formam o núcleo importante da prosa catalã medieval. Elas se baseiam em uma realidade próxima; sua virtude essencial é a vivacidade e animação acrescida de um forte sentido patriótico. Mas é a emigração dos sábios a Castela que proporciona o 6 Dá-se o nome de cronicões quando o relatado pela crônica é um espaço ou um tempo breve, mas, quando se trata de uma precisa ordenação por anos, se denominam anais. 5 desenvolvimento da prosa castelhana, da tradução e recopilação dos textos, cabendo destaque à Crônica Geral e Estória de Espanha cuja organização se dá aproximadamente em 1278. Trata-se de um empreendimento iniciado pelo rei Alfonso el Sabio e concluído em 1289 por seu filho Sancho IV. Esta crônica, que suplanta as anteriores, é um marco memorável no início da historiografia espanhola. O seu encanto está sem ser objeto de estudo para a linguística histórica, para a literatura e para a história pela simplicidade com que coloca uma variedade de temas, que quebram a rigidez das crônicas medievais, provenientes de diversas fontes: a latina como Heroidas de Ovídio, Farsalia de Lucano, Os Césares de Suetônio, as fontes árabes, os textos de historiadores e de poetas românticos, os versos de jograis castelhanos e os textos religiosos (como o lírico de Santo Isidoro). Em suma, as crônicas, na Península Ibérica, se formaram semelhantes a uma colcha de retalhos com cores e formas diferentes, de um agrupamento de arte da corte régia e de um conjunto de compilações históricas, representativo da cultura da época, mas com um toque de originalidade, pois a sua contextura era dirigida pelo rei (este corrigia os redatores), zelando para que fosse conservada a pureza do romance castelhano. Pode-se considerar o zelo do rei, ou o certo e errado, como o primeiro cânone da língua espanhola. Por essa razão, as primeiras crônicas servem de marco linguístico para os estudos de Gramática Histórica Espanhola, pois, nos estudos de Lingüística Histórica, se torna a época do reinado de Alfonso divisora de um período anterior e posterior a esse rei. As crônicas anteriores ao Cantar del Cid são breves e só relatam feitos que se relacionem com reis ou príncipes e são escritas em latim; as do tempo desse cantar, segundo pegadas dos poemas épicos franceses, são mais ricas em pormenores e inserem trechos fantasiosos mas as posteriores à Crônica General sofrem alterações em suas sucessivas refundições. Quanto ao relato, as crônicas adquirem certos enunciados próprios das narrações populares (as feitas pelos jograis, quando se dirigem a seu público: “e sabeis que já”, “ouviu também”, “dessa maneira que lhe contamos”, expressões próprias das elocuções que proporcionam, no descrever histórico, misturar a linguagem objetiva com a referencial). O papel do cronista, seu ponto marcante, é documentar. A narrativa deveria ser composta desde os princípios dos tempos para que, por meio da escrita, ficasse inscrita na memória. Assim documenta a crônica de um período após o dilúvio, passando por Hércules, pelo Império Romano até os fatos ocorridos e/ ou até os supostamente ocorridos. O curso do mundo de cada coisa é levado para a crônica, com o objetivo de escrever “a verdade”. Para falar da dominação romana na península Ibérica, o cronista ao descrever, por exemplo, Nero, aponta como ponto factual, o seu físico, os seus costumes, a sua infância, o seu temperamento, acrescenta presságios, morte e impressões dos que a esta assistiram. Constatamos essas afirmações com o seguinte fragmento, retirado de la Crônica General: […] Nero era mensurado de cuerpo, ni muy grand ni muy pequeño, pero avielo todo lleno de manciellas et de mal olor; avís los cabellos castaños et la cara flemosa más que de buen donario; no avie delgado et el vientre colgado, et las piernas muy delgadas. […] E éll estando en esto, ívanse ya llegando a aquel logar los cavalleros que enviaran depós él los romanos que lo prisiessen et lo levassen vivo. E tanto que lo él sintió, sacó ell un cuhiello et metiósselo por el coraçón, con ayuda pero dell uno de los que i estavan, que primió el cuchiello. E en muriendo, teníe los ojos torvados et tan feos que se espantavan quantos lo velen. E desta guisa murió, Nero ell emperador, seyendo en edat de treinta et dos 6 años, acabose en él et fue desfecha et destroída toda la campaña de César Augusto, de cuyo linaje él descendíe.7 Misturam-se no discurso a impessoalidade do registro dos anais e as subjetividades da seleção dos acontecimentos narrados (gosto pessoal do cronista e de quem vai assinar a crônica — o rei); a história como acontecimento “real”, segundo a ordem dos tempos, e a ficção (o legendário); prosa e poesia (lírica e épica) e a história longínqua e a recente. O cronista dá informações por etapas e acrescenta comentários pessoais sobre acontecimentos. No final da Idade Média, em Portugal, surgem dois grandes cronistas, os melhores da tradição historiográfica medieval que se destacam pela exatidão histórica, conseguida numa minuciosa busca de documentos nos arquivos: Gomes Eanes de Zurara e Fernão Lopes. Este nos deixa a Crônica do rei D. Pedro, a de Fernando I e D. João I e nos oferece uma imagem animada da vida do povo português, tanto do povo humilde como dos monarcas. Com este cronista a matéria não ficcional se transforma em ficção pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia e, também, pela ficcionalização do real. No prólogo, da primeira parte da Crônica de D. João I, Fernão Lopes, para caracterizar o seu objetivo de historiador, expõe a sua intenção de escrever a verdade e de não se preocupar com o estilo, com belas palavras (“Que logar nos ficaria para a fremosura e afeitamento das pallavras, pois todo nosso cuidado em isto despeso, nom abasta para hordenar a nua verdade”) : Se outros per ventuira em esta crônica buscam fremosura e novidade de pallavras, e nom a çertidom das estorias, desprazer lhes ha de nosso rrazoado, muito ligeiro a elles douvir, e nom sem gram trabalho a nos de hordenar. Mas nos nom curando de seu juizo, leixados os compostos e afeitados rrazoamentos, que muito deleitom aquelles que ouvem, antepoemos a simprez verdade que a afremosentada falssidade. Nem entendaes que cetificamos coisa, salvo de muito aprovada e per escritada vertidas de fé, doutra guisa, ante nos calaríamos que escrever cousas falasas.8 Contudo a crônica de Fernão Lopes possui uma linguagem tão viva que o leitor pode pôr o fato narrado diante de seus olhos, como um quadro vivo. Aparecem exclamações do autor no meio da narração (“Oo quamtas vezes emcomendavom nas missas e pregaçoões que rogassem a Deos devotamente por o estado de cidade [...]”), apóstrofes, paralelismo e outros elementos estilísticos que se mesclam com os elementos do estilo narrativo, descritivo e evocativo e torna o prólogo uma íntima função literária com o texto narrado. O narrador faz chamadas para atrair a atenção do leitor, shifters9 de escuta, “tanto quanto sabemos”, ao nível da língua testemunhal e, além do acontecimento relatado, menciona, ao mesmo tempo, o ato informativo, a fala do enunciante que a ele se refere, os shifers de organização, quando o enunciante organiza o seu próprio discurso, o retoma numa expressão, por exemplo, “como dissermos acima”. “sobre ele não diremos mais”, “Deixemos o pagem ir onde lhe mandaram, e vejamos em quanto isso o que acontece no paço da Rainha”, “convém que 7 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Antología de prositas españoles. 7ª. ed. Madrid: Espasa Calpe, 1956, p. 18; 25. 8 http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/14/boletim14_pag128_155.pdf 9 BARTHES, Roland. 1987. .O discurso da história. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70. 121-30. 7 lhe digamos”.10 Mas o efeito de linguagem, a identidade do narrador, nas marcas de subjetivismo, da oralidade e do dramatismo renovam as crônicas a partir dele, antecipando ao historiador, colocando marcas que indicam a dicotomia verdade/mentira. Por exemplo, quando declara “nós concordamos com oo desvairado pensar destes e de outros autores, dizemos [...[“ , ou, ainda, procurando assegurar a verdadeira origem documento: “ não encontramos nada escrito do que eles fizeram e não podemos pôr na história”. Estes shifers trazem a ficção dos tempos da enunciação e da matéria enunciada, que dá lugar à aceleração da história. Eles incidem com o processo da enunciação e não são pertinentes ao discurso da história, pois essa responde às exigências da autenticidade. Os escritores históricos do século XIX, por questões ideológicas, para aproximar a Literatura da História, usam esse procedimento. Os shifers, na concepção de Roland Barthes, designam a menção das fontes das testemunhas ou fazem referências a uma “escuta” do historiador “eis as outras ações dignas de notas”; ou a uma dimensão temporal locativa do discurso: “como dissemos acima”. Quando os shirfers são de organização, estabelece-se o mesmo número de páginas para um problema importante para obter identidade do tempo da enunciação e da matéria anunciada. A crônica do Renascimento faz a cisão do que é a História e do que é fictício. Ela exalta a História e confunde o falso e o mentiroso. O ficcional moderno, com Dom Quixote de la Mancha, nasce a partir de dupla negação, ele se alimenta da ironia, na mistura do ficcional com o cotidiano. No Quixote, toda a segunda parte segue essa temática verdade/ mentira. No diálogo entre Sancho Panza, Sansón Carrasco e Don Quixote, quando a conversa se direciona para a primeira parte da obra que faz conhecidas as aventuras de Don Quixote, aparece esse tema. Em dado momento Don Quixote retrucando a Sansón diz que “[...] no hay historia humana en el mundo que no tenga sus altibajos, especialmente las que tratan de caballerías [...] “y los historiadores que de mentira se valen habían de ser quemados, como los que hacen monedas falsas [...] La historia es como cosa sagrada; porque há de ser verdadera.”.11 A separação entre discursos da História e da ficção, ponto de vista de Fernão Lopes, retorna em cronistas e pensadores, os imediatamente seguintes a ele. Na Espanha do século XVI, citamos a Juan Vives que escreve: “o mau livro alimenta a loucura”, valorizando a leitura de obras religiosas. Antonio Guevarra, cronista de Carlos V, critica a leitura de obras de ficção, tais como as histórias de Calixto e Melibea e Amadis de Gaula, como uma perda de tempo, porque não trazem virtudes, aprimoramento. A história (verdade) esteve, durante muitos séculos, ligada ao poder político e ideológico (monarquia e igreja), porém no século XIX triunfa com base nos textos e documentos escritos e no século XX a História nova reformada essa base para a aplicação de uma multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos orais, escavações arqueológicas, folclores, fotografia, instrumentos de trabalho, etc. Para a América, os cronistas das índias levaram a bagagem cultural da Europa renascentista para registrar o ambiente do indígena (asteca, maia, inca) e as informações de sua terra. Mostraram a vida do novo ambiente transmitindo o conhecimento dos sentimentos humanitários, dos valores, dos vícios, das ambições e das crueldades de suas terras e de sua sociedade. Os homens que chegaram ao Novo Mundo foram impelidos pelas forças espirituais do Renascimento, mas impregnados pelas ideias medievais. Em suas crônicas, sem arquiteturas, soltas, complexas, desproporcionadas, misturam-se os fatos da vida real com os simbólicos do cristianismo. Pretendendo 10 LOPES, Fernão. Quadros da crônica de D. João!... Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. p. 30 (tradução ao texto contemporâneo do autor) 11 CERVANTES, Miguel de. El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha 10 ed. Madrid: EspasaCalpe, 1956, 2ª parte, cap 3, p. 367; 369-370. 8 chegar até os outros o que viam, contavam uma história que merecesse ser contada, recriando a realidade com técnicas próprias da narrativa ainda que mantivessem a intencionalidade histórica no eixo da narrativa. Ao interpretar o que escapava aos esquemas europeus, fundiam história e literatura, posicionando-se entre o real, o maravilhoso e o mítico, semelhantemente à maneira como se contava nas novelas de cavalaria que eram incluídas como história ou crônica. Assim, por exemplo, ao descrever o rio Amazonas, o cronista reescreve as mulheres guerreiras descritas em As Segas de Espamdian, filho de Amadis de Gaule. Ao falar sobre os homens que encontrou na América do Sul, Fernão de Magalhães os denominou “pantagones”, associação com Patagós, figura de um gigante de cabeça de cachorro com os pés de veado, inteligente e apaixonado por mulheres, descrito em Primaleón de Grécia (1552), livro do Ciclo de Amadis. Logo, o que os cronistas mostravam ou como o apresentavam fazia parte do saber acumulado ao longo dos séculos. Suas crônicas são uma criação híbrida, pois incluem no interesse maior que demonstravam pelo humano, apontado nessas narrativas, os fatos reais, como os descritos por Marco Pólo, característicos das crônicas de viagens, e os fantásticos, característicos do Amadis e seus seguidores. E, como a maioria das crônicas foi escrita anos após a realização da viagem, elas poderiam ser incluídas na classificação de memórias. Bernal Diaz del Castillo, por exemplo, um dos conquistadores do México que, aos quase oitenta anos, escreveu A verdadeira história da nova Espanha, nos confessa, em uma prosa forte, sem adornos, que o que escrevia era ditado pela recordação, sem fingimentos nem alterações. Nota-se em seu estilo e forma narrativa a presença das novelas de cavalaria medievais, mas os seus traços metaficcionais o colocam na pós-modernidade, pelo regate que faz do periférico. Os fragmentos que a seguir colocamos são exemplos da subjetividade no relato de Dias del Castillo: […] Dejemos esta plática y volveré a mi materia, que después de bien mirado todo lo que aquí he dicho, que es todo burla lo que escriben acerca de lo acaecido en la Nueva España, torné a proseguir mi relación, porque la verdadera policía y agraciado componer es decir verdad en lo que he escrito. Y mirando esto acordé de seguir mi intento con el ornato y pláticas que verán, para que salga a la luz y hallarán las conquistas de la Nueva España claramente como se han de ver. […] Soy el más antiguo descubridor que ha habido ni hay en la Nueva España […] puesto que paseé de lo primeros, en compañía de un capitán que decía Francisco Hernández Córdoba […] Después otro capitán que decía Juan Grijalva […] Vine la tercera vez con el venturoso y esforzado capitán don Hernando Cortés […] los hechos heroicos y hazañas que hicimos cuando ganamos la Nueva España […] que yo vi y me hallé en ello peleando, como hace testigo de vista yo lo escribiré […] muy llanamente, sin torcer ni una parte ni a otra, y porque soy viejo de más de ochenta y cuatro años […] y quien traer a la memoria los grandes peligros y trabajos así de hombres y sed e infinitas fatigas que suelen recrecer a los que semejante a descubrimientos van a hacer en tierras nuevas, lo cual hallarán escrito, parte por parte en esta mi relación […]12 Nas crônicas dos primeiros tempos da América Colonial, não havia as criações artísticas próprias do Renascimento. Exaltavam o individualismo, mas, como os autores eram pessoas não ilustradas, a sua linguagem não era aprimorada como a dos escritores 12 http://201.147.150.252:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/1341/_historia_verdadera_de_la_conqui sta_de_la_nueva_espana--bernal_diaz_del_castillo.pdf?sequence=1 9 renascentistas. Diaz del Castillo reconhece as suas limitações, assim, refutando a exaltação feita a Cortês por outros cronistas reconsiderados, escreve: “Estando escrevendo esta relação, por acaso vi uma historia de bom estilo de Francisco de Gómara [...] e quando li a sua grande retórica, e como a minha obra é grosseira, deixei de escrever”. Podemos dizer que o primeiro cronista do continente americano foi Cristóvão Colombo, pois, na carta em que consta sua primeira viagem e que se imprimiu em 1943, descreve o que vê, pensando estar em outro espaço geográfico, na Ásia, com os olhos cegos pelo ouro que desejava encontrar e com a decepção do que seus olhos captavam: ilhas pobres, povoadas de homens nus, mansos de gestos e de riso. Comparava o que via com os signos europeus e fazia um levantamento das riquezas que poderiam usufruir no futuro. Esse gênero narrativo descritivo de façanhas heróicas e de conquistas sofreu inovações. Comprovamos com o que sucedeu século XVI com a descontinuidade, provocada por alguns autores como Alvar Nuñez Cabeza de Vaca que, ao relatar com o “eu”, evocando suas aventuras em estilo rápido, num fluir como uma conversação, dirigindo-se ao leitor, dá à sua crônica uma aparência de romance de aventuras. Se na natureza, na determinação da Lei de Lavoisier, “nada se perde, tudo se conserva”, quais os caminhos que seguiram as crônicas renascentistas na América, principalmente os da América Hispânica? Na admiração dos conquistadores e cronistas diante da natureza americana e na relação da conquista nasce a Literatura na América. As cartas de Colombo, em que ele descreve a famosa Ilha Espanhola, podem ser consideradas como primeiras crônicas de viagem. Nelas ele descreve “a terra bonita que se pode desejar” e não se farta de contemplar, da nave, a costa e de agradecer a Deus por ter deparado “tão formoso e gracioso lugar para o primeiro povo”. Depois dessa admiração essa terra tornou-se o tema de primordial interesse literário para os cronistas e historiadores que procuraram dar uma forma estética à sua admiração diante da frondosa vegetação e apresentar as ilhas como jardins flutuantes. A literatura otimista e os adjetivos hiperbólicos enchem o relatório de entusiasmo, cada vez mais acrescido à medida que se adentra na terra. Tanto os cronistas do México como os do Peru deram à literatura americana um caráter peculiar. As crônicas medievais européias e as renascentistas, seja na Europa, seja na América, se ramificam e seguem o caminho dicotômico da “verdade”, da História, e da “mentira” da ficção. Na América Hispânica, pelo conteúdo narrativo e forma das crônicas coloniais, citamos a Historia verdadera de la conquista de la Nueva España13 considerada como de Bernal Díaz del Castillo e, modernamente como de Hernán Cortés, conquistador do México, em suas Cartas de Relação, Cortés deixa suas impressões sobre os habitantes da América. Ainda fazemos referência às Crônicas: Naufragios, de Alvar Nuñez Cabeça de Vaca, conquistador da Flórida, a dos evangelizadores Historia de los Indios de la Nueva España (1540) e Historia Eclesiastica Indiana (1596) de Frei Toríbio de Benabente; Brevíssima relação da destruição das Índias, de Bartolomé de Las Casas e Historia general de las cosas de la Nueva España, de Fray Bernardino de Sahagún; a dos indígenas (mestiços), transculturais crônicas, Comentario Reales, do inca Garcilaso de la Vega, as inquietantes crônicas escritas por Guaman Poma, Nueva Crônica y Buen Gobierno, e a Historia de Tlaxcala, de Diego Muñoz Camargo e La Nueva España, escrita por Diaz del Castillo. Essas obras, acima referidas, podem ser 13 Christian Duverger, historiador e arqueólogo francês, em seu livro Crónica de la eternidad: ¿quién escribió la Historia verdadera de la conquista de la Nueva España?, considera a autoria da Historia verdadera… como de Hernán Cortés. 10 consideradas, como iniciadoras da ficção latino-americana e ponto de partida do romance histórico – documental do século XIX. O inca Garcilaso, em Comentários reales, se refere à conquista do Peru pelos espanhóis e faz uma relação completa do mundo dos incas. Fala sobre a fundação de Cuzco, os costumes e educação dos incas, os seus imperadores, o conhecimento (o saber), a alimentação, a religião do seu povo e, até, menciona a execução do inca Túpac Amaru por ordem do vice-rei Francisco Toledo. O cronista Ruy Diaz de Guzmán narra o descobrimento, povoação e conquista do Paraguai. As fantasias contidas no livro não permitem que ele seja uma fonte histórica, mas um dos primeiros balbucios de prosa literária. Ele faz referência a pigmeus, dragão, antropófagos, ao mau relacionamento entre conquistadores e índios, mencionando a paixão de um cacique por uma espanhola. São as narrativas dessas crônicas que reviviam o passado a sua vizinhança com o romance histórico, cultivado no século XIX, cuja linguagem procura recuperar valores como o espírito de nacionalidade, de identidade, de moralidade e de língua, que a sociedade burguesa da época queria preservar e divulgar. Indicamos como modelo desses romances obras de Walter Scott, Ivanhoé, O abade e o Mosteiro. Como o romance é receptivo de qualquer gênero e disciplina, ele receberá a História e se tornarão dependentes um do outro. A relação entre a literatura e a História, na América, é muito peculiar, pois, apoiados na História, mesmo quando esta se faz lenda, os escritores procuram retratar a vida em sua forma real. Assim, unidos, surgem n na literatura tipos como o do gaúcho e o do índio. O romance é um gênero literário em prosa, constituído pela multiplicidade de discurso das línguas e das linguagens. Suas raízes são antigas. Seus compromissos não se restringem ao domínio da cultura oficial. Eles, que têm suas raízes em documentos históricos e sempre tiveram uma relação íntima com a História, têm a função de estender os horizontes intelectuais, espirituais e imaginários e sofrem, a partir das diferenças das estruturas, descontinuidade, em conformidade, com a sua época. Dessa maneira irrompe, na literatura da metade da segunda parte do século XX, renovando a arte da narrativa, o romance histórico, mas como história imaginada, movida pela magia, situada em determinado período histórico, numa leitura palimpsesta, misturando realismo com o sobrenatural e história. Essas obras, dentro da convenção literária, enquadradas no “realismo mágico”, cujo modelo é Cem anos de solidão, de García Marquez, surgem, em número significativo, principalmente durante o período de comemoração dos quinhentos anos da descoberta da América, fazendo uma releitura do descobrimento. São exemplos dessa irrupção, para citar duas obras entre muitas, Cristóban Nonato, de Carlos Fuentes, e Los Perros del Paraíso, de Abel Posse. Esses romances fazem a fusão e confusão da História, unem personagens reais com os “não reais” Suas respectivas histórias são tão convincentes quanto à da dita História verdadeira. Com base em documentos, principalmente da carta de Cristóvão Colombo, reescrevem a história da colonização da América, como faz Abel Pose em Los Perros del Paraíso (Os Cães do Paraíso), referindo-se aos nativos (os cães) à América (Paraíso). Nesse novo romance histórico, o historiador deve controlar sua imaginação e não avançar além da historiografia. Contudo pode recriar do ponto de vista da imaginação, corrigindo o limite do historiador. É uma forma de questionar o discurso, gerada pelo dessemelhante, tudo que diferencia o Velho Mundo do Novo define a utopia, as categorias ideais que prefiguram a América, o Paraíso, onde se recupera a harmonia da origem com os símbolos e os mitos europeus: sereias, amazonas, gigantes, paraíso terrestre, etc. Em seu romance, Abel Posse segue, como as crônicas, uma cronologia 1461 a 1500, e como elas se apóia nos documentos, mas se diferencia delas 11 na maneira subjetiva e, como se aproxima do passado, pondo-se na visão do vencido e não do vencedor, muda a utopia e obedece ao princípio de literalidade e ao fenômeno de bioralidade do discurso, elemento preciso para a constituição da prosa. A palavra crônica aparece nos títulos de romances atuais, dentre eles citamos alguns que vão ao passado longínquo e outros a um mais próximo, mas trazem a marca de sua etimologia, a idéia de tempo. A crônica de malemore (1978), de Reinaldo Santos Neves. (Nessa obra um cronista medieval deixa para a posteridade a vida da família de Rogiers Besedeable. O autor não só procura situar o seu relato e forma narrativa num tempo pretérito como dá a sua linguagem um arcabouço de linguagem medieval.) Crónica de una muerte anunciada (1981) de Gabriel García Márquez. (O narrador relata, muitos anos depois, o assassinato de Santiago Nasar, em um povoado na Colômbia, perto de Barranquilla. Ele não precisa a morte que acontecerá em uma manhã, de um dia e hora determinadas, mas detalha os fatos com precisão visual e temporal. Conta como se tratasse de um conto tradicional e não de um romance. Como as crônicas do passado, o narrador tem a função de predizer. Ele sabe o que não foi contado, mas sabe que Nasar morrerá.) Crónica del rey pasmado (1989), de Gonzalo Ballester. (Nessa obra o escritor tece, num jogo com a História, uma narrativa humorística de um jovem rei espanhol que revolucionou a corte desejando ver o corpo da rainha, sua esposa, nua.) Crônica do Mau-Tempo, de José Saramago. (A obra trata da luta contra o latifundiário e da conquista da terra. Traz o tema de viagem, próprio das crônicas dos conquistadores.) A Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. (Na forma de cartas e diários, a narrativa se constrói para relatar o acabar de uma família: a dos Meneses.) As crônicas, de sua origem até nossos dias, sofrem ruptura de sua forma, mas há uma quase continuidade em nível de superfície, mas em nível arqueológico vê-se que, a partir do século XVII, sofreu uma curvatura para seguir novos caminhos. O cronista do passado quer pôr na crônica, isto é, organizar cronologicamente, histórias existentes, quer, oferecendo com arte o seu enfoque dos fatos, ter a responsabilidade de escrever para fixar aquilo que, um dia, foi seu presente. O romancista que segue as suas pegadas, reestruturando-as, reconstitui o “submerso”, não como um recompilador de documentos, mas como um recriador. O cronista moderno, o de jornal, possui responsabilidade bem mais leve, mas apenas quanto à necessidade de permanecer, de guardar o fato ou a notícia que lhe serve de base, mas preocupado em agradar o seu leitor da coluna. Quanto à forma é muito significativa, mas a sua autonomia completa da obra singular, em relação com as outras, não lhe abrange a percepção implicitamente. A tensão existe entre a obra singular e as configurações derivadas graças ao aspecto de modernidade (de atualização) que dá o autor para as formas herdadas. Os estudos recentes de intertextualidade mostram que a saturação de modelos fundamenta a crise criadora. Assim, não há literatura sem aceitação, realização, transformação e transgressão de uns modelos canônicos (ou arquetípicos). Essa tensão é característica da literatura escrita que permite corrigir e reescrever, o que difere da literatura oral, que faz a reprodução da história ensinada pelos antepassados, procurando atualizá-la com fidelidade. Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o jornalismo e a literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia que "dialoga" com o leitor, dentro de sua visão do mundo.