O(s) Porto(s) de Mário Cláudio:
Leitura de “Uma Coroa de Navios”
Alana de Oliveira Freitas*
1. Porto da subjetividade:
cidade da invenção
A coletânea de crônicas, Uma
Coroa de Navios (1992), do escritor
português Mário Cláudio, constituise em uma cartografia sentimental
de sua terra natal, a cidade do Porto.
Dessa maneira, podemos chamar
essa antologia de um livro da
cidade, pois este é o seu grande
tema, fio que entrelaça todos os
textos, tecendo, ao final, um Porto
particular, que resulta em uma visão
de unidade apresentada pelos escritos, mesmo que as crônicas não
houvessem sido produzidas em
uma seqüência narrativa, tratandose de páginas dispersas compostas
entre 1985 e 1992.
Um Porto particular. Um Porto
subjetivo. É esse o painel que o
cronista compõe ao longo das 31
crônicas reunidas no livro. À
maneira de Baudelaire, Mário
Cláudio pinta os seus tableaux
portuenses, traçando um perfil da
sua cidade a partir de contornos
bem próprios que partem do olhar
de flâneur/deambulador que lança
sobre a sua urbe.
A cidade é retratada pelo autor
sob uma ótica íntima, registrando
um Porto que é só seu, que só ele
capta, pois a cidade está envolta
numa intricada rede de signos e
alegorias empreendidos pelo olhar
do cronista: “... é porque nunca se
fixam as fronteiras do imaginário,
para o qual sempre concorrem novos
símbolos descabelados, insuspeitadas figuras de alegorias.” ( p. 27),
“...páginas onde o afecto se arquiva,
o lugar se reinventa, o futuro se
entesoura.” ( p. 9).
Sobre o recurso de atribuir à
cidade significados outros, singulares e plurais, fazendo dela um
complexo texto que clama por leitores hábeis para desvendá-lo,
observa Ítalo Calvino em As Cidades
Invisíveis (1990 : p. 20): “Como é
realmente a cidade sob esse carre90
gado invólucro de símbolos, o que
contém e o que esconde, parece
impossível saber.”
Assim, fica claro que, nas crônicas do autor, a cidade assume uma
condição textual permanente,
enquanto ele assume o papel de
escritor/leitor dessa cidade-texto,
lançando sobre ela um projeto de
escritura e legibilidade que vai se
construindo nas suas linhas e,
sobretudo, nas entrelinhas: “...
fecham-se os três livros, os que
jamais serão, para que o texto se
Mario Cláudio
desdobre da cidade, como poucas,
muito poucas, evidente.” (p. 11)
2. O Jogo de Crônus
A etimologia da palavra crônica
nos remete à noção de passagem de
tempo, lembrando que esse gênero
narrativo, a princípio, consistia no
registro de fatos que obedeciam à
uma ordem temporal. Somente a
partir do final do século XIX, como
uma mutação do folhetim, passa a
figurar como um texto literário.
Esse aspecto original da crônica
relativo ao registro do tempo é
contemplado pelo autor. Mário
Cláudio assume, como cronista, o
papel de senhor do tempo, pois ao
deter o seu domínio, subverte-o e
manipula-o. O tempo pode retroceder ao passado ou ser mantido no
presente, seguindo as determinações que a crônica em questão
exigir.
A partir deste procedimento,
podemos ler em seus textos uma
cidade que é tanto sincrônica como
diacrônica, com tempos que se
intercalam. Um Porto remoto que
sobrevive ao Porto atual, trama só
permitida pela visão caleidoscópica
do escritor que, ao ficcionalizar sua
urbe, autoriza essa alternância de
tempos, quando todos os momentos da cidade possam se encontrar:
É como se os resíduos de variadas tribos da civilização disseminada, acoitados a seus quintais
com um pinhal ao fundo, de
Ermesinde e de Rio Tinto e de
Gondomar e da Maia, pelo fogo,
de repente, pretendessem transmitir a mensagem. (p. 29).
Observemos o que diz Nelson
Brissac Peixoto (1996:p.75) sobre
essa possível leitura da cidade: A
cidade passa a ser vista como uma
rede de relações diacrônicas e
sincrônicas, onde o lugar aparece
como condensação de vários tempos
e valores históricos.
O autor lê e escreve a cidade na
perspectiva de três tempos: um
Porto do pretérito, um Porto do
presente e um Porto do presente
perene. Para exemplificar este
bailado do tempo, temos, para o
Porto do pretérito, crônicas como
O Carroção, A Ronca, Elegia da
Arcádia, O Processo de Camilo e O
Altar de Prata, que tratam de fatos
do passado, situados numa cidade
remota, mas que o cronista,
valendo-se da memória, os revisita.
Para o Porto do presente, há o
registro de aspectos atuais da urbe,
como nas crônicas A Pequena
Calcutá, A Manhã e os Lugares, A
Noite e os Lugares e O Passeio Difícil,
LATITUDES
n° 22 - décembre 2004
todas a narrar eventos do hoje.
Já para o Porto do presente
perene, temos um tempo peculiar,
só existente nos verbos conjugados
pela gramática do cronista. São
cenas eternas da cidade, aspectos
tão enraizados ao Porto que acabam
por caracterizá-lo em qualquer
época, como nos textos Domingos,
Gaivotas, então, Grandeza e
Miséria das tripas à Moda do Porto
e Uma Coroa de Navios. Tais páginas tratam de marcas permanentes,
traços que resistem e continuarão
a resistir solidamente à ação do
tempo.
Esse jogo que o autor realiza
com o crônus faz a cidade ser lida
como um amplo palimpsesto, no
qual as escrituras dos diversos
tempos se distanciam e se interpenetram ao comando do cronista,
senhor do tempo.
3. Leituras de Cabotagem:
A singularidade e
a pluralidade do Porto
Ítalo Calvino, em As Cidades
Invisíveis (1990), narra o diálogo
entre o navegador Marco Polo e o
imperador Kublai Khan. Nesse
diálogo o nauta descreve as várias
cidades pertencentes ao imperador
e que ele nunca as visitou. As
descrições de Polo, na verdade, são
sofisticadas montagens, nas quais
ele vai compondo as cidades a
partir de fragmentos de outras. Esse
procedimento constitui uma teoria
sobre as cidades, teoria essa explorada por Renato Cordeiro Gomes
em seu livro Todas as Cidades, A
Cidade (1994).
Essa teoria revela que, embora
haja singularidades em qualquer
cidade, todas elas convergem para
uma única, ou seja, todas as cidades são, a um só tempo, magicamente singulares e plurais, iguais e
diferentes.
Essa especial geografia é explorada por Mário Cláudio em suas
crônicas. O Porto torna-se tanto
singular como plural. O autor apresenta aspectos que fazem da sua
urbe um espaço único e, simultaneamente, vário. A unicidade do
Porto pode ser verificada nas crônin° 22 - décembre 2004
LATITUDES
cas Domingos e Grandezas e
Misérias das Tripas à Moda do
Porto.
Na primeira, ao narrar a rotina
de um dia de domingo no Porto,
desde o amanhecer até a noite, ele
descortina elementos que alimentam o caráter de singularidade de
um ritual que, aparentemente, se
iguala em todas a cidade, mas só
na superfície, pois o domingo
tripeiro é único (p. 31):
Afirmar que é sempre igual, em
Manchester e em Milão, em Nova
Iorque ou no Porto, o sétimo dia,
em que o Senhor descansou, só
por erro se poderá conceber, de
quem não haja bebido, até as
fezes, o verdadeiramente incomparável domingo tripeiro.
Nesta crônica é construída uma
espécie de roteiro, a partir de um
itinerário que vai do espaço privado
(Do maduro casal, encolhido no
interior de sua viatura,...), aos
espaços públicos (Nos túneis dos
centros comerciais,...) e retorna ao
espaço privado (Sabemos de quem
se recolha aos ocultos de sua
casa,...), numa evidente circularidade, que toma o domingo como
metonímia e metáfora da própria
rotina da vida.
O mesmo procedimento ocorre
em Grandezas e Misérias das Tripas
à Moda do Porto. Nesse texto o
autor tece uma ode ao prato tradicional de sua cidade, exaltando o
seu valor histórico e imprimindolhe notas de lirismo a partir de uma
descrição idealizada (p.61):
Estamos perante um espectro de
luxuosos ingredientes, que
compensam a elementaridade
das entranhas da vitela, e são
como que um adereço de marfins
e de turquesas, sobre uma túnica
do mais genuíno dos buréis.
É interessante notar que a culinária funciona como um aspecto
identitário, pois todos os povos e
regiões possuem os seus pratos típicos, assim as tripas confirmam a
singularidade do Porto.
Já a crônica A Pequena Calcutá
(p.13) contempla a pluralidade do
Porto, confirmando o princípio de
que as cidades comportam, em seu
mapa, outras cidades e que há
REFERÊNCIAS
BIBLIGRÁFICAS
• Alves, Maria Theresa Abelha. A
Escrita da Cidade em Uma Coroa de
Navios. Actas do Quinto Congresso
de Oxford: Coimbra, 1996.
• Calvino, Ítalo. As Cidades
Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi.
São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
• Cláudio, Mário. Uma Coroa de
Navios. Lisboa: Dom Quixote,
1992.
• Gomes, Renato Cordeiro. Todas as
Cidades, A Cidade. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.
• Peixoto, Nelson Brissac. Passagens
Urbanas. São Paulo: SENAC, 1996.
• Pesavento, Sandra Jatahy. O
Imaginário da Cidade: Visões
Literárias do Urbano. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 1996.
• Resende, Beatriz. Lima Barreto e o
Rio de Janeiro em Fragmentos. Rio
de Janeiro, Ed. UFRJ; Ed. UNICAMP,
1991.
marcas recorrentes que se presentificam em todas elas, demostrando
que são plurais. Sobre esse princípio afirma Renato Cordeiro Gomes
(1994) que uma outra cidade pode
ser inscrita na margem do livro de
registro das cidades. Dessa forma,
Mário Cláudio inscreve Calcutá no
Porto.
O tema escolhido pelo cronista
para aproximar essas duas cidades
tão distantes é a miséria, elemento
que une o Porto a Calcutá ou a
qualquer outra cidade grande do
mundo. A pobreza seria uma coordenada geográfica em diagonal que
aproxima os povos onde quer que
eles estejam situados no globo
terrestre (p.12):
Pergunte-se, por exemplo, o que
acontece nos jardins encerrados
do Palácio de Cristal, com suas
mesas de pedra como tumbas
românicas, ou nos subterrâneos
de Miragaia, de enxurro
singrado por ratos assombrados
na jangada de uma tábua. Logo
haverá de entender-se que pouco
disto diferem os becos e as docas
de Calcutá.
4. As Máscaras e As Personas do
Porto: Essa Fauna Movente
Laura Castro, na sua apresentação, faz a seguinte consideração
sobre a seqüência das crônicas
(1992:p.08):
91
Porto, le pont D. Luís et Ribeira
Começa-se pelo registro dos sítios
que construíram a cidade, materializando-a em ruas, bairros,
jardins ausentes e paisagens
marinhas; envereda-se por eles
descobrindo a fauna movente,
os contornos de uma multidão
em horas mortas ou na azáfama
de mercados e romarias estridentes, os tipos sociais ou ainda
o vulto de certas figuras em
esquisita singularidade.
A partir da citação percebemos
o caminho seguido pelo cronista
que vai dos lugares às pessoas, num
contínuo processo de antropomorfização da cidade e despersonificação das pessoas. Pessoas essas que
na cidade perdem sua identidade,
são apenas mais um rosto sem
nome na multidão, processo esse
só negado na crônica Maria Alice
Faz Meias.
A personagem que dá título ao
texto é alguém com nome porque
faz parte do passado da cidade.
Maria Alice Faz Meias sobreviveu a
reificação das pessoas, ela faz parte
de um tempo no qual as pessoas se
conheciam pelos nomes (p.45):
Maria Alice Faz Meias, assim,
na extensa conjunção de seu
nome e alcunha, era um pouco
da cidade a que escasseia,
agora, o espaço para guardar as
suas
figuras
proverbiais,
abalada rumo ao coletivo onde
não acham lugar se veja a
excentricidade e a loucura
personalizada.
É interessante perceber a força
dessa personagem. A sua ação,
tecer meias, nos remete à própria
condição do escritor. O texto se faz
tecido pelas mãos de Mário
Cláudio/Maria Alice, e ainda metaforiza o cotidiano da cidade que
92
todos os dias é
construída (tecida)
e desconstruída
(destecida), num
constante processo
de infinita formação.
Já a despersonificação, processo
oposto ao de Maria
Alice, é percebida
nas crônicas A
Manhã e os Lugares e A Noite e os
Lugares, que como os títulos indicam fazem parte da mesma trama,
a circularidade da cidade.
Nesses textos a cidade se apresenta como um grande palco sinestésico, onde as imagens vão se
compondo como um mosaico de
vários tons e sons.
Na primeira, pela audição do
funcionário da limpeza pública,
vamos construindo um Porto todo
peculiar que nos vai sendo apresentado a partir das sensações do
narrador, que ao regressar de mais
uma noite de trabalho, vai adormecendo embalado pelos rumores do
dia lá fora.
Na segunda crônica, não temos
a presença anunciada de um narrador, é como se a própria cidade se
auto narrasse, a partir das primeiras
horas da noite, e com o avanço das
horas, a noite vai se apresentando
com todos os seus mistérios a serem
decifrados.
Ambas as crônicas tratam de
rituais da cidade, tarefas desempenhadas por uma multidão sem rosto
e sem nome, que nos faz lembrar
do famoso texto de Edgar Alan Poe:
O Homem na Multidão, que, já na
metade do século XIX, denunciava
esse processo despersonificador
que as grandes cidades impõem à
humanidade, exemplificado pelo
paradoxo multidão versus solidão.
autor representam um espaço de
múltiplos e infindáveis significados,
pois o livro de uma cidade nunca
se completará, sempre haverá espaços a serem preenchidos por outros
registros. Sobre esse aspecto
conclui Renato Cordeiro Gomes
(1994: p. 37):
Esse sujeito (re)constrói a cidade
enquanto texto e se inscreve nele,
engendrando, em meio a este
amontoado de signos da superfície da folha do pergaminho,
um traçado de uma possível legibilidade. Sabe, no entanto, estar
fadada ao fracasso qualquer
tentativa de apuração da totalidade. Sabe que decifrar/ler esta
cidade é cifrá-la novamente, é
reconstrui-la com cacos, fragmentos, rasuras, vazios, jamais
restaurando-a na íntegra.
Oferece um novo texto cuja
imagem é necessariamente fraturada, descontínua. Escrever esta
cidade é inscrevê-la novamente
no livro de registro; é superpô-la
a outras cidades sígnicas cujo
desenho é, desde a origem, indecifrável.
5. As Vagas do Aportar:
Considerações Finais.
* Professora de Literatura Portuguesa
da Universidade Estadual de Feira de
Santana - UEFS e FTC; Mestre em
Literatura e Diversidade Cultural, pela
UEFS.
As crônicas de Mário Cláudio
empreendem um projeto de leitura
e escritura da cidade do Porto,
construindo uma cidade textual a
partir do seu olhar sobre sua terra
natal. As cenas lidas e escritas pelo
Tal passagem é confirmada pelo
próprio cronista no texto Romaria
Grande (p. 42):
Para que o rito prossiga, bastará
a permissão de que aconteça,
assim, nem mesmo o estudando
por demais, que há sabedorias
sepultas, declaremo-lo sem
receio, in limine refractárias ao
odor dos manuais.
Dessa forma, paramos aqui a
nossa leitura do livro da(s) cidade(s)
do Porto, pois declaramos, sem
receio, que há sabedorias sepultas,
in limine refractárias ao odor dos
manuais 
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