Artigo
Jorge Amado
na tocaia da grande história
Marcos Botelho
Definitivamente, não estamos imersos numa
história de ausência de História.
Felix Guattari1 .
Nunca existirá um mundo homogêneo, deve-se
respeitar o direito à diferença, e os excluídos reclamam: ou nos levam em conta, ou terão de nos levar
em conta como ruído na aparente harmonia da nova
ordem internacional.
Sub-Comandante Marcos, líder da Guerrilha Zapatista.
O diálogo entre Literatura e História vem se constituindo, contemporaneamente, como um dos mais rentáveis
dentro do atual quadro das revisões históricas. Diversos
autores de vários cantos do globo têm demostrado um interesse renovado pelo revisionismo histórico. O Capital de
Marx relido como um romance histórico sobre a barbárie
do capitalismo; a vida do Imperador narrada a partir das
alcovas do seu fiel secretário, em O Chalaça, romance-diário
de José Roberto Torrero; a escravidão e as colonizações
das Índias Ocidentais revistas por pescadores negros, em
Omeros, do poeta caribenho Derek Walcott; as negociações
culturais entre Ocidente e Oriente nas andanças de anjos
migrantes caídos; Londres, nos Versos Satânicos, de Salman
Rushdie; a poética da memória afro-descendente trazida à
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baila no espaço de uma pobre família “americana”, em Amada, de Toni Morrison; a aventura das grandes navegações
lusitanas recontadas pela vivência iniciática de um grumete
judeu, em Peregrinações de Barnabé da Índias, de Mário Cláudio;
as “vagas descobertas” e a Invenção do Brasil pelo olhar dos
degredados e da arraia-miúda, no Auto do Descobrimento, de
Jorge de Souza Araújo, são alguns poucos exemplares de
um certo de tipo de literatura que vêm marcando a poética
cultural na pós-modernidade. Uma das linhas de forças
dessa literatura é a releitura estratégica e desconstrutora
dos arquivos da História, não apenas para enfrentar os
autoritarismos embutidos nos discursos históricos oficiais,
mas para agenciar uma visibilidade provisória às minorias,
às pequenas narrativas apagadas pelo eixo ideológico da
História.
Mas o que está acontecendo na literatura contemporânea? Por que ela vem propondo a emergência de histórias recalcadas de figuras “ex-cêntricas”, e confrontado
a violência etnocêntrica de Robson Crusoé à insubmissão
de Sexta-Feira? Por que tantos autores – movidos por um
desejo crítico paralogístico sem precedentes – passaram a
acessar o conturbado passado de suas histórias nacionais
e oficiais? Para Walter Mignolo, os romances contemporâneos indicam uma mobilidade das fronteiras entre história
e literatura. As ficções tendem a devorar os discursos historiográficos para desarticulá-los por dentro, corrigindo
as imagens reprimidas pela história monumental2 . A História dos grandes acontecimentos começa a ser minada
por versões alternativas oferecidas pela “história vista de
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baixo” – as experiências daqueles “cuja a existência é (...)
mencionada apenas de passagem na principal corrente da
história”3 .
Para muitos, trata-se de uma moda passageira, uma
crise de criatividade generalizada, uma nova onda de nostalgia no arrastão do “capitalismo tardio”; para outros,
o “olhar” pós-moderno vem repolitizar a literatura e o
pensamento para além das grandes narrativas interpretativas; é um conjunto heterogêneo de atos micropolíticos
encontrados pelas artes para atravessar o milênio e encarar
as questões contemporâneas mais urgentes: a transa das
culturas em confronto no mundo globalizado; a emergência
das minorias, dos povos colonizados, grupos segregados pela
grande história; as migrações, os desmontes imperialistas, a
“volta” dos nacionalismos racistas, o enfraquecimento dos
Estados-nação, as relações entre poder e saber etc. Porém,
mesmo com o abalo no edifício das grandes narrativas e a
conseqüente crise das ideologias, constata-se que as tensões
entre forças dominantes e dominadas ainda são travadas
nos domínios dos discursos históricos, no “teatro da história” (conforme a famosa frase de Marx na Ideologia Alemã),
e que a História com H maiúsculo parece dissolver-se no
ar da “nova” configuração mundial.
A dissolução da História nada tem a ver com as versões neo-liberais e apocalípticas que apregoam “o fim da
história”. A História não acabou. Mas, pelo contrário, foi
acelerada e sua fuselagem ideológica começou, principalmente nas últimas décadas, a apresentar sérias fissuras. A
aceleração da história é um dos sintomas da descentrali135
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zação global e da disseminação das tecnologias da informação: culturas antes “locais” ligam-se numa rede global,
provocando zonas de “glocalização” que dão visibilidade a
novas e velhas subjetividades, culturas minoritárias e micropolíticas de afirmação, que buscam legitimidade na historia.
Então, como conferir o privilégio da “verdade” histórica
às interpretações das ciências humanas, numa época cujas
“verdades” se tornam mais “reais” quando mostradas na
televisão? Como se pensar numa História Universal num
mundo cada vez mais globalizado, cujas as margens reclamam direitos e visibilidade e se tornam também centros
de histórias? Gianni Vattimo observa esses paradoxos,
dizendo que “a contemporaneidade (...) é a época em que,
(...) com o aperfeiçoamento dos instrumentos de coleta
e transmissão da informação, seria possível realizar uma
‘história universal’, precisamente essa história se tornou
impossível”4 .
Essa dispersão da História surge, então, da exigência à multiplicidade, na medida em que “os povos sem
história” buscam inserir suas culturas e diferenças num
contexto político geral. O colapso das metanarrativas são
um convite direto à coabitação entre várias micro-narrativas (locais, étnicas, minoritárias, religiosas, etc). Com
efeito, está em cheque uma das visões mais disseminadas
da modernidade, aquela que a caracteriza como a “época
da história (...), com seus corolários, a noção de progresso
e superação”5 . Por isso “dissolução” aqui quer dizer crise
dos paradigmas tradicionais que sustentaram a escrita da História
como a versão dos vencedores. Ou seja: o conjunto de narrativas
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sedimentadas pela axiomática da Historigrafia oficial, que
neutraliza ou compatibiliza as micro-narrativas, as forças
criativas da resistência e dos excluídos, às suas imagens e
representações.
Então vejamos: existe a História; e através dela, as
histórias. Mas também é necessário reconhecer que a mera
oposição entre as pequenas histórias, as versões dos “povos
sem história”, como queria Hegel, e a grande História – o
grande relato canônico dos vencedores – resulte num impasse binarista e estéril. Não é um caso fácil de inversão, ou
melhor, da substituição de uma História por suas versões
antípodas, ou da modulação de uma autoridade por outra.
Sabemos que o poder, em sua capacidade reticular e reterritorializante, pode também se instalar na microfísica das
versões marginais da história. Por isso não basta pôr em
cena personagens e representações dos desvalidos sociais.
Ao contrário, muitas vezes, retomar uma figura heráldica
da pedagogia nacionalista, e representá-la como um ser
falível, pode ser mais transgressivo e pode questionar a
legitimidade dos discursos da História6 . Os próprios arquivos da história abrem, ou deixam vazias, as fissuras por
onde a escrita pode penetrar, não para somar uma verdade
à outra, mas para alterar o cálculo sedimentado, como diz
Homi Bhabha. Os vácuos da história, que podem causar
ainda certo embaraço aos historiadores, “obrigando-os a
lembrarem-se de que a história é um discurso” como outros
discursos, “são, para o ficcionista”, como lembra Leyla
Perrone-Moysés, “um convite ao exercício da imaginação”.7 Mas a opção estratégica pelas histórias alternativas é
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importante no processo de desarticulação da própria noção
de História oficial como única e soberana. Ela serve também para lembrar que, na verdade, o que há são “histórias”
múltiplas, e que todos, vencidos e vencedores, têm o seu
arsenal de memórias coletivas. Também a própria polarização vencedores/vencidos passa a ser problemática, já que
ela advém de uma “narrativa mestra”, de uma utopia que se
mostrou autoritária e que tornou os termos posicionados
em identidades fortes ontologicamente. Além de evitar
as oposições reducionistas, uma posição estratégica pode
questionar sempre a superioridade embutida nas correntes
dominantes da História, pois, diante da impossibilidade
de se escrever uma História Geral, as histórias diversas rebentam da criatividade de cada segmento cultural. Daí que
alternativas conceituais como a micro-história, história vista
de baixo, a metaficção historiográfica, a micropolítica, as
teorias pós-coloniais, dentre outras, surgem como importantes operadores de leitura para os estudos das relações
entre a história e o texto artístico.
A relação entre ficção e história é o “abre-te Sésamo”
para a leitura do romance Tocaia Grande – a face obscura, de
Jorge Amado. O romance serve-nos para um raciocínio
básico: a História tornou-se um instrumento privilegiado de
dominação e seu discurso oficial é uma máquina de poder
– encarnada parodicamente nos discursos dos padres, dos
políticos, dos poetas municipais e eruditos provincianos,
no pórtico do romance. Por isso, é necessário recuperar e
escavar as origens marginais, como nos ensina Nietzsche,
vasculhar as memórias à cata dos vestígios apagados pelo
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continuum da História, mas que podem ser o testemunho de
uma carência. Maria de Lourdes Netto Simões percebe a
especificidade deste romance como um momento decisivo
da obra amadiana. Diz ela que “Jorge Amado, com Tocaia
Grande, relê a saga do cacau, não mais da perspectiva do
poder do coronel, mas, então, da perspectiva do menos
favorecido, ou seja, do trabalhador rural, da prostituta, do
negro, do árabe comerciante”8 .
O impulso de expressar pela ficção as histórias recalcadas da fundação e desenvolvimento de uma cidade,
Irisópolis, conduz a narrativa. O autor contrapõe a versão
sacramentada da cidade às suas histórias marginais. A
história oficial de Irisópolis gravita no eixo do devaneio
ufanista, a versão dominante que apaga a face obscura da
trama fundadora: Tocaia Grande foi fundada pela violência;
e é a face fantasmagórica de Irisópolis. Com o intuito de
desmistificar as “páginas de civismo”, “exemplos para as
gerações vindouras”9 , Amado possibilita a emergência das
contraversões dos fatos estabelecidos pela História pedagógica
de Irisópolis. Por isso, o escritor sintonizado com o seu
tempo “não tem outro compromisso”: ele está sempre na
tocaia da grande História, agindo nas brechas ideológicas dos
grupos dominantes, cavando as trincheiras da resistência
cultural. A ficcionalização da história funciona como um
dos fluxos de produção daquilo que Gilles Deleuze chama
de “devir revolucionário”. Para o filósofo francês, o devir
não é história; mas os desvios da história, as condições
criadas para “devir”, para inventar o novo nas histórias que
atravessam a História. Deleuze conversa e diz:
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a história não é experimentação, ela é apenas o conjunto de condições quase negativas que possibilitam
a experimentação de algo que escapa à história. Sem a
história, a experimentação permaneceria indeterminada,
incondicionada, mas a experimentação não é histórica
(...) A única oportunidade do homem está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha e
responder ao intolerável.10 A literatura pode instalar os intervalos necessários
nos discursos de captura da História institucional. Mas, para
isso, também é preciso que a própria literatura, ou melhor,
aqueles que a produzem – as comunidades interpretantes
dos críticos, teóricos, historiadores, autores, professores,
universidades, etc – repensem e redistribuam melhor a
própria história, ainda centralizada conveniente e etnocentricamente pela violência epistêmica de sua historiografia.
Na emergência das micro-histórias, a arte tem um papel
nevrálgico: dizer não quando a maquinaria dominadora
diz sim; pondo em evidência os focos de resistência ativos
no processo histórico. Re-escrever a História significa: falar
contra, escrever contra11 , inscrever ou dizer um “não” suplementar contra a infelicidade, como fazem o “ex-cêntrico”
Raimundo Silva, personagem da História do Cerco de Lisboa,
de José Saramago, e o narrador irônico de Tocaia Grande.
Por ser caracteristicamente minoritária, a literatura está aí
para desafinar o coro uníssono dos contentes, os vencedores
e administradores da História. Ela pode mesmo precariamente – e as artes em geral – desvendar as histórias ocultas
de um povo e se nutrir da energia que a história liberada
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irradia. Em Tocaia Grande é o próprio narrador quem apresenta suas armas:
Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero
descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida
dos compêndios de História por infame e degradante;
quero descer ao renegado começo, sentir a consistência
do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição a mesquinhez, as leis
do homem civilizado (...) Digo não quando dizem sim,
não tenho outro compromisso.12 O romance Tocaia Grande tem a feição de um relato
circular, ou falso relato histórico narrado em flashback, que
reencena a gestação e a fundação de Irisópolis, na verdade
um microcosmo metonímico da “sociedade cacaueira”. A
partir da história subterrânea da cidade, Amado agencia uma
outra compreensão dos processos políticos e sociais que
interferiram e foram rechaçados na “formação da identidade grapiúna”. Para isso, o autor narra a história a partir das
trajetórias individuais de “pessoas comuns” do lugar. Tratase de um expediente usual nos romances cuja a presença da
história é fundamental. Peter Burke nota que
essa técnica é um lugar-comum entre os romancistas
históricos, e isso desde os tempos de [Walter] Scott e
Manzoni, cujo Betrothed (1827) foi atacado na época
(da mesma forma que a história vista de baixo e a micro-história foram atacadas mais recentemente), por
escolher como seu tema “a crônica miserável de uma
aldeia obscura”.13 141
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Em Tocaia Grande, os párias “ex-cêntricos” despontam e instauram um ruído diferencial no discurso oficial
da História irisopolitana: Natário da Fonseca, Zezinha do
Butiá, Fadul Abdala, Negro Castor Abduim, Rufina... Os
signos reprimidos por sua História pipocam a todo instante:
as negociações dos afro-descendentes, dos ciganos, dos
árabes, das mulheres desafortunadas, dos capangas, dos
tabaréus, dos condenados da terra... Um personagem lendário, um Corisco de São Jorge, um marginal mítico e ícone
das resistências populares, um Zumbi, a mitologia ágrafa, a
Irmandade do Povo Brasileiro, as falas características de um
lugar, Maria da fé, Pai Inácio, Tição Aceso, etc, são imagens
de uma cultura que precisam ser “reveladas” como proteínas
identitárias. O “capitão” Natário da Fonseca, por exemplo, além de típico herói amadiano, daqueles que grudam
na memória do leitor, mesmo possuidor de “domínios”,
simboliza uma memória coletiva recalcada pela História.
A comparação entre Natário da Fonseca com outra
legenda pode ser bastante útil: Antônio das Mortes, o sombrio matador de cangaceiros criado por Glauber Rocha e
personagem dos filmes Deus e o diabo na terra do sol (1964)
e O Dragão Da Maldade Contra O Santo Guerreiro (1968/69),
aparece silhuetado na caracterização do personagem de
Jorge Amado. Ambos são jagunços que honram na bala a
palavra bíblica do “olho por olho dente por dente”. Eles
transitam em pequenos espaços, “aldeias obscuras”, onde
impera a lei de talião, do caxixe e da traição: Antonio das
Mortes, em Jardim das Piranhas, e Natário da Fonseca, em
Tocaia Grande.
Há também diferenças óbvias: Antônio das Mortes
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tem uma densidade psicológica maior, o que viabiliza o
desenvolvimento do seu dilema. Já o “capitão” Natário
lembra, em muitas seqüências da narrativa, um herói alencarino de “baraço e cutelo”. Sua mestria em armar tocaias
e suas habilidades “militares” são dignas da performance
de um Aquiles homérico. É claro que Antônio das Mortes
não possui toda essa aura glorificadora. Mas os dois são
figuras míticas de rebelião social alimentadas e fortalecidas pelo imaginário cultural. Ou seja, como observa Eric
Hobsbawn, são eles
bandidos sociais (...) encarados como criminosos pelo
senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer parte
da sociedade (...), e são considerados [pelos excluídos]
como heróis, como campeões, vingadores, paladinos
da justiça, talvez até mesmo como líderes de libertação,
como homens a serem admirados, ajudados e sustentados14 .
Como seres “ex-cêntricos”, tanto Natário – mesmo
sem grandes vôos verticais – quanto Antônio das Mortes
vivem um paradoxo: são pagos para matar por aqueles
(os coronéis, os verdadeiros “dragões da maldade”) que
oprimem gente como eles. Ambos são sicários e tentam
sublimar esse conflito pela noção trágica da predestinação. Eles acreditam que devem cumprir suas “missões”.
Para Antônio das Mortes seu compromisso é histórico;
para Natário é uma questão de honra e palavra. Em Deus
e o Diabo na Terra do Sol, Antônio das Mortes diz: “Num
quero que ninguém entenda nada de minha pessoa... Fui
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condenado nesse destino e tenho que cumprir sem pena e
pensamento”.15 Enquanto Natário desabafa nas seqüências finais do
folhetim amadiano: “Minha vida inteira meu ofício foi esse,
o de jagunço, você sabe disso”.16
Mas por que figuras como Antonio das Mortes e
Natário da Fonseca parecem tão deslocadas – e até mesmo
anacrônicas – no mundo dos Escadinhas, Amadinhos e
Leonardos Parejas? Às vezes, assemelham-se a fantasmas
surgidos de uma outra época, sem forças para competir
com os “maravilhosos” Wolverine, SuperOutro e Shaft. A
recente literatura vem produzindo novos “ex-cêntricos”, em
outros sertões e favelas, mais sintonizados com o mundo
contemporâneo e sem a mitificação literário-ideológica do
nacional-popular: Reizinho, o “olheiro” do Inferno de Patrícia Melo, Cabeleira e Tigrinho, da Cidade de Deus de Paulo
Lins, o caribenho Achille, de Omeros, épico dos despossuídos
de Derek Walcott, por exemplo. O que retorna em diferença
é a mesma violência: não apenas nas ações dos anti-heróis,
mas na crítica à fome, à humilhação, à exclusão social, ao
racismo. Mas tanto o livro de Amado – significativamente o
último dos chamados “livros do cacau” – quanto os filmes
de Glauber – principalmente aqueles “filmes do sertão” –
apontam para alguma etapa histórica cumprida ou algum
tipo de relato utópico que desaparecia. Ao mesmo tempo,
essas obras são um prolongamento e um limite de suas
próprias utopias.
Talvez por isso Glauber Rocha tenha des-locado Antônio das Mortes do sertão, e o tenha colocado perdido
entre automóveis e caminhões numa rodovia urbanizada,
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Cadernos de Literatura e Diversidade
nas cenas finais do Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro
(o próprio cineasta estava se deslocando para filmar outros
“ex-cêntricos”: guerrilheiros e africanos, de Der Leone has
Sept Cabeças, e os “marginais heróicos” do morro carioca, em
Câncer). Também não é por acaso que o romance de Amado
seja a ponta de uma trilogia empenhada em cartografar os
processos de transferência do poder semi-feudal dos velhos “coronéis” do cacau para as mãos dos exportadores
capitalistas, os venturinhas e bacharéis de gabinete, os novos
tubarões a viverem às custas dos “escravos”.
Glauber Rocha dizia que, para compor Antônio das
Mortes, se inspirou nas histórias malditas dos matadores – e
nos heróis solitários do western americano –, ouvidas durante
a infância, em Vitória da Conquista. E Jorge Amado não
se cansava de repetir que a matéria-prima de sua obra está
naquilo que viu, naquilo que viveu, naqueles que conheceu,
nos natários das tocais e terras do sem fim. Mesmo diante da
impossibilidade de representação definitiva do “Outro”,
esses autores reinventam as histórias de violência desses
“marginais”, proibidas e limadas pelas lições de civismo
das escolas, a fim de que elas rivalizem com o imaginário
dominante da História institucional, a face luminosa que não
paga a pena contar e não tem graça17 . Re-escrever criticamente
a história é uma estratégia para religar os fios do passado
que ainda estão dispersos, ativos e assombram o presente.
E, como nos lembra Derek Walcott, para “enamorar-se da
vida apesar da História”.
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
GUATTARI, Felix, ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo.
Petrópolis: Editora Vozes, 1999. p.185.
2
MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças
da literatura que parece história ou antropologia, e vice-versa. In: AGUIAR,
Flávio (org.). Literatura e história na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993.
3
SHARPE, Jim. A História vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.); A
escrita da história – novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p.41.
4
VATTTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na
cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XV.
5
Id. Ibid, p. IX.
6
Exemplo: Salazar despencando, em slow-motion, de uma cadeira podre
devorada por cupins, no conto Cadeira, de José Saramago, em Objecto quase:
contos (São Paulo: Cia das Letras, 1994)
7
Leyla PERRONE-MOISËS, Formas e usos da negação na ficção histórica de José Saramago. In: Tania Franco CARVALHAL, Jane TUTIKIAN
(Orgs.) Literatura e história: três vozes de expressão portuguesa, 1999.
8
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. A literatura da Região Cacaueira baiana: questão identitária. In: Revista do Centro de Estudos Portugueses Hélio
Simões/UESC – Nº1 (1997/1998). Ilhéus: Editus, 1998. p. 123.
9
AMADO, Jorge. Tocaia Grande – a face obscura. Rio de Janeiro: Record,
1984. p.14.
10
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1979-1990. São Paulo: Editora 34,
1992. p. 210-11.
11
SANTIAGO, Silviano. O Entre-lugar do discurso latino-americano.
In: –– Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 19.
12
AMADO. Op.cit., p.15.
13
BURKE, Peter. A História dos acontecimentos e o renascimento da
narrativa. In: –– (org.); A Escrita da história – novas perspectivas. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p.327.
14
HOBSBAWN, E. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1975. p. 11.
146
1
Cadernos de Literatura e Diversidade
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na terra do sol. In: SENNA, Orlando (org.); Roteiros do Terceyro Mundo. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra,
1985. p. 279.
16
AMADO. Op. cit. p.477.
17
Id. Op. Cit. p. 505.
15
Marcos Botelho é Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural, ex-professor de
Literatura Brasileira da UFBA e professor da UEFS.
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