10. Memorial do Convento - Página 1 de 6 Memorial do Convento – José Saramago • Romance histórico, social e de espaço que articula o plano da história com o plano do fantástico e da ficção. • O título sugere memórias de um passado delimitado pela construção do convento de Mafra e memórias do que de grandioso e trágico tem o símbolo do país. • Intriga Æ Blimunda imprime à acção uma dinâmica com espiritualidade, ternura e amor. • A relação entre Baltasar e Blimunda transgride todos os códigos. • Narrador + Personagens Æ análise crítica Contextualização D. João V é aclamado rei em 1707, durante a Guerra da Sucessão de Espanha. A obra passa-se no Reinado de D. João V, séc. XVIII, época de luxo e grandeza, D. João V é influenciado pelos diplomatas, intelectuais e estrangeirados. Constrói o convento em Mafra para celebrar o nascimento do seu filho. A Inquisição ocupa-se com a ordem religiosa e moral e as suas vítimas são: cristãos-novos, judeus, hereges, feiticeiros, intelectuais. Como ROMANCE HISTÓRICO, oferece-nos: uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa da época, a sumptuosidade da corte, a exploração dos operários, referências à Guerra da Sucessão, autos-de-fé, construção do convento, construção da passarola pelo Padre Bartolomeu de Gusmão. Como ROMANCE SOCIAL, é crónica de costumes. Como ROMANCE DE INTERVENÇÃO, pois apresenta-nos a história repressiva portuguesa. Saramago propõe um repensar da história portuguesa, através da ficção e com a sua palavra reveladora Æ mensagem ética. Duas linhas condutoras da acção • Construção do convento de Mafra • Relação entre Baltasar e Blimunda 10. Memorial do Convento - Página 2 de 6 ACÇÃO PRINCIPAL Construção do convento de Mafra: reinvenção da história pela ficção; entrelaçamento de dados históricos com a promessa de D. João V e o sofrimento do povo que trabalhou no convento; situação económica do País; autos-de-fé; construção da passarola. ESPAÇOS PRIVILEGIADOS 1. O palácio que abriga a nobreza de D. João V, por onde o clero transita; 2. As ruas de Lisboa, sempre cheias da "arraia-miúda", o povo pobre, faminto; 3. A quinta (chácara) para onde vão Blimunda e Baltasar construir a Passarola; 4. A cidade de Mafra e os arredores. OUTROS ESPAÇOS Jerez de los Caballeros, Montemor, Évora, Elvas, Coimbra, Holanda, Áustria. O PAPEL DE CADA ESPAÇO Lisboa Æ cidade que contém em si ricos e pobres Alentejo Æ permite conhecer a miséria que o povo passava Mafra Æ deu trabalho a muita gente, mas destruiu famílias e criou marginalização TEMPO As referências temporais são escassas, ou apresentam-se por dedução. O tempo narrativo é do tipo cronológico e está inserido entre duas datas: "dezassete de Novembro deste ano da graça de 1717" e, como indica o último capítulo, a data da morte do escritor e comediógrafo brasileiro António José da Silva, o Judeu, autor das Guerra de Alecrim e Manjerona, em 1739. Ou seja, a história que vamos analisar tem duração temporal de 22 anos. NARRAÇÃO Saramago rejeita a omnipotência do narrador, voz crítica. A voz narrativa controla a acção, as motivações e pensamentos das personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos de valor. Os discursos facilmente passam da história à ficção. (Segundo Sartre, estamos perante um narrador privilegiado, com poder de ubiquidade (está dentro da consciência de cada personagem, mas também sabe o antes e o depois)). Foco narrativo: O foco narrativo do romance é do tipo cambiante, também chamado múltiplo, com predominância em 3a. pessoa. Verifique os exemplos: 10. Memorial do Convento - Página 3 de 6 4.1. Foco com terceira pessoa: "Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. A desprevenido olhar nem se sabe se é de madeira o magnífico móvel, coberto como está pela armação preciosa, tecida e bordada de florões e relevos de ouro, isto não falando do dossel que poderia servir para cobrir o papa. Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, rica de matéria e adorno não se lhe pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, não há mais remédio, ainda não o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta réis por ano, a ver se livra a rainha e a nós todos da praga (…)." Tanto em primeira quanto em terceira pessoas, o narrador se comporta como uma espécie de "guia" para seus leitores. Usa pronomes demonstrativos como se apontasse os acontecimentos, os seres e as coisas: "Esta é a cama que veio da Holanda (...)" "Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus." 4.2. Terceira + primeira: cambiante "A pontos de há pouco tempo terem soltado uns cento e cinquenta de culpas menos pesadas, que então estavam no Limoeiro, por junto, mais de quinhentos, com as muitas levas de homens que vieram para a Índia e que acabaram por não ser necessários, e era tanto o ajuntamento, e a fome tanta, que se declarou uma doença que nos ia matando a todos, por isso soltaram aqueles, um deles sou eu." "(...) enquanto não vai corporalmente acabar em Angola, para onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco(...) CARGA SIMBÓLICA Sugere as memórias evocativas do passado + remete para o mítico e misterioso Æ ao lado da história da construção do convento, surge o fantástico erudito e popular. MEMORIAL (memórias de uma época – construção do convento, inquisição, passarola, etc.) do CONVENTO (construção do convento de Mafra) 10. Memorial do Convento - Página 4 de 6 PERSONAGENS Personagens históricas: Em seu Memorial do Convento, o escritor português inseriu personagens reais, históricas, pertencentes ao século XVIII: D. João Quinto, rei de Portugal, a quem se atribuía grande sabedoria, mau humor e sexualidade exagerada. No romance, é retratado como um libertino ignorante, libidinoso e vulgar, que gostava de montar réplica da Basílica de S. Pedro. D. Ana Maria Josefa, princesa austríaca que se tornou rainha de Portugal, casada com D. João V. A história a descreve como beata, submissa e medrosa. Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, brasileiro, nascido em 1685, apelidado de "O Voador" por ter inventado a passarola (aeróstato); morto em 1724, dado como louco pela Inquisição. É um homem habitado pela nova mentalidade científica da Idade Moderna. Será isto que o irá conduzir à morte. Forma com Baltasar e Blimunda a trindade das personagens maravilhosas e trágicas. É a passarola, ideia sua, que une Baltasar e Blimunda a este padre e que vai determinar o fim trágico de cada um. Scarlatti, músico italiano barroco, compôs inúmeras músicas para cravo e esteve realmente em Portugal por tempos, ensinando música para a infanta D. Beatriz. Ao voltar à Itália, notabilizou-se e ganhou nome e destaque como compositor e maestro. O Povo, que construiu o convento em Mafra, à custa de muitos sacrifícios e até mesmo algumas mortes. Definido pelo seu trabalho e miséria física e moral, surge como o verdadeiro obreiro da realização do sonho de D. João V. É o herói do romance. [Baltasar e Blimunda são elementos do povo trabalhador e são eles que darão voz aos humilhados e oprimidos]. Personagens de ficção: As personagens que compõem este romance nos encantam pela singeleza de que são compostas, pela coragem, bravura. Mas sobretudo nos encantam pelo que são de humanas, inquietas e capazes de ir ao encontro de seu verdadeiro destino. Blimunda de Jesus (Blimunda Sete-Luas) Saramago consegue dotá-la de forças latentes e extraordinárias, que permitem ao povo a sobrevivência, mesmo quando as forças da repressão atingem requintes de sadismo. Blimunda é uma criatura diferente: enxerga as pessoas "por dentro" se estiver em jejum. Tem 19 anos, é forte, decidida, ama Baltasar assim que o vê, sabia que ele seria seu amor para sempre. Com Baltasar constitui o par amoroso que o romance opõe ao casal real. O amor deste par é um amor profundo, gerado sobrenaturalmente no auto-de-fé no Rossio. Este par amoroso está absolutamente fora de todos os códigos, instaurando uma moral nova, de carácter maravilhoso. Baltasar Mateus (Baltasar Sete-Sóis) Fora soldado e, na guerra, perdera a mão esquerda: Tem 26 anos, é forte e destemido. Também sabe que terá Blimunda para sempre. Representa a existência popular, ingénua, mas amorosa. Personagem maravilhosamente mágica e trágica. "Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros." 10. Memorial do Convento - Página 5 de 6 "Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra." Outras personagens: João Elvas, Manuel Milho, José pequeno, Álvaro Diogo e Inês Antónia (cunhado e irmã de Baltasar), Marta Maria (mãe de Baltasar) e João Francisco (pai de Baltasar). Existem personagens e grupos sociais em conflito: Rei / Baltasar; Rainha / Blimunda; entre outros… A PONTUAÇÃO "ESTRANHA" "(...) Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar. Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste. Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo. Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro." Ler Saramago é isso: uma certa dificuldade (a princípio) de saber quem fala. A pontuação não obedece a marcação comum e os diálogos entre as personagens são introduzidos por vírgulas que se interpõem entre os discursos directos. Só sabemos que o interlocutor se manifesta porque após a vírgula aparece uma letra maiúscula. São, também, excluídos os pontos de interrogação e exclamação. "Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. Passou a manhã, foi a hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos, e enfim levanta-se Blimunda, descidas as pálpebras, faz Baltasar a sua segunda refeição, ela para ver não come, ele nem assim veria, e depois saem de casa, o dia está tão sossegado que nem parece próprio para estes acontecimentos, Blimunda vai à frente, Baltasar atrás, para que o não veja ela, para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser." Isso não ocorre, no entanto, quando se trata de discurso do narrador. SIMBOLOGIA SOL Æ identifica-se com fonte de vida, com a própria vida – o que faz corresponder Sete-Sois a Sete-Vidas, que, por sua vez, significaria que Baltasar encarna simbolicamente a vida de todos os homens do povo, independentemente do tempo e do espaço. Acto de voar Æ crença do narrador da vitória da razão sobre a crença religiosa e, consequentemente, no triunfo de um futuro libertado sobre um passado considerado supersticioso e alienante. 10. Memorial do Convento - Página 6 de 6 Lua Æ complementaridade com o Sol. O AMOR • Amor ausente na relação Rei / Rainha • Relação amorosa Baltasar / Blimunda o O olhar – primeiro momento dessa relação o A identificação de Baltasar a pedido de Blimunda o Casa como espaço de entrega o Dois num só – o mesmo espaço, o mesmo pensamento, a mesma vontade, o mesmo segredo o O amor fantástico – modo fortuito do primeiro encontro, a troca de olhares o O “destino” no encontro e na separação AS CASAS • A casa que fora da mãe de Blimunda não é mais que um telhado e três paredes inseguras, sendo a quarta muralha do castelo. Mas é o espaço da realização amorosa Baltasar / Blimunda. • A casa dos Sete-Sóis, em Mafra, é o espaço da comunhão familiar. • O palácio real, espaço ausente de intimidade, negação de plenitude amorosa. Casa como espaço da fraca palaciana, em oposição à Casa como espaço de afectos, habitada pelos protagonistas Baltasar e Blimunda. ELEMENTOS FANTÁSTICOS E SEU SIGNIFICADO • A construção da passarola e o voo o Harmonia entre o desejo e a sua realização o A ciência, o artesanato, a magia e a arte em consonância, unidos pelo mesmo sonho o Visão do mundo não metafísica mas ideológica – o Homem é o verdadeiro criador do mundo • Blimunda o Representa um elemento mágico não explicado o Possui poderes sobrenaturais Æ vê por dentro das pessoas e objectos o Aprendeu as coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor “na barriga da mãe”, onde permaneceu de “olhos abertos”