RBMFC Sumário EDITORIAL A RBMFC e a difusão do conhecimento em APS / MFC Carlos Eduardo Aguilera Campos. .......................................................................................................................... 075 ARTIGOS Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento. Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz. .................................................................................................................................... 076 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro. Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar. ......................................................................... 082 Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto. .................................................................. 091 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano. ....................................................................................................................................... 099 Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. Célia Regina Machado Saldanha. ............................................................................................................................ 106 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequeno porte. Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky. .................................................................. 116 RELATO DE CASO Angola, ares de transformação. Camila Giugliani. ................................................................................................................................................ 125 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. ........................................................................................................................ 132 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro v.3 nº 10 p. 073-144 jul / set 2007 RBMFC Summary EDITORIAL The Brazilian Journal of Family Community Medicine and dissemination of knowledge on Primary Care and Family Health Carlos Eduardo Aguilera Campos. .......................................................................................................................... 075 ARTICLES Lyme Disease: diagnosis and treatment Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz. .................................................................................................................................... 076 Quality of Life and Blood Pressure Control in Patients of a Primary Care Unit in Rio de Janeiro Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar. ................................................................................ 082 Cost-effectiveness analysis: comparison of traditional primary health care delivery and the Family Health Program Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto. .................................................................. 091 Non-homophobic inclusion: a dialogue between medicine students and transvestites Valéria Ferreira Romano........................................................................................................................................ 099 Use of the health care net work of Juiz de Fora: the opinion of the user Célia Regina Machado Saldanha. ............................................................................................................................ 106 Analysis of the evaluation of the FHP small cities Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky. .................................................................. 116 CASE REPORT Angola, transformations are in the air Camila Giugliani. ................................................................................................................................................ 125 The Integration Program: an experience in professional education Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. ..................................................................................................... 132 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro v.3 nº 10 p. 073-144 jul / sep 2007 RBMFC Editorial A RBMFC e a difusão do conhecimento em APS / MFC Editorial The Brazilian Journal of Family Community Medicine and dissemination of knowledge on Primary Care and Family Health Carlos Eduardo Aguilera Campos* Nesta oportunidade gostaríamos de destacar alguns fatos relevantes na trajetória da RBMFC. Tem sido muito positiva a receptividade da RBMFC junto aos graduandos em Medicina em todo o país. Desde a edição número 3, fizemos um esforço de catalogar e enviar exemplares para todas as bibliotecas dos cursos de Medicina. Contamos para isto com a colaboração da ABEM, que gentilmente nos cedeu a sua lista de seus filiados. Desde então houve um retorno muito positivo por parte dos cursos. Temos recebido muitas mensagens de incentivo e de agradecimentos, muitas delas destacando a grande procura por parte de professores e alunos por artigos da RBMFC. Com esta estratégia alcançamos muitos de nossos potenciais e futuros especialistas, que, normalmente, não tem acesso à informação técnica e científica da especialidade. Outra boa notícia refere-se à renovação do apoio à SBMFC por parte da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde e da Organização Panamericana de Saúde, para a edição da RBMFC. Sem este suporte não seria possível constituir a equipe técnica, a impressão e o envio de tiragens cada vez maiores da revista para os sócios da SBMFC, bibliotecas e outros setores estratégicos para a difusão do conhecimento em APS/MFC. A presente edição tem a previsão de tiragem de cerca de 3.000 exemplares. Este é um número impressionante quanto consideramos o tempo de existência da SBMFC e o fato de que as revistas científicas costumam ter uma tiragem média de 150 exemplares. São, portanto, promissoras as perspectivas da RBMFC, contando para isto com o aumento da filiação e da produção científica de seus sócios e da comunidade acadêmica. * Editor RBMFC. 075 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul / set 2007 RBMFC Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento Lyme Disease: diagnosis and treatment Ivan Maluf Junior* Mariana Ribas Zahdi* Aguinaldo Bonalumi Filho** Cristina Rodrigues Cruz*** Resumo A doença de Lyme é uma infecção bacteriana sistêmica causada pela espiroqueta Borrelia burgdoferi e transmitida por carrapatos do gênero Ixodes e Amblyomma. Ela é doença endêmica em áreas de animais silvestres, carrapatos e florestas, sendo pouco relatada no Brasil. É a patologia mais comum transmitida por carrapatos. As manifestações clínicas iniciam-se com aparecimento de eritema migratório no local da picada, seguido de sintomas semelhantes ao da gripe. Com a evolução da doença, pode ocorrer acometimento dos sistemas nervoso central, cardiovascular, ocular e articulações. O diagnóstico é feito pelas características clínicas, dados epidemiológicos e exames laboratoriais; já o tratamento é realizado com administração de antibióticos conforme o estágio da doença. Abstract Lyme disease is a multisystem bacterial infection caused by the spirochete Borrelia burgdorferi. It is transmitted by the bite of infected ticks of the genus Ixodes and Amblyomma. The disease is endemic in wooded, brushy areas, which are habitats for wild animals and ticks. It is the disease most commonly transmitted by ticks, but rarely reported in Brazil. Early local Lyme Disease often starts with erythema migrans at the site of the tick bite, followed by flu-like symptoms. In advanced stage the disease may cause symptoms in the joints, eyes, heart and nervous system. Diagnosis is based on clinical symptoms, epidemiology and laboratory tests. Lyme disease is treated with antibiotics according to the stage of the disease. Palavras-chave: Doença de Lyme; Diagnóstico; Tratamento; Prevenção. Key Words: Lyme disease; diagnosis; treatment; prevention. *Acadêmicos do 6º ano do curso de Medicina da Universidade Positivo, Curitiba, Paraná, Brasil. **Dermatologista. Pós-graduado no Instituto de Dermatologia Prof. Rubem David Azulay na Sta. Casa de Misericórdia – RJ. Research Fellow pela Harvard Medical School no Massachusetts General Hospital – EUA. ***Professora, Doutora de Infectologia Pediátrica, Departamento de Pediatria, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. 076 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz 1. Introdução A doença de Lyme é uma infecção bacteriana sistêmica causada pela espiroqueta Borrelia burgdofer1,2 e transmitida por carrapatos do genêro Ixodes e Amblyomma2,3,4. Pode acometer o homem, animais silvestres e domésticos4. A exposição primária a um carrapato não-contaminado é um fator de proteção, já que alguns moradores de regiões endêmicas não desenvolvem a doença. Acredita-se que este fato é devido a uma hipersensitividade cutânea que desenvolve uma reação imune protetora5. Porém, o organismo não mantém imunidade natural para a doença, portanto uma pessoa pode sofrer reinfecção a partir de uma picada subseqüente pelo carrapato1. A doença é pouco relatada no Brasil. Neste país, a etiologia, as manifestações clínicas e laboratoriais são diferentes daquelas encontradas nos Estados Unidos e na Europa; por isso, é chamada de doença de Lyme símile4. Os transmissores na América do Norte são o Ixodes pacificus e Ixodes “dammini”, e provavelmente Amblyomma americanum; na Europa, é o Ixodes ricinus e, na Ásia, o Ixodes persulcatus1. O agente etiológico no Brasil ainda não foi isolado. O provável transmissor pertence ao gênero Ixodes e Amblyomma3. Foi descrita pela primeira vez na cidade de Lyme (Conneticut – EUA) em 19756. A partir de então, a notificação aumentou. De 1990 a 1998, 112 mil casos foram notificados nos Estados Unidos, e estima-se que, se a subnotificação fosse incluída, esse número seria multiplicado por 141. Esta é doença endêmica em áreas de animais silvestres, carrapatos e florestas7. As pessoas que trabalham em áreas de madeira, construção e parques têm mais chances de adquiri-la. É mais comum em áreas rural e suburbana do Nordeste e Centro-oeste dos Estados Unidos8, sendo a doença transmitida por carrapatos mais comum deste país9. No Brasil, os primeiros relatos foram feitos no início da década de 19904,6,7. Houve casos em Manaus, nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso4. A região de Cotia, em São Paulo, é área de risco7. 2. Patogenia A infecção humana é produzida por meio da saliva 077 Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento. do carrapato, que contém a espiroqueta. O período de incubação varia de 4 a 18 dias. A Borrelia spp. permanece na corrente sanguínea durante os episódios febris. Com isso há produção de anticorpos específicos contra a proteína de membrana da Borrelia spp. O término das manifestações clínicas atribui a atividade humoral específica de anticorpos mais que a das células fagocíticas. Não se conhece o mecanismo completo da elevação da resposta imunitária nas recorrências de febre. A espiroqueta se dissemina no hospedeiro pela união ao plasminogênio sem ativadores – a ativação do complemento e resistência ao soro também. As lipoproteínas expressadas durante a infecção desencadeiam inflamação, portanto a doença cursa com remissão e exacerbação das manifestações clínicas10. A imunidade patogênica contra Borrelia burgdoferi desencadeia reações auto-imunes que podem causar lesões cardíacas e artrite. Este mecanismo auto-imune pode ter influência na persistência dos sintomas (Lyme crônico)11. Alguns estudos mostram que o organismo humano apresenta fatores protetores contra estes anticorpos para Borrelia burgdoferi, como a decorina (presente na pele, articulação e, em menor quantidade, no coração), portanto facilita a concentração da espiroqueta nessas regiões, favorecendo infecção crônica12. 3. Manifestações Clínicas As manifestações clínicas podem ser divididas em três estágios6,13,14. A principal e primeira manifestação é o eritema migratório, que aparece no local da picada4,8,14. A lesão se inicia, em média, 3 a 30 dias após a picada4,8,13. Dos infectados, de 60% a 80% apresentam esta lesão1,13. Este estágio 1 vem acompanhado de sintomas semelhantes ao da gripe, como cefaléia, febre, mialgia, fadiga e artralgia1,6,7,8,13. O rash cutâneo mede ½cm de diâmetro, demonstra expansão centrífuga e lenta, mas também pode expandirse rapidamente. Possui a região central mais clara ou avermelhada1,4,8,13. Normalmente, há somente uma lesão quando se inicia em outros lugares, é sinal de doença disseminada1,4. Nessa situação inicia-se o estágio 2. São manifestações Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul / set 2007 Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz que podem aparecer após semanas ou meses do início do eritema migratório. Elas podem durar pouco, ou até meses, podem ser recorrentes e também tornarem-se crônicas4. Os sistemas mais acometidos são: neurológico, cardíaco e, ocasionalmente, ocular1,4,6,13. As principais manifestações de SNC são acometimento de condução nervosa, perda de reflexo, parestesia, neuropatia craniana, radiculopatia, me ningite, cefaléia, fadiga e mudanças comportamentais1,6,13. Nos Estados Unidos, 15% dos pacientes não tratados quando há acometimento neurológico evoluem com alterações neurológicas central ou periférica, com potencial de produção de seqüelas irreversíveis4. Afecções cardíacas são raras15. Pode acontecer arritmia, miocardite, angina, vasculite e bloqueio atrioventricular1. Este último é o mais comum15. Dos pacientes não tratados, 8% evoluem com bloqueio atrioventricular com graus variáveis. A lesão é reversível4. Esta melhora em dias ou semanas, e, algumas vezes, está associada à miocardite, palpitação e bradicardia13. Dos pacientes não tratados em dois anos, 60% apresentam características clínicas de artrite4,14. Se não tratada, 10% evoluem para artrite crônica com proliferação sinovial e não respondem mais à antibioticoterapia4. Embora infreqüente, em alguns casos pode haver manifestações oculares como alterações visuais, cegueira, lesão de retina, atrofia óptica, conjuntivite, uveíte, coroidite, ceratite, inflamação, dor, diplopia e papiledema1,6. Um estudo feito no Brasil descreveu o primeiro caso de doença de Lyme com manifestação ocular no Paraná. A paciente apresentou baixa acuidade visual e presença de papiledema bilateral. O exame oftalmológico mostrou presença de neurorretinite bilateral associada à ceratite intersticial de ambas as córneas16. Papiledema ocorre associado à meningite e à meningoencefalite. Pode ocorrer também acometimento do nervo óptico com neurite óptica ou neurorretinite. Embora rara, pode haver paralisia do abducente, oculomotor e troclear6. Um estudo no estado do Mato Grosso, Brasil, analisou 16 pacientes com doença de Lyme e suas manifestações clínicas. Destes, 50% apresentaram eritema migratório, sendo que cinco deles tiveram eritema anular secundário. Características incomuns se manifestaram em 078 Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento. 31,2%, inclusive com aspecto esclerodérmico. As manifestações musculoesqueléticas que ocorreram foram: mialgia, em 31,2% dos pacientes; artralgia, em 25%, e artrite, em 25%. Seis (37,5%) apresentaram acometimento neurológico17. O estágio 3 acontece meses ou anos após a infecção e, freqüentemente, é caracterizado pela artrite crônica, acrodermatite, encefalomielite6,13,14. Lyme congênita já foi descrita1. Se acontecer transmissão do agente por via transplacentária no 1º trimestre da gestação, há chance de complicações neonatais4. Pode ocorrer parto prematuro e morte neonatal1. Em crianças, as manifestações mais comuns são: eritema migratório, artrite, paralisia do nervo facial, meningite asséptica e cardiopatia. A meningite infantil por Lyme apresenta pouca febre, porém, há cefaléia e rigidez nucal13. É fundamental pensar em co-infecção quando o aspecto clínico é diferente da infecção isolada3. Relata-se que 10% dos pacientes apresentam co-infecção com borrelia, rickettsia, babesia, ehrlichia e vírus3,13. 4. Diagnóstico O diagnóstico é feito por meio da associação dos sintomas clínicos, dados epidemiológicos (áreas de maior endemicidade) e testes laboratoriais 1. Estudos recentes demonstraram que, na América Latina, os pacientes com suspeita da doença de Lyme apresentaram títulos baixos de anticorpos para os agentes causadores conhecidos (B. burgdoferi, B. garinii, B. afzelli). No exame Western Blot (WB) também foram encontrados diferentes resultados sugerindo diversos agentes etiológicos. Por isso, a doença nesses países da América Latina possui diferenças clínicas sutis, sendo chamada de doença de Lyme símile7. Contanto, os causadores no Brasil diferem daqueles da Europa e dos Estados Unidos18. Os exames laboratoriais mais utilizados são ELISA, WB e Pesquisa de Anticorpos por Imunofluorescência Indireta11. Para paciente sintomático com até quatro semanas, deve-se solicitar ELISA e também WB para IgM e IgG. Após quatro semanas, solicitar somente para IgG, a Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz fim de evitar IgM falso-positivo. A especificidade das duas etapas é de 99% a 100%. Quando requisitar os exames, informar o número de semanas dos sintomas13. O exame de PCR não é muito utilizado, apesar de ser mais sensível na fase aguda19. O WB é o melhor método diagnóstico17. Nos pacientes de alto risco (sintomáticos em área endêmica) não são necessários exames laboratoriais13. Anticorpos constitucionais podem demorar a aparecer, e somente 50% dos infectados apresentam sorologia positiva na fase inicial. IgM aparece de 2 a 4 semanas e cai depois da quarta semana; IgG aparece de 4 a 6 semanas após o eritema e permanece mesmo após o tratamento13. No Brasil, utiliza-se ELISA, seguido pelo WB para confirmação. Há alto índice de resultados falso-positivos e falso-negativos4. Exames falso-positivos para Lyme podem ocorrer na presença de outras infecções por espiroquetas (sífilis, doença reumatóide, mononucleose infecciosa e morphea) 13,18. Pacientes que receberam OpsA(vacina composta por gene derivado de B. burgdoferi), também apresentam resultados falso-positivos20. Outra técnica diagnóstica é a biópsia cutânea (Warthin Starry e Warthin Starry), que, apesar de não ser tão específica, mostrou-se útil no diagnóstico pelas características do infiltrado de linfócitos, histiócitos e eosinófilos na pele, além da disposição em torno de vasos em forma de manguito e no interstício. A detecção do agente causador histologicamente torna-se difícil pela escassez de microorganismos nas lesões ou pela distribuição nãohomogênea, como divergem alguns autores2. Outras alterações laboratoriais que os pacientes podem apresentar são: anemia, leucocitose, VHS aumentado, trombocitopenia e aumento das enzimas hepáticas10. Conforme citado, o diagnóstico de Lyme é feito pela associação clínico-laboratorial, porém exames laboratoriais estão sendo pedidos exageradamente, sendo algumas vezes desnecessários21. 5. Tratamento O tratamento é iniciado após o diagnóstico, que deve ser o mais precoce possível. Antibiótico profilático 079 Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento. não é recomendado para quem é picado pelo carrapato e está assintomático, porém o paciente deve ficar observando caso sintomas como rash, febre ou artralgia apareçam13. A terapia é feita com antibiótico oral ou endovenoso, dependendo do estágio da doença1. O medicamento de primeira escolha é doxiciclina 100 mg, duas vezes por dia, via oral, por 14 a 21 dias, seguido por cefuroxima, amoxicilina com probenecida e macrolídeos. A amoxicilina é a droga de escolha em crianças e gestantes10. Ceftriaxona 2g uma vez ao dia é usada por 2 a 3 semanas nas complicações cardíacas e neurológicas. No caso de alergia, pode ser usado doxiciclina10,22. A eficácia do tratamento é verificada pela melhora dos sintomas e normalização das células pleomórficas do liquor. Não é recomendado medir os anticorpos no liquor pós-tratamento, porque eles costumam persistir22. Quando há febre recorrente, o tratamento de escolha é tetraciclina na dose única de 0,5 g. Usar eritromicina, dose única, na criança e gestante. Na ocorrência de encefalite e meningite, faz-se uso de penicilina, cefotaxima ou ceftriaxona endovenoso por 14 dias10. A síndrome pós-doença de Lyme pode existir. Ela é caracterizada pela persistência dos sintomas (fadiga, cefaléia, mialgia, artralgia e sintomas neurocognitivos) após o tratamento. A patogênese dessa síndrome ainda é desconhecida. O tratamento recomendado é sintomático, sem antibiótico, pois se mostrou ineficaz20,22. 6. Prevenção Evitar áreas onde se concentram os carrapatos é a melhor profilaxia. Caso isso não seja possível, há vários cuidados que podem ser tomados: - Usar camisa de manga comprida e calça. Se possível prender a calça dentro das meias, além de usar roupas de cores claras que facilitem a visualização do carrapato. - Caminhar no centro das trilhas, evitando as margens. - Aplicar repelentes de insetos à base de DEET (dietiltoluamida) sobre a pele e roupa, ou repelente à base de permethrin sobre as roupas. - Verificar, diariamente, se há carrapatos. Os lugares predi- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul / set 2007 Ivan Maluf Junior, Mariana Ribas Zahdi, Aguinaldo Bonalumi Filho e Cristina Rodrigues Cruz letos por eles são as pernas, virilhas, axilas, linhas do cabelo e dentro ou atrás das orelhas. - Remover os carrapatos imediatamente usando pinça de ponta fina – não se deve espremer nem torcer o carrapato. - Conhecer os sintomas da doença de Lyme. Se a pessoa esteve em algum lugar onde estes carrapatos são comuns, e aparecerem quaisquer sintomas da doença de Lyme, especialmente erupção na pele, deve procurar um médico imediatamente23. Existe uma vacina para a doença de Lyme. É necessário receber três doses para conseguir uma proteção de 75%. Visto que a vacina não oferece proteção completa nem protege contra outras doenças transmitidas por carrapatos, mesmo pessoas vacinadas devem tomar as precauções mencionadas. A vacina é segura para a maioria das pessoas, mas pode causar vermelhidão, inchaço, dor no local da injeção, dores musculares, dor ou rigidez nas articulações, febre ou calafrios e até reações alérgicas graves como efeitos adversos23. As pessoas de 15 a 70 anos que moram, trabalham ou brincam por períodos prolongados em áreas onde há carrapatos infectados têm indicação para receber a vacina. Devem-se incluir neste grupo pessoas que já tiveram doença de Lyme sem complicações e que continuam sendo expostas a carrapatos infectados23. A vacinação é contra-indicada a: aqueles que não entram em contato com carrapatos infectados; crianças com menos de 15 anos; adultos com mais de 70 anos; mulheres grávidas; pessoas com qualquer deficiência no sistema 080 Doença de Lyme: diagnóstico e tratamento. imunológico; pessoas com artrite causada por um caso prévio de doença de Lyme que não respondeu ao tratamento antibiótico e pessoas com qualquer outro tipo de artrite23. 7. Prognóstico A recuperação dos pacientes é completa e mais rápida se o tratamento for realizado na fase inicial da doença. Já nos estágios mais avançados da doença podem ocorrer sintomas recorrentes ou persistentes. Neles, deve-se realizar um segundo curso de terapia de quatro semanas. Tratamentos longos com antibióticos mostraram-se ineficazes e prejudiciais, levando a sérias complicações, incluindo morte24. O tratamento realizado em mulheres grávidas não se mostrou prejudicial ao feto24. 8. Referências 1. Lyme.org [homepage na internet]. 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Aguiar*** Resumo Estudamos a qualidade de vida (QV) e o controle da pressão arterial (PA) em pacientes hipertensos acompanhados em dois modelos de atendimento em um Centro Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Foram acompanhados 138 pacientes durante um ano, sendo que: 69 pacientes (grupo A), por um modelo multidisciplinar, e 69 (grupo B), por um modelo centrado no atendimento médico. A QV foi avaliada por questionário padrão (SF-36). Os escores de cada grupo e a comparação entre as pressões sistólicas (PS) e diastólicas (PD) pré-tratamento e pós-tratamento foram analisadas pelo teste de Mann-Whitney. Foram correlacionados os escores das dimensões do SF-36 com: PA pré-tratamento e póstratamento, e as diferenças de pressões pré-tratamento e pós-tratamento ( PS, PD) pelo teste de Spearman (p<0,05 exigido). Os escores relacionados à capacidade funcional foram maiores no grupo A do que no B (p=0,01), mas, para saúde mental, foram menores (p=0,03). Houve queda mais significativa da PS no grupo A (p=0,0001) do que no B (p=0,0003). A PD reduziu-se de forma significativa apenas no grupo A (p=0,0001). Concluímos que os pacientes com hipertensão arterial atendidos pelo modelo interdisciplinar tiveram maior queda dos níveis de pressão arterial, quando comparados aos atendidos apenas pelos médicos, porém, a relação deste controle com a qualidade de vida não foi satisfatoriamente comprovada. Abstract The quality of life (QL) and the blood pressure (BP) control of patients with arterial hypertension followed by two different models of health care in a primary care Unit in Rio de Janeiro were studied. A hundred and thirty-eight patients were followed up during 12 months in a primary care center. Sixty-nine were assisted in a model using an interdisciplinary approach (group A) and 69 in a model focused on Palavras-chave: Qualidade de Vida; Hipertensão; Atenção Primária à Saúde. Key Words: Quality of life; Hypertension; Primary Health Care. *Doutora em Medicina, Profª. Adjunta, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. **Mestre em Medicina, Médica do Programa de Atenção Primária à Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. ***Mestre em Nutrição Humana, Nutricionista do PAPS/ Universidade Federal do Rio de Janeiro, Profª. Assistente, Departamento de Nutrição Aplicada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 082 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar medical consultation (group B). The QL was studied by the shortform health survey (SF-36) questionnaire. The Mann-Whitney test was applied to compare the scores obtained between groups and the systolic and diastolic blood pressure pre and post treatment differences ( SBP and DBP respectively) in each group. In group A, the Spearman test was used to correlate pre and post treatment BP, ?SBP and ?DBP to each QL score (p<0,05 was required). The functional capacity showed statistically the best result in the patients of group A (p=0,03), but lower scores with regard to mental health (p=0,03). The SBP dropped more significantly in group A than in group B (p<0,0001 X p<0,0003). The DBP dropped significantly only in group A (p<0,0001) Conclusion: The patients with arterial hypertension assisted in an interdisciplinary health care model showed a better response to treatment than those assisted in a conventional model, however this fact could not be related satisfactorily to a better QL. 1. Introdução O conceito de qualidade de vida tem sido aplicado nos campos da sociologia, psicologia, economia, política, educação e saúde. Ware1, ao estudar qualidade de vida aplicada à saúde, propôs um instrumento envolvendo os componentes físico e mental, relacionado à função social, ao desempenho ocupacional e à percepção geral de saúde. Em 1920, segundo Wood-Dauphiness2, a expressão qualidade de vida foi utilizada pela primeira vez no livro The Economics of Welfare, por Pigou. No entanto, apenas em 1987 é que este termo foi incorporado pela comunidade científica. Minayo, Hartz e Buss3 consideraram que "qualidade de vida é uma noção eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria estética existencial". A partir dos anos 1970, começaram a surgir, em algumas áreas da Medicina, ensaios clínicos com a preocupação de avaliar, além dos aspectos biológicos, as dimensões subjetivas que interferem no bem estar do indivíduo, considerando a percepção do próprio paciente. Trabalhos 083 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro nas áreas de oncologia, reumatologia e psiquiatria foram pioneiros na utilização de instrumentos de avaliação de qualidade de vida em saúde. O aumento da expectativa de vida impõe uma reflexão sobre a qualidade de vida na população idosa, obrigando a um planejamento de saúde cada vez mais voltado para o controle e prevenção das doenças crônicodegenerativas em geral. No Brasil, assim como na população mundial, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) tem-se destacado como afecção crônico-degenerativa mais prevalente e com maior morbidade e mortalidade. Na cidade do Rio de Janeiro estudos demonstraram uma prevalência de 24,9% para a HAS na população acima de 20 anos4. Diante dessa realidade, considerando a necessidade de promover um aumento de expectativa de vida associado a uma melhor qualidade de vida, decidimos propor um projeto assistencial e multidisciplinar de atendimento aos pacientes com HAS, em um Centro Municipal de Saúde da Cidade (CMS) do Rio de Janeiro. Este modelo, desenvolvido desde 1999 pela equipe do Programa de Atenção Primária à Saúde (PAPS) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FM/UFRJ), estabeleceu-se paralelamente ao modelo institucional adotado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio de Janeiro. Assim, constituíram-se dois grupos de estudo com o objetivo de acompanhar, a princípio, a qualidade de vida dos pacientes em cada grupo5. Foi nossa hipótese que os pacientes acompanhados por uma equipe interdisciplinar pudessem ter, em relação às dimensões avaliadas pelo questionário SF-36, melhor desempenho associado e relacionado a uma melhor resposta ao tratamento do que aqueles acompanhados pelo modelo proposto pela SMS/RJ. O atual trabalho refere-se a uma primeira avaliação, após um ano de acompanhamento. Este projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, tendo parecer favorável no dia 06 de maio de 1999, sendo registrado no protocolo de pesquisa número 36/99. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar 2. Casuística e Método O modelo inicialmente proposto, no âmbito da assistência interdisciplinar, foi iniciado pela captação do paciente que procura o CMS para atendimento em qualquer especialidade. Uma triagem foi realizada com avaliação de fatores de risco para hipertensão arterial em todos os pacientes na porta de entrada, sendo a pressão arterial verificada por pessoal capacitado após treinamento. Os indivíduos que apresentavam medida de pressão arterial acima dos limites preconizados pelo Programa Nacional de Controle da Hipertensão Arterial (PNCHA) foram selecionados para a segunda verificação da pressão em um prazo de sete dias6. Os que permaneciam com níveis acima dos preconizados foram inscritos no programa de hipertensão arterial do CMS. De forma alternada, os pacientes foram encaminhados para atendimento no presente projeto (grupo A) ou no ambulatório de clínica médica do CMS (grupo B), não sendo permitida a migração de doentes que já se encontravam em acompanhamento na unidade de saúde. Constituíram nossa casuística os pacientes que preencheram os critérios de inclusão nos programas de hipertensão arterial de acordo com as normas da SMS do Rio de Janeiro, que são moradores e/ou trabalhadores da área de planejamento do CMS e que assinaram o termo de consentimento livre e por escrito. Os critérios de inclusão no Programa de Hipertensão Arterial foram ser adulto, morador, trabalhador ou estudante da área programática do CMS, com níveis de pressão sistólica > 140 mmHg e/ou diastólica > 90 mmHg em duas aferições em datas diferentes ou com diagnóstico prévio de HAS em uso de medicação anti-hipertensiva. O modelo proposto para estudo consiste no atendimento mensal ao paciente hipertenso por equipes interdisciplinares formadas por um médico, um nutricionista e um enfermeiro, em sistema de rodízio, e de um profissional de dança, com atividade semanal. Todos atendem de forma integral os pacientes, ou seja, analisam suas queixas, verificam a pressão arterial e exames complementares, avaliam efeitos colaterais do tratamento e prescrevem as receitas e orienta- 084 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro ções gerais. O médico é responsável pelo primeiro atendimento, pelo diagnóstico, pela orientação terapêutica e pelos cuidados gerais. O segundo atendimento cabe ao nutricionista, que, além do atendimento integral, orienta o controle dietético. O enfermeiro, na terceira consulta do paciente, promove as atividades educacionais e de cuidados gerais. O atendimento se faz em salas contíguas, favorecendo o contato mais próximo entre os profissionais, a troca de experiências nos casos de dúvidas ou mudança de conduta e uma maior participação do doente no seu tratamento. Foram incluídos no atual estudo todos os indivíduos em acompanhamento no modelo proposto, na época da aplicação do questionário, constituindo o grupo A. Os profissionais do CMS fazem o atendimento na forma preconizada pela SMS do Rio de Janeiro por meio de consultas médicas e encaminhamento ocasional à nutrição por decisão do médico. O setor de enfermagem organiza grupos de atendimento coletivo, dirigidos aos pacientes inscritos nos programas. O número máximo de pacientes atendidos por turno de 4 horas é de 16 pacientes. Uma amostra, escolhida ao acaso na sala de espera, constituiu o grupo B, excluindo-se aqueles em tratamento por mais de um ano. Esta amostra foi escolhida com objetivo de poder ser comparada ao grupo-alvo, não havendo a preocupação de torná-la representativa dos pacientes atendidos no CMS ou da população do Rio de Janeiro. Ambos os grupos foram orientados quanto à terapêutica medicamentosa, disponível na rede de saúde e distribuída gratuitamente. Os critérios de referência e contrareferência também foram idênticos. Além do atendimento ambulatorial, foi oferecida aos pacientes de ambos os grupos uma atividade física semanal, que visava à motivação para a prática de exercícios físicos e à valorização da corporeidade. Esta atividade foi desenvolvida pelos professores do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desporto da UFRJ, sendo denominada “Movimento e Saúde”. Foram coletadas informações, em fichas próprias, contendo a idade, o sexo, a naturalidade e a escolaridade. Dados sobre complicações (consideradas como evidências Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar clínicas de doença cardiovascular e/ou alterações eletrocardiográficas) e presença de co-morbidades também foram levantados nos prontuários. Em nosso trabalho, optamos pela utilização do Short Form Health Survey (SF-36), questionário genérico criado por Ware e Sherbourne 7 em 1992 e Ware e colaboradores8 em 1993, a partir do Medical Outcomes Study (MOS) norte-americano, para avaliar estado de saúde. O SF-36, traduzido e validado para o português por Ciconelli9, é um instrumento de verificação de característica genérica, ou seja, pode ser utilizado em qualquer situação de agravo à saúde. Prevê escores de 0 a 100 para cada dimensão. O questionário de qualidade de vida SF36 foi aplicado na sala de espera dos consultórios aos pacientes dos grupos A e B que aceitaram participar do presente estudo por meio da assinatura no for mulário de consentimento informado livre e esclarecido para participação em pesquisa clínica, de acordo com as orientações da Comissão de Ética da UFRJ. As dimensões do SF-36 têm por objetivo avaliar oito aspectos: 1- Dor - avalia a presença, a extensão e a limitação provocadas pela dor. 2- A capacidade funcional - avalia o desempenho físico, considerando a presença e a extensão das limitações em diversos tipos de atividades físicas em uma escala de resposta de três níveis. 3- O aspecto físico - avalia as dificuldades, na realização do trabalho e nas atividades diárias, decorrentes dos problemas de saúde. 4- O estado geral de saúde - reflete a avaliação do paciente sobre sua saúde e suas perspectivas sobre ela. 5- Aspectos sociais - avalia a influência da doença na integração social do indivíduo, considerando os aspectos físicos e emocionais. 6- Aspectos emocionais - avalia as dificuldades relacionadas ao trabalho ou outras atividades diárias decorrentes de problemas emocionais. 7- Saúde mental - é um índice do humor em geral e avalia 085 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro as quatro maiores dimensões da saúde mental: ansiedade, depressão, perda do controle emocional, distúrbios do comportamento e bem-estar psicológico. 8- Vitalidade - avalia o nível de disposição e de fadiga. Os pacientes dos dois grupos responderam ao questionário por entrevista realizada por profissional contratado e treinado exclusivamente para este fim, e que não pertencia às equipes de assistência. A opção pelo entrevistador, e não pela forma auto-aplicada do questionário, foi feita tendo em vista a possibilidade da existência de analfabetos no universo estudado. O controle da pressão arterial foi avaliado comparando-se os níveis registrados pré-tratamento (consulta 1) e pós-tratamento (última consulta do primeiro ano de acompanhamento), pelo teste de Mann Whitney. Foi realizada uma análise para avaliar a qualidade de vida pelos escores do SF-36, para as comparações entre os dois grupos, pelo teste de Mann Whitney. Foram também feitos testes de correlação de Spearman entre as pressões pré-tratamento, pós-tratamento e as diferenças entre elas ( PS e PD), comparando cada uma delas com os escores de desempenho de cada dimensão do questionário SF-36. O nível de significância mínimo adotado foi de 5% para toda a análise estatística. 3. Resultados A tabela 1 ilustra os dados sociodemográficos das populações estudadas, homogêneas em relação ao sexo, à idade, à escolaridade e à naturalidade. A presença de complicações da hipertensão e de co-morbidades está ilustrada na tabela 2. Embora em maior freqüência no grupo A do que no B, as diferenças entre complicações encontradas não foi significativa, mesmo excluindo-se aquelas que evoluem sem sintomas. As co-morbidades ocorreram em número maior no grupo A. A diferença não foi significativa, porém mostrou uma tendência com valor de p=0,06. A tabela 3 mostra que os níveis de pressões, tanto sistólicas quanto diastólicas, pré-tratamento, foram significativamente mais altos no grupo A, e não diferiram Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar entre os grupos após o tratamento. No entanto, houve queda de níveis tensionais apenas no grupo A, refletindo uma reposta clínica, o que não ocorreu no grupo B - neste não houve modificação importante na resposta ao tratamento. Na tabela 4, houve melhores resultados no grupo A em todas as dimensões referentes ao componente físico do questionário de qualidade de vida, mas a diferença foi significativa apenas para a capacidade funcional. Em relação ao componente mental, houve melhor desempenho das dimensões do SF-36 que avaliaram aspectos emocionais e vitalidade no grupo A e saúde mental e aspectos sociais no grupo B, sendo a diferença significativa para a saúde mental. No grupo A, não houve correlação importante entre os escores de qualidade de vida, as pressões arteriais prétratamento e pós-tratamento e o grau de resposta ao tratamento (tabela 5). Tabela 1: Características demográficas dos pacientes *Resultados expressos em números absolutos; p>0,05 para todas as comparações. 1º, 2º, 3º graus: foram considerados os graus completos ou incompletos. Tabela 2: Complicações e co-morbidades mais encontradas * Pacientes com achados eletrocardiográficos não necessariamente conseqüentes à H.A. ** Achados clínicos: Grupo A: • não comprometiam a qualidade de vida: leucopenia, hepatomegalia, hipertrofia benigna da próstata – total de 3 casos–; • comprometiam a qualidade de vida: dengue, erisipela, tricomoníase vaginal e labirintite – 5 casos –; surdez, insônia, bronquite crônica; – 3 casos. Grupo B: • não comprometiam a qualidade de vida: hepatite B e histerectomia - 2 casos -; • comprometiam a qualidade de vida: claudicação intermitente, catarata, glaucoma, doença de Chron, bronquite crônica - 5 casos -; • labirintite – 1 caso. 086 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro Tabela 3: Resposta clínica ao tratamento: Resultados expressos em mm Hg; os valores de p referem-se às comparações entre os grupos A e B. Tabela 4: Medianas dos escores obtidos no questionário de Qualidade de Vida: Resultados expressos em medianas. Os escores para todas as variáveis podem ser de 0 a 100. Quanto maior o escore obtido para a variável, melhor o desempenho. 4. Discussão Nas últimas décadas, os resultados da atenção à saúde têm sido medidos, valorizando, cada vez mais, a ótica do paciente. Os benefícios de tratamentos específicos e dos sistemas de assistência à saúde em geral vêm sendo avaliados considerando a extensão da mudança provocada no estado funcional e no bem-estar do indivíduo, à luz de suas necessidades e expectativas. Em nosso trabalho, aplicamos o questionário de qualidade de vida SF-36 em dois grupos, procurando compará-los após diferentes modos de intervenção. As variáveis sociodemográficas foram semelhantes em ambos os grupos, não interferindo nos achados. No entanto, apesar da maior freqüência de pacientes com complicações da hipertensão arterial no grupo A em relação ao B, esta diferença não foi significativa, provavelmente não interferindo 087 na qualidade de vida dos pacientes. Por outro lado, as co-morbidades ocorreram em freqüência maior no grupo A, provavelmente influenciando a comparação dos resultados de qualidade de vida obtidos. Um outro fato importante é que as pressões prétratamento dos pacientes do grupo A eram significativamente mais altas do que no B. Estes dados, analisados em conjunto, permitem afirmar que os pacientes do grupo A tinham maior comprometimento de sua saúde do que os do outro grupo, apesar dos critérios randômicos de seleção utilizados. Houve melhor resposta clínica ao tratamento da hipertensão arterial no grupo A, evidenciada pela diferença significativa na comparação entre a variação de pressões obtidas por este grupo, em relação ao grupo B. Esta melhor resposta foi obtida a despeito dos maiores agravos Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro Tabela 5: Correlações entre qualidade de vida e níveis tensionais: Teste de correlação de Spearman existentes nas condições pré-tratamento do grupo A. Tendo em vista que as condições demográficas entre os grupos eram as mesmas, este fato sugere que o modelo de atendimento possa ter tido uma função importante. É necessário ressaltar que o modelo proposto para os pacientes do grupo A inclui atendimento com hora marcada, avaliação laboratorial descentralizada, consultas mensais individuais, interação direta com a equipe de suporte operacional e a adesão voluntária dos doentes a um novo modelo de assistência, fatos que podem interferir, ao menos em parte, nas respostas obtidas no tratamento da hipertensão arterial. Ademais, a satisfação dos usuários no modelo multidisciplinar proposto foi maior do que no 088 grupo B10. Considerando a faixa etária dos pacientes de ambos os grupos, os escores para QV não foram superiores a 75% em qualquer das dimensões estudadas, o que pode refletir a baixa condição de escolaridade e, conseqüentemente, de renda e condições de vida em geral. É importante esclarecer que a maioria dos pacientes atendida nos dois grupos residia em duas grandes favelas urbanas próximas ao CMS, submetidas a um estado de violência constante. Esta hipótese é compatível com o achado de escores mais baixos no componente mental (aspecto social, aspecto emocional, saúde mental e vitalidade) do que no físico (dor, capacidade funcional, aspecto físico e estado geral de Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar saúde) no grupo A. No componente físico, a dimensão dor foi a que teve menores escores, sendo habitualmente mais influenciada pelas condições sociais e emocionais. Causa surpresa o achado de 75% no escore de aspecto social e 33% no aspecto emocional encontrado no grupo B, resultados discrepantes entre si e com os demais, sem explicação que possa justificá-los. A diferença entre os dois grupos foi estatisticamente significativa na capacidade funcional, que foi melhor no grupo A. Embora a hipertensão arterial evolua com poucos sintomas, sobretudo em pacientes com graus leves a moderados, como a capacidade funcional é avaliada no questionário pelos sintomas de cansaço aos esforços, provavelmente ela foi melhor no grupo A pelo melhor controle da pressão arterial, que reduz em muito estes sintomas. A capacidade funcional do questionário SF-36 é a dimensão mais sensível de pequenos descontroles da pressão arterial pela taquicardia decorrente de esforços físicos de mínima intensidade. No entanto, não houve correlação significativa entre os escores de capacidade funcional e os níveis de PS e PD pós-tratamento, assim como com a diferença entre ambos. Em relação ao componente mental (aspectos sociais, aspecto emocional, saúde mental e vitalidade), espera-se que a saúde mental e estado emocional sejam afetados, particularmente em estágios avançados de doenças que levem a limitações físicas que provoquem depressão e perda do controle emocional, o que não é a realidade dos pacientes estudados. Os resultados foram controversos, já que houve melhor desempenho da saúde mental no grupo B e do estado emocional no A. A violência urbana na área de residência dos pacientes pode ter influenciado estes escores, porém não justifica as diferenças encontradas na saúde mental, já que ambos os grupos são da mesma comunidade. Finalmente, é importante questionarmos se o instrumento utilizado foi adequado para esclarecimento da hipótese, e ainda se o tempo de acompanhamento dos pacientes foi suficiente para este tipo de análise. Seria, portanto, de grande interesse a reavaliação destes pacientes em 089 Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro um tempo mais prolongado, utilizando-se simultaneamente um questionário voltado especificamente para avaliação de QV de indivíduos com hipertensão arterial. 5. Conclusões Pacientes com hipertensão arterial atendidos pelo modelo interdisciplinar em uma unidade básica de saúde durante um ano tiveram maior queda nos níveis de pressão arterial, quando comparado aos atendidos apenas pelos médicos; porém, a relação da resposta ao tratamento com a qualidade de vida não pode ser, satisfatoriamente, comprovada utilizando-se o questionário SF-36. 6. Referências 1.Ware JEJr. Standards for validating helth measures: definition and content. J Chron Dis 1987; 40(6):473-480. 2.Wood-Dauphinee S. Assessing quality of life in clinical research: from where have we come and where are we going? J Clin Epid 1999; 52:355-363. 3.Minayo MCS, Hartz ZMA, Buss PM. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva 2000; 5(1):7-18. 4.Klein CH, Silva NA, Nogueira A, Ada R, Bloch KV, Campos LH. Estudo multicêntrico sobre Hipertensão Arterial no Brasil. Parte II: prevalência. Cad Saúde Pública 1995; 11(3): 389-94. 5.Halfoun VLRC, Araujo, MC, Malveira, EAP, Gonçalves MC, Griep RH, Mattos D et al. Custo/efetividade de um modelo assistencial multidisciplinar nos programas de hipertensão arterial e diabetes mellitus em uma unidade de saúde do município do Rio de Janeiro. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, Ciência e Saúde Coletiva, 2000; Salvador, Brasil. Rio de Janeiro: ABRASCO; 5 (supl): 193, 2000. 6.Brasil. Ministério da Saúde. Normas técnicas para o programa nacional de educação e controle da hipertensão arterial. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 1998. 7.Ware JE & Sherbourne CD. The MOS 36-Item ShortForm Helth Survey (SF-36). I. Conceptual framework and item selection. Med Care 1992; 30, 473-482. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Vera Lúcia R. C. Halfoun, Denise S. Mattos e Odaleia B. Aguiar Qualidade de vida e controle da pressão arterial em pacientes de uma unidade primária do município do Rio de Janeiro 8.Ware JE, Snow KK, Kosinski M, Gandek B . SF-36 Health Survey. Manual and Interpretation Guide. Ed. The Health Institute. New England Med. Center. Boston, Mass. 1993. Nimrod . 9.Ciconelli RM. Tradução para o português e avaliação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida "medial outcome study 36-item short-form health survey (SF36)". [Tese de Doutorado], São Paulo, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, 1997. 10.Halfoun VLRC, Curvello MSC, Aguiar OB, Mattos D. A satisfação do usuário em dois modelos de atendimento no programa de hipertensão arterial em uma unidade do Município do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Coletiva 13(3): 617-630, 2005. Trabalho realizado pelo Programa de Atenção Primária à Saúde da Faculdade de Medicina da UFRJ. Fonte de auxílio: Fundação Universitária José Bonifácio/ UFRJ. Endereço para correspondência: Programa de Atenção Primária à Saúde / FM-UFRJ Rua Laura de Araújo, 36 – 2o andar Cidade Nova – Rio de Janeiro CEP: 20211-170 Endereço eletrônico: [email protected] 090 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. Cost-effectiveness analysis: comparison of traditional primary health care delivery and the Family Health Program. Janice Dornelles de Castro* Vanessa da Rocha** Marcia Marinho*** Silvia Pinto**** Resumo Este é um estudo de custo-efetividade da provisão da Atenção Básica por meio de duas alternativas de modelos de Atenção Básica – o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. Em um primeiro momento, é feita a discussão teórica sobre avaliação econômica, explicitando toda a sua complexidade e, em um segundo, é realizado um estudo de caso no município de Porto Alegre. Os dados demonstram que o Programa de Saúde da Família foi mais custo-efetivo. Abstract This study analyses the cost-effectiveness of primary health care on the basis of two alternative models of health care delivery - the “traditional” model and the Family Health Program of the Unified Health System. Firstly we make a theoretical approach to health economics assessment in all its complexity, and then we carry out a cost-effectiveness analysis based on a case study in the city of Porto Alegre. The data showed the Family Health Program to be more cost effective. Palavras-chave: Custos de Cuidados de Saúde; Economia da Saúde; Cuidados Primários de Saúde. Key Words: Health Care Cost; Health Economics; Primay Health Care. *Economista, Mestre Health Planning and Financing – London Scholl of Economics, Doutora em Saúde Coletiva - UNICAMPI; Professora da Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. **Administradora hospitalar, UNISINOS, Brasil. ***Mestre em Administração (UFRGS), analista de Sistemas, Datasus, Ministério da Saúde, Brasília, Distrito Federal, Brasil. 091 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto 1. Introdução A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) criou a necessidade de reorganização dos serviços de saúde. Neste contexto, o principal desafio, principalmente para os municípios, tem sido a garantia dos princípios básicos da universalidade, da integralidade e da eqüidade. O aumento de custos do sistema – conseqüência tanto do aumento e envelhecimento da população coberta, como de inovações tecnológicas – criou a necessidade da realização de avaliações dos serviços, com o objetivo de melhor utilizar os recursos escassos. Ou seja, é necessário priorizar o uso dos recursos, buscando não reduzir a oferta e a qualidade dos serviços, e é nesta medida que os estudos de avaliação econômica são importantes, pois colocam à disposição do planejamento os instrumentos necessários para o estabelecimento dessas prioridades. Este trabalho se propõe a fazer uma avaliação de dois modelos de Atenção Básica – aquele que chamamos de “tradicional” e o Programa de Saúde da Família –, com o intuito de verificar os custos e a efetividade em cada um deles. 2. A avaliação econômica Para Drumond & Stoddart1, a visão dos economistas sobre a avaliação de custos dos programas de saúde não deve ser apenas aquela dos gastos realizados, mas a do potencial benefício que irão produzir para a sociedade. No entanto, para realizar as avaliações econômicas é inevitável que se trabalhe com a noção de custos de oportunidade, ou do sacrifício, ou escolha entre diferentes alternativas. A noção de custo de oportunidade decorre de uma questão fundamental para a economia: o problema econômico fundamental, ou seja, as necessidades humanas são ilimitadas e os recursos disponíveis são escassos, nesta medida é necessário fazer escolhas sobre o que, para quem, como e quanto produzir. Para tentar responder a essas questões os economistas utilizam a avaliação econômica. A discussão teórica encontrada na literatura sobre este tema é bastante ambígua, especialmente quando debatem o significado dos diferentes tipos de avaliação econômica: custo-benefício (ACB), custo-utilidade (ACU), cus- 092 Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. to-efetividade (ACE) e custo-mínimo (ACM). Drumond & Stoddart, em seu artigo Principles of economic evaluation of healh programmes1, colocam pontos importantes que devem ser considerados, ao proporem estes tipos de estudos, sugestão corroborada por inúmeros autores2,3,4,5,6,7. O primeiro ponto levantado diz que uma avaliação econômica sempre é uma comparação entre mais de uma alternativa de possibilidades de ação – não se esquecendo de que uma das alternativas pode ser “o não fazer nada”. Os estudos em que não são realizadas as comparações, não são de avaliação econômica e podem ser chamados de descrição de custos ou de descrição de resultados. O segundo ponto é o estabelecimento, tecnicamente, da efetividade dos programas ou ações que estão sendo avaliados, uma vez que a falta das evidências clínicas de efetividade afetam a avaliação econômica. No entanto, sabemos que, quando os programas ou as ações possuem objetivos amplos, caso da maioria das intervenções de saúde pública, o estudo fica mais complexo. Para Mills4, o estabelecimento da efetividade pode ser feito por meio de ensaios clínicos controlados, no entanto, afirma que este tipo de estudo é muito caro, e muitas vezes os resultados são inconclusivos, pois é muito difícil estabelecer a relação entre as atividades de saúde e suas conseqüências. Portanto, sugere que sejam utilizadas como medidas de efetividade: (a) mudanças nas taxas de prevalência ou incidência, numa determinada população, em um dado período de tempo, analisando antes e após a intervenção avaliada; (b) definição da efetividade de uma intervenção obtida por consenso dos profissionais após a utilização método Delphi; (c) revisão das evidências de efetividade por meio de publicações. Outro ponto levantado é a necessidade de identificação de todos os custos e conseqüências importantes para o estudo. Devem ser considerados os custos diretos – representados pelo custo de organizar e operar o sistema de saúde e pelas despesas que os pacientes e suas famílias tiverem com o tratamento –, assim como os custos indiretos, que são relativos ao tempo de trabalho perdido e os custos físicos, resultantes do sofrimento causado pelo trata- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. mento. Por fim, devem-se considerar os custos produzidos fora do sistema de saúde, como restrições criadas pelos governos à produção de medicamentos. Em relação às conseqüências, devem ser consideradas as mudanças físicas, emocionais ou de funcionamento que resultem em poupança de recursos para o sistema e para os pacientes e suas famílias, assim como a diminuição no tempo de trabalho perdido, e, por fim, as mudanças positivas na qualidade de vida dos pacientes e suas famílias1. Para Mills3, poucos estudos em países do terceiro mundo levam em consideração as conseqüências emocionais e sociais da doença ou as mudanças na qualidade de vida dos pacientes e suas famílias, no entanto, existem muitos estudos sobre as conseqüências em relação às mudanças físicas. Além dos pontos discutidos acima, os autores1 sugerem que devem ser utilizadas unidades de medidas de custos e conseqüências de forma apropriada – por exemplo, se uma ação é parte de uma atividade maior, como atribuir a proporção correta dos custos e conseqüências a ela? Segundo Mills3, o maior problema no terceiro mundo é a inexistência rotineira de informações, tanto de custos, quanto de efetividade que sejam confiáveis, especialmente as informações sobre os efeitos ou impacto das ações de saúde. Sendo assim, sugere que sejam utilizadas as medidas de processo ou intermediárias, como número de pacientes tratados, número de vacinas realizadas. Mas é preciso não esquecer que assumir medidas de utilização, enquanto medidas de efeitos, pode provocar distorções no estudo. Os autores Drumond & Stoddart1 também sugerem que se devem utilizar medidas adequadas de valoração de custos e conseqüências. Por exemplo, para avaliar os custos diretos de uma ação de saúde, poderia ser usado os preços de mercado desta ação, que, nas economias desenvolvidas, corresponderá aproximadamente aos custos de produção. Mas isso não ocorre nos países subdesenvolvidos por inúmeras razões, tais como a existência de tarifas, impostos e subsídios, assim como as altas taxas de desemprego e subemprego que afetam os preços dos bens e serviços domésticos, em relação aos preços internacionais3. A sugestão é ajustar os preços para os do mercado inter- nacional, criando preços novos, que são chamados de preços-sombra. Outro ponto levantado refere-se ao fato que cada tipo de avaliação econômica irá considerar as conseqüências de diferentes formas. Na forma mais simples de estudo, chamada de análise de custos, espera-se, ou se assume, com base em alguma evidência (estudos anteriores que confirmem a efetividade clínica das diferentes ações), que as conseqüências ou os benefícios serão iguais; por isso, são considerados apenas os custos das diferentes alternativas de ação. No entanto, é importante observar que este é um tipo de avaliação econômica incompleta1,2,3,5,6,7. Existem outras três formas de avaliação econômica completa, ou seja, aquelas que comparam custos e resultados, e que têm em comum o fato de que os custos são expressos em unidades monetárias e os benéficos em unidades de conseqüência. Essas análises são comumente classificadas sob o genérico título de análises de custoefetividade1, no entanto, existem algumas diferenças importantes entre elas. O tipo mais simples é chamado de análise de custo-mínimo, neste caso, as conseqüências dos diferentes tipos de ações são avaliadas por estudos clínicos controlados, não são assumidos como dados, e, normalmente, a avaliação econômica é realizada ao mesmo tempo. Se os resultados forem equivalentes para todas as conseqüências, então se realiza a análise de custos. No entanto, é incomum que existam, pelo menos, dois tipos de intervenção que possuam exatamente as mesmas conseqüências1,8. Outro tipo são os estudos de custo-efetividade propriamente1,2,3,5,7,8,9, cuja característica é ter, pelo menos, uma dimensão importante das conseqüências dos diferentes tipos de ação em que a comparação pode ser feita. A extensão da vida é uma conseqüência importante, assim as diferentes alternativas de ação podem ser medidas pelo “custo por ano de vida ganho”, por exemplo. Em alguns casos, é aceitável a utilização de medidas de resultado intermediárias, ou de processo, como são mais conhecidas, como o “número de casos diagnosticados corretamente”, pois é possível inferir a relação entre esta conseqüência com os 093 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. benefícios ou resultados de impacto, para o paciente1,3,7,8. Podemos dizer que o custo-efetividade procura avaliar se os objetivos foram alcançados de forma eficiente e eficaz. Um projeto pode ser eficiente quando opera com custos mínimos; por outro lado, ele pode não ser eficaz, pois não atinge aqueles grupos selecionados inicialmente. Sendo assim, é preciso medir a eficácia para conhecer o seu impacto no grupo selecionado, e, neste caso, os custos serão expressos em unidades monetárias e a efetividade, pelo número de “’vidas salvas’ ou qualquer outro objetivo relevante” alcançado1,3,7,8. Uma característica importante da análise de custoefetividade é a possibilidade de hierarquizar as diferentes opções de ações para se alcançar os objetivos do projeto, analisando os custos de cada uma para obter uma unidade de produto. Na análise de custo-efetividade, os objetivos do projeto não são avaliados, pois são consideradas questões do campo político, “são os fins procurados pela sociedade e expressos por aqueles que assumem sua representação”1 e, portanto, estão dados. Sendo assim, estabelecidos determinados objetivos para um projeto social, a análise de custo-efetividade busca avaliar as diferentes alternativas possíveis para alcançálos, que devem ser comparáveis entre si, e, nesta medida, é fundamental que as alternativas tenham a mesma população-alvo. Cohen e Franco7 afirmam que as análises de custo-efetividade são vinculadas à eficiência operacional, e, neste caso, são avaliações de processo, e não de impacto, bastando selecionar a alternativa que minimiza os custos, pois os objetivos finais do projeto e a unidade de produto se confundem. Esta discussão traz à tona duas questões importantes: (a) a maioria dos projetos sociais possui múltiplos objetivos e existem fatores externos à eficiência operacional que podem afetar o seu alcance; (b) os objetivos são determinados politicamente, e pressupõe-se que tenham sido bem selecionados. Sobre este tema, Mills. & Gilson8 afirmam que, normalmente, os programas de Atenção Primária em Saúde, possuem objetivos amplos e com efeitos que não po- derão ser medidos por apenas uma unidade de efeito. Para superar este problema podem ser usadas unidades de resultado intermediário ou de processo, como número de crianças imunizadas ou proporção de mulheres grávidas que tiveram acesso a consultas de pré-natal. Essas medidas são de acesso, cobertura e de realização de metas, e isso poderá avaliar a capacidade do programa de saúde, aumentar a provisão dos serviços. Não informarão se este programa é a melhor escolha, mas a melhor maneira de prestar um serviço que foi anteriormente escolhido como adequado8. O terceiro e último tipo de estudo em que os custos são expressos em unidades monetárias e os benéficos em unidades de conseqüência são as análises de custo-utilidade considera a qualidade ou utilidade “por ano de vida ganho” após a intervenção e leva em consideração a morbidade associada à extensão da vida. As alternativas de ação são comparadas em termos de custo por qualidadeajustada por ano de vida, mais conhecida por QALYS1,3,7,8. Por fim, existe outro tipo de estudo de avaliação econômica em que os custos e conseqüências são expressos em unidades monetárias, são os estudos de custo-benefício, que permitem comparar diferentes alternativas que possuam diferentes objetivos, como, por exemplo, programas da área da saúde com programas da área de transportes. No entanto, é difícil atribuir um valor monetário às conseqüências de um programa de saúde; por isso, a utilização deste método fica restrita. Serve aos estudos em que pode ser atribuído, facilmente, um valor monetário às conseqüências, como, por exemplo, o aumento da produtividade ou a volta ao trabalho decorrente da cura de um paciente, ou, ainda, o aumento do período de vida produtiva, e, também, os estudos em que se avalia a poupança para o sistema de saúde decorrente da cura ou melhora nas condições de saúde do paciente1,7,8. A avaliação social de projetos ou atividades em seu sentido mais amplo pretende medir o impacto do projeto sobre o nível de bem-estar socioeconômico do país1. A eficiência é uma relação entre os produtos e seus custos; 094 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto no entanto, os projetos, tanto econômicos como sociais, são extremamente complexos, pois buscam alcançar mais de um objetivo, por meio da execução de inúmeras atividades que consomem diversos tipos de insumos, e todas essas questões devem ser levadas em consideração no momento da avaliação da eficiência de um projeto. A discussão teórica metodológica sobre a avaliação econômica, especialmente na área da saúde, ainda tem muitos caminhos a percorrer. Esperamos, aqui, contribuir para a melhor compreensão do significado e da importância destes estudos. 3. Indicadores de efetividade Para a avaliação da efetividade é necessário definir os indicadores que vão medir o sucesso dos objetivos. Os indicadores devem ser confiáveis, ou seja, diferentes avaliadores devem poder obter os mesmos resultados e devem medir precisamente aquilo que se deseja – preferencialmente, devem medir mudanças específicas que possam ser atribuídas ao projeto, e não a outras variáveis1,10. Alguns indicadores têm sido muito utilizados na área da saúde e formam algumas grandes categorias, tais como: os indicadores de oferta, de acesso e utilização de serviços de saúde, de qualidade da atenção, da situação da saúde e das condições de saúde, e, ainda, os de financiamento. Para cada uma dessas grandes categorias, podem ser utilizados diferentes indicadores11. Neste estudo trabalhamos com três categorias de indicadores: oferta, qualidade e acesso/utilização. 4. O sistema de cálculo dos custos Existem diferentes formas de calcular os custos das atividades10: são os sistemas de custeio total e parcial, por absorção ou tradicional, o variável ou direto ou marginal, por atividade, por taxas, por procedimento, por patologia ou ainda o custo padrão. O sistema de custeio por absorção é considerado um sistema de custeio integral, pois ele apropria todos os custos incorridos para a produção de um bem ou serviço; ou seja, considera os custos diretos, indiretos, fixos e variáveis, sem considerar, no entanto, 095 Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. os custos para os pacientes. A primeira condição para a utilização deste sistema de custeio é a setorização ou divisão da instituição em centros de custos que devem corresponder ao conjunto de atividades necessárias para que ocorra a produção do bem ou serviço que está sendo avaliado. Os centros de custos expressam a despesa e a sua relação com o bem ou serviço que está sendo avaliado; por isso, são classificados como diretos ou produtivos aqueles que possuem uma relação direta com a produção do bem ou serviço, e como indiretos, administrativos ou de apoio aqueles que realizam despesas para a produção do bem e serviço analisado, mas também para a produção de outros bens e serviços. Os custos indiretos devem ser rateados com base no plano de centros de custos da instituição, assim os custos dos centros de custos de apoio e administrativos serão rateados entre todos os centros de custos, utilizando critérios arbitrários e apropriados ao custo final do produto ou serviço. A principal desvantagem deste sistema é a realização dos rateios usando critérios arbitrários, o que pode implicar na avaliação incorreta dos custos finais12,13. Escolhemos esta metodologia, pois sabemos que os custos indiretos não são a parcela mais importante dos custos para a Atenção Básica da saúde em Porto Alegre, o que foi constatado em estudos anteriores10,14. Além disso, existe a facilidade de adaptar o formato de centros de custos à estrutura do orçamento da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, o que simplifica a coleta das informações. 5. Objetivo geral Fazer uma análise de custo-efetividade da Atenção Básica, comparando duas alternativas de provisão de serviços de Atenção Básica – modelo “tradicional” e Programa de Saúde da Família – a partir do estudo de caso de duas unidades de Atenção Básica de saúde em Porto Alegre, no ano de 2002. 6. Aspectos metodológicos Os estudos de custo-efetividade são mais adequados para comparar duas políticas que buscam o mesmo Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto objetivo, analisando os custos das diferentes alternativas; neste caso, o objetivo é a provisão de serviços de Atenção Básica e as alternativas são os dois modelos de Atenção Básica: Programa de Saúde da Família (PSF) e tradicional. Qual deles será o mais custo-efetivo? Qual deveria ser escolhido por ser capaz de atingir o objetivo a um menor custo1,7,10,15? Este estudo de caso pretende responder a essas questões, avaliando duas unidades básicas, uma do PSF e outra do modelo tradicional, em Porto Alegre, no ano de 2002. Os serviços públicos de saúde do município estão divididos em duas áreas principais: a vigilância da saúde e a assistência à saúde, que abriga os serviços de atenção ambulatorial básica, em que estão vinculadas as unidades de saúde e as unidades do Programa de Saúde da Família. A cidade está dividida em distritos de saúde, cada qual com uma gerência responsável pela organização dos serviços na região. As unidades básicas de saúde devem ser a porta de entrada no sistema. Nas unidades, com modelo de atenção que estamos chamando de tradicional, são oferecidos os serviços de uma equipe multidisciplinar composta por médicos (clínico geral, ginecologista e pediatra), enfermeiros, auxiliares de enfermagem e nutricionistas. E, nas unidades de saúde do PSF, a equipe é composta por médico generalista, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários. Além disso, é definida a área de abrangência, e as famílias da região são cadastradas. O tipo de atenção à saúde prestado nas duas formas de organização das unidades básicas são similares10. Para o levantamento dos dados de custos foi utilizada a metodologia de apropriação de custos por absorção10,12,14 adaptada para este estudo. Os dados de despesa com Serviços de Terceiros foram obtidos na execução orçamentária, e, então, foi calculado o rateio, com base no número de funcionários, para cada centro de custos. O gasto com material de consumo foi obtido nos relatórios do Almoxarifado, considerando os itens entregues em cada unidade de saúde, e os dados com despesas de pessoal foram obtidos no setor de recursos humanos, não havendo necessidade de realizar rateios para esses itens. Foram estudados os diferentes indicadores de 096 Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. efetividade das políticas públicas 7,11,15,16 e selecionados aqueles que poderiam melhor demonstrar a efetividade dos dois modelos de atenção. Como indicador de oferta usamos o total de atendimentos (procedimentos e consultas médicas) per capita; como indicador da qualidade da atenção foi utilizado o total de atendimentos pré-natal por gestante e, enquanto indicador de acesso/utilização dos serviços, usamos a cobertura vacinal1,3,7,8. O período definido para este estudo foi do ano de 2002 e a escolha das duas unidades básicas foi feita pelos pesquisadores em conjunto com a equipe da Secretaria Municipal de Saúde, usando como critério a semelhança nas suas características. 7. Resultados A população das duas unidades eram bastante parecida em termos numéricos (7.062 e 7.093 pessoas), assim como as características epidemiológicas e socioeconômicas. Além disso, as unidades selecionadas prestavam o mesmo tipo de assistência à população: atenção básica. No entanto, em relação à composição de suas equipes, elas diferiam um pouco, uma delas, a unidade do PSF, trabalhava com dois médicos, dois enfermeiros, quatro auxiliares de enfermagem, oito agentes comunitários e um estagiário; a outra, a unidade tradicional, possuia na sua equipe: cinco médicos, um enfermeiro, seis técnicos de enfermagem. Observamos que, para o PSF, o custo total foi de 733.170,43 reais e, para a unidade tradicional, foi de 852.046,06 reais. O custo per capita foi de 103,82 reais e 120,12 reais, respectivamente (Tabela 1). Podemos observar que o PSF apresentava os custos menores nas categorias analisadas. Os custos diretos eram menores: essa não é uma surpresa, pois a maior parcela dos custos diretos é representada pelos custos de pessoal, e, apesar de no PSF os salários serem maiores, a unidade tradicional possui um número de trabalhadores muito maior. Mas será que esses trabalhadores conseguem ter um trabalho de melhor qualidade e em maior quantidade? Para avaliar a efetividade dos modelos de atenção utilizamos indicadores de oferta, de qualidade e de acesso Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto Custo-efetividade: comparação entre o modelo “tradicional” e o Programa de Saúde da Família. ou utilização. Na tabela 2 apresentamos os dados para a análise do custo-efetividade dos dois modelos de atenção básica. Os dados desta tabela nos informam que o indicador de oferta, usando o “total de atendimentos (procedimentos e indicador é maior para a unidade tradicional para todas as vacinas, exceto a tetravalente. Devemos ainda considerar que o custo total per capita do PSF foi de 103,82 reais ao ano e, para a unidade tradicional, foi de 120, 12 reais ao ano. Tabela 1: Custos das unidades básicas de saúde: USF e UBS - Porto Alegre 2002: Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, 2002. Tabela 2: Comparação de indicadores de efetividade e do custo per capta, USF e UBS - Porto Alegre, 2002: Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, 2002. consultas médicas) per capita” é maior para o PSF, ou seja, foram feitos 3,75 atendimentos per capita no ano, enquanto que, para a unidade tradicional, foram realizados 2,3 atendimentos per capita no ano. Com relação ao indicador de qualidade, usando o “atendimento pré-natal por gestante”, ocorre o mesmo, o PSF registra um número maior que a unidade tradicional. São 33,5 atendimentos por gestantes contra 20,5. Por fim, analisamos o indicador de acesso/utilização, usando a “cobertura vacinal”. Neste caso, o 097 Sendo assim, podemos afirmar com base neste estudo que o modelo de atenção do PSF foi mais custoefetivo, ou seja, a um custo menor, realizou um número maior de atividades, e com maior qualidade destes atendimentos, tanto quando observamos do ponto de vista do indicador de oferta, quanto do indicador de qualidade. Apenas em relação ao acesso e utilização os dois modelos têm comportamento semelhante. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Janice Dornelles de Castro, Vanessa da Rocha, Marcia Marinho e Silvia Pinto 8. Conclusões Os resultados parecem indicar que o modelo de atenção do Programa da Saúde da Família está garantindo a prestação de serviços com menor custo e maior efetividade. No entanto, esses são resultados de uma pesquisa piloto, que avaliou apenas duas unidades, durante um ano, e utilizou três indicadores de efetividade. Sabemos que, dentre os custos da atenção básica em Porto Alegre10,14, os custos com Pessoal representam os maiores gastos. Também sabemos que os salários dos profissionais do PSF são maiores que dos profissionais da unidade tradicional – nesse sentido, era de se esperar que os custos do PSF fossem mais elevados. No entanto, esse fator é compensado pelo maior número de profissionais na unidade tradicional, que, mesmo assim, realizaram um número menor de atendimentos per capita e também um número menor de atendimentos pré-natal por gestante, apenas em relação à cobertura vacinal o comportamento foi similar para os dois modelos estudados. 9. Referências 1. Drumond MF, Stoddart GL. Principles of economic evaluation of health programmes. Wid hith statist quart. 1985;38:355-367. 2. Green A, Barker C. Priority setting and economic appraisal: whose priorities - the community or the economist? Soc Sci Med. 1988;26(9):919-929. 3. Mills A. Economic evaluation of health programmes: application of the principles in developing countries. Wid hith statist quart. 1985;38:368-381. 4. Mills A. Survey and examples of economic evaluation of health programmes in developing countries. Wid. hith. statist.quart. 1985;38:402-430. 5. Torrance GW. Measurement of health state utilities for economic appraisal. 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Endereço para correspondência: Rua Furriel Luis Antonio Vargas 106/404 Porto Alegre – RS CEP: 90.470-130 Endereço eletrônico: [email protected] Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Non-homophobic inclusion: a dialogue between medicine students and transvestites. Valéria Ferreira Romano* Resumo Trabalhar habilidades de comunicação com estudantes de Medicina tem sido um desafio constante e, mais ainda, tem sido lidar com questões relacionadas ao preconceito, à homofobia, à discriminação em serviços de saúde. Desde 2001, o Programa Saúde da Família Lapa, integrante do currículo do curso de Medicina da UNESA, tem enfrentado esse desafio, promovendo o encontro entre os estudantes e os travestis, a partir do foco na visita domiciliar, atividades de educação em saúde e atendimento ambulatorial. O objetivo é refletir sobre as habilidades de comunicação de estudantes de Medicina, a partir da inclusão dos travestis em serviços de Atenção Básica freqüentados por estes estudantes. Como metodologia, foram adotados: registro de observação direta; entrevistas com perguntas abertas com estudantes e travestis de uma área adscrita. Como resultado, tivemos melhor desempenho na comunicação dos estudantes diante de situações relacionadas à homofobia e ao acesso dos travestis aos serviços de saúde, garantindo integralidade, eqüidade e universalidade ao SUS de todos nós. Tanto os estudantes quanto os travestis desejam uma aproximação que estimule um encontro humanizado e inclusivo, colocando em questão velhos preconceitos valorizando formas de atendimento na sintonia do acolhimento. Abstract Introduction: Teaching communication skills to medical students is a constant challenge, mainly when it comes to issues such as prejudice, homophobia and discrimination in the health services. Since 2001, the Family Health Program Lapa, part of the curriculum of the medical course of UNESA, has faced this challenge by promoting a dialogue between medical students and transvestites in the course household visits, health education activities and outpatient care. Objective: Reflect about the communication skills of medical students providing basic health care services to transvestites. Methodology: Direct observation; interviews using open questions with students and transvestites of an area covered by the program. Results: Better communication of students in situations related to homophobia and to the access of transvestites to the health services, thus contributing to the integrality, equity and universality of the Unified Health System. Conclusion: Both students and transvestites want to reach a humanized and inclusive relationship, based on refuting old prejudice and valuing dialogue and healthcare delivery in a supportive environment. Palavras-chave: Comunicação; Eqüidade em Saúde; Saúde da Família; Preconceito. Key Words: Communication; Equity in Health; Family Health; Prejudice. *Doutora em Saúde Coletiva, Docente do Mestrado Profissional em Saúde da Família, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil. 099 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano 1. Introdução O curso de Medicina da UNESA-RJ tem como eixo curricular a Saúde da Família. Na prática, isso imprime um diálogo constante com a comunidade, especificamente quando os alunos da graduação de Medicina inauguram do nono ao décimo primeiro períodos um contato semanal com as famílias adscritas ao Programa Saúde da Família Lapa (PSF-Lapa), sob supervisão docente. O PSF-Lapa é, portanto, parte integrante da estrutura curricular do curso de Medicina da UNESA, tendo iniciado suas atividades em 2001, a partir de um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e a Universidade. Situado na região central do município do Rio de Janeiro, na Lapa, o PSF-Lapa pertence à Coordenação de Área Programática 1.0 e tem como referência imediata, em sua proximidade, um grande hospital de emergência, dois PAMs, uma Maternidade, além de dois hospitais especializados. A rede social no entorno é composta por igrejas católicas e evangélicas, algumas ONGs, duas escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio, além de poucas creches. O lazer é basicamente vivenciado por meio dos inúmeros bares e casas de shows, onde se ouve de tudo: samba, forró, reagge, música eletrônica, MPB, rock, hip hop, funk, dentre outros estilos. A comunidade adscrita é majoritariamente de adultos jovens (sem filhos) e idosos, possuindo, em média, Ensino Fundamental incompleto, com renda familiar entre dois a cinco salários mínimos, sendo o trabalho informal prevalente – são empregadas domésticas, cozinheiras, vendedores ambulantes, camelôs, caixas de supermercado, artesãos, trabalhadores da construção civil, manicuras, cabeleireiras, vigias, entregadores de panfletos, “biscateiros” etc. Muitos moram em prédios com 20 apartamentos por andar, perfazendo um espaço de três a quatro cômodos cada. Alguns vivem em prédios ocupados semi-construídos, onde a população vive com ligação ilegal de luz, sem segurança interna, sem elevadores (para subir até mesmo ao 12º andar). Existem inúmeros casarões centenários na região, 100 chamados também de cortiços, originalmente construídos pelos patrões para alojar seus empregados. Dentro desses cortiços (a maioria em estado precário de conservação), moram várias famílias dividindo o mesmo espaço entre si. Lá, os banheiros são coletivos, assim como as cozinhas, as salas e varais. Os moradores são expostos a corte de luz, ameaça de despejo, exploração de pessoas que se autodenominam donas do local – cobrando taxas, muitas vezes, irregulares –, além de conviverem com baratas, ratos, sujeira e pobreza. Os travestis do território delimitado moram principalmente nesses cortiços. As atividades do PSF-Lapa englobam: atendimento ambulatorial, atividades de educação em saúde e visitas domiciliares. Isso não difere das esperadas pelo modelo de atenção da integralidade; no entanto, algumas adaptações mereceram destaque no trabalho específico com os travestis. 2. Com os travestis é diferente? Optamos por utilizar visitas domiciliares semanais, já que os travestis pouco freqüentavam, espontaneamente, o ambulatório do PSF-Lapa, apesar de possuírem algumas doenças já instaladas e muitos problemas a serem enfrentados. Começamos a manter uma sistemática de visitas domiciliares: chegávamos sempre no final da tarde, quando eles estavam começando a acordar, já que trabalhavam a noite inteira na prostituição. Levávamos camisinha, gel lubrificante, aparelho de pressão, papéis de encaminhamento, receituário, alguns remédios e, mais do que tudo: disposição em escutar, paciência, bom humor e tempo. Tempo para ouvir suas histórias, desarmar suas defesas, compartilhar seu sofrimento, nada diferente do de qualquer ser humano. As agentes comunitárias de saúde, fundamentais na interlocução entre a equipe e a comunidade, iam aos poucos “traduzindo” as inúmeras perplexidades e os muitos abismos existentes entre o mundo médico oriundo da Academia, repleto de teorias, e a vida que eles levavam na Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano lógica das ruas. Inúmeras vezes, repeti para os alunos: “Chamemnas pelo artigo feminino”, “Perguntem como desejam ser chamadas”, “Escrevam no prontuário o nome do registro de nascimento, mas coloquem entre parênteses o nome feminino”. Aos poucos, fomos conquistando um espaço, fazendo diferença. Conseguimos resolver muitas situações pendentes, realizamos vários diagnósticos de HIV, marcação de consultas para especialistas, para fisioterapia, para odontologia, para fonoaudiologia. Tratamos diversas patologias: dermatológicas, AIDS, DSTs, hepatites, toxoplasmose, pneumonia, tuberculose, fissuras anais, ansiedade, problemas psiquiátricos. Assim, como no território do PSFLapa residem cerca de 50 travestis, podemos afirmar que todos são acompanhados pelos alunos e pela equipe. 3. E os alunos nisto? Os estudantes de Medicina, principalmente do gênero masculino, de início, mantinham uma postura reativa, e não queriam atender os travestis. Percebendo que esta comunicação era inevitável e que não poderia estar pautada por preconceito, intolerância e exclusão, decidimos problematizar com eles a existência de uma questão a ser resolvida: Como lidar com uma população adscrita que tinha suas necessidades de saúde definidas? Como negar atendimento diante da Constituição que preconiza a saúde como direito de todos e dever do Estado? Como seria possível tornar-se um médico virando o rosto para a universalidade, a integralidade e a equidade? Dar um passo a trás do SUS? Fechar em um discurso intolerante? Manter a exclusão social dos travestis? Os alunos são, em sua maioria, de classe média, pagantes de uma Universidade privada e criados em um ambiente protegido. Muitos sequer conheciam o centro da cidade, mesmo tendo sido nascidos e criados no Rio de Janeiro. Era natural o estranhamento de uma realidade social tão diversa da deles. Mas estavam ali se preparando para se tornarem jovens médicos; e eu, enquanto educadora, procurava mobilizar neles o que possuíam de mais 101 instigante: a curiosidade, o despojamento, o desejo de ver o mundo com os próprios olhos. 4. A Biomedicina e a formação médica Seria desejável que, de fato, todos os profissionais da saúde, independente de seu local de trabalho, trabalhassem na prevalência de um “compromisso e a preocupação de se fazer a melhor escuta possível das necessidades de saúde trazidas por aquela pessoa que busca o serviço” (p.116)1. Mas esta, infelizmente não é uma realidade. O que observamos são inúmeros relatos de dissabores e desencontros envolvendo os pacientes que, de uma maneira geral, procuram um hospital público ou um posto de saúde. Não que isso não ocorra no PSF, mas como aí a lógica do trabalho envolve necessariamente um vínculo efetivo entre o profissional e o usuário, esta possibilidade torna-se ainda mais indesejável. O PSF busca como saída, na oferta do vínculo entre os profissionais e os usuários, construir de fato uma relação transformadora entre ambos. Mas, se os médicos do posto, do PSF, ou do hospital, tiveram uma formação com base na Biomedicina ou Medicina Ocidental Contemporânea na concepção de Luz2, podemos refletir que, na perspectiva da construção de mudanças na prática médica, tanto o modelo assistencial, quanto a educação médica, necessitam ser urgentemente revistas. Indo um pouco além, a Biomedicina, entranhada na formação médica ocidental, promove a composição de um profissional, dentro de uma cultura médica, que, de maneira geral, desvaloriza o trabalho na Atenção Básica. Assim, a Biomedicina caracteriza-se por: - pouca consideração da relação médico-paciente como elemento fundamental da terapêutica; - busca de meios terapêuticos complexos com uso de tecnologia cara, - pouco investimento na autonomia do paciente; - afirmação de uma medicina que tenha como categoria central de seu paradigma a categoria de doença, e não de Saúde2. A prática do Médico de Família exige, portanto, a incorporação de valores dissonantes aos adotados pela Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano Biomedicina, provocando uma contradição: como um médico formado na lógica da Biomedicina pode conciliar, negociar internamente com uma prática (Saúde da Família) que questiona seus valores de referência? E mais, como dar novo significado à lógica de atuação deste profissional e torná-lo convicto de outros valores? A Biomedicina vincula Biologia e Medicina, legitimando “o conhecimento produzido por disciplinas científicas do campo da Biologia”3 e estruturando uma prática médica que, na tentativa de ser “científica”, distancia-se do ser humano. Muitos médicos e educadores procuram inovar e transformar saberes e práticas na direção do envolvimento do ser humano como totalidade4. Mas também a sociedade provoca novas atitudes nas instituições e, hoje, há um movimento de releitura da assistência médica que inclui a Saúde da Família na busca de uma Medicina que se aproxima de uma mudança de paradigma como a concebe Luz2. Assim, vários Cursos de Medicina do país introduziram a Saúde da Família na Graduação5 e já contam com esta experiência, ainda que pontual e em construção, a exemplo da Universidade Estadual de Londrina, Faculdade de Medicina de Marília, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), dentre outras. Se considerarmos a pós-graduação em prospecção de crescimento para além das 37 instituições que mantém uma Residência em Medicina de Família e Comunidade e a condição de especialidade reconhecida pela AMB tendo o título de especialização como parâmetro de excelência, inferimos que, nos próximos anos, médicos mais bem preparados e com outras possibilidades na atenção ao usuário estarão influenciando uma nova geração de médicos. No entanto, teríamos um processo com resultados concretos para a mudança do paradigma médico apenas para médio e longo prazo. Diante de um mercado de trabalho na Saúde da Família com muitas ofertas por todo o país, principalmente para o médico, e, em geral, sem exigência de qualquer qualificação prévia em Saúde da Família, o que pensar da 102 qualidade destes muitos médicos que estão e estarão trabalhando no PSF sem um preparo devido? Por isso a importância de refletir sobre a qualidade dos médicos de família como resposta à fundamental reestruturação do modelo de atenção à saúde, frente à expansão do PSF, em uma ótica de discussões propositivas na implementação de ações específicas frente a tantas mudanças estruturais necessárias6. Mudanças estruturais são implementadas por “pessoas, ou sujeitos sociais, atuando nas relações que estabelecem entre si a partir do impacto que atribuem na abertura de caminho para a produção de fatos e processos” (p.13)7. Assim são as pessoas que, responsáveis por mudanças pretendidas, determinam, por meio de atitudes e ações, a intencionalidade de suas concepções e crenças diante de outras pessoas. São elas, portanto, que devem ser transformadas se a pretensão é de mudanças e inovações. Posto que grande parte dos médicos que trabalham na Saúde da Família é oriunda das Escolas Públicas do país8, seja em nível de graduação ou de pós-graduação, há de se considerar as prioridades da formação médica em geral, nestas e em outras escolas, na pretensão de uma certificação futura, caracterizando o compromisso do Governo Federal junto às Instituições de ensino médico. Mas a formação médica e as políticas públicas não se entrecruzam, muito embora estratégias para minorar este hiato tenham sido implementadas, a exemplo da instituição dos Pólos de Educação Permanente em Saúde que endereçou linhas de apoio à Saúde da Família e aos profissionais do SUS, tanto em instâncias educacionais quanto de serviços. 5. Alguma metodologia A opção metodológica deste trabalho envolveu uma pesquisa qualitativa, já que o objetivo da proposta era o de descrever o observado, o discutido, o percebido. Um grau de identidade entre o sujeito e o objeto da investigação justifica antes uma situação de conforto e intimidade com o tema do que uma transgressão metodológica insuperável. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano Sendo docente, observando e entrevistando os alunos e os travestis que pertenciam ao meu círculo de convivência, freqüentemente me via surpreendida com as respostas obtidas no sentido de sua aparente independência e descolamento de uma possível influência nas mesmas, a partir do simples fato de eu estar presente. Na verdade, pesquisei com a vantagem de ser ao mesmo tempo interlocutora e expectadora do processo que se construía. Desta maneira, o registro da observação direta e as entrevistas com questões abertas realizadas com os estudantes de Medicina e com os travestis justificaram-se na medida em que puderam sustentar e legitimar todo o trabalho em ação. Assim, Thiollent9 destaca que o que ocorre em relação ao pesquisador é uma “aparente identificação com os valores e os comportamentos que são necessários para a sua aceitação pelo grupo considerado” (p. 15)9. A Sociologia Compreensiva como a concebe Max Weber foi nossa opção como referencial analítico, já que se contrapõe aos princípios do positivismo, que supõe do pesquisador uma neutralidade, objetividade, uma distinção entre o valor e o fato, entendendo a realidade a partir apenas daquilo que os sentidos podem perceber. Positivismo que busca estabelecer um mesmo fundamento lógico e metodológico entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais10. Weber valoriza o significado da ação social, o significado das relações entre o indivíduo e a sociedade, entendendo a sociedade como “fruto de uma inter-relação de atores sociais, onde as ações de uns são reciprocamente orientadas em direção às ações dos outros” (p.51)10. Entende, assim, que as realidades sociais só podem ser apreendidas enquanto significados percebidos na interação social, não separando, em essência, as práticas, as linguagens, as coisas e os acontecimentos. “Não existe uma análise da cultura absolutamente objetiva dos fenômenos sociais, independente dos pontos de vista especiais e parciais, segundo os quais, de forma explícita ou tática, consciente ou subconsciente, aqueles são selecionados e organizados para propósitos expositivos. Todo conhecimento da realidade cultural, como pode ser 103 visto, é sempre conhecimento a partir de pontos de vista específicos” (p.52)10. Como essa pesquisa pretendeu ouvir os pontos de vista específicos, enfoca questões que envolvem valores e o conhecimento tácito, entendendo que a realidade humana está imbricada e vinculada à realidade do concreto cotidiano11. Desta forma, dentro das Ciências Sociais optei pela Fenomenologia, considerada a Sociologia da vida Cotidiana por estudiosos do assunto, para embasar a construção do trabalho de campo. A vida cotidiana pode ser entendida como estando no centro do acontecer histórico, como a verdadeira essência da substância social. E o indivíduo, como “um ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração” (p.21)12. A vida cotidiana é a vida do ser humano inteiro, que dela participa com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. O ser humano já nasce inserido em sua cotidianidade e torna-se maduro quando é capaz de viver por si mesmo esse dia-a-dia. Essa maturidade é assimilada a partir da manipulação das coisas envolvendo a mediação social. Assim, o ser humano estará maduro quando, a partir do que aprendeu em grupo (família, escola, comunidade), puder manter-se “autonomamente no mundo das integrações maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo humano, comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além disso, de mover por sua vez esse mesmo ambiente” (p. 19)12. Pesquisamos, assim, a vida cotidiana dos travestis e dos estudantes de Medicina, considerando-os maduros no conceito explicitado acima. 6. Resultados A partir do crescimento dos encontros com os travestis, sua estabilidade e constância, foram surgindo os primeiros resultados. Os alunos de medicina aos poucos foram concordando com o trabalho que se impunha, com Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano as reivindicações legítimas dos travestis por um atendimento digno, respeitoso e igualitário. Dessa maneira, os estudantes, surpreendentemente, começaram a mudar de postura: pediam-me para atender os travestis, perguntavam sobre suas vidas, pactuavam resolução de referências e contra-referências na preocupação de qualificar a atenção oferecida. Muitos (rapazes e moças) escolhiam minha supervisão docente porque desejavam trabalhar diretamente com os travestis. Começamos a discutir, a debater temas inusitados para a Medicina: a homofobia, a violência contra os travestis, o uso abusivo de drogas ilícitas, a utilização muitas vezes inadequada de silicone líquido, as cirurgias para colocação de silicone nas mamas, de diminuição do diâmetro do nariz, o absenteísmo nas consultas de acompanhamento da soropositividade, a freqüente não-utilização de camisinha, apesar da farta oferta. Assim, fomos aprimorando as competências de comunicação no desafio da educação médica, sinalizando para a importância essencial da relação médico-paciente com todas as pessoas, sem exceção. Hoje, essa mudança de postura é a regra, exemplificada aqui por meio do relato de um egresso de nosso curso de Medicina: “Pois é, agora que estou formado é que estou vendo o quanto aprendi a lidar com os travestis e homossexuais. Meus colegas negam atendimento, ou querem só chamar os travestis pelo nome masculino, só de implicância. Eu não, vou lá e pergunto como querem ser chamados, batalho para conseguir internação quando precisam, mostro aos colegas médicos que respeito é tudo!”. 7. Conclusão Tanto os estudantes quanto os travestis realizaram um movimento de aproximação, pautado pelo esgotamento do modelo de atenção centrado na doença e na biomedicina e pela necessidade de negociação com a sociedade de maneira menos marginal e excludente. Vários relatos dos travestis apontaram para uma indignação ao fato de serem “aceitos à noite e mal pode- 104 rem sair de casa durante o dia”, já que ficam expostos a chacotas e olhares: “[...] mesmo que esteja vestida assim, bem discreta, eles olham, eles notam que a gente é diferente, e eles só gostam disso quando chega a noite”. Os alunos de medicina dizem “Hoje eu respeito muito mais um travesti. Cada um sabe de si, se eles querem ser assim, qual é o problema?”. Em um mundo no qual a informação circula com rapidez, onde os modelos de comportamento e padrões culturais são menos monocórdios e mais fundamentados em experiências, cria-se um clima contrário à intolerância e à exclusão. As pessoas, se oportunamente estimuladas, querem dialogar, trocar saberes e superar barreiras sociais impostas. O compromisso do docente com sua prática é, por isso, de suma importância. O docente serve de exemplo para o aluno, o qual nele se inspira na formatação de seu ideal de profissão. Um médico que sabe lidar com a competência de comunicação de maneira democrática, inclusiva, respeitosa das diferenças, trabalha a favor da construção de um SUS melhor e está maduro para influenciar positivamente toda uma geração de futuros médicos que nele se espelham. Lidar com travestis é desafiar temas de difícil manejo para toda a área da saúde, mas, nem por isso, menos preciosos diante da realidade que se impõe: abuso de drogas lícitas e ilícitas, cirurgias estéticas de resolução ruim, violências, solidão, abandono, desconfiança, baixa auto-estima, afastamento do contato familiar, falta de acesso aos serviços de saúde, falta de acesso à medicação oferecida pelo SUS, discriminação, preconceito, exclusão social, riqueza a partir da exploração do trabalho alheio. Mas também: bom humor, alegria, busca da beleza, franqueza e solidariedade. Não esgotando as perguntas, nem se satisfazendo com as respostas, esta pesquisa se movimenta: “Como lidar com tantas variáveis junto ao estudante de medicina?; Como imprimir neste aluno uma visão não-homofóbica na relação com o outro?; Como lidar com os preconceitos já estabelecidos e solidificados?; Um futuro profissional Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Inclusão não-homofóbica: um diálogo entre estudantes de medicina e travestis. Valéria Ferreira Romano que aprende a respeitar a dignidade do outro a partir da diferença, e não da semelhança, estará melhor preparado para as surpresas da profissão?”. A existência humana se impõe e estabelece seus sinais: somos todos iguais, sendo diferentes... A esperança é que, mais e mais, os profissionais da saúde e a população admirem encontrarem-se na inclusão, colocando em questão velhos preconceitos para que possamos, enfim, valorizar maneiras de atendimento na sintonia do acolhimento, no compromisso com o cuidado e no respeito à vida. 9.Thiollent M. Metodologia da Pesquisa-ação. 10 ed. São Paulo: Cortez. Autores Associados, 2000. Thiolent M. Metodologia da Pesquisa-ação. 10 ed. São Paulo: Cortez. Autores Associados; 2000. 10.Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8 ed. São Paulo: HUCITEC; 2004. 11.Tedesco JC. Paradigmas do cotidiano: introdução à constituição de um campo de análise social. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; 1999. 12.Heller A. O Cotidiano e a História. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra; 2000. 8. Referências 1.Cecílio LCO. As Necessidades de Saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: Mattos RA, Pinheiro R. org. Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO; 2001. 2.Luz MT. Cultura Contemporânea e Medicinas Alternativas: Novos Paradigmas em Saúde no Fim do Século XX. Physis: revista de saúde coletiva 1997; (7): 1. 3.Camargo KRJ. A Biomedicina. Physis: revista de saúde coletiva 1997; 7(1). 4.Perestrelo D. A Medicina da Pessoa. 3 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: ATHENEU; 1982. 5.Feuerwerker L. Além do Discurso de Mudança na Educação Médica Processos e Resultados. São Paulo; Londrina; Rio de Janeiro: HUCITEC; Rede UNIDA; Associação Brasileira de Educação Médica; 2002. 6.Romano VF. Certificação por Competência para o Médico de Família: uma proposta em construção. [Tese] Rio de Janeiro, UERJ. Instituto de Medicina Social, 2006. 7.Almeida MJ. Educação Médica e Saúde – possibilidades de mudança. Londrina; Rio de Janeiro: UEL, Associação Brasileira de Educação Médica; 1999. 8.Machado MH; SOUZA HM.; SOUSA MF. Perfil dos Médicos e Enfermeiros do Programa Saúde da Família no Brasil – relatório final. Brasília (DF): FIOCRUZ, Ministério da Saúde: Departamento Atenção Básica / Secretaria de Políticas de Saúde; 2000. Endereço para correspondência: Rua Assis Brasil 70/1002 – Copacabana Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22230-010 105 Endereço eletrônico: [email protected] Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. Use of the health care net work of Juiz de Fora: the opinion of the user. Celia Regina Machado Saldanha* Resumo As mudanças no perfil demográfico e epidemiológico ocorridas nas últimas décadas adquirem características particulares no Brasil e impõem a redefinição das políticas públicas, em especial da saúde, o que culmina com a implantação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) em 1994. Espera-se com essa estratégia uma mudança de paradigma, em que se faça valer os princípios do SUS de universalidade, eqüidade e integralidade por meio do cuidado continuado, da prevenção de agravos e da promoção da saúde, principalmente nas populações mais vulneráveis. Para funcionar dessa forma, porém, é necessária a existência de uma rede de serviços que garanta a assistência nos casos onde a ESF não consiga resolver, estabelecendo-se um fluxo de referência e contra-referência. Usando como método a entrevista não-estruturada aplicada em quatro unidades básicas de saúde funcionando com a ESF em regiões distintas de Juiz de Fora, nós nos propomos a discutir, a partir das percepções dos usuários inscritos no PSF, o funcionamento desta rede de serviços, em uma tentativa de encontrar alguns pontos de gargalo e propor estratégias que possibilitem melhorias no acesso do usuário. Abstract The demographic and epidemiological changes occurred over the last decades assume particular characteristics in Brazil and demand for a redefinition of public policies, in special as refers to the health policies. In 1994, this process culminates in the implantation of the Family Health Strategy (FHS) as a new paradigm following the basic principles of the Unified Health System, integrality, equity and universality, by means of continued care, disease prevention and health promotion principally for the more vulnerable populations. For meeting this demand, the strategy depends on a service network capable of delivering care in cases the FHS cannot resolve, establishing a reference and counter-reference system. Data were collected by means of semi-structured interviews in four basic healthcare units of the Family Health Program. Based on the view of the users enrolled in the Family Health Program we discuss the performance of this service network in an attempt to identify some bottlenecks and suggest strategies for granting better access to the users. Palavras-chave: Saúde da família; Assistência à Saúde; Atenção Integral à Saúde. Key Words: Family Health; Delivery of Health Care; Comprehensive Health Care. *Mestre em Saúde da Família, Professora de Saúde Coletiva e Semiologia, Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. 106 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. 1. Introdução Mesmo os analistas mais pessimistas, ao analisar o desempenho do SUS (Sistema Único de Saúde), nas últimas décadas, admitem que houve avanços. Pudemos acompanhar as melhorias em relação à estrutura física, à incorporação de tecnologias aos diagnósticos e ao aumento importante dos serviços de Atenção Primária, na última década, com a implantação do Programa de Saúde de Família (PSF), mas há muito ainda por fazer pela saúde local. O PSF permitiu, como estratégia estruturante do SUS, a oferta de serviços de saúde para segmentos da população que até bem pouco tempo não tinham acesso a quase nada, porém, ao se permitir a entrada no nível primário, obrigatoriamente, surge a demanda para que outros serviços estejam disponíveis, pois, uma vez feito o diagnóstico, precisamos continuar oferecendo cuidados para que a assistência se dê de forma completa. Essa demanda cria a imagem da rede de serviços, introduzindo a idéia da universalidade com equidade e integralidade1. Autores renomados, como Starfield2 e Mattos3, reforçam a idéia de que, sem a integralidade das ações, a Atenção Primária não será resolutiva, e, embora bastante discutida e regulamentada por organismos mundiais4 em leis e portarias federais5,6 – e nas propostas estaduais7 –, alguns desafios ainda precisam ser vencidos, principalmente nos municípios, para alcançar as metas estabelecidas de saúde para todos. Uma dessas portarias federais, o Plano Operacional de 19946, norteou toda a implantação do PSF em Juiz de Fora, que, neste período, cresceu substancialmente e oferece hoje uma cobertura de mais de 50% da população de cerca de 500 mil habitantes, porém, algumas dificuldades ainda são percebidas na tentativa de reorientação do modelo assistencial local, para que se constitua a rede de serviços7. O objetivo desse estudo é analisar o quanto essas mudanças foram percebidas pelos usuários de unidades básicas com PSF, suas dificuldades na busca por assistência à saúde e como eles analisam a organização desses serviços. 107 Um dos requisitos para essa organização é a comunicação entre os setores, o que se constituiria uma rede de serviços, estabelecendo a integralidade. Segundo Starfield2: A integralidade exige que a atenção primária reconheça, adequadamente, a variedade completa de necessidades relacionadas à saúde do paciente e disponibilize os recursos para abordá-las. A decisão sobre quem deverá prestar cada tipo de serviço, se a atenção primária ou outro nível de atenção, variam de lugar para lugar, de época para época, dependendo da natureza dos problemas de saúde de diferentes populações (p. 314). Para contextualizar a importância da rede nos serviços de saúde, usamos como pano de fundo a transição demográfica, que é explicada pelo aumento da longevidade da população, e a transição epidemiológica, que é a diminuição das doenças infecto-contagiosas e aumento das crônico-degenerativas, embora esses processos tenham características especiais em países em desenvolvimento, como o Brasil – onde o aumento das doenças crônico-degenetativas ainda convive com muitas infecciosas, tendo inclusive o recrudescimento de algumas doenças que já eram consideradas sob controle, como a dengue e a febre amarela. Apesar das doenças, estamos vivendo um momento de crescimento populacional que gera diferentes necessidades sociais e de saúde, o que impõe também “valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva”, além de “promoção e estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e avaliação das ações”6. Tentar enxergar essa realidade sob o ponto de vista do usuário demonstra a necessidade de adequação do modelo assistencial em uma característica individualizada e, ao mesmo tempo, tão reprodutível em nosso país. 2. Material e método Trata-se de um estudo de caso, de caráter qualitativo, realizado em quatro unidades de saúde de Juiz de Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. Fora, em áreas geográficas distintas, norte, sul, leste e centro, todas funcionando com o Programa de Saúde da Família. Foram entrevistados 32 pacientes, cadastrados no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), selecionados por sorteio aleatório, e que utilizavam o serviço regularmente. As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas nas unidades de saúde, utilizando-se como instrumento de coleta um roteiro de entrevista não-estruturado, permitindo que se manifestassem livremente a partir de perguntas simples usadas como provocação, não havendo o “cerceamento da fala dos entrevistados”8, e, como critério de suficiência da amostra, usou-se o da saturação, ou seja, o momento em que as respostas passam a se repetir8. Todos os entrevistados aceitaram e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Para análise dos conteúdos das entrevistas, usamos a leitura compreensiva exaustiva, procurando compreender, “além dos significados imediatos”, para que pudéssemos ter a noção do conjunto com a compreensão das particularidades de cada fala, identificação dos temas mais citados, separação em categorias que permitissem agregar os valores referidos e a elaboração de síntese com articulação dos objetivos do estudo com a base teórica consultada9. Consultamos também os documentos oficiais do Sistema Único de Saúde (SUS), nos níveis federal e municipal, que se relacionavam à temática em questão para delinear o contexto do município e de suas políticas de saúde. Antes de iniciarmos a pesquisa, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Estácio de Sá em cumprimento da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O foco de nosso estudo se deu nos aspectos subjetivos, considerando “a não-neutralidade do investigador10; a não-representatividade estatística das amostras selecionadas e a conseqüente impossibilidade de generalizar os resultados e replicar os estudos”, mas, antes de tudo, acreditando na “inexistência de verdades universais e eternas”9. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas. 108 3. Resultados O PSF legal Paim11 define como SUS legal aquele desenhado pela Constituição Federal, e utilizamos também essa denominação para demonstrar como o PSF foi idealizado nas leis e portarias do SUS. O Plano Operacional para 1994 do Ministério da Saúde identifica o Programa de Saúde da Família como capaz de “restaurar a dignidade dos profissionais de saúde, confiando que a partir disso se estabeleça o compromisso ético e que se forme um vínculo de confiança com a comunidade”5, acreditando ser uma estratégia capaz de “tornar realidade os princípios básicos do SUS” . Para atingir esses objetivos determina que a unidade básica deva ser a “base de acesso ao sistema de saúde”5, constituindo o que chama “porta de entrada”, sendo “essencial que se garanta o sistema de referência e contra-referência”, enfatiza a importância da preparação de profissionais “capazes no exercício da cidadania, além de tecnicamente competentes”5. Este plano norteou todo o processo de implantação do PSF de Juiz de Fora. O Plano Municipal de Saúde (PMS) de 1997 usou como pano de fundo o diagnóstico realizado pelo Plano Estratégico de Juiz de Fora e teve dentre os seus focos a necessidade de ampliação da rede assistencial do SUS a partir da identificação de vazios assistenciais na Atenção Básica e da necessidade de suporte assistencial para o nível especializado além da adequação quali-quantitativa dos recursos humanos em saúde e da programação em todos os níveis do sistema priorizando a referência e contra-referência7. Na análise do modelo assistencial, constatou-se que o acesso aos serviços era dificultado, o sistema de referência era precário, com um “número excessivo de encaminhamentos” para os institutos, e que a contra-referência não existia, principalmente pela ausência de prontuários nas clínicas especializadas. Também foi detectado e considerado um problema o fato dos usuários poderem marcar consultas especializadas sem o encaminhamento da unidade básica de saúde7, o que descaracterizava a UBS como “porta de entrada” do Sistema de Saúde. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. Uma das propostas do PMS-97 foi a organização de um sistema de referência e contra-referência suportado pelo prontuário de cada usuário. Considerava-se também que as equipes do PSF teriam [...] supervisão contínua e permanente, sendo treinadas para utilização correta do sistema e atualização das informações, além do acompanhamento dos pacientes em nível primário, no âmbito de sua capacidade, com a orientação de condutas recomendadas pelo nível secundário7. A III Conferência Municipal de Saúde (CMS) em 2000 trouxe novamente à baila essas discussões, e entre suas propostas tinha a criação de um departamento de Atenção Primária à Saúde, investimento prioritário na UBS e revisão do organograma adequando-o às “novas necessidades do modelo assistencial, além de garantir a efetividade das unidades de apoio”12. A Reforma Administrativa de 2001 modificou o organograma, criou o Departamento de Atenção Primária à Saúde e redefiniu responsabilidades, porém, ao dar os primeiros passos na execução de suas reformas, aconteceram novas mudanças administrativas locais, frustrando os resultados esperados. O Ministério da Saúde, por meio da Portaria 648/ GM de março 2006, aprovou a Política Nacional de Atenção Básica, estabeleceu diretrizes para o PSF e PACS, definindo responsabilidades de cada esfera de governo, adequando a infra-estrutura e recursos necessários com discriminação das atribuições de cada membro da equipe6. A partir da análise desses documentos, percebemos a existência, em nível local e federal, de legislação suficiente para fazer com que a Saúde da Família funcione e faça valer os princípios do SUS e procuramos identificar nas falas dos usuários os desafios a serem vencidos para que isso aconteça. 4. Percepção do usuário Como a pesquisa foi realizada com aqueles que freqüentavam a unidade com a estratégia de Saúde da Família, ficam mais evidentes as manifestações de apoio, porém, percebemos também algumas críticas ao atendimento local. 109 Faltam recursos, existem falhas na organização, falta integração e ainda existe dicotomia entre o SUS e o PSF Consideramos como recursos os bens e serviços diretamente ligados à saúde e necessários para que se possa realizar um atendimento digno ao usuário, permitindo, não apenas sua inserção no Sistema de Saúde, mas também a resolubilidade, isto é, a resposta a todas as suas demandas. Falhas na organização seriam responsáveis pela má distribuição desses recursos nas unidades prestadoras de serviços ao público, refletindo-se nas falas dos usuários: Aqui, os médicos são maravilhosos, só deixa a desejar a falta de remédios. Outra dificuldade da unidade é a falta de insumos, faltam materiais de curativo. Em algumas falas percebemos críticas em relação aos recursos humanos especializados. ... Quando a gente chega pra consulta com o especialista, estava marcado pra 7 horas, mas ele só chega às 9 horas. Às vezes demora mesmo quando o médico chega cedo, aí o que vale é quem chegou primeiro. Acho que o horário deveria ser reservado. “Quando precisa tem que vir bem cedinho e esperar” Outra dificuldade percebida é a fila para a marcação de consultas, muito acima da capacidade de absorção da equipe, o que muitas vezes não permite o atendimento naquele horário. Como o paciente percebe que o atendimento do PSF é diferente, identifica o atendimento nas unidades especializadas como sendo SUS, criando uma dicotomia entre o SUS e o PSF. Se não tivesse aqui, tinha que ir ao SUS. É bem longe e difícil de marcar. Quando tenho algum problema venho no posto, mas, se não conseguir, vou direto ao SUS. A gente tem que marcar uma consulta com o especialista do SUS só pra pedir um exame. Tinha que poder pedir aqui [na própria unidade], isso já adiantava o tratamento. A marcação pela CMC [Central de Marcação de Consultas] demora bastante, às vezes não dá pra esperar. Assim, o usuário, muitas vezes, procura direto uma unidade de urgência e cria uma imagem confusa do PSF. Não tem facilidade de ser atendido fora do dia. Consulto Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. muito na Unidade Regional (Unidade de urgência e emergência). Para melhorar, acho que precisava ter garantia de consulta a qualquer hora. Acho que aqui tinha que ter um Pronto Atendimento ou Emergência. Tem gente que não precisa, mas vem consultar-se, tirando a vez de quem precisa. A solicitação de exames é uma necessidade em muitas doenças, principalmente as crônicas, e os próprios pacientes, hoje, induzidos pela mídia ou por outros tipos de informações, buscam periodicamente as unidades para realizá-los. É o que chamam de check-up. Em suas falas, percebemos que há um descontentamento em relação à falta do acesso a exames, principalmente aqueles mais especializados, e também da falta de alguns equipamentos nas unidades, o que os faz desvalorizar o atendimento básico. Aqui não tem nem RX. Quando vou a Unidade Regional faço tudo o que preciso inclusive os exames sem ter que esperar. Aqui, além de demorar, temos que remarcar a consulta. Fui ao endocrinologista, e ele me pediu uns exames, mas não consigo fazer. A moça ficou com o papel e disse que me ligava quando fosse marcado, mas isso já faz seis meses. Muitas vezes, o usuário prefere procurar outros serviços ou os laboratórios particulares, e muitos laboratórios de bairros fazem “preço especial” para quem leva a solicitação do SUS, em uma competição positiva, uma vez que reduz a fila de espera, mas nem sempre isso é possível. Se for esperar pelos exames, a gente morre. Eu prefiro pagar. É mais rápido e garantido. Quanto à organização dos serviços, o usuário percebe que “algo não funciona bem”, que faltam materiais, que faltam vagas especializadas, que o profissional não tem boa vontade, e, por isso, existe a demora, mas alguns pacientes deixam claro que possuem alternativas para “furar” o bloqueio em relação a consultas especializadas, procurando mecanismos para serem atendidos mais rapidamente. O Hospital Universitário é uma das opções, mas seu acesso depende também de uma indicação. Outra opção é 110 a unidade de urgência que atende sem prontuário e apenas por demanda. Alguns recorrem ao pronto atendimento dos Planos de Saúde. Às vezes, vou ao Regional, quando aqui está fechado, demora, mas consigo me consultar no mesmo dia. Quando precisei de exames, demorou, tive dificuldade. Não tinha vaga. Tive que repetir o exame porque o primeiro não deu certo e aí procurei o HU [Hospital Universitário] e ficou mais fácil, mas tive que ir ao coordenador pra conseguir uma vaga. Tinha um plano do Sindicato, mas passei mal e fui direto ao Hospital Universitário. Foi de graça e não demorou nada. Vou direto à Associação dos Cegos. Marca direto e não demora nada. Tenho um conhecido que marca direto no HU. Não demora nada. Uma outra forma de conseguir o atendimento mais rápido seria por meio de planos de saúde. Alguns usuários que não os possuem declaram ser esse seu sonho de consumo, ou se percebe certo descontentamento com o serviço oferecido ou com o custo. Acho que quem tem um bom plano de saúde não precisa esperar. Às vezes tem um plano, mas que não cobre exames; aí, não adianta. Meu Plano? É um SUS “arrumadinho”, se precisar de um exame mais sofisticado tenho que pagar ou fazer no SUS. Tenho o plano da AME. Só dá direito à consulta. Dá direito a duas consultas por mês e desconto nos exames. Tenho Plano de Saúde para internação, mas não pra consulta. Tenho que pagar os exames, a não ser quando internada. Algumas vezes, o relato do usuário demonstra que, mesmo pagando um plano, ele já viveu a experiência de precisar e ter de recorrer ao SUS. Senti-me mal, fui ao Regional Leste, e o cardiologista mandou direto pro hospital, o plano não cobria, fiz tudo pelo SUS. Esses relatos demonstram a dificuldade do usuário, mesmo depois de cadastrados na unidade básica, conseguir o atendimento em serviços especializados e, em alguns casos, até mesmo o atendimento básico, uma vez que Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. não existe uma comunicação efetiva entre os serviços. 5. Existe uma rede de serviços em Juiz de Fora? O processo de descentralização tem possibilitado aos municípios criarem formas de organização das práticas de assistência à saúde com uma diversidade de modelos orientados pela integralidade, resolubilidade e acesso universal, instrumentalizadas pela saúde coletiva e pela clínica, mais próximas da realidade local13. A prática, porém, não funciona em sintonia com a teoria, e, quando observamos a atuação em nível local, percebemos que se “torna urgente avaliar os diferentes impactos e promover a busca de alternativas para a construção de uma agenda que contribua para a equidade nas condições de vida e de saúde, consoante as diretrizes de um Sistema Único de Saúde”7. Ao ser implantada, em 1995, a Central de Marcação de Consultas pretendia orientar o usuário, principalmente em relação aos mecanismos de referência e contrareferência, criando um fluxo entre os serviços. No início, chegou a funcionar, porém, com o crescimento da oferta, ocorreu uma ampliação do território de abrangência da saúde de Juiz de Fora, que passou a atuar como Município Pólo estabelecendo pactos para atendimento de outros municípios em consultas especializadas, por meio da Programação Pactuada Integrada (PPI). Os territórios são “espaços de responsabilização sanitária” e, em se cumprindo os princípios da cooperação gerenciada, com definições claras das ações oferecidas por cada território às populações adscritas, haveria uma compatibilização na construção de uma rede de atenção à saúde com responsabilidades inequívocas14. A ampliação do acesso, porém, sem a devida transparência na definição das competências e responsabilidades, gera um aumento na procura das unidades de atenção especializada (nível secundário), que atendem à demanda dos outros municípios e da população de Juiz de Fora das áreas descobertas pela Atenção Primária, construindo uma confusa malha de idas e vindas em busca do atendimento de médio e alto custo/complexidade. 111 Ao encaminhar o paciente para um nível de maior complexidade tecnológica, o médico entrega o encaminhamento ao paciente, que leva ao telefonista da UBS. Este entra em contato com a Central de Marcação de Consultas (CMC), por telefone, e solicita o agendamento da consulta especializada. No nível central, o profissional da CMC rastreia na agenda dos especialistas disponíveis no sistema e, se existe a vaga, esta é reservada e repassada a informação para a unidade. A guia é devidamente preenchida com data, hora e nome do médico especialista de referência e, em seguida, é devolvida ao paciente. Se não existe a vaga no momento, a guia fica com a telefonista da UBS, que continua a tentar, toda manhã, quando abrem as agendas dos especialistas. Parece simples e deveria ser resolutivo, porém, esta marcação pode demorar meses. A procura pelo especialista em Juiz de Fora é muito grande, pois os modelos assistenciais existentes até a década de 1990, que valorizavam as especialidades e as tecnologias utilizadas para diagnóstico, ainda estão presentes nos ideários dos pacientes e até de muitos profissionais de saúde. Além disso, para a solicitação dos exames complementares mais complexos, o paciente precisa ser encaminhado ao especialista para que ele faça a solicitação, aumentando a demanda e postergando o tratamento. Quando ocorre uma situação de urgência, a guia de referência é entregue ao gerente da unidade, que liga para a coordenação de turno das unidades especializadas e marca na agenda do especialista em questão. O coordenador de turno guarda, diariamente, duas vagas, que são oferecidas nessas situações, para cada especialista15. Em 2005, apenas das consultas para a cardiologia, 3.548 foram agendadas como urgentes, o que representou 13,9% das realizadas; para a endocrinologia, foram 1.983, representando 13,4% das realizadas e, para oftalmologia, foram 3.740, 14,2%, porém, na oftalmologia, estão incluídas as consultas de retorno para procedimentos específicos, como curativos e avaliação pós-cirúrgica. Das consultas realizadas, 6.953 foram “urgências”, representando 17,29%15. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. Consideramos nesse cálculo apenas as consultas realizadas de fato, pois, cerca de 20% das agendadas são perdidas, isto é, os pacientes não comparecem nem avisam a tempo de serem substituídas, o que representa uma perda importante. Apesar dos números e das consultas oferecidas e perdidas, quando tentamos responder a questão sobre se teríamos ou não uma rede de serviços, a resposta que nos vem é que não existe. Percebemos claramente uma divisão na qual, de um lado, temos a Central de Marcação de Consultas ligando a Atenção Primária aos Ambulatórios Especializados e, de outro lado, temos as Unidades de Urgência e Emergência ligados ao hospital pela Central de Vagas, porém, sem haver um relacionamento entre os dois lados, a não ser informalmente. Essa falha na comunicação é percebida e utilizada pelos usuários, o que provoca um custo adicional, pois aqueles que possuem algumas informações privilegiadas ou facilidades por terem conhecidos ligados aos serviços, repetem vários procedimentos, muitas vezes desnecessariamente, onerando o sistema e dificultando a entrada de outros, menos informados. 6. Discussão Analisar ações de saúde representa sempre um desafio, pois não existe um padrão de atendimento ou uma única maneira para se demonstrar satisfação ao ser atendido. Cada pessoa é única e assim são os seus sentimentos de aceitação ou negação de um determinado procedimento. Este sentimento muda também com o passar do tempo e com as novas experiências vividas. Assim a abordagem qualitativa apresenta-se como orientação cada vez mais difundida no campo da atividade científica em todas as áreas do saber, em particular na saúde, que, pela sua complexidade e multidimensionalidade pede um desenvolvimento mais intenso do componente humano, domínio dos estudos qualitativos9. Procuramos nesta análise muito mais que uma avaliação dos serviços, buscando entender o que os entrevistados diziam, “por trás do discurso aparente”8, conside- 112 rando o impacto da organização dos serviços sobre a doença e os custos de seu manejo, e procurando entender de que forma são afetados (de forma negativa ou positiva) os outros aspectos da atenção ao paciente, aqueles de ordem biológica, psicológica, ambiental e principalmente de ordem social. 7. Organização, integração e dicotomia entre o SUS e o PSF Nas respostas dos usuários, percebemos que as questões do acesso ainda não estão resolvidas, que existe um hiato na comunicação entre os serviços e falhas nas informações, o que se reflete nas reivindicações quanto ao funcionamento das unidades básicas. Para promover a integração dos saberes, é necessário que essas questões sejam trazidas para as reuniões de equipe e conselhos e, em vez de se levantar trincheiras, que se traga esses ítens para o diálogo, oferecendo as informações necessárias aos Conselhos de Saúde e trabalhadores da ESF, construindo-se, no médio prazo, uma massa de pessoas esclarecidas trabalhando com um objetivo comum: o de promover a saúde nos diversos setores de trabalho e da sociedade, considerando-se que a produção da saúde local passa pelas relações estabelecidas entre os diversos atores administrativos, prestadores de serviços e usuários Particularizando a questão do hipertenso inscrito nos grupos da ESF, seria interessante que a organização dos grupos respeitasse os interesses dos usuários e permitisse durante a troca de experiências o esclarecimento dos mecanismos de acesso aos serviços mais especializados, bem como o papel de cada serviço dentro do sistema de saúde, contribuindo para a disseminação da lógica da integralidade. Dentre os serviços oferecidos pela ESF temos os grupos educativos e operativos, os atendimentos individuais com solicitação de exames considerados básicos e os encaminhamentos às especialidades, quando existe a necessidade de um procedimento mais específico. Se esta informação se fizer presente em todos os espaços do SUS, durante toda e qualquer ação executada, viabilizaria uma in- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. versão do modelo assistencial. Assim, a transparência na divulgação das informações, associada à organização dos serviços, seria um grande passo na melhoria do acesso do usuário a qualquer nível de atenção que se fizesse necessário, possibilitando sua inclusão no sistema local. Percebemos ainda uma grande dúvida entre o que é SUS e o que é PSF, não apenas por parte dos usuários, mas também por alguns profissionais. Esse assunto deveria ser exaustivamente discutido, clareando-se a idéia do PSF como estratégia de reorientação do SUS. A logística dos serviços, mesmo quando não citada, permeou todos os depoimentos, da falta de vagas à falta de espaço físico adequado. Acreditamos que a descentralização da gestão, ocorrida na década de 1990, não sendo acompanhada de definições claras quanto às responsabilidades e competências, possa ser responsável por algumas dessas dificuldades, e percebemos nas entrevistas que existe uma grande distância entre quem recebe os serviços, quem executa as ações e quem planeja. A organização dos conselhos contempla alguns destes objetivos, porém, é preciso que haja divulgação das decisões nas reuniões de Conselhos Locais de Saúde, permitindo maior envolvimento de todos os segmentos da sociedade ou que as reuniões do Conselho Municipal sejam itinerantes, acontecendo cada mês em um bairro, com ampla divulgação, permitindo a inserção social indiscriminada. A realização do planejamento estratégico onde os diversos atores sociais têm voz e todos participam das tomadas de decisões, facilita a apropriação do processo, entendendo-se as dificuldades e lutando-se pelas melhorias com economia na utilização dos recursos disponíveis. Importante enfatizar que não se pretende responsabilizar o usuário pelas questões ligadas a gestão, apenas oferecer informações que possibilitem a cobrança daqueles serviços por quem tem direito. Nas questões ligadas à prática profissional consideramos algumas questões que foram relacionadas às falhas na formação ou no acompanhamento dos serviços. As instituições de ensino ainda estão, com raras ex- 113 ceções, direcionadas à formação de especialistas. No início da atividade clínica os médicos têm muitos sonhos. Mesmo os mais céticos, quando tomam contato com a ideologia da Medicina, encantam-se. Ao entrarem na rotina, porém, sentem-se, em um primeiro momento, perdidos, e, depois, decepcionados. Pouco se faz, pouco se ganha, sofre-se muito, com raras exceções. Quando falamos de ESF, fica um pouco pior, pois agregou-se às dificuldades da clínica às dos setores sociais e, muitas vezes, tem de se decidir sobre o que não se conhece. Some-se a isso a demanda crescente e uma diversidade de formulários a serem preenchidos para atender aos diferentes Sistemas de Informação, e o que é pior, sequer se recebe as análises do preenchido, o que é uma contradição, já que esse material subsidiaria o planejamento local. Com tudo isso, incorporou-se tanta solicitação ao médico, que ele constrói sua prática dentro dos padrões que lhe permitam transitar sem muito sofrimento. É claro que alguma coisa fica por fazer. Cria-se uma cultura de exames e encaminhamentos. Ficam desanimados. A redução do número de famílias da área de abrangência poderia diminuir demanda e daria uma folga para o planejamento e o trabalho coletivo como realmente deve ser no PSF. Atualmente, algumas equipes chegam a cobrir quatro mil pessoas, o que impede qualquer tipo de planejamento. A educação continuada por meio da promoção de encontros entre generalistas e especialistas, em pequenos grupos, para debater problemas comuns que, sem dúvida, seriam de muita ajuda no cotidiano de generalistas e especialistas. Entendemos também que, para que funcione a educação continuada, precisamos ter uma boa base na formação do profissional. Não se pode aprimorar o que nunca se teve. Essa é uma discussão que vem acontecendo já há algum tempo. As Diretrizes Curriculares de Curso de Medicina de 2001 enfatizam a necessidade de se formar generalistas com habilidades diversas e a importância da inserção precoce dos alunos nos cenários de práticas16. O incentivo à participação em eventos científicos Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. também é de grande valia na motivação do profissional, assim como uma relação mais estreita entre as instituições de ensino e os serviços básicos de saúde, em uma parceria ensino-serviço. A prática diária dos serviços também deveria ser acompanhada mais de perto pelos supervisores, não para punir, mas para permitir um crescimento profissional e manter sempre atualizada a capacidade técnica do profissional, facilitando sua participação em cursos, treinamentos e até utilizando-se suas habilidades para desenvolver encontros de compartilhamento de experiências. Enfim, as propostas são: estabelecer com as comunidades as parcerias, ouvir o colega em sua verdade, buscar nos livros as respostas e, principalmente, pensar na equipe como local de discussão e crescimento dos processos de trabalho e do planejamento de ações. Assim, ao se orientar o fluxo a partir de propostas vindas das unidades básicas e de seus usuários, existiria a oportunidade de compartilhar responsabilidades. E, uma vez organizado esse fluxo nas unidades com ESF, outras unidades tenderiam a absorver as idéias e colocá-las em prática, favorecendo a melhorias no atendimento e na organização dos serviços. Assim, a proposta desse estudo foi demonstrar, na opinião de usuários, alguns pontos críticos no funcionamento do PSF/SUS local; porém, não podemos nos furtar de oferecer, com base nas referências dos estudiosos do assunto, algumas idéias para buscar novos e melhores resultados. Esperamos que esses resultados impulsionem outros estudos e que influenciem positivamente a saúde de Juiz de Fora e de outros municípios com realidades semelhantes. 8. Referências 1.Brasil. Ministério da Saúde. Leis Orgânicas da Saúde. n. 8080/1990 e 8142/1990. 2.Starfield B. Atenção Primária: Equilíbrio entre as necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília (DF): UNESCO, Ministério da Saúde; 2002. 114 3.Mattos R. A integralidade na prática (ou sobre a prática) da integralidade. Cadernos de Saúde Pública 2004; 20(5): 1411-1416. 4.Organização Mundial de Saúde. Cuidados inovadores para condições crônicas: componentes estruturais de ação: relatório mundial. Disponível em: http://www.opas.org.br/ publicmo>, disponibilidade 12/3/2006 5.Brasil. Ministério da Saúde. Programa de saúde da Família - Plano Operacional para 1994. Brasília (DF): Ministério da Saúde; fev. 1994. 6.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2006. (Serie Pactos Pela Saúde, 4). 7.Prefeitura de Juiz de Fora, Secretaria de Saúde Saneamento e Desenvolvimento Ambiental, Plano Municipal de Saúde, 1997. 8.Minayo MCS. O desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8 ed. São Paulo: Hucitec; 2004. 122p. 9.Bardin L. Análise de Conteúdo. França: Edições 70; 1977. 10.Bosi MLM, Mercado FJ (Orgs.). Pesquisa Qualitativa de Saúde. Petrópolis (RJ): Vozes; 2004. 11.Paim JS. Políticas de Descentralização e Atenção Primária à Saúde. In Rouquayrol MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia e Saúde. 5 ed. Rio de Janeiro: MEDSI; 1999. p. 489-503. 12. Juiz de Fora [Prefeitura]. Secretaria de Saúde Saneamento e Desenvolvimento Ambiental. III Conferência Municipal de Saúde: Relatório. Juiz de Fora: Secretaria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento; 2000. 13.Mendes EV, Pestana M. Pacto de Gestão: da municipalização autárquica regionalização cooperativa. Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004 Disponível em: http:http://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/livros Acesso em: 12/03/2006. 14.Mendes EV. Os grandes dilemas do SUS, tomo II. Salvador (BA): Casa da Qualidade; 2001. 15. Juiz de Fora [Prefeitura]. Secretaria de Saúde Saneamento e Desenvolvimento Ambiental. Seção de Estatística do Departamento de Clínicas Especializadas, Dados Pri- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Celia Regina Machado Saldanha Uso da rede de serviços de Juiz de Fora: a opinião do usuário. mários sobre o atendimento ambulatorial, 2004- 2006. Juiz de Fora (MG): Secretaria de Saúde Saneamento e Desenvolvimento Ambiental; 2004. 16.Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Superior – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina – 2001. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001. Endereço para correspondência: Avenida Barão do Rio Branco, 3596 – Apto. 2202 Centro - Juiz de Fora – MG CEP: 36025-020 Endereço eletrônico: [email protected] 115 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Análise da avaliação do PSF em municípios de pequeno porte. Analysis of the evaluation of the FHP small cities. Fábio Aragão Kluthcovsky* Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky** Resumo No subsistema de saúde público brasileiro o fortalecimento da Atenção Básica teve particular contribuição do Programa Saúde da Família (PSF). Atualmente, o PSF se desenvolve em cenários heterogêneos nos municípios e regiões brasileiras, espelhando a diversidade nacional e a grande variação de intensidade e formas de implantação do programa. A partir de 2005, o Ministério da Saúde (MS) propôs a institucionalização da avaliação do PSF por meio de questionários específicos. Este estudo objetivou analisar de forma crítica o instrumento de avaliação do PSF, proposto pelo MS. Tratase de um estudo descritivo-reflexivo, com base na literatura especializada. A proposta de avaliação, com desenho metodológico quantitativo, limita a apreensão dos diferentes contextos municipais. Também se faz sentir a ausência da avaliação de usuários em relação à qualidade da atenção. Outro fato importante é que a avaliação poderá ser limitada por ser de livre adesão pelos gestores municipais. Por outro lado, a proposta do MS tem o mérito de ser um processo específico e sistematizado de auto-avaliação para o PSF, com integração de diferentes atores, em um referencial metodológico tradicional em qualidade de ações de saúde. A integração do gestor municipal ao Plano Estadual de Avaliação e Monitoramento tem o benefício de envolver estados na harmonização de desigualdades regionais, além de suprir eventuais deficiências técnicas e/ou dificuldades relativas à gestão da estratégia nos municípios. A praticidade e a “resolutividade” da avaliação do PSF proposta pelo MS certamente terão papel importante para uso do gestor e equipes no direcionamento da estratégia e tomada de decisões. Abstract The Family Health Program (FHP) plays an important role in the strengthening of basic care in the Brazilian public health system. Currently the FHP is spreading over the Brazilian cities and regions, being implemented with different intensity and in different forms, reflecting the diversity of the country itself. In 2005, the Ministry of Health (MH) proposed evaluating the Family Health Program by means of specific questionnaires. The aim of this descriptive reflective study is to conduct a critical analysis of the instrument proposed by the Ministry of Health for Palavras-chave: Programa Saúde da Família; Avaliação em Saúde; Avaliação de Programas. Key Words: Family Health Program; Evaluation in Health; Evaluation in Programs. *Médico de Família e Comunidade, Mestre em Enfermagem em Saúde Pública, Professor da UNICENTRO e Faculdade Guairacá, Brasil. **Médica, Mestre em Enfermagem em Saúde Pública, Professora da UNICENTRO, Brasil. 116 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky evaluating the FHP in the light of the specialized literature. The proposed quantitative evaluation methodology is limiting the comprehension of the different local contexts. Moreover, there is a lack of user-based evaluation as refers to the quality of the delivered services. Another important limitation is that the participation of the municipal administrations in the evaluation is optional. On the other hand, the proposal of the Ministry has the merit of representing a specific and systematized self-evaluation process for the FHP, integrating the opinion of different actors in a methodological approach traditionally accepted for evaluating the quality of health actions. The integration of the municipal administrations to the Evaluation and Monitoring Plan of the states has the advantage of involving the states in the harmonization of regional inequalities and in the solution of possible technical deficiencies and/or management difficulties on municipal level. The functionality and resolutivity of the evaluation methodology proposed by the Ministry of Health will certainly play an important role in the strategic decision-making of public managers and health teams. 1. Introdução A importância da Atenção Básica no funcionamento do sistema de saúde como um todo e o importante papel do Programa Saúde da Família (PSF) na organização da Atenção Básica em uma significativa parcela de municípios brasileiros são elementos de análise que justificam plenamente a adoção de um processo específico e sistematizado de avaliação1. A partir de 1999, ocorreu um importante aumento no número de equipes em pequenos municípios, em função do aumento de repasse financeiro realizado pelo MS para aqueles com maiores coberturas populacionais 2,3. Na seqüência, por meio de financiamentos diferenciados de custeio e investimento direcionados a municípios com mais de 100 mil habitantes, o MS buscou a expansão da estratégia em municípios de médio e grande porte4. A expansão do PSF em diversos contextos com variados graus de implantação e diferentes níveis de cobertura gerou grande diversidade de avaliações, que buscavam quantificar resultados sob diversos pontos de vista5. Em que pese a importância das informações produzidas, ainda não 117 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. estava disponível um instrumento específico de avaliação da estratégia. Como forma de responder a esta necessidade, o Ministério da Saúde (MS) propôs a utilização de instrumentos de auto-avaliação1, com integração de respostas de diferentes atores envolvendo as equipes de gestão e operacionais, em um referencial sistêmico6, tradicionalmente aceito para avaliação de qualidade de ações de saúde. A padronização do referido instrumento busca a confiabilidade e reprodutibilidade das informações obtidas. A iniciativa do MS em disponibilizar um instrumento de avaliação continuada é de extrema relevância, pois, com isso, as informações poderão ficar disponíveis para gestão interna, possibilitando uma melhora constante da qualidade das ações, pela importância que o PSF representa no atual contexto da saúde pública do Brasil, tanto pelo aumento crescente do número de equipes implantadas nos últimos anos, como pelos seus resultados. Considerando a avaliação de serviços ou programas de saúde um importante e complexo tema, este estudo objetivou realizar uma análise sobre o processo de avaliação em saúde, e sobre a utilização do instrumento de autoavaliação do PSF proposto pelo MS, identificando-se suas vantagens e limitações, especialmente relacionadas às peculiaridades do PSF no contexto de pequenos municípios. 2. O processo de avaliação Atualmente há consenso a respeito da necessidade de processos de avaliação nos diferentes setores de organização da atividade humana7. Por outro lado, há grande controvérsia a respeito da exata definição da avaliação8. Entende-se que uma coleta sistematizada de informações para subsidiar o estabelecimento de um juízo de valor sobre um dado objeto constitui uma avaliação formal9, com a finalidade de aplicar padrões que permitam a determinação de valor, qualidade, utilidade, efetividade ou significância8. Apesar da importância da avaliação para a tomada de decisões, há questionamentos no meio acadêmico se uma avaliação poderia ou não ser considerada ciência. Pouvourville10 relata que a utilização de métodos científicos Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky para “explorar as ações sobre a população e entender o respectivo impacto na sociedade parece para mim intimamente ligada à ciência, especialmente quando se considera que o principal propósito da última é explorar nossa realidade com métodos controlados”. Nos diferentes setores de organização das atividades humanas há diversidade no modo e finalidade dos processos de avaliação. No setor privado, a avaliação é a ferramenta para ganhos de produtividade e eficiência organizacional com satisfação do cliente. No terceiro setor, além dos benefícios anteriormente citados, a avaliação é a forma de demonstrar excelência e efetividade, no sentido de obter respaldo junto à sociedade na qual está inserido7. No setor público, no qual é freqüente a estruturação de ações sob a forma de programas, com o objetivo de gestão de resultados, a avaliação é condição imprescindível para demonstração de resultados, possibilitando a motivação do staff e orientando futuras intervenções. A pressão do mercado financeiro externo sobre os governos no sentido de provar a capacidade de reger o próprio crescimento e até evitar a transferência de atribuições ao setor privado, supostamente mais eficiente e efetivo, torna o embate ideológico e reforça o papel da avaliação na modernização do setor público10. A avaliação deveria ser utilizada como cultura no setor público, como forma de fortalecimento do mesmo e racionalização de políticas em todo o mundo, tendo como finalidade o aumento da performance das intervenções10,11. Constandriopoulos11 considera a institucionalização da avaliação como uma criação de mecanismos formais de produção de informação sobre programas e políticas públicas. Ele enfatiza ainda o desafio da racionalização de recursos em um contexto de mercado globalizado com governos locais fragilizados pela necessidade de cortes em programas sociais, especialmente na área da saúde. Nesta situação, caracterizada pela tensão redistributiva12, a avaliação como processo sistemático certamente se constitui em uma importante ferramenta de gestão e tomada de decisões. 118 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. 3. A avaliação em saúde no setor público Apesar de todos os argumentos favoráveis à utilização da avaliação no setor público, Hartz e Pouvorville13 consideram que a mesma é prática rara no Brasil, apesar do assunto freqüentemente ocupar a agenda científica, técnica e legal no país. Essa diferença entre retórica e prática, na realidade brasileira, pode ser atribuída a várias razões. Alguns aspectos pontuados por Travassos14, específicos para a área de saúde, incluem a falta de uma cultura política orientada por avaliação e a falta de especialistas, tanto acadêmicos como técnicos, nas áreas de avaliação de qualidade, gerência de qualidade e produção e análise de dados de saúde e documentação médica. Por outro lado, a avaliação divide a responsabilidade de tomada de decisão com segmentos mobilizados da sociedade, o que pode explicar a resistência à adoção e divulgação de resultados, em alguns casos do setor público brasileiro15. Novaes16 concorda com a deficiência nacional em termos de cultura e recursos humanos em avaliação, ao mesmo tempo em que identifica a oportunidade e necessidade de diversos tipos de avaliação, especificamente na área de saúde, na qual ocorreram: expansão de atenção à saúde; oferta de novas tecnologias; novos modelos assistenciais e crescimento setorial de importância política e econômica. Tais proposições, em diferentes níveis de atenção, em geral são estruturadas sob a forma de programas, de modo que, simultaneamente à proposição, já é prevista alguma forma de avaliação a ser realizada com a implementação e o desenvolvimento do proposto. Essa multiplicidade de programas e respectivas avaliações trazem certa dificuldade de sistematização assumida em informe técnico institucional do MS: “ainda busca-se clarear as diretrizes de uma política de avaliação, que, embora em franco processo de implantação, estabelece como desafio a superação dos obstáculos operacionais e funcionais para sua execução”17. Hartz15 define programa como um “Conjunto de ações visando a favorecer comportamentos adaptativos requeridos por diferentes áreas ou atividades humanas Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky relacionadas com vida comunitária, escola, trabalho, saúde e bem-estar”. Um programa em geral pressupõe a necessidade de articulação de ações de diferentes atores com responsabilidades diversas, em geral demandando práticas intersetoriais. O processo de avaliação é complexo pela perspectiva integradora das diferentes contribuições10. Esta necessidade de integração decorre da natureza complexa do processo de produção saúde-doença, em que interagem diferentes sistemas e processos, de modo que o resultado na atenção à saúde não depende exclusivamente de um determinado serviço de saúde14. Nesta complexidade, a avaliação de programas públicos se constitui em um desafio metodológico, no qual se busca identificar a relação interativa de negociação entre parcerias, e iterativa, na qual se manifesta, ou não, a relação entre ação e resultados. O grau de implantação dos programas em diferentes contextos é outra importante questão para não se incorrer no erro das avaliações precoces10. Para dar conta do desafio metodológico, Hartz18 defende o modelo de avaliação orientado pela teoria explicativa do respectivo funcionamento. Neste modelo, denominado theory-driven evaluation, prima-se por uma construção lógica, com base em pesquisas prévias, teorias de ciências sociais e experiência de gestores e avaliadores, nas quais se buscam respostas às questões centrais do programa: “Qual o problema ou comportamento visado?”, “Como a população se caracteriza?”, “Quais as condições do contexto?”, “Quais os ingredientes ativos no programa?” (Questão relativa ao conteúdo do programa necessário para produzir os efeitos desejados). Este modelo teórico diz respeito à lógica de causa e efeito do programa no sentido plural, a partir da análise dos subprogramas, em uma articulada e hierárquica relação do tipo se – então, que compõe o todo19. Em relação à metodologia utilizada na avaliação de programas de saúde, pode-se perceber a construção de um progressivo consenso em torno da utilização combinada de técnicas de análises qualitativas e quantitativas15,16,18,19,20 em um enfoque feito sob medida, ou sur mesure para o programa 119 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. avaliado, como prefere Hartz15. Esta construção metodológica é diferente dos desenhos experimentais ou quase experimentais tradicionalmente utilizados, sendo freqüente a utilização de estudo de caso para avaliação de programas na área da saúde15,18,19,21,22. Independentemente do desenho metodológico, em todos os tipos de avaliação está presente a idéia de qualidade. Embora a palavra qualidade seja amplamente utilizada, sua definição não é tarefa simples, e, não obstante, não pode ficar em termos abstratos. Isto em função de que, para o avaliador, a qualidade deve se tornar um objeto mensurável. Em termos gerais, a qualidade é verificada quando da atribuição de juízo ao objeto avaliado resulta um valor positivo. Estabelecer o juízo de valor positivo implica na utilização de critérios implícitos e explícitos23. Avedis Donabedian é o autor consensualmente utilizado como referencial teórico na avaliação de qualidade em atenção à saúde16,20,24,25,26. Seu mérito residiu, entre outras razões, na capacidade de sistematizar a apropriação de qualidade em termos de serviços, ações e programas de saúde. Desta forma, asseverou que qualidade deve representar um julgamento positivo em relação à técnica envolvida na atenção à saúde e no relacionamento interpessoal entre cliente e prestador 23. Nesta perspectiva, o autor reconheceu a existência de várias definições de qualidade em serviços de saúde6 e adotou uma forma mais ampliada de entendê-la, incluindo múltiplos aspectos, tais como: consideração dos potenciais benefício e dano que uma dada intervenção pode determinar na saúde do paciente, informação completa ao paciente ou representante legítimo das considerações anteriores, nãoutilização de práticas de pouca ou nenhuma utilidade, responsabilidade de fazer o melhor pelo paciente em dadas circunstâncias e consideração dos custos envolvidos na atenção ao paciente. Outro aspecto do enfoque de qualidade em saúde é a consideração do papel do consumidor, no caso os usuários dos serviços de saúde, nos ganhos de qualidade através de: retroalimentações fornecidas diretamente aos prestadores, Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky ou, indiretamente, por via administrativa, mecanismos de mercado e ação política. Qualidade é “a medida em que são utilizadas as circunstâncias mais favoráveis para o alcance de melhoria na saúde”27. A riqueza deste referencial para a qualidade das ações de saúde pode ser verificada na capacidade de unificar enfoques diferenciados em um conjunto de critérios complementares denominados de atributos da atenção em saúde. No clássico artigo denominado Os sete pilares da qualidade27, os critérios de definição de qualidade em atenção à saúde foram divididos em eficácia, efetividade, eficiência, otimização, aceitabilidade, legitimidade e eqüidade. Em outros trabalhos6,28, retomou-se um modelo de avaliação derivado da abordagem de análise de sistemas, no qual é adotado um paradigma com distinção de etapas denominadas de estrutura, processo e resultado ou impacto. A abordagem de análise de sistemas traz vantagens em função da formulação científica, da orientação para gestão, da objetividade quantitativa e replicabilidade, da ênfase em relações de causa-efeito entre os componentes do sistema e sua lógica conceitual29. Este marco conceitual é largamente utilizado na avaliação de programas de saúde, sendo inclusive a fundamentação teórica utilizada pelo MS para avaliação de programas específicos21,24. Outros autores acrescentaram ao modelo original outros elementos, conservando o núcleo central de integração e a interdependência dos itens analisados30. Apesar da divisão em etapas, o modelo proposto permite flexibilidade, sendo usual a dificuldade em diferenciá-las31. O MS tem empreendido esforços no sentido de disponibilizar aos gestores municipais instrumentos de gerência e avaliação no nível local, com um importante recorte na atenção básica, de forma especial em relação ao PSF1. A ênfase no PSF pode ser justificada em função da sua significativa expansão nos últimos anos e pela importância como porta de entrada do sistema de saúde como um todo. 4. A avaliação do PSF O PSF tem como objetivo a reorganização da prática 120 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. assistencial em substituição ao modelo tradicional de assistência à saúde. A assistência está centrada na família a partir de seu ambiente físico e social, em território definido, possibilitando às equipes de Saúde da Família (ESF), de caráter multiprofissional, melhor compreensão do processo saúdedoença e da necessidade de intervenções que vão além das práticas curativas. Apresenta-se como uma estratégia que prioriza ações de promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos, além de reafirmar e incorporar os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS), a universalização, descentralização, integralidade e participação da comunidade32. No ano de 2006, havia um total de 26.729 ESF implantadas em 5.106 municípios brasileiros, representando 91,8% destes, cobrindo 46,2% da população brasileira, o que corresponde a cerca de 85,7 milhões de pessoas33. A adesão dos municípios à estratégia Saúde da Família foi variável conforme o porte dos municípios. Assim, os municípios menores implantaram a estratégia de modo mais precoce e com maior facilidade do que os municípios de grande porte1. A partir de novembro de 1999, com o incremento no valor dos incentivos repassados pelo MS para os municípios em direta proporção com as faixas de cobertura populacional pelo programa34, a lógica financeira passou a ser o melhor argumento junto à administração de pequenos municípios para a adoção do PSF. Neste contexto, um pequeno número de equipes representa 100% de cobertura do PSF, com alcance do valor máximo de repasse financeiro por equipe de saúde. Já os grandes municípios brasileiros apresentam certas características, como complexidade sociossanitária, existência de modelos de atenção em saúde estabelecidos, organização urbana e perfil e formação dos profissionais1, além de concentrarem mais da metade da população do país4. Em termos de Brasil, a cobertura populacional do Saúde da Família aumentou 600% no período de 1998 a 2004. Contudo, quanto menor o município, mais alta a cobertura do PSF e mais acelerada sua expansão. Em 2004, 65,29% da população dos municípios com menos de 20 mil habitantes era atendida pelo programa, e apenas 27,50% da população Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky dos municípios com 80 mil ou mais habitantes estava coberta pelo programa35. A fim de superar as limitações quanto à expansão do PSF em grandes centros, foi desenvolvido pelo MS o Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família (PROESF), com apoio do Banco Mundial – BIRD –, estruturado em três componentes de avaliação: incentivar e ampliar o número de equipes dirigido aos municípios com mais de 100 mil habitantes; formar profissionais para o trabalho na estratégia, independente do porte, e fortalecer os processos de monitoramento e avaliação, independente do porte4. Tornar a avaliação como ação sistemática no sistema público de saúde é assumida pelo MS como passo fundamental para dar qualidade às ações desenvolvidas para o cumprimento dos princípios basilares do SUS. Por essa razão, um dos objetivos do PROESF foi criar uma cultura e uma sistemática de avaliação e monitoramento em saúde, beneficiando municípios que adotaram o PSF3. Antes do PROESF, o Pacto da Atenção Básica, feito anualmente, apresentava alguns indicadores relativos à estratégia do PSF36. A partir de 2005, no entanto, a Coordenação de Avaliação da Atenção Básica passou a propor um processo de avaliação específico para o PSF, intitulado Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família1. Neste processo de avaliação, qualidade em saúde é definida como “o grau de atendimento a padrões de qualidade estabelecidos frente às normas e aos protocolos que organizam as ações e práticas, assim como aos conhecimentos técnicos e científicos atuais, respeitando valores culturalmente aceitos” 29,37. Utilizando referenciais misto de Donabedian29 e Uchimura e Bosi37, o MS assume a necessidade de apreender o impacto da atuação das ESF, nos respectivos contextos. Esta proposta é de difícil operacionalização, pois pressupõe um processo de avaliação extremamente complexo, sugerindo a adoção de uma linha de estudo de caso para diferentes contextos15,30. As diretrizes da avaliação proposta pelo MS caracterizam-se como um processo auto-avaliativo, livre adesão pelos gestores municipais, ausência de incentivos ou 121 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. punições financeiras ou outras relacionadas aos resultados, utilização de aplicativo digital para alimentação de banco de dados e emissão de relatórios via internet e integração às atividades desenvolvidas no âmbito dos Planos Estaduais de Monitoramento e Avaliação da Atenção Básica1. A proposta adota a utilização de cinco instrumentos de auto-avaliação, com ênfase nos processos de trabalho. Pela inerente possibilidade de pronta intervenção quando da identificação dos problemas, em uma linha de avaliação para gestão. Aspectos de estrutura e resultado são tomados como parâmetros para avaliação da qualidade, a partir de uma visão dinâmica de estágios de qualidade inter-relacionados, porém com menor ênfase em relação àqueles indicadores de processo. Vale ressaltar que, na avaliação no nível local, são focados dois componentes nucleares ou unidades de análise para a avaliação: a gestão municipal do Saúde da Família e as equipes1. A gestão municipal da estratégia Saúde da Família é avaliada prioritariamente pelos instrumentos 1 e 2 preenchidos, respectivamente, pelo gestor municipal e coordenação da estratégia. Responsáveis pelas unidades de Saúde da Família, integrantes das ESF e profissionais de nível superior respondem os instrumentos 3, 4 e 5, respectivamente, gerando as principais informações para avaliação das ESF em relação a 1: - Infra-estrutura: insumos, equipes, materiais, recursos humanos e ambiente físico; existência e utilização de manuais de procedimentos, guias de conduta, sistemas informatizados, dentre outros. - Processos relativos a: aspectos organizativos (planejamento e programação, abrangência das ações e participação comunitária), técnico-científicos (competência técnico-científica e protocolização do atendimento) e relação interpessoal (acolhimento e comunicação interpessoal). - Resultados: diretos (decorrem da ampliação do acesso, adequação e efetividade das ações desenvolvidas) e de saúde da população (relacionados a indicadores epidemiológicos em termos de internações por doenças evitáveis, morbidade e mortalidade e dependem de uma grande proporção de fatores relacionados à prestação do cuidado nos demais Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky níveis de atenção do sistema, bem como do envolvimento e participação de outros setores e atores da área social). Em que pese a integração dos diferentes níveis de governo no processo de avaliação proposto, o nível local será responsável pela concretização, ou não, da referida proposta e pela viabilização, ou não, das ações de melhoria da qualidade. O nível local, após análise dos instrumentos, será qualificado em cinco padrões crescentes de qualidade, variando entre: padrão E (Qualidade Elementar), padrão D (Qualidade em Desenvolvimento), padrão C (Qualidade Consolidada), padrão B (Qualidade Boa) e padrão A (Qualidade Avançada). Esses estágios devem refletir momentos de um processo de evolução da qualidade nos serviços1. Segundo o MS, os principais beneficiários dessa iniciativa seriam os próprios usuários do sistema de saúde, já que a melhora contínua na qualidade do Saúde da Família representará melhoria no acesso, maior resolubilidade e humanização dos serviços1. Contudo, se faz sentir a ausência da avaliação de usuários em relação à qualidade da atenção, considerados por Santos, Uchimura e Lang38 a razão da existência dos serviços de saúde. Além disso, o desenho metodológico quantitativo limita a apreensão dos diferentes contextos municipais, já que os municípios com população igual ou inferior a 20 mil habitantes apresentam características próprias, de modo que a avaliação não deveria obedecer ao mesmo padrão que municípios de diferentes portes10. Como exemplos dessas características próprias dos pequenos municípios, podem ser citados, dentre outros, a dificuldade de fixação de profissionais de saúde integrantes das equipes; dificuldade de entendimento, por parte do corpo técnico gestor da estratégia, da avaliação como instrumento para gestão; unidades do PSF cobrindo grandes áreas rurais com baixa densidade populacional e dificuldades particulares nas condições de trabalho; dependência dos municípios pólo para atenção especializada, dificultando a referência e contra-referência. Essas limitações poderiam ser identificadas por estudos específicos, com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas aplicadas em paralelo ao instrumento sistematizado, naquelas situações singulares, podendo ainda esclarecer 122 Análise da avaliação do PSF em municípios de pequenos porte. elementos facilitadores e dificultadores da estratégia. Outra questão importante é que a avaliação proposta pelo MS poderá ser limitada por uma baixa adesão de municípios, já que o processo de avaliação depende da livre adesão do gestor municipal, o que poderia ser minimizado pela adoção de incentivos para aqueles que apresentassem evidências da utilização das informações para gestão interna e melhoria da qualidade das ações. Por outro lado, a proposta do MS tem o mérito de ser um processo específico e sistematizado de auto-avaliação para o PSF, com integração de diferentes atores, em um referencial metodológico tradicional em qualidade de ações de saúde. A integração do gestor municipal ao Plano Estadual de Avaliação e Monitoramento tem o potencial de desencadear e incrementar a participação dos estados na proposição e implementação de ações com vistas à harmonização de desigualdades regionais nos diferentes níveis de atenção, em especial na Atenção Básica. A coordenação estadual também pode suprir eventuais deficiências técnicas e/ou dificuldades relativas à gestão da estratégia nos municípios. Contudo, o adequado desempenho do gestor estadual se constitui em nó crítico neste processo, especialmente para aqueles municípios com limitado corpo técnico e/ou dificuldades relativas à gestão da estratégia. 5. Considerações finais A importância da Atenção Básica na organização do sistema de saúde como um todo e o incontestável papel do PSF na organização da Atenção Básica em uma significativa parcela de municípios brasileiros são elementos de análise que justificam plenamente a adoção de um processo específico e sistematizado de avaliação. O desenho metodológico da proposta do MS, com técnica quantitativa, não prevê a identificação dos diferentes contextos em que a estratégia está atuando, bem como a não-avaliação das expectativas dos usuários em relação à qualidade da atenção. Por outro lado, a utilização de instrumentos de autoavaliação, com integração de respostas de diferentes atores, Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Fábio Aragão Kluthcovsky e Ana Cláudia Garabeli Cavalli Kluthcovsky envolvendo as equipes de gestão e operacionais em um referencial metodológico tradicionalmente aceito para avaliação de qualidade de ações de saúde é uma garantia no sentido da confiabilidade e reprodutibilidade das informações obtidas. São características que sugerem que a proposta do MS deverá ser mantida ao longo do tempo. Apesar das limitações, é extremamente oportuna a iniciativa do MS quanto à proposta de avaliação continuada com disponibilização de informações para gestão interna, possibilitando uma melhora constante da qualidade das ações. Por outro lado, na medida em que o sistema produzisse as informações, seria interessante que tanto gestor municipal quanto equipes pudessem acessar facilmente os resultados da avaliação e eventuais propostas de correção, e tomada de decisões e direcionamento das ações fossem acompanhadas com respaldo pelos demais níveis de governo. 6. Referências 1.Brasil. Ministério da Saúde. Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família. Documento Técnico. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005. 110p. 2.Kluthcovsky FA. Avaliação do processo de expansão do Programa Saúde da Família em um município do Sul do Brasil [Dissertação]. Ribeirão Preto, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 2005. 3.World Bank. Human Development Sector Management Unit. Brazil Country Management Unit Latin America and the Caribbean Region. Report. N 233353 BR. The Brazil Family Health Extension Program. 2002. 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Descrevo, de forma pessoal, algumas intervenções do projeto, assim como alguns resultados alcançados. Por fim, exponho alguns questionamentos e contradições em relação a este projeto e, mais amplamente, em relação ao trabalho de assistência ao desenvolvimento de países da África subsaariana. Abstract In this article I tell about my experience of working one year in a rural area in Angola, in a mother-child health project with the Non-Governmental Organization Médecins du Monde. I describe, in a personal manner, some of the project’s interventions as well as some of the results that were achieced. Finally, I address some questions and contradictions in relation to this project, in more general terms, the work in development assistance in Sub-Saharan Africa. Palavras-chave: Angola; Altruísmo; Assistência; Cooperação Internacional; Formação de Recursos Humanos; Capacitação. Key Words: Angola; Altruism; Assistance; International Cooperation; Human Resources Formation; Training. *Médica de Família e Comunidade, aluna de doutorado do programa de pós-graduação em Epidemiologia, Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 125 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Angola, ares de transformação. 1. Introdução Há tempos, eu andava pensando seriamente nessa história de missão humanitária. Mas, chegada a hora de partir de verdade, foi aquele “frio na barriga”, uma sensação forte de grande desafio. Sensação que permaneceu presente a cada dia deste ano em Angola, na província de Huambo, centro-sul do país. Conheci a Médecins Du Monde (MDM)1 durante a minha estada de um ano em Paris, França, onde estava fazendo uma especialização em Saúde Pública. Originária de alguns dissidentes da Médecins Sans Frontières2, a Organização Não-Governamental (ONG) de solidariedade internacional MDM foi fundada em 1980 e trabalha com missões de ajuda humanitária na França e em todo o mundo, desenvolvendo projetos sustentáveis junto a populações vulneráveis. Além disso, o dever de testemunhar e denunciar situações de violação de direitos humanos é um dos pilares da filosofia de trabalho da organização. O projeto que me foi proposto, em Angola, não foi uma exceção a essa filosofia central de trabalho. O objetivo era apoiar o desenvolvimento e a melhoria da assistência em saúde materno-infantil na zona norte da província de Huambo, no interior de Angola. Isso não significava fazer assistência (o que era a minha idéia quando eu, longinquamente, imaginava este “tipo de trabalho humanitário”), mas, sim, apoiar o desenvolvimento de algo que fosse viável no contexto real de Angola, junto às pessoas de lá, aos profissionais angolanos, capacitando-os continuamente para desenvolverem determinadas ações de forma sustentada. Grande desafio. Maior ainda porque eu nunca tivera experiência desse tipo no passado e sabia que eu seria a única médica da equipe e a coordenadora médica do projeto. Além disso, eu sabia que este cargo estava vazio na equipe havia um ano e meio, o que tornava a situação ainda mais difícil para mim, que teria que praticamente reinventar todo o trabalho, que eu não tinha nem idéia de como era. Depois, eu aprendi, na “vida real”, que experiência é muito importante, mas que o essencial mesmo é a motivação - e isso eu tinha! O contrato inicial de seis meses se prolongou para um ano. Seis meses era muito pouco para compreender aquela realidade tão distante e 126 diferente e para conseguir, junto com meus colegas, trabalhar de forma adaptada e conjunta, em sintonia com os angolanos. 2. Desenvolvimento Angola tem aproximadamente 15 milhões de habitantes3. Após uma longa guerra civil, de quase 30 anos, que só terminou em 2002, esse país passa por um período de paz e reconstrução. Reconstrução lenta e difícil, com dificuldades políticas persistentes. As últimas, primeiras e únicas eleições aconteceram em 1992 e acabaram por intensificar os conflitos de luta armada. Atualmente, no ano de 2008, o país está concluindo o registro eleitoral da população, para que as próximas eleições possam se realizar, talvez, em 2009. A guerra destruiu a infra-estrutura de Angola, suas estradas, ferrovias, escolas, os postos de saúde, hospitais, a eletricidade, os sistemas de água e esgoto (Figura 1). Milhões de pessoas morreram ou se refugiaram, famílias se separaram, crianças ficaram órfãs, milhões de minas terrestres foram colocadas no solo angolano, matando e incapacitando milhares de pessoas. A guerra ficou marcada na história, na cultura, na vida e no olhar de cada angolano. Ela acabou com o sonho de muitos, mas a paz trouxe novamente a esperança. E é este o momento de Angola: o momento do sonho, da paz, da efervescência. Será que o país que produz um milhão e meio de barris de petróleo por dia, fato que é desconhecido pela maioria dos angolanos, conseguirá vencer desafios como o de combater a segunda maior mortalidade de crianças menores de cinco anos do mundo4? O momento é de euforia, de crescimento, de reconstrução, mas as dificuldades são muitas; as marcas da dominação, do colonialismo, da guerra, da destruição, do autoritarismo e da submissão são muito fortes e difíceis de serem apagadas. As pessoas ainda vivem na lógica da sobrevivência; é difícil, com um passado tão recente de guerra e mortes, construir um projeto de vida, dar vazão aos sonhos. As marcas do passado são mesmo difíceis de apagar. Mas não se trata de apagar, trata-se de transformar, de construir uma identidade com cidadania, sem dominação nem guerra. A Angola de Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Angola, ares de transformação. hoje tem ares de transformação. A transformação precisa acontecer. É inaceitável que, em um país tão rico, um quarto das crianças morra antes de completar cinco anos3,4. A mortalidade materna também é uma das mais altas do mundo: 1.700 : 100.000. As principais causas de morte são doenças infecciosas que podem ser prevenidas, como malária, diarréia e pneumonia. A expectativa de vida ao nascer é de apenas 41 anos. A desnutrição também é um problema sério; estima-se que aproximadamente 30% das crianças estejam abaixo do peso esperado. A assistência à saúde é extremamente deficiente, principalmente na zona rural. As unidades de saúde estão em condições muito precárias (Figura 2), faltam medicamentos e profissionais de saúde. Toda a assistência nos postos de saúde e até em alguns hospitais da zona rural é feita por técnicos de enfermagem, pois há uma grande escassez de médicos, e a grande maioria destes se concentra na capital, Luanda, onde existem mais atrativos, melhores possibilidades financeiras e um atraente sistema de saúde privado. A alta taxa de natalidade (aproximadamente sete filhos por mulher)3,4 e o grande número de partos sem assistência de um profissional qualificado, somados ao acesso ainda restrito à assistência pré-natal, são alguns dos fatores que contribuem para a excessiva mortalidade materna. Em muitos lugares da zona rural, a maioria dos partos ainda é feita no domicílio, pelas parteiras tradicionais, pois a unidade de saúde fica muito distante e não há transporte disponível. Nestes lugares, se há necessidade de um parto cesáreo, as muitas horas de espera por transporte e o próprio trajeto até um hospital na capital da província resultam em muitas mortes de mães e bebês. Neste contexto tão difícil, trabalhar com um projeto de desenvolvimento foi um desafio constante, com muitas frustrações e pequenos ganhos a cada dia. Trabalhávamos com várias limitações de estrutura e de segurança. Os deslocamentos de carro eram restritos às estradas que já haviam sido desminadas, a comunicação era por rádio, eletricidade, às vezes, havia, e banho era de balde. No planalto de Bié, onde está localizada a província de Huambo, as estradas cortam uma linda savana, com mui- 127 tos rios, pedras e colinas, paisagem que lembra o cerrado brasileiro. A 1.700 metros de altitude, o clima é muito agradável; uma estação seca, de maio a setembro, e uma estação chuvosa, de outubro a abril. Fala-se português oficialmente, mas há 20 línguas nacionais em Angola, e nas zonas mais isoladas, o português ainda é muito pouco falado. Na região de Huambo, fala-se umbundo. A equipe estrangeira de MDM era constituída por mim, duas enfermeiras, uma parteira, um administrador, um logístico e um coordenador geral. A maior parte da equipe era formada por angolanos, contratados no local, técnicos de enfermagem, pessoal administrativo e de apoio. Todos falavam umbundo, o que facilitava o trabalho com as populações das zonas mais isoladas. Trabalhar com os angolanos foi um grande prazer, pela sua simpatia e alegria, mas também uma grande dificuldade, pela sua passividade, desmotivação e comportamento submisso. A sociedade funciona de maneira altamente hierarquizada e centralizada, tudo depende do chefe, e quem não é chefe não ousa falar o que pensa. Logo percebi que paciência e persistência seriam essenciais para conseguir desenvolver um trabalho neste contexto. Trabalhar e conviver com os angolanos, sempre com o objetivo de estimular a sua autonomia e o seu senso de responsabilidade, foi um grande aprendizado. Aprender a ter paciência para observar e aprender como as coisas são feitas no seu ritmo, respeitando as diferenças e mantendo a motivação viva, apesar das dificuldades, que, às vezes, pareciam insuperáveis, foi uma grande lição para a vida. Todas as atividades idealizadas e realizadas pela nossa equipe eram construídas em conjunto com o pessoal local, em geral, o pessoal ligado ao Ministério da Saúde (MINSA), nos níveis provincial e municipal. O objetivo era trabalhar com eles, para que se apropriassem do trabalho, aumentando a probabilidade de uma ação sustentável. Construir as atividades junto com o pessoal local, estimulando a sua participação ao máximo, nem sempre foi fácil. Ajudar a combater a corrupção e o clientelismo e melhorar a qualidade da administração eram sempre objetivos desafiadores. Neste aspecto, foi muito importante o traba- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Angola, ares de transformação. lho de advocacia de MDM, para o qual dediquei uma parte significativa do meu tempo. Testemunhar, por meio de depoimentos e documentos oficiais (fosse por relatórios mensais da organização, de documentos específicos, artigos em jornais locais, depoimentos na rádio local ou reuniões com as autoridades responsáveis), certas situações, como falta de condições básicas para assistência, falta de medicamentos essenciais e falta de qualificação e de pessoal, e buscar das autoridades angolanas mais responsabilidade e comprometimento representaram um trabalho constante e árduo durante todo o ano que fiquei em Angola, já que o costume era sempre o de esperar que as organizações internacionais fizessem, mais do que as autoridades de saúde, este “trabalho com as populações carentes”. O trabalho de campo acontecia nas localidades de Bailundo e Mungo (população aproximada de 360 mil habitantes), no norte da província de Huambo. Em toda esta região, havia apenas um médico trabalhando, no hospital municipal de Bailundo, mas que passava a maior parte do tempo na capital provincial, Huambo, fazendo trabalhos administrativos. As ações propostas pelo nosso projeto eram principalmente voltadas para a supervisão e a formação dos profissionais de saúde locais que trabalhavam nos postos de saúde da região ou no hospital municipal de Bailundo, principalmente técnicos de enfermagem (básicos – com dois anos de curso técnico –, e médios – com quatro anos de curso técnico). As supervisões eram feitas pela equipe de MDM juntamente com supervisores locais angolanos ligados ao MINSA. As atividades de formação eram organizadas também em conjunto com o pessoal do MINSA e, sempre que possível, facilitadas por eles. Além do trabalho de supervisão contínua das atividades dos técnicos de enfermagem, organizávamos seminários e cursos pontuais abordando assuntos identificados como prioritários por MDM, pelos profissionais ligados ao MINSA e pela população. Foram trabalhados temas como a sensibilização ao problema da desnutrição, cuidados pré-natais, assistência ao parto e pósparto, DST/Aids e planejamento familiar. Procurávamos sempre incluir a participação de líderes comunitários nas ações propostas, como líderes religiosos, chefes de aldeias 128 (sobas), parteiras tradicionais, mas isso nem sempre era possível, em virtude da quase inexistente organização da comunidade para ações participativas e do desconhecimento generalizado das pessoas quanto aos seus direitos de cidadãos. Outra frente de trabalho importante de MDM era com as parteiras tradicionais. Elas eram aproximadamente 450 em Mungo e Bailundo e faziam a maioria dos partos, pois as aldeias ficavam muito distantes dos postos de saúde, às vezes mais de 30 km. Porém, trabalhavam sem nenhum apoio material, nem gratificação oficial, apesar de serem reconhecidas oficialmente pelo MINSA. Assim, quando possível, recebiam comida ou outra gratificação que estivesse disponível, das famílias das parturientes, comida ou outra gratificação que estivesse disponível. Frente a essa situação, MDM organizou um trabalho de apoio às parteiras tradicionais, realizando, em conjunto com trabalhadores do MINSA, supervisoras locais das parteiras e líderes comunitários, encontros mensais de reforço de conhecimentos e de reposição de material para realização de parto limpo (luvas, sabão, solução anti-séptica, lâminas, descartáveis etc) com as parteiras de cada localidade. Eram reforçados conhecimentos como: práticas de higiene, alimentação da gestante, detecção de situações de risco na gestação e encaminhamento para unidade de saúde, importância do pré-natal no posto de saúde para recebimento das práticas preventivas, amamentação exclusiva, importância do registro dos partos, dentre outros. Foi um trabalho muito gratificante, pois as parteiras tradicionais sempre se mostraram muito interessadas, participativas e comprometidas com as suas comunidades. Depois de um ano de trabalho, viu-se um aumento no registro de consultas pré-natais nos postos de saúde, o que pode ser devido à maior sensibilização das parteiras tradicionais, assim como ao aumento do registro das consultas. Resultados positivos puderam ser alcançados, e, o que é mais importante, com a implicação permanente dos trabalhadores do MINSA. Porém, resta a dúvida do quão sustentável será este trabalho após a saída de MDM. Em relação às ações direcionadas ao combate à desnutrição, MDM mantinha um trabalho de assistência às Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Relato de Caso crianças e gestantes com desnutrição moderada (sem necessidade de internação). Os centros nutricionais suplementares funcionavam identificando crianças e gestantes com Case Report desnutrição, distribuindo alimento especial, provendo assistência básica (antiparasitários, antimaláricos, antibióticos e tratamento para escabiose, por exemplo) e promovendo educação para a prevenção da desnutrição. Uma equipe de oito agentes de nutrição, contratados por MDM, cada um com uma bicicleta, fazia um trabalho de identificação de crianças desnutridas em aldeias distantes e isoladas, referindo-as para o centro nutricional. As crianças ou gestantes que ingressassem no centro ficariam em tratamento durante três meses (ou menos, em caso de aumento persistente de peso e melhora clínica), com retornos a cada duas semanas para recebimento de alimento e assistência. O problema deste tipo de trabalho em um contexto de reconstrução e desenvolvimento é justamente o seu caráter assistencial. Os centros nutricionais de MDM funcionaram durante três anos. Casos agudos foram efetivamente tratados, mas pouco se conseguiu evoluir na prevenção do problema, pois as causas básicas não foram diretamente abordadas. Sabendo-se que a desnutrição é um problema de causa multifatorial, é absolutamente necessário que a sua abordagem seja abran- gente, atingindo as suas diferentes vertentes causais: alimentação insuficiente e inadequada (pouco variada), agricultura precária, condições de moradia insalubres, falta de saneamento básico, consumo de água nãotratada, mães com muitos filhos, práticas de cuidado inadequadas das mães com as crianças, doenças infecciosas de fácil transmissão (parasitoses, diarréias, malária etc.) e recorrentes, introdução precoce de líquidos e alimentos aos bebês e pouco aleitamento materno exclusivo, assistência à saúde precária em estrutura e em qualificação de profissionais, baixa escolarização. Enfim, um universo de fatores que requer intervenções de caráter intersetorial, com comprometimento da população, da sociedade civil organizada, das organizações e, principalmente, do governo. Além do trabalho com centros nutricionais suplementares, MDM trabalhava com a equipe de técnicos de enfermagem do centro nutricional terapêutico de Bailundo, 129 Angola, ares de transformação. onde eram internadas as crianças com quadros graves de desnutrição (marasmo e kwashiorkor). Este trabalho foi feito por meio da supervisão contínua dos técnicos em seu local de trabalho, revisão de casos clínicos e formação de um grupo de estudos para revisar o protocolo da Organização Mundial da Saúde, adotado pelo MINSA, para o tratamento da desnutrição grave5. Assim, ao longo de um ano, viu-se um progresso importante nas práticas de rotina do pessoal do centro, nas suas condutas, no seu relacionamento com as crianças e seus familiares (afeto e dedicação) e, principalmente, na sua motivação e comprometimento com o trabalho. Para isso, foi fundamental a ênfase que foi dada no trabalho de resgate da auto-estima e de valorização dos profissionais. Conforme os registros do centro nutricional terapêutico, observou-se uma diminuição da mortalidade de crianças internadas ao longo deste ano de trabalho. Mais uma vez, resultados positivos foram alcançados. Mais uma gota no oceano! De novo, resta saber o quanto isso contribui para uma mudança real e sustentável. Além do trabalho previsto pela nossa equipe, mais uma força-tarefa surgiu devido a uma violenta epidemia de cólera que atingiu quase todo o país no período de fevereiro a julho de 2006 (Figura 3). Neste período, foram registrados mais de 20 mil casos em toda Angola e mais de duas mil mortes. A província de Huambo não foi atingida pela epidemia, apenas alguns casos isolados vindos de outras províncias foram registrados. Uma das províncias mais atingidas foi a de Benguela, na costa sul do país, onde MDM também estava presente com outro projeto (trabalho sócioeducativo com crianças de rua), na cidade de Lobito. Frente à situação caótica de Lobito (calor, sujeira, falta de saneamento básico, população sem acesso a água tratada etc.), diante do surgimento de numerosos casos de cólera e da falta de preparo em estrutura e pessoal para controlar a epidemia, MDM apoiou as autoridades de saúde locais com a vinda de uma equipe (uma médica, uma enfermeira e um logístico) específica, que trabalhou durante três meses na gestão da epidemia. Algumas das ações deste projeto de urgência para controle da cólera foram: instalação de um centro de tratamento de cólera, supervisão técnica do Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Angola, ares de transformação. pessoal de saúde (técnicos de enfermagem) no centro de tratamento, apoio logístico para melhorar a situação de higiene e acesso a água tratada nos centros de tratamento e nas comunidades, seminários de capacitação sobre manejo e prevenção da cólera para os profissionais de saúde, atividades educativas nas comunidades (teatro de rua) e supervisão nos postos de saúde dos bairros periféricos. Todas essas atividades eram realizadas em parceria com a Secretaria de Saúde local. Após três meses, a epidemia estava controlada. Foram registrados mais de oito mil casos e 500 mortes na província de Benguela. Porém, a base do problema continua presente. A situação de pobreza, falta de saneamento básico, lixo, tudo isso permanece e precisa ser abordado para que uma nova epidemia não surja muito em breve. Fora do período de epidemia, alguns casos isolados continuam aparecendo. Assim, diante da precariedade de condições sóciosanitárias, poder-se-ia esperar que um novo surto aparecesse a qualquer momento, especialmente quando começassem as chuvas. Novamente, como foi colocado em relação à desnutrição, voltamos às causas básicas dos problemas de saúde e aos seus deter- minantes sociais, aos direitos mais fundamentais que as pes- soas devem ter satisfeitos, que devem ser abordados e solucionados de maneira sustentável, para que o problema (a doença) possa ser devidamente tratado e, principalmente, prevenido. 3. Conclusão Assim, ficam algumas perguntas: será que o projeto de MDM conseguiu fazer uma contribuição positiva para a melhoria da saúde dos angolanos? E qual a melhor maneira de intervir e de contribuir para o desenvolvimento de países pobres, recentemente saídos de destrutivos períodos de guerra após terem vivido longos anos de dominação, como é o caso de Angola e da maioria dos países da África subsaariana? Eles precisam realmente de ajuda externa, alguns deles, como Angola, tendo tantas riquezas? Parece que sim, mas que esta contribuição deve ter o objetivo de estimular e promover a autonomia destes países, tanto de seus governantes, como de sua população. 130 Para isso, os programas devem integrar a participação local nos seus processos de planejamento e execução. É preciso ter muito cuidado com a perversidade do efeito de causar uma relação de dependência entre aqueles que provêm a ajuda externa e aqueles que a recebem, e este aspecto deve sempre ser considerado na idealização dos programas. A contribuição externa, vinda de países desenvolvidos ou de outros países em desenvolvimento, também pode ser positiva no combate à corrupção e na denúncia de situações de violação de direitos humanos que ocorrem nestes países, cujos governos freqüentemente limitam a participação popular. Qual a melhor forma de intervir para que haja mudança, transformação? É difícil que exista uma resposta, devem existir várias, depende do contexto. O que parece claro é que, desde o início, as pessoas têm de possuir autonomia para se apropriar do problema e poder participar ativamente. É o ponto de partida para que cada pessoa seja agente da transformação. Em Angola, a transformação está vindo lentamente. Os ventos da mudança ainda não sopram tão fortemente, mas se pode sentir uma brisa amenizando o calor sufocante de Luanda. Sente-se que há movimento rumo a um ca- minho melhor. Recentemente, a província de Luanda, juntamente com UNICEF, lançou o projeto de implantação do programa de agentes comunitários de saúde, inicialmente apenas nesta província, mas com uma perspectiva de expansão para todo país. Há esperança de que a população tenha acesso a melhores cuidados de saúde e que as pessoas sejam ativas nas práticas preventivas em suas comunidades. Há indícios de que Angola esteja no caminho de fortalecer e priorizar a atenção primária à saúde. Isto é uma ótima notícia. Há motivos, sim, para ter esperança em uma Angola melhor, em um mundo melhor! Pelo menos, foi assim que eu “li”, e guardo comigo, o sorriso de cada criança que cruzou o meu caminho ao longo deste ano transformador. 4. Referências 1. www.medecinsdumonde.org. Acesso em 17/01/2008. 2. www.msf.org. Acesso em 17/01/2008. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 Camila Giugliani Angola, ares de transformação. 3. http://www.who.int/countries/ago/en/. Acesso em 17/01/2008. 4. UNICEF. http://www.unicef.org/infobycountry/ angola_statistics.html. Acesso em 17/01/2008. 5. Organização Mundial da Saúde. Manejo da desnutrição grave: um manual para profissionais de saúde de nível superior (médicos, enfermeiros, nutricionistas e outros) e suas equipes auxiliares. Genebra, 2000. Endereço para correspondência: Camila Giugliani Rua Amélia Telles, 629/401 Porto Alegre – RS CEP.: 90460-070 Foto: Camila Giugliani, agosto de 2006 Prédio administrativo com marcas de tiros na cidade de Huambo. Endereço eletrônico: [email protected] Foto: Camila Giugliani, novembro de 2006 Posto de saúde na Comuna de Bimbe, Município de Bailundo, zona rural da província de Huambo. Foto: Camila Giugliani, abril de 2006 Criança com cólera e desidratação grave sendo tratada durante a epidemia de cólera no Hospital de Benguela, província de Benguela. 131 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Relato de Caso O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional Case Report The Integration Program: an experience in professional education Juliana Saiddler* Célia Regina Machado Saldanha** Resumo O Programa Integrador (PI), eixo pedagógico estruturante da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, busca inserir o aluno precocemente na realidade através das ações em áreas de atuação das unidades básicas de saúde, numa parceria ensino-serviço, trabalho realizado em grupos multiprofissionais e que é desenvolvido do segundo até o sexto período de cada curso. O desenvolvimento desta ação acontece de forma progressiva começando com o levantamento do território, das famílias, fazendo um diagnóstico de saúde que serve de base para o planejamento das ações executadas no último período. Este texto é relato de uma aluna que, vivendo nesse cotidiano pôde perceber a importância desse processo na formação profissional, e essa prática permitiu vencer algumas ansiedades sentidas no primeiro contato com o paciente, bem como modificar o olhar, geralmente focado na doença para um mais abrangente que pensa e trabalha em prol da saúde. A descrição dessa experiência pretende contribuir para que outras instituições possam se beneficiar transformando suas práticas em parcerias exitosas como a nossa. Abstract The Integration Program (IP), the pedagogical spinal column of the Medical School of Juiz de Fora, Brazil, seeks to combine training and service by introducing the students since the beginning to the reality of the work in primary care units and multi-professional teams. The program is conducted progressively from the second to the sixth semester of each course and begins with a survey of the territory covered by the Unit, its population and living conditions, later followed by a diagnosis of the health in this area that will build the basis for a planning of health actions in the last semester. This text is the report of a student who, through participating in this daily routine, realized the importance of this process for her professional education, allowing her not only to overcome a certain uneasiness in the first contact with the patient but also to modify her view - generally focused on disease - into a broader one, focused on thinking and working to favor and improve health. With this report, we aim to give to other institutions the opportunity to benefit from this experience, transforming their practices into successful partnerships like the here described. Palavras-chave: formação médica; integração ensino-serviço; atenção primária à saúde. Key Words: medical education; in service training; primary healthcare. *Aluna do sétimo período de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora **Médica de Família, Professora de Saúde Coletiva e do Programa Integrador. 132 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. 1. Introdução A Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora (FCMS/JF), possui como proposta trabalhar na formação do profissional, com uma consciência crítica reflexiva. O Programa Integrador (PI), eixo pedagógico estruturante da instituição, busca inserir o aluno precocemente nas comunidades por meio das unidades básicas de saúde, em uma parceria ensino-serviço, trabalho realizado em grupos multiprofissionais e que é desenvolvido do segundo até o sexto período de cada curso. No primeiro módulo, os alunos visitam a área e apreendem os aspectos físicos e sociais do território, as barreiras, os recursos e o modo de viver dessa população. Em seguida conhecem e discutem sobre a família, seus problemas e necessidades e fazem um levantamento das dificuldades em relação à saúde. No terceiro módulo, realizam um diagnóstico de saúde da área, incorporando as noções de vigilância à saúde, determinantes epidemiológicos, sociais, ambientais e aqueles relacionados ao trabalho, construindo um diagnóstico da área que será usado no quarto módulo para realizar um planejamento, sendo o plano de intervenção colocado em prática no quinto módulo, quando analisam as rotinas dos serviços, acompanham o profissional da unidade, realizam ações educativas e visitas domiciliares, enfim, aprendem a viver o dia-a-dia de uma unidade básica de saúde. Esse trabalho, feito o tempo todo em grupos multiprofissionais incorpora no aluno uma perspectiva do trabalho em equipe e o respeito pelo saber do colega de outras categorias profissionais rompendo com a cultura do saber compartimentado e dos preconceitos profissionais. Ao chegar ao quinto período, quando consigo perceber o Programa Integrador de forma mais ampla, surge a motivação para esse relato, considerando que poderia melhorar a aceitação e a visibilidade do PI como um todo e ainda oferecer as outras instituições uma visão da inserção precoce do aluno em um trabalho em equipe. 2. Objetivo Relatar a experiência vivida, durante os cinco anos do curso de Medicina, em um trabalho que prepara o aluno 133 para uma prática profissional mais humanizada. 3. Método Trata-se de um relato de experiência de característica descritiva em que o desenvolvimento de habilidades práticas é incorporado ao aluno, permitindo um olhar crítico reflexivo a respeito das diferenças e necessidades de uma comunidade localizada na periferia de Juiz de Fora. 4. Resultado (Relato da aluna) O primeiro passo havia sido dado, eu já estava em uma Universidade. Logo nas apresentações conheci de longe o Programa Integrador (PI) - projeto elaborado pela Faculdade que tem como objetivo principal colocar os estudantes da área da saúde em contato direto com a realidade dos problemas da população, de seus futuros pacientes, além de interagir com alunos de áreas distintas, aprendendo a respeitar o espaço de cada um e a trabalhar em equipe. Fomos separados por grupos com alunos de Enfermagem, Fisioterapia e Medicina (atualmente foram incorporados os cursos Farmácia e a Odontologia). Naquele momento, tive a real impressão de que eu fazia um curso com base na prática da realidade nacional. Estava ansiosa para ter contato com a população e poder, de certa forma, contribuir para a assistência à saúde do Brasil. O cenário de desenvolvimento do Programa Integrador do meu grupo foi a área de abrangência da Unidade Básica de Saúde de Santa Efigênia, na cidade de Juiz de fora, mais precisamente na área 35, microárea 05. A supervisora responsável pela UBS é uma assistente social e o orientador no trabalho de campo é um agente comunitário. No primeiro dia, meus colegas e eu conhecemos toda a área 35 do bairro, para uma visão mais ampla do território. Observei que os ônibus circulavam somente nas ruas asfaltadas; algumas ruas não possuíam boca-de-lobo e inundam quando chovia; observamos muito mato, lixo e entulho nas ruas e nas calçadas. Esse momento nos permitiu diagnosticar falha do poder público em relação aos serviços Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. prestados a esses moradores, principalmente em relação ao saneamento básico, a segurança e ao transporte. De acordo com o relato dos agentes que nos acompanharam, existem alguns pontos de tráfico de drogas e de prostituição; esta região possui um alto índice de roubos. Observei também que existem muitos bares e poucas escolas, sendo estas, em sua maioria, direcionadas ao ensino fundamental. Nos outros dias, conhecí a minha microárea. As ruas são planas, o esgoto é encanado, com exceção de uma das ruas. A maioria das ruas é asfaltada ou calçada. Todas possuem coleta de lixo. Esta microárea não possui escolas nem creches, mas possui uma igreja católica - há predomínio do catolicismo nessa área. em uma das ruas, percebemos maior precariedade de condições: não é asfaltada; havia, nela, lixo acumulado; as casas situadas alí, em sua maioria, eram inacabadas; além de ter sido percebida maior incidência de gravidez na adolescência, alcoolismo e uso de drogas naquela região específica. Feito o reconhecimento da microárea, e observadas suas condições sócioeconômicas e geográficas, fizemos uma ação educativa cujo tema era “lixo”. A apresentação aconteceu em uma instituição de apoio a crianças de dois a cinco anos. Foi feita sob forma de dinâmica de grupo com a participação das crianças que estudavam ali no turno da manhã - elas participaram com entusiasmo. Foi interessante e tive um contato próximo com uma realidade diferente da que estava acostumada. Essa experiência me fez crescer não só como profissional, mas se tornou mais sensível às dificuldades daquelas pessoas. O PI-2 também ocorreu na área de abrangência da mesma unidade básica de saúde. Em idas quinzenais recolhemos alguns dados que serviram para construir um primeiro diagnóstico da área. A população de abrangência da UBS é de 12.770 habitantes; o número de famílias, 3.775; a população de abrangência da equipe, 3.914; a população da microárea de atuação é de 708 habitantes; número de famílias da microárea: 200. Esta seria a nossa população de referência. A proposta desse período foi de que cada aluno “adotasse” três famílias e, durante o período, realizasse 134 trabalhos de conscientização relacionados ao acondicionamento do lixo domiciliar. Nestas famílias, pudemos observar, dentre outros aspectos, detalhes não só da casa como também da rotina dos membros, como, por exemplo, os aspectos ambientais intradomiciliares, aspectos sociais, comportamentais e biológicos. Esses dados foram discutidos nas concentrações quinzenais do Programa Integrador, e, ao final do período, foi apresentado em um seminário, juntamente com os outros grupos, o que permitiu construir um “retrato” das famílias acompanhadas. Nesse período pudemos conhecer as famílias mais de perto e ter mais contato com a realidade dessas pessoas que representam o povo brasileiro. Conhecer as angústias, as dificuldades dessas famílias, ensinou-me a valorizar ainda mais o ser humano como um todo, e a perceber que o pouco que faço hoje pode ser muito em um contexto maior. No período seguinte, trabalhamos as diversas formas de vigilância; esse período iniciou com uma preleção teórica na qual se deu uma visão geral sobre o que é a Vigilância à Saúde e sua importância na sociedade. Dentro da vigilância à saúde enfocou-se vigilância epidemiológica, vigilância sanitária e vigilância à saúde do trabalhador. Debatemos sobre a eficácia das vigilâncias e todo o trabalho desenvolvido pelos profissionais nessa área. Aprendi a importância da notificação de doenças para que haja um maior controle das mesmas. Nas dispersões, na Unidade Básica de Saúde. O palestrante falou sobre as atividades na área da vigilância sanitária vigilância epidemiológica, imunização e zoonoses. Foi falado também sobre as ações desenvolvidas na UBS na área da saúde da mulher, saúde da criança, saúde do adolescente, saúde do idoso, saúde mental e saúde do trabalhador. Foi uma palestra que nos ajudou a entender melhor o significado dessas expressões tão utilizadas pelos profissionais de saúde, além de me manter informada sobre as ações programáticas desenvolvidas na UBS em que atuo. Desenvolvemos, no trabalho de campo, uma atividade em que levantamos as doenças mais freqüentes referidas pela população, a partir da qual pude me informar Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. melhor sobre os problemas que mais afligem a microárea e, então, desenvolver idéias para a diminuição das doenças por meio de ações de promoção a saúde, com o intuito de futuramente poder aplicá-las na prática profissional. Ao entrevistar pessoas sobre acidentes com cães ou gatos, foi possível notar o risco de exposição ao vírus rábico, o que gerou um relatório no qual retratamos a realidade das moradias e a preocupação com a saúde dos moradores que possuem animais. Tivemos uma apresentação dos sistemas nacionais de informações em saúde no Laboratório de Informática da Faculdade, onde aprendi a utilizar os dados disponíveis no site do DATASUS sobre a saúde da população e a prevalência de doenças em determinadas áreas. Esse conhecimento foi utilizado para que construíssemos o diagnóstico de saúde da área. Em relação à Vigilância Sanitária, aprendemos sobre problemas sanitários enfrentados e gerados pelos estabelecimentos públicos, as atitudes do órgão municipal responsável e sobre medidas necessárias para estar de acordo com as exigências do Código Municipal. Durante a aula seguinte foi aplicado o relatório sobre a concentração anterior, em que aprendemos a associar a doença com a qualidade dos serviços oferecidos nos estabelecimentos comerciais do município. Na concentração sobre Vigilância à Saúde do Trabalhador, debatemos sobre as principais doenças causadas pelos diversos tipos de trabalho e sobre a importância do registro e da notificação destes agravos, e, na dispersão seguinte, aplicamos um questionário que permitiu a elaboração de um relatório o qual mostrou a freqüência com que ocorrem acidentes de trabalho. Levantamos também informações sobre a incidência de desempregados na área, o que nos permitiu conhecer de perto as dificuldades com que essas pessoas lidam no dia-a-dia e nos fez pensar como fazem para comprar medicamentos. Ainda no PI-3 tivemos uma palestra sobre prevenção do câncer de próstata e sobre prevenção do câncer de mama e de colo uterino. Foi uma das aulas mais significativas do semestre para mim, devido ao grande 135 conhecimento que adquiri, principalmente sobre assuntos que tanto atingem a população em geral. Em um último momento, durante a dispersão, ficamos encarregados de colher dados das famílias da microárea sobre exames preventivos (de colo uterino, mama e próstata) e convidar os moradores a participarem da palestra desenvolvida pelos alunos da faculdade na semana seguinte. Essa palestra tratou sobre promoção da saúde da mulher e, também, sobre o câncer de próstata. Foram, sem dúvida, momentos importantes, devido à riqueza de dados obtidos e uma vez que alertamos a população sobre doenças e atividades a serem desenvolvidas. Trabalhar diretamente na promoção de saúde da população representa um ganho para a população e para os alunos, pois permite lançar um novo olhar sobre a Medicina, sempre tão focada na doença. A satisfação de ter promovido diretamente uma ação de promoção a saúde, foi o mais importante do PI-3. Neste semestre, aprendi um pouco mais sobre a realidade dos moradores do bairro e, com isso, não posso deixar de lembrar que, devido a tantos problemas enfrentados por essa população carente, é preciso fazer muito mais do que estamos fazendo. É preciso desenvolver trabalhos que realmente possam mudar a realidade dessa população que tanto clama por ajuda. O diagnóstico de saúde da área, elaborado a partir desses passos permitiu, no PI-4, planejar e preparar a ação de promoção à saúde. O plano de ação realizado teve como foco um problema grave de grande prevalência em nossa microárea. Iniciamos com a definição de uma necessidade ou um problema de saúde, sendo este prioridade em nossa microárea de atuação. Para chegarmos a essa definição, fizemos um consolidado com todas as informações colhidas nos outros PIs e atualizadas da nossa microárea. Os principais problemas identificados em nossa microárea foram as doenças sexualmente transmissíveis. Com isso, nossa prioridade naquele momento era conscientizar a população dos perigos das doenças sexualmente transmissíveis, mostrando como é possível preveni-las, dando ênfase Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. ao uso do preservativo, à prevenção a gravidez na adolescência. Nossa meta era atingir pelo menos 50 mulheres, o que correspondia a 20% das mulheres em idade fértil da área, que corriam o risco de adquirir doenças ou engravidarem precocemente. O grupo de risco era o formado por mulheres em idade fértil com vida sexualmente ativa. Com todas essas informações em mãos, elaboramos uma ação educativa, que consistia de dinâmicas em grupo, com participação ativa das usuárias. Na ação realizada pudemos trocar experiências com jovens e compartilhar as idéias de sexo seguro e prevenção da gravidez indesejada. Foi um momento rico para todos, inclusive para os alunos, que aprenderam, convivendo com as diferentes opiniões, a criar estratégias de um serviço humanizado e mais próximo da população. O período destinado ao PI5 foi basicamente para colocar em prática tudo o que aprendemos nos outros módulos. Fomos divididos em relação a cinco atividades: - acompanhamento de consulta, no qual observa- mos a rotina desta em uma UBS. - visita domiciliar, que nos deu a oportunidade, novamente, de estarmos mais próximos da realidade do paciente, como condições de moradia, saneamento e os fatores de risco a que o paciente encontra-se exposto; porém, agora, com maior entendimento dessa problemática e vislumbrando algumas soluções; - ação educativa (sala de espera, ação na comunidade, atividades nas escolas), momento em que trabalhamos com a informação e prevenção de agravos para a população; - ida aos ambulatórios especializados, como saúde da mulher, saúde do idoso, do adolescente para acompanhamento do fluxo do paciente nestes serviços; - ação junto aos idosos em um centro de convivência, onde abordamos temas da terceira idade. O contato com a população aumentou módulo a módulo e permitiu vivenciar momentos que não poderíamos supor ao entrar no curso. 5. Referencial teórico No Brasil, a formação geral do médico sempre 136 esteve centrada na rede de assistência médica hospitalar, com grave prejuízo para a formação do médico, que, como profissional, deverá atuar muito mais na assistência ambulatorial1. Muito se discute hoje sobre a inadequação do profissional ao se formar, quanto às suas habilidades para trabalhar no Sistema Único de saúde, SUS, e atribui-se essa inadequação, em grande parte, às grades utilizadas pelas instituições de ensino, muito voltadas para o ensino das especialidades, usando como cenário de práticas as enfermarias dos hospitais onde pacientes, em geral graves, pouco reagem às manobras realizadas pelos alunos2. Em tais instituições, o ambulatório raramente serve como local para o ensino clínico, ocorrendo este, preponderantemente, nas enfermarias, as quais, por sua vez, internam pacientes graves e que geralmente requerem tecnologia sofisticada para o diagnóstico3. Cria-se assim no aluno uma idéia de que o profissional trabalhará sempre em cenários deste porte, desvalorizando-se a prática voltada para a comunidade, na qual pacientes “impacientes” ficam à mercê de um olhar muitas vezes equivocado e focado na doença e na tecnologia de ponta. Sendo assim, torna-se importante a mudança dessa cultura, havendo necessidade de um redesenho das grades curriculares para se produzir uma reforma cultural nas universidades. Entende-se que a universidade deveria analisar sua formação não só em relação à valorização da prática especializada, mas também quanto aos problemas de saúde pública do nosso país, buscando formas de viabilizar a universalização da saúde para toda a população brasileira4. Essa mudança deveria envolver alunos e, principalmente, professores, pois são estes os responsáveis pela formação da identidade do novo profissional, preparando-o para um trabalho que procure avaliar os vários aspectos do fenômeno saúde/doença, principalmente em relação ao trabalho na Atenção Primária, fugindo daqueles puramente especializados e individualistas, meramente curativos e mecanicistas, alicerçados na estrita visão biológica do indi- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 O Programa Integrador: uma experiência na formação profissional. Juliana Saiddler e Célia Regina Machado Saldanha. víduo4. A escola médica deveria ser capaz de ensinar a técnica, as habilidades, as atitudes e a teoria, porém alguns atributos não se ensinam, são intrínsecos do indivíduo que nasceu com o dom do cuidado. A lapidação desse dom pela educação, os valores e a concepção de vida de cada acadêmico é que formarão um bom profissional. A necessidade de profissionais capazes de atender aos anseios de uma população cada vez mais exigente e a defasagem dos currículos tradicionais quanto à abordagem de assuntos importantes, como bioética, são apenas alguns exemplos que levaram ao surgimento de muitos focos concretos de mudança na educação médica brasileira5. O aluno ingressa na escola, cheio de questionamentos e curiosidades, e, no decorrer do curso, vai progressivamente se distanciando do caminho da descoberta, vai se tornando mais frio e percebendo o paciente apenas como mais um “equipamento” a serviço do seu aprendizado, utiliza o corpo do outro como se ele não possuísse medos, desejos e como se lhe pertencesse. Esta relação de poder, estruturada durante a graduação, promove a incorporação de novos conhecimentos de maneira pouco crítica. Um processo desejável seria o formativo, que proporcionaria ao aluno a oportunidade de um aprendizado relevante e, ao mesmo tempo, o domínio do método científico6. 6. Conclusões Conforme o relatado, vivendo o dia-a-dia dessa comunidade, em uma parceria entre a escola, a comunidade e a unidade básica de saúde, pude perceber a importância desse processo na minha formação profissional, e essa prática me permitiu vencer algumas ansiedades sentidas no primeiro contato com o paciente, bem como modificar o meu olhar, tão focado na doença, para um mais abrangente, o qual pensa e trabalha em prol da saúde. Acreditei muito no Projeto Integrador desde que fui apresentada a ele, e acredito ainda mais agora, após seus resultados. Com ele, pude aprender a ser mais humana, conhecendo um pouco da realidade de um Brasil que tem 137 muitas riquezas, mas, também, tem muita desigualdade, e exige profissionais preparados para enfrentá-las. Ao descrever essa experiência pretendo contribuir para que outras instituições possam se beneficiar e transformar suas práticas, em parcerias bem-sucedidas como a nossa. 7. Referências 1. Marcondes E, Carazzato JG, Friedmann AA. Iniciação das atividades Clínico- assistenciais. In: Marcondes E, Gonçalves EL. coord. Educação Médica. São Paulo: Sarvier; 1998. p.167-173. 2. Wierzchon PM, O Ensino Médio no Brasil Está Mudando?. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 26, nº 1, jan/abr. 2002. 3. Bulcão LG, O Ensino Médico e os Novos Cenários de Ensino-Aprendizagem. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro, v.28, nº 1, jan./abr. 2000. 4. Ronzani TM, Ribeiro MS. Identidade e Formação Profissional dos Médicos. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v.27, nº 3, set./dez. 2003. 5. Padilha RQ, Feuerwerker LCM, Editorial. As Políticas Públicas e a Formação de Médicos. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro, v. 24, nº 3, ou/dez. 2000. 6. Gonçalves MB, Moraes AMSM. Inserção dos Alunos da Primeira Série do Curso de Medicina em Serviços de Saúde. Rev Bras Educ Méd. maio-ago. 2003; 27(2): 83-90. Endereço para correspondência: Juliana Saidler Rua José Cesário, 45 / 903 Alto dos Passos, Juiz de Fora MG CEP.: 36025-030 Endereço eletrônico: [email protected] Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instruções aos autores. Instrução aos autores da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade A Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC) é uma publicação trimestral da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que tem por finalidades: sensibilizar profissionais e autoridades da área de saúde sobre a área de interesse da Medicina de Família e Comunidade; estimular e divulgar temas e pesquisas em Atenção Primária à Saúde (APS); possibilitar o intercâmbio entre academia, serviço e movimentos sociais organizados; promover a divulgação da abordagem interdisciplinar e servir como veículo de educação continuada e permanente no campo da Medicina de Família e Comunidade, tendo como eixo temático a APS. Os trabalhos serão avaliados por editores do Con- selho Científico e Editorial, como também por pareceristas convidados ad hoc. O processo de avaliação por pares preserva a identidade dos autores e suas afiliações, sendo estas informadas ao Conselho Editorial somente na fase final de avaliação. Todos os trabalhos deverão ser escritos em português, com exceção dos redigidos por autores estrangeiros não-residentes no Brasil, que poderão fazê-lo em inglês ou espanhol. Tipos de Trabalho A revista está estruturada com as seguintes seções: Editorial Artigos Originais Artigos de Revisão Diretrizes em Medicina de Família e Comunidade Ensaios Relatos de Experiência Resumos de Tese Cartas ao Editor O Editorial é de responsabilidade do editor da revista, podendo ser redigido por terceiros por solicitação dele. A seção Artigos Originais é composta por artigos resultantes de pesquisa científica, apresentando dados originais de descobertas com relação a aspectos experimentais ou de observação, voltados para investigações qualitativas ou quantitativas em áreas de interesse da APS. Artigos originais são 138 trabalhos que desenvolvem crítica e criação sobre a ciência, tecnologia e arte das ciências da saúde que contribuem para a evolução do conhecimento sobre o homem, a natureza e a inserção social e cultural. O texto – contendo introdução, material ou casuística, métodos, resultados, discussão e conclusão – deve ter até 25 laudas. A seção Artigos de Revisão é composta por artigos nas áreas de Gerência, Clínica, Educação em Saúde. Os artigos de revisão são trabalhos que apresentam síntese atualizada do conhecimento disponível sobre matérias das ciências da saúde, buscando esclarecer, organizar, normalizar e simplificar abordagens dos vários problemas que afetam o conhecimento humano sobre o homem e a natureza e sua inserção social e cultural. Têm por objetivo resumir, analisar, avaliar ou sintetizar trabalhos de investigação já publicados em revistas científicas e devem ter até 20 laudas, contendo introdução, desenvolvimento e conclusão. A seção Diretrizes em MFC é composta por artigos estruturados dentro das normas da Associação Médica Brasileira para diretrizes clínicas, validados pela SBMFC. Sua confecção, sob orientação da Diretoria Científica da SBMFC, é uma proposta de organizar e referendar o trabalho dos MFC no Brasil. A seção Ensaios visa à divulgação de artigos com as análise crítica sobre um tema específico relacionado à Medicina de Família e Comunidade e deve ser apresentada em uma média de 5 a 10 laudas. A seção Relatos de Experiência é composta de artigos que relatam casos ou experiências os quais explorem um método ou problema por meio do exemplo. Os relatos de caso apresentam as características do indivíduo estudado – com indicação de sexo e idade, podendo este ser humano ou animal –, ressaltam sua importância na atuação prática e mostram caminhos, condutas e comportamentos para a solução do problema. Essa parte deve ocupar até 8 laudas, com a seguinte estrutura: introdução, desenvolvimento e conclusão. A seção Resumos de Tese, que deve ter apenas 1 lauda, tem como proposta a divulgação da produção científica na temática do periódico. Nela, devem ser expostos resumos Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instruções aos autores. de dissertações de mestrado ou teses de doutoramento/ livre-docência defendidas e aprovadas em universidades brasileiras ou não. Os resumos deverão ser encaminhados com o título oficial da Tese, informando o título conquistado, o dia e o local da defesa. Devem ser informados, igualmente, o nome do Orientador e o local onde a tese está disponível para consulta. Em Cartas ao Editor, opiniões de leitores e su- gestões sobre a revista são bem recebidas. As cartas, contendo comentários sobre material publicado, devem ter no máximo 2 laudas. Os trabalhos a serem submetidos à apreciação do Conselho Científico deverão ser encaminhados por e-mail para a Secretaria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade ou ao Editor da revista. O padrão de formatação exigido é Word for Windows – versão 6.0 ou superior -, página padrão A4, letra Arial (tamanho 11), espaçamento entre linhas 1,5 e numeração seqüencial em todas as páginas. As notas de rodapé devem ser limitadas ao máximo possível, assim como as tabelas e os quadros – que devem ser de compreensão independente do texto. Os autores deverão informar seus nomes e endereços completos e quais organizações de fomento à pesquisa apoiaram os seus trabalhos, fornecendo inclusive o número de cadastro do projeto. Os trabalhos que envolverem pesquisas com seres humanos deverão vir acompanhados da devida autorização do Comitê de Ética da Instituição. Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência de apresentação: 1. Título em português e também em inglês(*). 2. Nome completo – nome(s) seguido(s) do(s) sobrenome(s) do(s) autor(es) – e, no rodapé, a indicação da Instituição a qual está vinculado, cargo e titulação. 3. Resumo do trabalho em português, no qual fiquem claros a síntese dos propósitos, os métodos empregados e as principais conclusões do trabalho. 4. Palavras-chave – mínimo de 3 e máximo de 5 palavras-chave ou descritores do conteúdo do trabalho, 139 apresentados em português de acordo com o DeCS – Descritores em Ciências da Saúde da BIREME - Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde – URL: <http://decs.bvs.br/>. 5. Abstract – versão do resumo em inglês(*). 6. Key words – palavras-chave em inglês, de acordo com DeCS(*). 7. Artigo propriamente dito, de acordo com a estrutura recomendada para cada tipo de artigo, citada no item 2. 8. Figuras (gráficos, desenhos e tabelas) devem ser enviadas à parte, com indicação na margem do local de inserção no texto; as fotografias em preto e branco devem ser apresentadas em papel brilhante. 9. Referências: são de responsabilidade dos autores e deverão ser limitadas às citações do texto, além de numeradas segundo a ordem de referência, de acordo com as regras propostas pelo Comitê Internacional de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors). Requisitos uniformes para manuscritos apresentados a periódicos biomédicos. Disponível em: <http:// www.icmje.org>. (*) A versão do título do trabalho, do resumo e das palavras-chave para o idioma inglês ficará a cargo da própria revista, salvo eventual decisão ao contrário em época futura que, se vier ao caso, será comunicada no Editorial da revista. Exemplos: Periódico Valla VV. Educação popular e saúde diante das formas de se lidar com a saúde. Revista APS. 2000; (5): 4653. Livro Birman J. Pensamento freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1994. 204p. Capítulo de livro Vasconcelos EM. Atividades coletivas dentro do Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instruções aos autores. Centro de Saúde. In: ________. Educação popular nos serviços de saúde. 3. ed. São Paulo: HUCITEC; 1997. p. 65-69. Dissertação Caldas CP. Memória dos velhos trabalhadores. [Dissertação]. Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1993. Evento Mauad NM, Campos EM. Avaliação da implantação das ações de assistência integral à saúde da mulher no PIES/UFJF; 6º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2000, Salvador. Salvador: Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva; 2000. p.328. Documento eletrônico Civitas. Coordenação de Simão Pedro P. Marinho. Desenvolvido pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1995-1998. Apresenta textos sobre urbanismo e desenvolvimento de cidades. Disponível em: www.gcsnet.com.br/oamis/civitas. Acesso em: 27 nov. 1998. Fluxo dos trabalhos submetidos à publicação. Os artigos são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. Avaliação por pares: os artigos recebidos são protocolados na secretaria da revista e encaminhados tanto ao editor geral quanto aos editores associados, para a triagem, a avaliação preliminar e a posterior distribuição ao Conselho Editorial e Científico, em conformidade com as áreas de atuação e especialização dos membros, bem como o assunto tratado no artigo. Todos os textos são submetidos à avaliação de dois consultores – provenientes de instituição diferente daquela do(s) autor(es) –, em um processo duplo cego, que os analisam em relação aos seguintes aspectos: adequação do título ao conteúdo; estrutura da publicação; clareza e pertinência dos objetivos; 140 metodologia; informações inteligíveis; citações e referências adequadas às normas técnicas adotadas pela revista e pertinência à linha editorial da publicação. Os consultores preenchem o formulário de parecer, aceitando, recusando ou recomendando correções e/ou adequações necessárias. Nestes casos, os artigos serão devolvidos ao(s) autor(es), para os ajustes e reenvio, e aos consultores para nova avaliação. O resultado é comunicado ao(s) autor(es), e os artigos aprovados ficam disponíveis para publicação em ordem de protocolo. Não serão admitidos acréscimos ou modificações após a aprovação. Declaração de responsabilidade dos autores Todas as pessoas responsáveis como autores devem responder pela autoria dos trabalhos, tendo como justificada a sua participação de forma significativa no trabalho para assumir responsabilidade pública pelo seu conteúdo. Deverão, portanto, assinar a seguinte declaração de autoria e de responsabilidade: “Declaro que participei de forma significativa na construção e formação deste estudo ou da análise e interpretação dos dados, como também na redação deste texto, tendo, enquanto autor, responsabilidade pública pelo conteúdo deste. Revi a versão final deste trabalho e aprovo para ser submetido à publicação. Declaro que nem o presente trabalho nem outro com conteúdo semelhante de minha autoria foi publicado ou submetido à apreciação do Conselho Editorial de outra publicação.” Artigos com mais de um autor deverão conter uma exposição sobre a contribuição específica de cada um no trabalho. Os autores de cada artigo receberão, após a publicação de seu trabalho, três exemplares da revista em que o seu estudo foi publicado. Ética em pesquisa Com relação às pesquisas iniciadas após janeiro de 1997, nas quais exista a participação de seres humanos nos termos do inciso II.2 da Resolução 196/ 96 do Conselho Nacional de Saúde (“pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta, Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instruções aos autores. em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais”), sempre que pertinente, deve ser declarado no texto que o trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Os trabalhos devem ser enviados para: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC Correspondência Rua 28 de Setembro, 44 sala 605 Rio de Janeiro - RJ Cep: 20551-031 Tel: 21 2264-5117 / 21 3259-6934 Fax: 21 3259-6931 Endereço eletrônico: [email protected] 141 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instructions to authors. Instructions to authors of the Brazilian Journal of Family and Community Medicine The Brazilian Journal of Family and Community Medicine (BJFCM) is a three-monthly publication of the Brazilian Society of Family and Community Medicine, aimed at sensitizing professionals and health authorities to this field of interest, stimulating and disseminating Primary Health Care (PHC) issues and investigations, and facilitating interchange between academic institutions, health care services and organized social movements. The periodical also aims to promote an interdisciplinary approach to this area and to serve as a vehicle for continued and permanent education in the field of Family and Community Health, with emphasis to the central subject PHC. Manuscripts will be reviewed by members of the Scientific and Editorial Board as well as by outside referees. This peer-review process safeguards the identity of authors and their institutions of origin, which only will be revealed to the Editorial Board in the end of the evaluation process. All manuscripts should be prepared in Portuguese language. Foreign authors, not living in Brazil, can submit their papers in English or Spanish. Categories and formats of papers The journal is divided into the following sections: Editorial Original articles Review articles Directives in Family and Community Medicine Essays Case reports These Abstracts Letters to the Editor The Editorial is responsibility of the editor of the journal, but can be prepared by third persons on his request. The section Original Articles is dedicated to reports on scientific investigations, presenting original data on findings from experiments or observation with emphasis 142 to qualitative or quantitative studies in fields of interest for PHC. Original articles are criticisms or creations on science, technology and the art of health sciences, contributing to the evolution of knowledge about Man, nature and social and cultural inclusion. The papers - including introduction, material or rationale, methods, results, discussion and conclusion – should not exceed 25 pages. The section Reviews is composed by articles about Health Management, Clinics and Health Education. Review articles are papers presenting an up-to-date synthesis of available knowledge on health science subjects, with the intent to elucidate, organize, normalize and simplify approaches to the different problems affecting human knowledge about Man and nature and social and cultural inclusion. These papers are aimed at summarizing, analyzing, evaluating and synthesizing investigations already published in scientific journals and should not exceed 20 pages, including introduction, rationale and conclusion. The section Directives in FCM receives articles prepared according to the norms for Clinical Directives of the Brazilian Association of Physicians, validated by the BSFCM. The purpose of these articles - prepared under the guidance of the Scientific Board of the BSFCM – is to organize and reference the work of physicians involved in FMC in Brazil. The section Essays publishes critical analyses regarding specific topics related to Family and Community Medicine. Articles should have 5 to 10 pages. Case Reports are articles addressing cases or experiences by exploring a method or problem based on an example. These articles indicate details such as sex and age of the studied individual – human or animal – emphasize their importance in practice and indicate ways, procedures and conducts for solving the problem. Articles for this section should not exceed 8 pages and include introduction, rationale and conclusion. The section Abstracts of Theses is aimed at publishing scientific production in the field covered by the journal in form of abstracts of master’s and doctor’s Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instructions to authors. dissertations defended in Brazilian universities or abroad. Abstracts should not exceed one page, state the official title of the dissertation, the academic degree achieved, date and place where the thesis was defended and indicate the name of the supervisor and where the dissertation is available for consultation. In the section Letters to the Editor, readers are invited to express their opinion and make suggestions to the journal. Articles should be submitted by electronic mail, directed to the Secretariat of the Brazilian Society of Family and Community Health or to the Editor. Papers should be typed in word processor Word for Windows – version 0.6 or superior – paper size ISO A4, font Arial, size 11, space between lines 1,5, and all pages should be numbered sequentially. References should be kept to the necessary minimum. The same refers to tables and figures, which should be understandable independently from the text. Corresponding authors should inform their full names and addresses. The funding sources by which the work was supported should be stated. Articles describing investigations on human subjects must include a statement referring institutional ethics committee clearance. Manuscripts should be structured as below: 1. Title 2. Complete names – first name(s) followed by family name(s) of the author(s) 3. Abstract giving a clear synthesis of the purpose, describing the methods used and main conclusions of the study. 4. Key words – a minimum of 3 and a maximum of 5 key words or describers of the contents of the work, following the norms of DeCS, available at http:// decs.bvs.br/ 5. Text of the article, according to the recommendations for each category given above. 6. Figures (graphs, diagrams and tables) according 143 to the recommendations given above. 7. References: are responsibility of the authors and should be arranged numerically according to the order in which they appear in the text, according to the rules of the International Committee of Medical Journal Editors, Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals, available at http://www.icmje.org Examples: Periodical Valla VV. Educação popular e saúde diante das formas de se lidar com a saúde. APS Journal. 2000; (5): 46-53. Book Birman J. Pensamento freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1994. 204p. Book chapter Vasconcelos EM. Atividades coletivas dentro do Centro de Saúde. In: ________. Educação popular nos serviços de saúde. 3rd. ed. São Paulo: HUCITEC; 1997. p. 65-69. Dissertation Caldas CP. Memória dos velhos trabalhadores. [Dissertation]. Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1993. Event Mauad NM, Campos EM. Avaliação da implantação das ações de assistência integral à saúde da mulher no PIES/UFJF; 6th Brazilian Congress on Collectyive Health; 2000, Salvador. Salvador: Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva; 2000. p.328. References from the internet Civitas. Coordinated by: Simão Pedro P. Marinho. Developed by: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1995-1998. Presents texts on urbanism and city Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007 RBMFC Instructions to authors. development. Available at: <http//www.gcsnet.com.br/ oamis/civitas>. Accessed: Nov 27. 1998. Review procedures and publication of submitted manuscripts. The articles are of the full and exclusive responsibility of the authors. Peer-review procedure: received articles are registered by the Secretariat of the journal and submitted to the Scientific and Editorial Board for screening, preliminary evaluation and posterior distribution to ad hoc referees with specific expertise in the subject addressed by the article. All manuscripts are submitted to two referees, coming from institutions different from those of the author(s) who, in a double-blind review process, assess them with respect to the following aspects: pertinence of the title in relation to the content, structure of the manuscript, pertinence and clearness of objectives, methodology, intelligible information, conformity of citations and references with the technical norms and alignment with the editorial line of the journal. The referees fill in the review form accepting or rejecting the manuscript or suggesting improvements and/or necessary corrections. In this case, the manuscript is returned to the author(s) for revision and resubmission, followed by a new evaluation. The result is communicated to the author(s) and accepted articles will be published following the order of registry. No additions or modifications in manuscripts already accepted for publication will be admitted. elsewhere, nor is it currently under consideration for publication in another periodical.” Articles prepared by more than one author should state the specific contribution of each of them. The authors of each article will receive three exemplars of the edition in which their study was published. Ethics in experimentation Articles based on investigations involving human subjects should declare in the text that the investigation has beencleared by the responsible Ethics Committee on Human Experimentation. Manuscripts should be submitted electronically to: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC Contact Address: Rua 28 de Setembro, 44 sala 605 Rio de Janeiro - RJ Cep: 20551-031 Tel: 21 2264-5117 / 21 3259-6934 Fax: 21 3259-6931 e-mail: [email protected] Responsibility Statement All individuals named as authors for having participated substantially in the submitted study have to take public responsibility for the integrity of their work and consequently sign the following Responsibility Statement: “I hereby declare to have participated substantially in the conception and design of the present work and in the writing of the manuscript, taking public responsibility for its integrity. I have read the final version of this work and agreed to its submission for publication. The work in its present or a similar form has not been published 144 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.3, n° 10, jul /set 2007