CONTEMPORANEIDADE E INVISIBILIDADE SOCIAL: UM A-CASO DE
SEVERINA SEM SANTOS
Roza Junior, José; Castilho Romera, Maria Lúcia
Em uma cidade que não pára, muitos acordaram às quatro horas da manhã, ou da madrugada,
como diriam outros habitantes. Alguns conseguiram acordar às cinco, alguns às seis, outros às
sete horas da manhã. O que une cada morador dessa cidade é que todos precisam trabalhar.
Acordar cedo, tomar seu café da manhã e ir ao trabalho. Cafés da manhã existem em
possibilidades múltiplas, do café puro em casa, aos cafés encontrados pelas ruas dessa cidade.
O tempo gasto nessa empreitada pode ser variado também e com preços que podem variar. Há
Espaço para os adeptos de champagne matinal. Certamente os que adentram tal café são vistos
por todos. Talvez esse seja o desejo dos freqüentadores, não?
Estamos em um mundo de
constante produção e como reza nossos ditames, constante consumo de acordo com as
possibilidades ou aparências de cada morador. Produzir no mundo significa estar sempre a
postos para o trabalho, para os ganhos mensais e prontos para o consumo. Um mundo sempre a
postos, sem futuro distante e um grande presente vivido como o último dia de vida.
É manhã fria, com céu cinza como seria de se esperar nessa cidade. E cá estou em plena
avenida às dez da manhã de uma sexta-feira rotineira. E eu sou um turista, que passeia sem
precisar correr, mas que corre tão somente pelo ritmo imposto. Ao andar podemos ver ternos,
gravatas, paletós, saltos altos, vestidos e saias. As mais variadas possibilidades em uma avenida
onde passam milhares de pessoas e milhares de carros durante todo o dia. É isso que vejo,
quando me dou conta da enorme quantidade de celulares, ouvidos, revistas e aparelhos de mp3
que, também, caminham por essa mesma avenida. Se eu pudesse escutar o que cada um está
pensando, o que mais poderia ser percebido? Talvez, o fato de que não temos tempo a perder,
seguimos rumo aos ofícios, qualquer que sejam eles, mesmo quando eles nem existam. E assim,
fazemos de conta que nosso tempo também é curto, adentrando a mesma lógica dos demais e
nos tornando habitantes do mesmo mundo. Uma parada rápida, um pedido em um fast food, um
almoço que acontece em menos de dez minutos. Parece que chegar às horas fica quase
impensável quando temos somente minutos de um relógio que não adormece. E até eu, que
tenho tempo, me incomodo de utilizar uma mesa por mais minutos que a maioria dos outros
consumidores. Ao meu lado, um senhor de meia idade olha à sua volta, como se procurasse um
assento no balcão ou uma mesa individual, como as muitas existem porém ocupadas. Ele inicia
seu almoço em pé por não ter encontrado uma mesa disponível. Me levanto e com um sorriso,
ofereço meu lugar. Meu almoço já havia terminado e o sorriso não foi retribuído.
E em plena avenida, um único parque com árvores da nossa querida, quase extinta, Mata
Atlântida mascara o barulho da cidade aos que decidem por uma parada de poucos minutos entre
o almoço e a volta ao trabalho. Engraçado como o parque se faz como um lugar de passagem.
Será ele, tão somente uma extensão da grande avenida ao lado?
Um encontro rápido com um colega que não se via há tempos parece des-estabilizar toda
uma programação do dia.
É esse o curto caso de Felipe e João. Em sentidos diferentes
caminham esses dois jovens homens de negócios, que podem ser advogados, contadores ou
qualquer outra profissão que peça a eles o uso diário de um belo terno preto. Os dois se cruzam à
minha frente e com uma suposta grande alegria, se cumprimentam, verbalizando comentários
sobre o tempo que não se encontravam e o quanto gostam um do outro. Eles parecem se
emocionar. Conversam por não mais que longos cinco minutos e se despedem, como se os sinais
de trânsito, as buzinas e a correria, os lembrassem de seus compromissos diários. Cada um
precisa seguir seu rumo, seu trabalho. Estamos na hora do almoço, mas logo será o momento
exato de entrar novamente no trabalho. O sinal fechado congela o tempo por alguns minutos,
buzinas dão o ritmo quando o sinal abre. Entre paradas e correrias segue-se a vida de Felipe e de
João. Serão eles somente conhecidos? Talvez sejam amigos ou talvez foram um dia, quando se
tinha tempo...
Muitos passam pela avenida... mas olhares não se cruzam ou se cruzam em frações de
segundos e se perdem com a mesma intensidade. As ruas são não-lugares, passagem rápida por
um mundo de pressa desmedida. Uma avenida de grandes e altos prédios comerciais onde se
entram com pressa e se saem com a mesma pressa. Uma vida de trabalho, de produção. Uma
vida ou o que soubemos fazer do mundo?
E se alguns já perceberam, estamos em plena avenida paulista, às cinco horas de uma
tarde
quente, mas que reserva aos próximos minutos uma possibilidade de chuva, que de
antemão sabemos que existirá. É um nada previsível que se confunde com uma previsibilidade
cortante aos homens. Estamos em dezembro, sabemos da chuva assim como sabemos dos
belos e ostensivos enfeites de natal que surgiram de repente. Até eles disputam sua beleza em
relação aos do prédio vizinho. Celebremos o Natal contemporâneo!
Quase todo rendimento foi depositado nos bancos da cidade, afim de que contas fossem
pagas, da conta da Sabesp ao cartão de crédito. Os bancos se fecharam às quatro da tarde, mas
seus caixas de auto-atendimento estão a todo vapor.
Afinal, nem todos foram capazes de
conseguir um tempo para essa ida ao banco, mas isso foi facilmente resolvido quando o caixarápido substituiu os antigos funcionários.
Não é preciso mencionar a quantidade de bancos
existentes nessa cidade, principalmente nessa avenida. A cada esquina um caixa-rápido para os
saques instantâneos, mesmo quando não se tem dinheiro no banco, os créditos são sempre
possíveis contando que todos consumam. E cá estou, em plena avenida. Confesso, além do
almoço na avenida, já se foram duas xícaras de café e um chá gelado, consumidos por mim.
Buzinas, barulhos, correria, assalto? Não... ou talvez! Assalto de tempo, de minutos exatos
que se foram perdidos na espera do elevador e que podem afetar a chegada ao metrô, a chuva
que vai cair ou a perda do segundo trem na conexão com a linha azul, mesmo sabendo que em
outros exatos três minutos existe outro trem, que um rapaz estará a postos para nos vender um
guarda-chuvas, caso tenhamos esquecido os nossos costumeiros e não pudemos retornar para
buscá-lo porque nosso trem já estava para passar. É tudo cronometrado, a correria e o caos
também parecem cronometradas em uma dança contemporânea de pressas e presas. São seis
horas da tarde e a chuva caiu nesses dez minutos que se passaram. Correria para entrar na linha
verde do metrô e vendedores ambulantes com guarda-chuvas a dez reais a postos para serem
vendidos. Eu contei que eles estariam a postos, se lembra? Chuva, formigas e sua parada
costumeira nos túneis subterrâneos. E na superfície? Nela eu vejo muitos carros, chuva e
buzinas... Onde estão indo todos? Já se passam das sete horas da noite. Não mais chove, foi
somente a imprevista-prevista chuva do final da tarde. E eu me mantenho na avenida, a olhar e a
tentar entender essa lógica, que miscigena um olhar turístico.
Em minha caminhada pela avenida, sou surpreendido por uma música de um grande
compositor paulistano. “Na Paulista os faróis já vão abrir. E um milhão de estrelas prontas a
invadir os jardins...” Consigo ver todos os fárois em sua dança em vermelho, amarelo e verde.
Mas no céu, alguém deve ter assaltado as estrelas, ou elas simplesmente não quiseram me
presentear com sua beleza. Talvez quisessem, se a poluição não as houvessem mascarado. Se
não podemos mais contar com elas, muito disso se deve mesmo ao constante processo de desenvolvimento. E continuo a me lembrar da letra da música de Gudin e me surpreendo com os
versos, “ se a avenida exilou seus casarões, quem reconstruiria nossas ilusões?” E me dou conta
que antes de tantos prédios essa mesma avenida era habitada por mansões e moradores. Muitos
se foram para condomínios fechados e cederam seu espaço a muitos prédios abandonados pela
madrugada, mas lotados de trabalhadores durante todos os dias.
São dez horas de uma noite quente e vemos poucos ternos e trabalhadores pela avenida.
E quem habita esse momento? Agora temos adolescentes, jovens adultos e adultos saindo dos
túneis e adentrando novamente a avenida que em pouco tempo será habitada por pessoas
prontas a aproveitar uma sexta-feira de baladas, bares e inúmeras possibilidades que não só a
avenida proporciona mas suas adjacências. Cinema na Reserva cultural, happy hour ou um
jantar entre corridos companheiros no Spot. São essas algumas pedidas para a noite. Mas não
podemos esquecer-nos de outras possibilidades como conhecer um garoto de programa atrás do
Parque Trianon, o mesmo que durante o dia protege os passantes dos sons alucinantes da
avenida. Possibilidades múltiplas em uma cidade que parece não parar nunca.
Um desenho parece se formar, a linha verde do metrô funcionará até aproximadamente
meia noite e alguns minutos e de lá saem muitas pessoas. Elas caminham pela avenida e dobram
esquerdas ou direitas de acordo com seus desejos ou com suas contas bancárias? Alguns que
escolhem o lado mais caro, não utilizarão sequer a linha verde e sim seus carros importados ou
não. E alguns entrarão na avenida pelo transporte público e rapidamente se misturarão aos que
chegaram de carro. De um lado, entrar em um bar pode custar vinte reais, do outro pode custar
cem reais ou mais. Alguns podem jantar por quarenta reais, outros precisarão de mais de
duzentos reais. É uma questão de escolha, de aparência ou de real possibilidade. Alguns
milhares de habitantes da avenida durante o dia não retornam durante a noite. Esses, podem
escolher permanecer em casa ou ir ao outros lugares possíveis em uma cidade de milhões de
habitantes. Só uma parcela escolheu voltar à avenida e muitos que durante o dia habitam outras
correrias,
escolhem a avenida paulista para passar suas sextas-feiras. A avenida onde co-
habitam restaurantes a là carte e carrinhos de cachorro-quente, consumos para todos os bolsos,
mesmo que um cachorro-quente custe não menos que sete reais.
Dentro as inúmeras possibilidades de uma sexta-feira a noite, eu escolhi um show, fui
apreciar um espetáculo em um teatro próximo a avenida. Me emocionei ao escutar canções sobre
o Brasil, sobre a cultura e acima de tudo sobre o resgate da história, muitas vezes esquecida em
favor de uma vida plena no presente consumista. Chorei e sorri ao ver Maria Bethânia. E após o
show, retornei ao meu ponto turístico ou de turista. Voltei à saudosa e contemporânea Avenida
Paulista. Jantei em uma padaria 24 horas, que reúne de pães a pizza, passando por vinhos e
frutas. Seja qual for sua escolha, a qualquer hora visite, nossa Bella Paulista. Poderia ser esse
seu slogan?
É noite de um calor de dezembro, mais exatos passaram-se duas horas dessa madrugada
de sábado. Decidimos passear pela avenida nesse início de madrugada. Ao meu lado mais três
amigos, os mesmos que comeram tanto que dificilmente dormiriam se fôssemos direto para casa.
Era um misto de Bethânia e pizza de calabresa. Ao passear pelas ruas deparamos com uma
mulher, que nos chama a atenção. A atenção em mim se deu no que, nesse momento, pode ser
nomeada como atenção Campista, como diriam alguns. Talvez, essa senhora-moça-mulher tenha
seus 40 anos, com um aspecto de um pouco mais. A idade exata não nos importou e tão pouco
importa nesse momento. O que nosso olhar, precisou se atentar é de que ela dorme não na
calçada, mas em um banco, não os de assento, mas sim os de contas bancárias, um dos vários
que existem na avenida e que possui seu caixa-rápido. Esse banco não abre sem que o cartão do
cliente seja inserido na porta. Ela está bem perto da porta. O que divide nossa personagem da
calçada é uma simples porta de vidro. O ar condicionado está ligado e ela dorme... E que horas
ela entrou por essa porta? Certamente, quando algum cliente ia saindo do banco, após seu
saque, a porta demorou segundos a mais para que se fechasse totalmente. E ela... aproveitando
esses segundos conseguiu um lugar para dormir.
Ao se passear pela paulista, muitos homens e mulheres parecidos com ela são
encontrados. Engraçado como precisamos de um olhar atendo para vê-los em meio à correria
diária. São eles seres invisíveis, de homens que não conseguiram sua parcela de consumo e de
trabalho e sendo assim, são impensados como habitantes do mundo a não ser quando assistimos
os jornais? Ou notamos os mesmos somente quando existe mais uma chacina na praça central?
A questão é que estamos em território caro. O que faz dela personagem dessa história? E por
que durante o dia não a avistamos? Nem eu, como turista e nem os outros como trabalhadores
rotineiros?
Me surpreendo com sua presença e foi essa a questão básica de todos esses escritos. Um
banco, dinheiro, ar condicionado e uma mulher que dorme enrolada em papéis de jornais. Ainda
não sei como somos capazes de não enxergá-los. Habitamos um mundo anestesiado. E contra
esse anestesiamento, nossa personagem se torna denúncia. Talvez sua atitude de dormir lá
fosse a melhor forma de afetar os que passavam por ali. É como se chamasse a atenção.
Infelizmente, foram poucos os que eu vi sendo realmente afetados por sua real condição de
pobreza. A princípio, pelo calor da cidade ela levava enorme vantagem dos demais que
sonhavam com seu ar condicionado a postos, em seu mundo criado. É essa, nossa não muito
querida personagem, Severina.
Ela é diferente de tantos outros que dormem pelas ruas, e que após termos encontrado
Severina dormindo, muitos outros moradores de rua foram avistados por nossos olhares, agora,
incrivelmente atentos aos tantos outros que habitavam os canteiros e calçadas dessa rica avenida
paulista. Será que quando os ternos e saltos altos se esvaem com o romper do dia esses
moradores aparecem ou nossa pressa não nos deixa enxergar os que não são consumistas de
coisas e conceitos como nós?
Se Severina queria ir ao Paraíso, se queria encontrar Perdizes, isso não saberemos. Ela
está ao lado da Bela Vista, mas poderia passear pelos Jardins, quem sabe chegar à Consolação?
Não obstante, o que sabemos é que, nessa noite, Severina, habita o entre. Está ela entre tantas
possibilidades, mas por hoje seu sono é encontrado no chão.
Resumo
Este recorte se torna um encontro nas possibilidades de se comunicar sobre a
contemporaneidade e implicações dentro do relacionar-se com o outro. Um mundo onde as
relações entre os homens se fazem cada vez mais superficiais, apressadas, movidas pela lógica
do desempenho e do sucesso. Por meio de uma crônica, consideramos um passeio pelas ruas da
capital paulista onde se encontram os que vivem sobre a lógica da pressa, habitantes que
parecem não ter nomes. Buscamos um entendimento dessa lógica segundo o método
interpretativo à luz da Teoria dos Campos, encontrando pontos fundamentais como o
anestesiamento do mundo, o princípio do absurdo, dentre outros. Ainda nessa crônica, um
segundo momento impera em um acaso que se tornou caso. Severina, uma mulher que dormia
no meio da grande cidade, cercada de dinheiro em caixas eletrônicos. O que pensavam os que a
avistavam? Será que ela poderia ser avistada? São essas as questões tratadas nesse trabalho. É
quando a cidade se acalma que Severina pode ser pensada? O que durante o dia se tornou uma
correria por calçadas dá lugar ao quase vazio da madrugada. Assim, buscamos refletir sobre o
espaço disponibilizado para os que habitam fora dessa lógica de emprego e produtividade. O que
nos interessa aqui é, mais do que constatar essa impossibilidade de fundo presente nas
possibilidades construídas no dia a dia de nossas vidas, mas pensar sobre os que parecem
habitar uma invisibilidade social, longe da tecnologia ou perto, sem conseguir fazer parte desse
mundo nos moldes consumistas. A vertiginosa insegurança da contemporaneidade clama por
narcoses de tipos variados para se tornar suportável, de alguma forma. Desde então,
estabeleceu-se a compulsão pelo consumo de coisas e conceitos. Assim, pensemos Severina e
sua vida intimamente ligada com os demais habitantes do mundo, em relação à Psique do Real,
com sentidos a serem encontrados por essa dualidade entre os produtores contemporâneos e os
que parecem invisíveis à sociedade.
Referências:
Herrmann, F. (1993). Clínica Psicanalítica: a arte da interpretação. 2ª ed. São Paulo: editora
brasiliense
___________. (1999). O que é Psicanálise: para iniciantes ou não… São Paulo: Psychê, 13ª Ed.
____________. (1999a). A Psique e o Eu. São Paulo: HePsyché.
___________. (2001). Introdução a Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo
___________. (2001a). Andaimes do Real: Psicanálise do quotidiano. 3a ed. São Paulo: Casa do
Psicólogo
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UM A-CASO DE SEVERINA SEM SANTOS Roza Junior, José