Da Alteração da Qualificação Jurídica no Processo Disciplinar Chi Un Ho I. ∗ Introdução Na Administração Pública, todos os funcionários e agentes estão sujeitos ao regime disciplinar, ou seja, os funcionários e agentes são disciplinarmente responsáveis perante os seus superiores hierárquicos pelas infracções que cometerem. Considera-se infracção disciplinar o facto culposo em que exista violação dos deveres gerais ou especiais a que o funcionário ou agente esteja obrigado. O processo instaurado pelo superior hierárquico contra o inferior hierárquico chama-se processo disciplinar. O objectivo é agir sobre o acto culposo do inferior hierárquico, sendo portanto um meio de sancionar os actos do funcionário. No processo disciplinar, a partir do momento em que é feita a acusação, os factos e as sanções aplicáveis ficam definidos, podendo o arguido apresentar a sua defesa contra aqueles factos e contra aquelas sanções. No entanto, no momento da decisão final, poderá a entidade que ordenou a instauração do processo disciplinar alterar a sanção aplicável, com base em factos descritos na acusação, sem comunicar primeiro ao arguido? Sendo possível alterar a sanção aplicável, é obrigatório observar o princípio do contraditório? É esta questão que vai ser abordada no presente texto. II. Natureza jurídica do processo disciplinar 1 Do ponto de vista da natureza funcional, os funcionários da Administração Pública podem ser divididos em pessoal civil e pessoal militarizado, estando sujeitos a diferentes regimes disciplinares, respectivamente. O Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro, aplica-se aos funcionários e agentes dos órgãos administrativos e, ∗ 1 Mestrando no curso de Direito em português da Universidade de Macau, técnico agregado no Gabinete do Secretário para a Segurança. Conforme o nº 2 do artigo 2º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro. 2 subsidiariamente, ao pessoal militarizado , sendo este estatuto o regime geral. Por seu turno, o Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/94/M, de 30 de Dezembro, aplica-se apenas aos militarizados das Forças de Segurança, sendo por isso um regime especial. Nos dois estatutos referidos, em matéria disciplinar, as normas e os princípios jurídicos têm origem na legislação penal. Os mecanismos previstos na legislação penal, nomeadamente as circunstâncias agravantes, as circunstâncias atenuantes, as circunstâncias dirimentes, a exclusão e a extinção da responsabilidade, a prescrição do procedimento e a protecção dos direitos do arguido, são realizados no decurso do processo disciplinar. No entanto, o procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal, ou seja, na fase de investigação do processo disciplinar quando se verifica que o facto viola o direito penal, pode instaurar-se o procedimento criminal com base neste facto. III. Alteração da qualificação jurídica e protecção dos direitos do arguido 1. Viabilidade da alteração da qualificação jurídica Depois duma apresentação preliminar do processo disciplinar, vamos entrar no tema a abordar. A primeira questão que se coloca é saber se, finda a instrução do processo disciplinar, a entidade que ordenou a sua instauração pode ou não alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, no pressuposto de que aqueles se mantêm inalterados? Caso se possa alterar, é obrigatório comunicar esta alteração ao arguido e ouvir a sua opinião? Estas questões não encontram resposta no regime disciplinar previsto nos dois grandes estatutos referidos. Nos termos do nº 1 do artigo 9º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39/99/M, de 3 de Agosto, os casos 3 que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos. Como foi referido atrás, o regime disciplinar tem origem na legislação penal. Além disso, de acordo com o teor do acórdão nº 5/2000, do Tribunal de Última Instância, de 16 de Fevereiro, podemos concluir que a legislação processual penal pode aplicar-se, por analogia, ao processo disciplinar previsto no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau. No que respeita ao processo penal, devido ao princípio do acusatório, o âmbito do poder de cognição do tribunal fica definido no momento da acusação (pronúncia), 2 3 Ver o artigo 256º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/94/M, de 30 de Dezembro. Porém, relativamente ao Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, não é preciso aplicar a analogia, uma vez que o artigo 256º deste Estatuto prevê expressamente a legislação processual penal como lei subsidiária. sendo os factos descritos no despacho de acusação, ou de pronúncia, o objecto da cognição. No que se refere à questão de se poder ou não alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, no pressuposto de que tais factos se mantêm inalterados, as opiniões do sector jurídico português são várias, não tendo sido alcançado um consenso. Nos termos do artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929, “O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.” A posição do legislador da altura era a de que o tribunal podia fazer alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no despacho de pronúncia (mesmo que fosse uma alteração desfavorável ao arguido). Beleza dos Santos alinha neste ponto de vista e refere: “Compreende-se bem a razão de ser da independência que possui a sentença final na qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou equivalentes. Desde que esses factos constem da acusação formulada contra o réu, este tem possibilidade de organizar a sua defesa contra eles; não é colhido de surpresa por uma acusação que não esperava, por factos com que não contava...... seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que 4 tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou.” No entanto, na doutrina há opiniões que consideram aquela disposição inconstitucional. G. Marques da Silva entende que, se o arguido for acusado por uma lei diversa da lei descrita no despacho de pronúncia e não tiver oportunidade de se pronunciar quanto à aplicação daquela lei sobre os factos e os fundamentos jurídicos, isso implicaria uma ruptura dos princípios do acusatório e do contraditório. No Código de Processo Penal de Portugal de 1987 e no Código de Processo Penal de Macau de 1996 não existem, porém, disposições semelhantes ao artigo 447º. No Código de Processo Penal de Macau de 1996 está prevista apenas a questão da alteração dos factos, não existindo regulamentação expressa sobre a alteração da qualificação jurídica: “Artigo 1º (Definições) 1. ...... 4 Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se: Beleza dos Santos, A Sentença Condenatória e a Pronúncia em Processo Penal, in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 63, pág. 385 e seguintes. f) Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; Artigo 339º (Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) 1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos com relevo para a decisão da causa mas não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. Artigo 340º (Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) 1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso. 2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 3. Nos casos referidos no número anterior, o juiz que preside ao julgamento concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.” Nestes termos, a doutrina portuguesa desenvolveu um debate prolongado acerca 5 da questão da alteração da qualificação jurídica. G. Marques da Silva refere que nos artigos está regulada apenas a alteração substancial ou não substancial dos factos, não se podendo assim alterar a qualificação jurídica. Mas, no seu entender, esta pode verificar-se, desde que não afecte o conhecimento, por parte do arguido, da ilicitude do facto. Isto é, desde que exista uma relação de especialidade entre as normas, pode ser feita a alteração, mas é necessário conceder ao arguido tempo para a 6 7 preparação da sua defesa. Frederico Isasca e A. Q. Duarte Soares entendem que, como não existem regras sobre a alteração da qualificação jurídica no Código de 8 Processo Penal de Portugal, esta é possível. Maria João Antunes pensa que esta lacuna deve ser integrada com a aplicação analógica das normas sobre a alteração não 9 substancial, para proteger eficazmente o direito de defesa do arguido. Teresa Beleza também tem um ponto de vista idêntico, salientando que o articulado do Código de Processo Penal de Portugal faz uma distinção lógica entre a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica, e propôs que se acrescentasse ao 10 artigo 358º do Código de Processo Penal de Portugal um número sobre a aplicação analógica. O legislador português aceitou esta proposta e alterou o Código de Processo Penal de Portugal através da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, acrescentando um número ao artigo 358º: “O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” Assim, a discussão entre a doutrina e a jurisprudência sobre a questão ficou resolvida. No entanto, como o Código de Processo Penal de Macau de 1996 não fez as alterações correspondentes às do Código de Processo Penal de Portugal, a lacuna ainda se mantém. O sector judiciário de Macau alinha na opinião de Maria João Antunes, segundo a qual a lacuna deve ser integrada com a aplicação analógica das 11 disposições sobre a alteração não substancial dos factos , porque a alteração da 5 6 7 8 9 10 11 G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, III, pág. 269 e seguintes. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, pág. 100 a 110. A. Q. Duarte Soares, Convolações, in Colectânea de Jurisprudência do STJ, nº 2, vol. III, pág. 20. Maria João Antunes, Tráfico de Menor Gravidade – Alteração da Qualificação Jurídica dos Factos – Direito de Defesa, em Droga, in Decisões de Tribunais de 1ª Instância, 1993, Comentários, Gabinete de Planeamento e Coordenação do Combate à Droga do Ministério de Justiça, Lisboa, 1995, pág. 297 e 298. Teresa Beleza, O Objecto do Processo Penal: o Conceito e o Regime de Alteração Substancial dos Factos no Código de Processo Penal de 1987, in Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1995, Vol. III, pág. 88 a 106, e As Variações do Objecto do Processo no Código de Processo Penal de Macau, in Revista Jurídica de Macau, 1997, Vol. IV, nº 1, pág. 45. Corresponde ao artigo 339º do Código de Processo Penal de Macau de 1996. Cfr. o disposto nos números 1 e 2 do artigo 9º do Código Civil e o no artigo 4º do Código de Processo Penal de Macau. qualificação jurídica é por natureza uma alteração não substancial, tendo em conta o facto de que se trata da atribuição de uma qualificação jurídica diferente mas os factos constantes do despacho de acusação ou de pronúncia mantêm-se inalterados. Além disso, a alteração substancial dos factos não tem nada a ver com a alteração da qualificação jurídica. Por isso, o disposto no nº 1 do artigo 339º do Código de Processo Penal de Macau de 1996 aplica-se por analogia aos casos de alteração da qualificação jurídica. 12 2. Protecção dos direitos do arguido Tanto para as partes do processo civil, como para o arguido do processo penal, o princípio do contraditório é a concretização mais importante dos seus direitos na relação jurídica processual. Podemos dizer que o princípio do acusatório é um importante princípio da lei processual. Nos termos do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 55/99/M de 8 de Outubro, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Através do mecanismo da dupla 13 subsidiariedade de aplicação, o princípio do contraditório aplica-se também ao processo disciplinar. Quando se altera a qualificação jurídica é obrigatório observar o princípio do contraditório? Esta questão tem que ser abordada sob dois pontos de vista diferentes. Em primeiro lugar, temos as situações em que a alteração da qualificação jurídica é desfavorável ao arguido, pois leva à aplicação de uma pena mais elevada. Em segundo lugar, temos os casos em que a alteração da qualificação jurídica é favorável ao arguido, pois leva à aplicação de uma pena igual ou atenuada. No primeiro caso, o juiz tem obrigatoriamente de ouvir a defesa do arguido. No segundo caso, em princípio, a defesa do arguido deve ser ouvida, uma vez que o arguido só se defende dos factos descritos no despacho de acusação ou de pronúncia e da lei aplicada. Se, na fase de julgamento, o juiz tiver outro entendimento e alterar a lei aplicada, mesmo que isso tenha como consequência a aplicação de uma pena atenuada, a defesa que o 14 arguido tiver feito antes fica sem efeito. No entanto, Maia Gonçalves não concorda. Segundo este jurista, se existir uma relação de especialidade entre o tipo de crime descrito no despacho de acusação ou de pronúncia e o tipo de crime descrito 12 13 14 Ver o acórdão nº 8/2001 do Tribunal de Última Instância de 18 de Julho. O Código de Processo Civil de Macau aplica-se subsidiariamente ao Código de Processo Penal de Macau que, por sua vez, se aplica subsidiariamente ao Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Livraria Almedina, Coimbra, 11ª edição, 1999, pág. 647 e 648. na condenação, e a pena for mais leve que a anterior (por exemplo se existir uma alteração de crime doloso para crime negligente, de crime qualificado para crime simples, de furto de valor elevado para furto simples, de roubo para furto, de homicídio ou ofensas à integridade física dolosas para homicídio ou ofensas à integridade física negligentes, de violação para coacção sexual), quando o juiz faz uma alteração da qualificação jurídica que seja favorável ao arguido (aplicando uma 15 pena igual ou atenuada), não está obrigado a comunicá-la ao arguido , uma vez que o arguido já tem conhecimento dos elementos constitutivos do tipo de crime e tem a defesa preparada. IV. Conclusão No processo disciplinar, existem as lacunas seguintes: saber se a entidade que ordenou a instauração do processo disciplinar pode ou não alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Sendo isto possível, será obrigatório comunicar a alteração ao arguido? Esta questão está directamente relacionada com o poder de cognição da entidade que manda instaurar o processo disciplinar. Por um lado, temos de respeitar o poder de cognição atribuído a essa entidade pela lei. Por outro lado, o alcance do poder de cognição merece atenção, porque estamos certos de que este não pode ser alargado sem limite a um nível que prejudique os interesses do arguido. Deve procurar-se um equilíbrio entre os interesses dos dois lados. Uma solução viável é atribuir à entidade que ordena a instauração do processo disciplinar a possibilidade de fazer uma alteração da qualificação jurídica que seja favorável (aplicando pena igual ou atenuada) ou desfavorável ao arguido, mas com respeito pelo princípio do contraditório. 15 G. Marques da Silva tem uma opinião contrária e considera que se deve comunicar ao arguido e conceder-lhe tempo para a defesa. Ver nota 5.