Demanda Contínua
SODRÉ, P. R.
Camões (e injúria lúdica) em vitória, 1933: a propósito de
sonetos de g. em cantáridas
Paulo Roberto Sodré*
RESUMO
Considerando os estudos sobre a sátira medieval, discute a produção poética satírica de Cantáridas
e outros poemas fesceninos (1933), em coautoria de Guilherme Santos Neves, Jayme Santos Neves
e Paulo Vellozo, inédita até 1985. Observa ainda o intertexto camoniano em paródia, por um
lado, e, por outro, uma das estratégias medievais do discurso cômico, a injúria lúdica, segundo
o conceito de Marta Madero.
Palavras-chave: Poesia satírica brasileira – séc. XX; Cantáridas e outros poemas fesceninos; Sátira
e injúria lúdica.
ABSTRACT
Considering the researches about Medieval satire, it discusses the poetic satirical production
of Cantáridas e outros poemas fesceninos (1933), by Guilherme Santos Neves, Jayme Santos Neves
e Paulo Vellozo, not published until 1985. It observes the camonian intertext in parody, and
one of the Medieval strategies of comic, the playing injury, according to Marta Madero.
Key words: Brazilian Satirical Poetry – XXth century; Cantáridas e outros poemas fesceninos; Satire
and Playing Injury.
para Therezinha Santos Neves
1. Guilherme Santos Neves e Cantáridas
A leitura das reflexões de Guilherme Santos Neves ou Mestre Guilherme sobre a poesia de
Anchieta, numa de suas poucas publicações sobre estudos literários, reunidas em Visão de
Anchieta (1997), coloca-nos diante de um refinado observador da literatura tradicional portuguesa
produzida no Brasil colonial. Seus apontamentos sobre temas e recursos poéticos utilizados
pelo jesuíta e o cotejo de suas posições pessoais com a de estudiosos como Carolina Michaëlis
de Vasconcelos, Eugenio Asensio, Segismundo Spina, Manuel Bandeira ou Leodegário de
*Professor associado de Literatura Portuguesa do Departamento de Línguas e Letras do Centro de Ciências Humanas
e Naturais/UFES. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universide de São Paulo (USP). Pós-doutorado em
Literatura Portuguesa pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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Azevedo Filho nos permitem perceber não apenas a acuidade de seus pontos de vista, mas a
consistência de suas investigações sobre Literatura Portuguesa no Espírito Santo, e um dos
especialistas em Camilo Castelo Branco (PACHECO, 1997, p. 13).
Em pequenos artigos sobre os poemas de Anchieta, Guilherme Santos Neves chama a atenção
para o efeito rítmico do metro pé quebrado, no poema “Ao Santíssimo sacramento”, e do
leixa-pren, em poema incluído no auto “Na festa de São Lourenço”; o uso medievalizante das
redondilhas em “Cordeirinha linda”, ou ainda o topos do “sol que atravessa o cristal com seus
raios sem danificá-lo”, que remonta ao século XII (NEVES, G., 1997, p. 123-124).
Contudo, o que se pretende expor aqui não é a leitura do crítico e professor, nem seu
reconhecido percurso nacional pelos estudos do folclore capixaba, mas sua leitura de Literatura
Portuguesa transformada em poesia. Não a poesia que boa parte dos escritores publicava na
Vitória da década de 1930 e 40, em revistas como Vida Capichaba, de ambiente provinciano e
de costumes intelectuais pudicos a engrossarem a tradição remanescentemente romântica,
parnasiana ou simbolista, como pensa Francisco Aurelio Ribeiro (1996, p. 38-39). Não a
poesia oficial de salão e sarau comedidos, mas a poesia que, na contramão da estética
convencional, lança mão do baixíssimo corporal, de que trata Mikhail Bakhtin (1993), para
entreter os poucos que, sensíveis aos variados cantos da literatura, se divertiam com ela. A
poesia satírica, jocosa, obscena, pilhérica, desbocada, reunida no conjunto de poemas fesceninos
produzidos num Brasil Belle Époque, em particular na Vitória pós-Jerônimo Monteiro e Florentino
Avidos, e sob a atuação de interventores federais, como Punaro Bley (TEIXEIRA, 2008, p.
442-451). Sim, a poesia picante – não posso evitar o trocadilho – de Cantáridas e outros poemas
fesceninos, em coautoria de Guilherme Santos Neves, abreviado em (G), Jayme Santos Neves
(J) e Paulo Vellozo (P), inédita até 1985.
Não se trata, no entanto, de investigar o livro como um todo em trinca autoral, trabalho, aliás,
já iniciado por Oscar Gama Filho, em 1985, em sua introdução à primeira edição do livro, e
por Felipe Fiúza, na dissertação Cantáridas: uma trindade de sátiros na década de trinta, em 2009.
Nos cento e vinte quatro poemas de Cantáridas organizados por Paulo Vellozo (e mais vinte
“Outros poemas fesceninos”), majoritariamente sonetos, permeia a atmosfera irreverente e
chula da “Dedicatória”, atribuída a (G),
“Livro sem dedicatória”
– dirás tu, leitor amigo –
“onde é que nunca se viu?”
E nós, em coro, falamos:
“De pleno acordo contigo,
este livro dedicamos
à puta que te pariu...” (VELLOZO, 1985, p. 49),
e da “Homenagem”, atribuída a Jayme Santos Neves (J):
Leitor amigo, batuta!
Nossa homenagem viril,
A ti, meu filho da puta,
e à puta que te pariu! (VELLOZO, 1985, p. 51).
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Além disso, predomina a estratégia de se aproveitarem fontes intertextuais bastante conhecidas
– como Camões, Gonçalves Dias, Raimundo Correia ou William Shakespeare –, para as
paródias que servem de mote para pilhérias obscenas envolvendo um grupo de rapazes de
Vitória. Uma síntese do tipo de inspiração e dicção que acompanham os poemas de Cantáridas
pode ser captada num trecho do soneto de (G), “Musa fescenina”:
Jorra a coprolalia remelenta
Cuspindo a baba, babugenta e escusa,
E o pus pulula e a podridão rebenta
Cascateante, a cascalhar confusa.
[...] (VELLOZO, 1985, p. 122).
Essa a poesia que nos interessa neste estudo preliminar, tendo como ponto de atenção especial
a poesia jocosa assinada por um daqueles autores: Guilherme Santos Neves ou (G), observando
em particular duas referências à tradição literária portuguesa: por um lado, a atualização de
fontes camonianas, mais pontualmente a epopeia Os lusíadas, e, por outro, a presença de uma
estratégia trovadoresca satírica, a injúria lúdica, na produção dos poemas “cantáridos”, na feliz
adjetivação de Oscar Gama Filho.
Dos muitos textos reunidos em Cantáridas, vinte e nove são atribuídos a (G) e nove são em
co-autoria. Destes, dois são de (G) e (P), e os outros sete são assinados pelos três autores. Para
este trabalho, comentaremos apenas os assinados por (G), como o soneto “Nunca mais”.
2. “No mais, Oto, no mais, terei na vida” e a musa camoniana
Costumam dizer os maliciosos e não menos despeitados arautos da seriedade que quem não
sabe criar, parodia. Não é o que pensam os retóricos, nem Mikhail Bakhtin nem aqueles
críticos que aprenderam com o mestre russo que a paródia é uma das chaves certeiras para se
perceber e constatar o fecundo diálogo entre textos e discursos. É também um dos recursos
mais instigantes para, em viés satírico, vislumbrar-se o que de fato vestem o rei e o clérigo, o
moralista e o hipócrita, o idealista e o politiqueiro. Por meio da paródia não apenas o ouropel
e o verniz das convenções desbotam, mas, principalmente, a “verdade absoluta”, a opinião
autoritária e o dogma entram e desfazem-se na ciranda da relatividade, da contestação e das
diferenças possíveis.
O homem e o mundo são múltiplos, sabemos; a cultura e os valores são diversos; os olhares
sobre tudo isso não podem ser menos que multifacetados, flexíveis, tolerantes. A paródia, seja
como contracanto, seja como outro canto, seja como intertextualidade, dependente sempre
da decodificação por um leitor capaz de flagrá-la e captá-la no texto, educa-nos na percepção
de que há mais coisas entre uma frase sublime e um verso chulo do que conseguem imaginar
nossos escrúpulos e nossa pudicícia.
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Lidar, portanto, com a paródia pode nos colocar em situação delicada, já que nossa leitura
pode ignorá-la, reduzi-la ou menosprezá-la; pode-se correr o risco de uma leitura fadada,
quando menos, à obviedade do reconhecimento de fontes, de certa moral entrevista no discurso.
Desse modo, como um texto é um texto, outro texto, diverso texto, lidar com ele, na dimensão
paródica, requer cuidados.
A despeito da complexidade dessa estratégia formal de produção literária, interessa-nos aqui
particularmente o sentido retórico e poético da paródia: a imitação jocosa de um texto sério
(LAUSBERG, 1994, v. III, p. 292), por parecer ser esta a chave principal proposta no projeto
de Cantáridas.
Por esse motivo, o que procurarei expor, neste trabalho, é uma leitura crítica, mas preliminar,
sobre um soneto atribuído a (G.) ou Guilherme Santos Neves, comentado em função de sua
referência jocosa a um dos trechos mais surpreendentes de Os lusíadas (CAMÕES, 1972), a
estrofe 145 do Canto X, seja pela novidade da inserção de uma desinvocação da musa épica no
poema, seja pela presença da melancolia, efeito do pessimismo da visão de Camões de seus
contemporâneos, um dos traços maneiristas do poema:
No mais, Musa, no mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dia austera, apagada e vil tristeza (X, 145).
Aspecto impressionante em Os lusíadas, como se observa em sua fortuna crítica, é o número
de invocações, isto é, a segunda parte da estrutura interna da epopéia na organização clássica
do poema: proposição, invocação, narração (a dedicatória é uma parte opcional nas epopeias
clássicas, como se sabe). Como afirma Harry Shaw, “A palavra invocação deriva dum termo
latino que significa “chamar” e reporta-se a uma convenção literária mediante a qual um
escritor, em geral um poeta, solicita o auxílio e a orientação divina duma musa” (1982, p. 260).
Em Os lusíadas, quatro são os chamados em que se revezam as musas Tágides, ninfas do Tejo,
e Calíope, a musa vetusta que preside os poemas heróicos. O primeiro é feito às ninfas locais,
no Canto I, em que o poeta faz com que ascendam ao papel de musa de sublime canto épico:
E
vós,
Tágides
minhas,
pois
criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se
sempre
em
verso
humilde
celebrado
Foi
de
mi
vosso
rio
alegremente,
Dai-me
agora
um
som
alto
e
sublimado,
Um
estilo
grandíloco
e
corrente,
Por
que
de
vossas
águas
Febo
ordene
Que
não
tenham
enveja
às
de
Hipocrene
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(I,
4);
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o segundo ocorre no Canto III, em que Vasco da Gama começa a narrar a história dos
portugueses:
Agora Tu, Calíope, me ensina
O que contou ao rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe
Te negue o amor divido, como sói (III, 1);
o terceiro chamado, dedicado novamente às ninfas do Tejo, ocorre no Canto VII, em que
Paulo da Gama, em Calicute, comenta os motivos das bandeiras nas caravelas:
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo (VII, 78);
o quarto e último chamado é para Calíope, no início do Canto X, em que o poeta narra as
profecias de Tétis na insula divina, já sentindo fraca sua inspiração (“O gosto de escrever que
vou perdendo”):
Matéria é de coturno, e não de soco,
A que a ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual Iopas não soube, ou Demodoco,
Entre os feaces um, outro em Cartago.
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo (X, 8).
O entusiasmo espalhado pelas quatro invocações se justifica; reverbera a razão disso o poeta,
dirigindo-se a Dom Sebastião, no encarecimento de seu texto:
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro (I, 11).
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Diante disso, impressiona-se mais ainda o leitor quando, no desfecho do poema laudatório,
porque épico – e a despeito dos matizes entristecidos nos cantos – o poeta, em vez de
agradecer a ajuda da Musa, dispensa-a, interrompendo sua inspiração, para vituperar sua gente
“surda e endurecida”, “cobiçosa” e envolvida numa rude e “vil tristeza”. Cleonice Berardinelli,
no estudo sobre os excursos do poeta em Os lusíadas, observa que
Através das invocações, onde fica bem clara a enunciação pela presença dos pronomes da
1a pessoa do singular, pela tensão entre o emissor e o receptor, pelas referências do sujeito
a seu enunciado, pode-se traçar uma linha descendente da enunciação que, confundindose na origem com a do enunciado, vai-se descolando dela até ao momento do calar-se:
“No’mais, Musa, no’mais” (BERARDINELLI, 2000, p. 47).
Essa passagem do Canto X tornou-se famosa não apenas pela revelação de um poeta épico
exaurido pela insensibilidade de sua gente, mas também pelo uso marcante da expressão “No
mais, Musa, no mais”. Para o filólogo brasileiro Raimundo Barbadinho Neto, um dos
comentadores desse Canto, “no mais” é uma “forma antiga de advérbio negativo que se
manteve ainda até o século XVI, quando unida procliticamente a ‘mais’” (1972, p. 597).
É justamente essa forma antiga de advérbio que Guilherme Santos Neves aproveita para
iniciar alguns sonetos que compõem Cantáridas, como “Mascando” (“Não mais podes ver
tesa e reforçada”, p. 92), “Broxalhão” (“No mais, Orli, no mais, que tenho a piça”, p. 106,
assinado pelos três autores) e “Saudades” (“Não mais comer-lhe o cu! Não mais, tesudo”, p.
134). Do mesmo modo aparece em “Nunca mais”:
No mais, Oto, no mais, terei na vida
O prazer louco do tempo passado!
Jamais a sua pica, tão comprida,
Roçará, prazenteira, o meu costado!
Jamais a fase amena e tão querida
Voltará, para bem do meu enfado.
Nunca, jamais, na grutinha escondida,
Sentirei o teu picalhão grudado!
Nada me resta, Oto, desse gozo,
Que a suave e dulcíssima lembrança
Do teu e do meu vício tão gostoso...
E sonho... e, no sonho, o rego fica
Abre-fechando, como na fodança
Ele ficava a mastigar-te a pica...
(G) (VELLOZO, 1985, p. 78).
Nos “Comentários” da coletânea, Reinaldo Santos Neves cartografa as informações que
envolvem a motivação e a produção desse poema:
Escrevendo na mesma linha do soneto VIII, Guilherme coloca na boca de Lapisuinha
estes versos de apaixonada saudade pelo irmão Oto, que morava em São Mateus, no norte
do Estado. A farsa dessa paixão incestuosa vem dos tempos de Kodack, cuja edição de 23
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de abril de 1932 traz uma “carta de amor” de Oto para Lapisuinha. Kodack era a revista
de exemplar único, concebida e executada por Guilherme e Paulo, que constitui fase
satírica anterior a Cantáridas (NEVES, R., 1985, p. 225).
De imediato, percebe-se o jogo de vozes: Guilherme Santos Neves cria uma persona lírica,
Lapisuinha, dando-lhe voz apaixonada por Oto, seu irmão. No poema, a recordação do
passado, eixo temático da poesia lírica, entra como variante do tópico ubi sunt, que o irônico
François Villon afamou em sua “Balada das damas do tempo antigo”; como não lembrar o
melancólico refrão “E onde estão as neves dos anos?”. A esse tópico junta-se ainda certa
alusão à dicção clássica (e, aqui, camoniana) que trata da perda amorosa ou da efemeridade:
“Jamais a fase amena e tão querida / Voltará” ou “Que a suave e dulcíssima lembrança”.
Ao dirigir-se a Oto, afastado de seu convívio, lembra-se o amante queixoso do tempo passado
em sua intimidade (“O prazer louco do tempo passado!”), recorda-se do que não mais existe
nem acontece (“Jamais a fase amena e tão querida / Voltará, para bem do meu enfado”).
Tratando de um enamorado em coita – expressão típica dos cantares amorosos trovadorescos
que poetas do século XVI português atualizam via imitatio da poesia petrarquista (AGUIAR E
SILVA, 1994) – distante de seu parceiro “garanhão”, longe de seu “picalhão” e do “vício tão
gostoso...”, a elegia jocosa em forma de soneto à moda de Petrarca enfatiza a ausência: os
advérbios negativos intensificam a expressão “no mais” inicial: “jamais”, “nunca”, “nada”
aparecem nas três primeiras estrofes, em que Lapisuinha detalha o que perdeu. A última
estrofe, por tratar do sonho em que o passado se presentifica, omite as variantes do não.
A interpretatio nominis, de que aqui se pode lançar mão com proveito, acentua o resultado
jocoso do poema, na medida em que, no primeiro quarteto e no primeiro terceto aparece o
vocativo “Oto”, dissílabo que substitui “Musa” da oitava-rima camoniana. De raiz etimológica
alemã, Oto significa “’bens materiais, riqueza, patrimônio’ e por extensão: ‘fortuna, sorte, fidalguia,
nobreza’” (GUERIOS, 1981, p. 192). Como o poeta d’Os lusíadas, o sujeito lírico de “Nunca
mais” perde sua “riqueza” e lamenta-a; no poema heróico, perde-se a razão do entusiasmo
para cantar as gestas portuguesas; no soneto, perde-se o “vício tão gostoso...”. Em ambos, e
por razões díspares, marcam-se a desilusão e a melancolia.
O interesse desse poema está na articulação de elementos tradicionais opostos: a queixa amorosa
pudica, tópica veterana na lírica, contrapõe-se à queixa obscena; o soneto lírico, uma forma
consagrada – e amplamente utilizada pelos acadêmicos “de carteirinha” da época, em linguagem
engravatada e convencionalmente empolada dos primeiros anos do século XX, especialmente
em províncias brasileiras –, contrapõe-se ao soneto fescenino, chulo; o trecho épico de Camões,
marcado por profunda melancolia diante da insensibilidade dos portugueses, contrapõe-se à
lamúria pela perda de um “picalhão”.
Vale notar ainda o uso “baixo” de um termo caro à genealogia: costado. Embora se refira às
costas, a palavra aparece na expressão “quatro costados”, isto é, de antiga linhagem, de
ascendência nobre pelos dois avós paternos e maternos (HOUAISS, 2001, p. 853). No poema
(“Jamais a sua pica, tão comprida, / Roçará, prazenteira, o meu costado!”), a palavra sugere
ambiguamente a ideia de homossexualidade passiva e de classe social elevada, mantendo a
contradição entre elementos “altos” e “baixos” do poema.
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O registro grave e clássico se traveste de jocoso e modernista, como aponta Wilberth Salgueiro,
se considerarmos a tendência paródica, irreverente e piadista que apenas alguns autores sensíveis
à Semana de 22 desenvolviam, na contramão dos acadêmicos. Como pensa o autor, ao
comentar outro poema de Cantáridas, “O canto do puto”, de Paulo Vellozo, “A radical paródia
modernista de Cantáridas executa, tendenciosa e literalmente, o projeto antropofágico de Oswald
e seu “indianismo às avessas”, ou seja, contra as grades da civilização um retorno às forças
vitais e primitivas do desejo [...]” (SALGUEIRO, 2006, p. 321-322).
Em “Nunca mais”, (G) brinca não exatamente com uma das estrofes mais densas e tensas de
Os lusíadas – na medida em que a desinvocação no Canto X contradiz ou relativiza o escopo
épico e laudatório do poema, considerado até pouco tempo como a quintessência do
Renascimento português –, mas com uma expressão que a tornou famosa. Não se contrapõe,
portanto, ao teor da estrofe e a sua significação no conjunto dos cantos. Aproveita-lhe um
verso e glosa-o de maneira pilhérica, o que, de toda maneira, esbarra no projeto bem humorado
dos modernistas.
3.
Injuriando
ludicamente
em
Cantáridas.
Sabe-se que Cantáridas não foi produzido, a princípio, com intenções editoriais imediatas.
Prova disso são os “cinqüenta anos de vida submersa” até sua publicação, como atesta Jayme
Santos Neves, em seu “Exórdio” (1985, p. 43). Sabe-se também que os poemas foram
elaborados por três companheiros, cujo senso de humor, aliado a um conhecimento refinado
da tradição literária, como afirma Fernando Achiamé, permitiu-lhes a criação de peças cuja
compreensão depende fundamentalmente de uma chave de leitura comum à recepção de boa
parte da sátira produzida no Ocidente desde, pelo menos, os medievos: a injúria lúdica.
Um estudo de Marta Madero sobre a injúria na Península Ibérica medieval defende a ideia de
que as cantigas satíricas galego-portuguesas, normalmente tomadas como acusações e denúncias,
podem ser explicadas por meio de uma estratégia discursiva utilizada pelos trovadores: o
jogo. Desse modo, na reunião de corte, seja de rei, de senhores leigos e religiosos, os poetas
medievais peninsulares compuseram cantigas satíricas para entretenimento de cortesãos
interessados em boas razons (tema da cantiga), bom son, bons versos elaborados de acordo
com a exigente poética da época, como nos permite deduzir a única Arte de trovar anônima
em galego-português do século XIV (1999).
Assim, as acusações – explícitas ou veladas por equívocos verbais –, de lascívia, avareza,
sodomia, roubo etc., em alguns casos, seriam, na verdade, injúrias não reais, mas brincadeiras
e jogos com intenção de pilhéria e diversão. Isso não contradiz, no entanto, o fato de que
várias cantigas acusam e injuriam, efetivamente, por exemplo, os inimigos do rei, como as
famosas cantigas de Afonso X e seus trovadores contra a traição dos vassalos de Sancho II de
Portugal (RAMOS; ROSSI, 2002). De toda maneira, e considerado o muitas vezes elíptico
contexto histórico e social das cantigas satíricas, a natureza lúdica desses textos é inequívoca,
como ilustra a tenção entre João Soares Coelho e Picandon (SODRÉ, 2009).
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Nesse sentido, para a autora espanhola,
a noção de jogo, finalmente, permitia consignar certos atos ao domínio de uma violência
que não desonrava, sempre e quando a vítima estivesse de acordo com esta forma de ver
as coisas. O jogo, enquanto relação compartilhada e unanimemente aceita pelos
participantes, apagava o efeito injurioso (MADERO, 1992, p. 38, grifo acrescentado).
Diante disso, presume-se que a reunião em corte, ao prestigiar as cantigas satíricas que
eventualmente pudessem ser apresentadas pelos trovadores – e excetuando-se aquelas de
caráter moral e queixoso, como os sirventeses, contra os inimigos do rei e, por conseguinte,
da corte –, considerava o pacto da brincadeira entre os freqüentadores, permitindo-se o
xingamento, a ofensa, a calúnia, todos revestidos pelo princípio lúdico.
Ainda segundo Marta Madero, os temas passíveis de injúria na época eram, para o homem, a
sodomia, a avareza e a traição; para a mulher, a luxúria e a feiúra. Curiosamente, esses mesmos
temas, glosados ao longo dos séculos, acusatória ou ludicamente, são aproveitados também
em Cantáridas, em especial o da sodomia ou homossexualidade, como observou Oscar Gama
Filho (1985, p. 36). Dessa maneira, de forma semelhante à dos trovadores peninsulares, os três
poetas capixabas, a partir da paródia de vários textos canônicos (SALGUEIRO, 2006, p.
319), escreveram Cantáridas sob o pacto ético da injúria lúdica: nenhum deles compartilhava a
pecha de que são acusados nos poemas. Como testemunha Jayme Santos Neves,
a propósito de nada ou a propósito de tudo, xingar era chamar o outro de veado ou de
filho da puta. E xingar alguém de veado constituía, àquela época, a maior ofensa possível.
E era isso que fazíamos, nos poemas. Assim, quem escrevia o soneto era sempre o machão
e o outro, a quem era endereçado, era sempre a vítima. O único objetivo, no final, era
esculhambar o parceiro, ferindo-o no ponto mais sensível de sua honorabilidade (1985, p.
44).
É interessante, portanto, como os três rapazes “de família” de Vitória, na década de 1930 e
40, produziram sátiras sob a “mesma” chave dos jocosos trovadores, naquela altura ainda
desconhecidos do grande público.
Talvez não seja gratuito que, anos depois, figure na estante de Guilherme Santos Neves a bela
primeira edição de 1965 de Manuel Rodrigues Lapa das Cantigas d’escarnho e de maldizer dos
cancioneiros medievais galego-portugueses. Imagino o poeta-professor e mestre do Folclore capixaba
reagindo aos versos, por exemplo, de um Pero da Ponte, trovador da corte de Afonso X,
século XIII, a cantar impropérios aos “putos” e “fodidos” da época:
Eu digo mal, com’ ome fodimalho
quanto mais posso daquestes fodidos
e trob’ a eles e a seus maridos;
e um deles mi pôs mui grand’ espanto:
topou comigu’ e sobraçou o manto
e quis em mi achantar o caralho (LAPA, 1995, p. 227).
Teria certamente se lembrado de Lapisuinha e de Oto, camonianamente entrelaçados em seu
soneto fescenino que nada deve, seja em competência poética, seja em bom humor, aos
cantares de maldizer avoengos.
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Referências:
ACHIAMÉ, Fernando. Cantáridas: registros de amizade, indícios para a história. In: MACHADO,
Lino; SODRÉ, Paulo Roberto; NEVES, Reinaldo Santos. Bravos companheiros e
fantasmas 2: estudos críticos sobre o autor capixaba. Vitória: PPGL/MEL, 2007. p. 107129.
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Camões: labirintos e fascínios. Lisboa: Cotovia, 1994.
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Submissáo e aprovação: 2011
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Camões (e injúria lúdica) em vitória, 1933: a propósito de