"Bento Brasil olhou espantado para o doutor da expedição". Assim começa João Abade, romance de João Felício dos Santos sobre a Guerra de Canudos, lançado em 1958, duas décadas antes da publicação de A Guerra do Fim do Mundo, do escritor peruano Mario Vargas Lhosa, que versa também a tragédia dos jagunços brasileiros. O romance de Felício me foi enviado pela Livraria Agir Editora, logo que o publicara, com capa e ilustrações de Poty, como sempre excelentes. (POTY ILUSTRARIA O ÚLTIMO LIVRO PUBLICADO DE FELÍCIO, MARGUEIRA AMARGA). Eu mantinha então, no jornal A Gazeta, uma coluna que tratava de literatura e história (na minha recuada mocidade eu fui metido a critico literário), e li o romance João Abade de um só atropelo. Lido, rasguei os elogios que entendi que o romance merecia, em tom incandescente de recém cativado pelo texto de Felício. Eis como abri a minha crítica impressionista, como então se dizia: "De repente, pela força da criação literária, a jagunçada indomável que escreveu a epopéia de Canudos, emerge do anonimato esquecido em que o lançara a indiferença do tempo e das gentes, para a vida pujante e magnífica do romance". O que acabo de rememorar saudosamente foi o começo de uma bela amizade que se estreitou entre mim e João Felício dos Santos até o seu falecimento em 13 de junho de 1989. Uma amizade inicialmente epistolar, em tempos em que não havia internet e as ligações telefônicas eram terrivelmente complicadas entre Vitória e o Rio de Janeiro, onde Felício morava. Depois, e por incrível que pareça somente cerca de vinte e cinco anos depois, vim a conhecer Felício pessoalmente quando ele veio a Vitória pela primeira vez. Mas não foi tomado pela amizade que acompanhei João Felício desde João Abade, no exercício da literatura romanesca que se multiplicou em obras centradas na temática histórica, tais como: Major Calabar (sobre Domingos Calabar); Ganga Zumba (Zumbi dos Palmares, com ilustrações do grande Caribé); Cristo de Lama (sobre Aleijadinho); Ataíde, Azul e Vermelho; Carlota Joaquina, a Rainha Devassa; A Guerrilheira (sobre Anita Garibaldi) e outros. Passei a acompanhar os passos de Felício pela qualidade de sua criação literária e pela peculiaridade de um estilo narrativo personalíssimo que se constituiu na sua grife de escritor inimitável e caloroso. Devo-lhe em particular a generosidade do prefácio do meu primeiro romance A Nau Decapitada (1986). Maiormente lhe devo ainda (mas aí não sou apenas eu, mas todos os capixabas que lhe devemos) o romance Benedita Torreão da Sangria Desatada, publicado em 1983, em parceria editorial entre a Civilização Brasileira e a Fundação Ceciliano Abel de Almeida, da UFES, que foi uma das últimas obras que Felício escreveu. O romance inspirou-se, predominantemente, na Insurreição do Queimado, de 1849, na Serra, tema pelo qual eu o interessei, junto com meu irmão Reinaldo. Sorte nossa que Felício o pegasse na unha e nela rodopiasse o pião da insurreição para consagrá-la em transbordamentos de criatividade literária. Reinaldo Santos Neves, que teve o privilégio de escrever o prefácio para Benedita Torreão, nele observou com lucidez: "Não se deve, aliás, esperar que este romance seja especularmente a história da insurreição do Queimado. Não é, porque João Felício não é autor de se aprisionar a cativeiros nenhum, nem ao de um episódio histórico que lhe sirva de raiz de inspiração. O que se oferece neste livro é ficção pura e simples. Queimado é o tema, e sobre ele Felício improvisa livremente. Pode-se mesmo parafrasear o que o próprio Felício avisou em seu Major Calabar: Benedita Torreão é um romance. Só um romance. Não tem qualquer compromisso com a História. O que quer dizer - prossegue Reinaldo - : João Felício inspira-se na História, mas não assume compromissos com ela. Submete-a ao seu processo criador, no chofre do seu (como já chamaram) caldeirão de feiticeiro. A História sai dali decantada, mudada (literariamente) para melhor. É o que também aqui ocorre (com Benedita Torreão). As personagens originais sofreram mutações. Os episódios originais (portanto históricos) adquiriram maior estatura". Com estas palavras, Reinaldo deu a medida exata para se ler e compreender os romances ditos "históricos" que João Felício escreveu. É o processo pelo qual o autor deve ser apreendido e esteticamente apreciado, que coincide com o modo pelo qual ele próprio encarava os argumentos históricos que lhe serviam de ancoradouro literário. Dizia Felício: "História é lenda criada pela paixão dos contemporâneos e prolongada pelos sentimentos facilmente transmissíveis, que as personagens, obras e circunstâncias inspiram aos pósteros. (...) A verdade mesma, essa, perde-se encerrada em poço bem mais fundo que o da fábula: o coração humano", conforme texto transcrito na orelha do romance João Abade. Nessa entrevista, Felício falou também de sua experiência como escritor, esclarecendo que "... de uma maneira muito vaga, sei, quando muito, o assunto da novela. Isso mesmo passível de modificações radicais. As próprias personagens, depois que tomam vida própria - porque personagem que não se define no decorrer da trama, deve ser eliminada, - fazem seu futuro. Nem mesmo precisam mais do autor para sobreviverem. Eu, que aqui neste Café Literário rendo homenagem a João Felício no ano do seu centenário de nascimento (ele nasceu em 14 de março de 1911, em Mendes, Rio de Janeiro) centenário já condignamente comemorado no dia 29 de março na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, tenho certeza absoluta de que o interesse de Felício pela transubstanciação literária da Insurreição do Queimado no romance Benedita Torreão não derivou apenas do tema lhe ter sido sugerido por dois amigos capixabas. O fator amizade por si só não seria suficiente para magnetizar o escritor se a frustrada insurreição dos negros escravos, passada no Espírito Santo, não tivesse sido o fato histórico que foi e, nesse sentido, um tema provocativo - a luta de homens oprimidos pela conquista dramática da sua liberdade e pela afirmação de sua dignidade humana. Porque este era um dos nervos pulsantes que levava Felício a dar voz e vida, ainda que fosse em romance, aos desvalidos da História, aos desprovidos de direitos fundamentais. Vale aqui mais uma remembrança. Seis anos antes da publicação de Benedita Torreão João Felício dos Santos me enviou uma carta, datada de 23 de dezembro de 1977, em que saudava carinhosamente o lançamento da peça, de minha autoria, sobre a Insurreição do Queimado. Foi por mero acaso que achei esta correspondência a tempo de mencioná-la neste encontro. Destaco dela o seguinte trecho, bem expressivo do espírito libertário com que Felício se empolgava pela temática histórica para, a partir dela, elaborar os seus romances. Escreveu-me ele, sobre a Insurreição: "O assunto é ótimo. Tudo que se escreva sobre a escravidão e a revolta dos negros será bom". Mal sabia Felício que anos depois a Insurreição iria freqüentar as páginas do seu romance Benedita Torreão, comprovando a predileção do autor pelos temas históricos que fustigavam sua veia poética, embora sua obra nem sempre fosse bem recepcionada por críticos dela contemporâneos. Tanto que foi por tratar romanescamente de gente injustiçada, retirando-a das sombras e entressombras da História, dando-lhes fulgor literário, que Felício teve de se ver com o sistema militarista dos anos de chumbo, por haver alguns de seus censores entendido que havia indisfarçável viés subversivo nos romances que ele escrevia. Outro tipo de restrição que Felício enfrentou veio de historiadores que não aceitavam o tratamento subversivo (mas agora no sentido ficcional) que ele dava aos temas da História. Mas nada disso submeteu João Felício. Eu, que privei de sua amizade durante muito tempo, posso afirmar, sem medo de errar, que tais tentativas de submissão serviram para dar ao seu espírito altivo e determinado motivos mais imperativos para continuar trilhando o caminho que elegera como escritor e romancista. O cinema abriu-lhe oportunidades novas para que seu ímpeto criativo, adaptado à tela, alcançasse dimensão popular, como aconteceu com Ganga Zumba e Xica da Silva, ambos dirigidos por Carlos Diegues, sendo Xica da Silva estrelado por Zezé Motta, Walmor Chagas e José Wilker. Vale aqui lembrar que este filme, que se tornou marco na história da cinematografia brasileira, contou com a sonoridade explosiva e até escandalosa para a época (1976) da trilha sonora de Roberto Menescal e Jorge Ben enchendo de duplo sentido os ouvidos dos espectadores com o seu Xica da, Xica da, Xica da Silva... Sobre Felício e sobre esse filme lembrou Cacá Diegues que "João Felício dos Santos (...) sempre procurou abordar a história dos esquecidos, daqueles que foram excluídos à força pelos vencedores. Não sei de outro escritor brasileiro que tivesse um tão vasto conhecimento das coisas do país, não só na forma de sua cultura popular, como também na erudição de sua história. (...) Xica da Silva foi e continua sendo um dos meus filmes mais populares. A idéia de fazê-lo estava muito ligada ao momento que vivíamos, de certa abertura política na ditadura militar, um momento que nos dava muita esperança de dias melhores e mais democráticos. Pedi a João Felício dos Santos que escrevesse o roteiro comigo, pois não podia abrir mão de sua participação na escritura dele. Para mantê-lo ao meu lado nas filmagens, inventamos o personagem do pároco, que ele interpretou de maneira graciosa..." A observação de Cacá Diegues - de maneira graciosa - há de ser entendida aqui em dois sentidos:1ª) significando desinteresse financeiro de Felício; 2ª) devido ao jeitão jocoso e caricatural com que Felício se desincumbiu na personalização do pároco glutão, nas diversas cenas em que aparece no filme, algumas contracenando com Zezé Motta, a atriz principal . Dessas cenas, uma se segue a um dos momentos mais alegres do filme, depois que Xica da Silva recebe sua carta de alforria das mãos do seu amante, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, e vai carnavalescamente com suas acompanhantes até à igreja matriz. Ali é impedida de entrar por João Felício dos Santos, no papel do pároco - do qual se saiu muito bem. ( ENTROU A PROJEÇÃO DA CENA DO FILME XICA DA SILVA EM QUE XICA SE DIRIGE CARNAVALESCAMENTE PARA SER BARRADA PELO PÁROCO (JOÃO FELÍCIO), NA ENTRADA DA IGREJA MATRIZ . A CENA PERMANECE CONGELADA EM TELA). Lembrou ainda Cacá Diegues que Xica foi "um caso raro de um filme que deu origem a um livro". E concluiu: "As novas gerações precisam conhecer esse grande brasileiro, esse grande escritor. Os leitores de hoje vão se surpreender com a atualidade de sua literatura." Claro que vão se surpreender, digo eu, desde que a leiam porque infelizmente tem pesado sobre os livros de Felício um lamentável e injustificável ostracismo, inclusive dentro dos muros acadêmicos. O jornalista Jorge Fernando dos Santos, em nota de 2007, no jornal O Estado de Minas salientou que "na década de 1960 (...) João Felício dos Santos já se dedicava a escrever romances históricos nos quais reconstruía a trajetória de personagens marginalizados pela história oficial do país. Ganga Zumba, por exemplo, foi lançado em 1964, premiado pela Academia Brasileira de Letras e adaptado para o cinema por Cacá Diegues. O livro narra a saga de Zumbi dos Palmares e inclui um glossário com palavras de origem africana. O curioso é que, mesmo com a preocupação oficial em reconhecer a importância da contribuição negra na cultura brasileira, quase ninguém se lembrava mais de João Felício dos Santos, morto em 13 de junho de 1989. Sua obra abriu caminho nesse sentido, e só agora, em 2007, depois de demorada ausência nas livrarias, começa a ser reeditada pela José Olympio Editora." Com razão o jornalista. Gente de menor envergadura literária do que Felício dos Santos tem merecido, no mercado livreiro do país, as luzes da promoção pública pela força da badalação e da publicidade comprometida com interesses de toda ordem, inclusive de cunho político. De nossa parte, um apelo é feito aqui neste Café Literário, visando a uma possível reedição de Benedita Torreão da Sangria Desatada um livro que eu acredito que Felício escreveu com a intenção de integrá-lo à estante da literatura capixaba. Sua reedição seria uma justa reverência a quem dela se faz merecedor. Finalizo dizendo que João Felício dos Santos soube compreender - à frente de muitos escritores do seu tempo - que além da História ou do que pretensamente se possa definir como "certeza ou verdade histórica", existe um espaço nunca totalmente preenchido e ocupado do pensamento poético que permite a elaboração de um discurso mágico na tessitura do imaginário. Seus romances foram prova disso. Foram não, continuam sendo a prova desta afirmativa. Luiz Guilherme Santos Neves