Regularização Fundiária e Urbanização Social Introdução O processo de expansão urbana no Brasil apresenta características singulares, de grandes desequilíbrios entre as classes sociais, presentes desde o período colonial brasileiro, e é resultante da ausência de planejamento que se materializa nos mecanismos de espoliação urbana, na invisibilidade da dimensão social para o pensamento econômico, transformando as cidades brasileiras em espaços de reprodução e acumulação do capital. A forma como a organização do espaço urbano vem se consolidando no nosso país, desenhando as cidades, como um produto histórico e social, contribui “para o crescimento das forças produtivas, da produtividade do trabalho, da utilização das técnicas (e) inversamente, a combinação das técnicas e da organização do trabalho na produção contribuem para o crescimento da população urbana e para a importância das cidades” (Lefebvre, 1999:146) Em outras palavras, o direito á cidade pelos diferentes segmentos sociais tem sido orientado por interesses e perspectivas diversos, determinantes nas possibilidades de acesso e estabelecidos a partir da estrutura das classes sociais, e marcado por uma tendência contemporânea de adensamento populacional e urbanização acelerada: 50% da população mundial vivem em área urbana, dos quais 31,6% vivem em favelas. Na América Latina a situação é mais grave: já em 1994, 73% da população viviam nas áreas urbanas. Esta concentração populacional explica boa parte dos problemas que as cidades vêm enfrentando, principalmente nas regiões periféricas do desenvolvimento capitalista. O direito á cidade pressupõe desafios complexos quando referido à cidade de São Paulo. Com uma significativa população urbana (cerca de 80%) numa área de 1509 quilômetros quadrados, a metrópole de São Paulo constitui o terceiro maior aglomerado urbano do mundo e é um dos principais pólos econômicos e tecnológicos da América do Sul. Representa 18% do PIB brasileiro, com uma população de 10,400 milhões de habitantes e sua região metropolitana concentra cerca de 18 milhões de pessoas. Além desse aspecto populacional, São Paulo é uma cidade que apresenta elevados níveis de desigualdade social e econômica: aproximadamente 30% da população do município, cerca de 3 milhões de habitantes, vivem em situação fundiária irregular ou ilegal. O período da grande expansão urbana brasileira (entre 1950 e 1970) marcado pela intensificação do desenvolvimento industrial no país, teve o Estado como o indutor da modernização e expansão industrial, assim como provedor de programas de bem-estar social. A crise econômica nacional que se iniciou nos anos 1970 e levou à queda de investimento público e a um persistente desequilíbrio entre o valor da terra e o salário mínimo, assim como as restrições estabelecidas pelas leis de uso do solo, estimularam o crescimento do mercado informal de habitação da cidade de São Paulo. O aprofundamento da precarização das condições de vida e a ampliação dos problemas sociais relacionadas à sobrevivência cotidiana da maioria da população evidenciaram o aumento da desigualdade e a polarização social, expressos na tensão permanente entre as tentativas de controle institucionalizado do uso do espaço urbano e as diferentes formas de inserção espacial e social das classes mais pobres no tecido urbano. A cidade de São Paulo apresenta uma forte segregação sócio-espacial, característica das últimas décadas, que se explicita na separação da população por classes de renda no espaço, em localizações distintas, com dinâmicas físicoambientais diferenciadas e de exclusão como privação dos direitos aos benefícios urbanos individuais e coletivos, configurando uma cidade segmentada de cidadãos e não cidadãos (Souza, 2001). Com referência a esse último aspecto, podemos tomar como exemplo os dados recentes do IBGE, que apontam que ao longo do século XX houve um significativo crescimento da riqueza do Brasil, que todavia não foi acompanhado da distribuição de renda. Conforme os dados, o Brasil que encerrou o século 20 é um país mais velho, mais urbano, mais feminino, mais alfabetizado e mais industrializado. E a desigualdade é a marca nacional: de renda, de gênero, regional, racial. São aspectos constitutivos da cidade de São Paulo que colocam a emergência de análises teórico-críticas, com vistas a uma urbanização social, mesmo porque, e tendo como referência Henri Lefebvre, pode-se afirmar que estamos falando de uma cidade que contém “ populações excedentes, satélites da grande indústria, “serviços” de todo tipo (dos melhores aos piores). Sem esquecer os aparelhos administrativos e políticos, os burocratas e os dirigentes, a burguesia e seus séqüitos. É assim que a cidade e a sociedade caminham juntas, se confundem, pois que a cidade recebe no seu seio, como “capital”, o próprio poder capitalista, o Estado. Nesse quadro se opera a distribuição dos recursos da sociedade, prodigiosa mistura de cálculo sórdido e de desperdício insensato” (op.cit., pág. 152) A percepção aguda da dimensão do problema aponta para a falência das políticas públicas de caráter tradicional, e para a emergência da administração das necessidades sociais pelo seu primeiro responsável, o Estado. 1. A Questão Urbano-Habitacional O desenvolvimento da economia industrial nacional, a partir da década de 1930, promoveu um período de intensa transformação urbana no Brasil, configurada numa polarização regional com concentração da produção e dos investimentos especialmente no Sudeste, dando sustentação a uma urbanização acelerada, que foi característica do modelo de desenvolvimento urbano brasileiro a partir de então. Na verdade, com o desenvolvimento tecnológico e maior pressão social e política, os anos posteriores à década de 1950, se apresentam o aumento da oferta dos serviços públicos e da melhoria de alguns indicadores urbanos, expõem também o precário quadro da má qualidade de vida de segmentos significativos da população urbana, ampliado pela combinação do aumento do desemprego e do trabalho informal às condições habitacionais marcadas por aspectos excludentes. Com uma densidade populacional expressiva, a cidade de São Paulo é provavelmente a mais representativa do modelo de desenvolvimento urbano brasileiro. Os contrastes profundos, no que se refere a sua configuração sócioespacial, caracterizam uma dualidade explicita — se por um lado integra uma estrutura urbana privilegiada em termos do saneamento básico e do sistema viário, por outro, apresenta um enorme território em situação de miséria e destacada iniqüidade no acesso a direitos sociais, inclusive ao de garantia a moradia digna. A população da cidade de São Paulo é 80% urbana com cerca de três milhões de pessoas vivendo em habitações precárias ou mesmo sem teto ― o que representa cerca de 30% da população que ocupa de forma irregular aproximadamente um quinto do território do município ― explicitando a ineficácia das sucessivas políticas sociais e urbanas no atendimento de uma significativa parcela da população, reproduzindo o ciclo estrutural da pobreza e da desigualdade de renda. Os assentamentos informais ― favelas e loteamentos irregulares ― e as ocupações precárias ― cortiços ― constituem a face mais visível desse desenvolvimento excludente. Diante do incremento populacional e da quantidade de famílias com renda insuficiente para acessar as unidades habitacionais produzidas regularmente pelo mercado imobiliário, a provisão estatal de habitação social não se constituiu em respostas efetivas às demandas habitacionais. Assim, as diversas formas de abrigo conquistadas pelas próprias famílias de baixa renda se impuseram no cenário da metrópole e se transformaram em soluções de fato para a questão da moradia. Diante dessa conjuntura, a questão urbano-habitacional traduz-se como um dos mais complexos desafios no campo das políticas públicas. Trata-se de reconhecer que a cidade é para todos, mas tendo claro que, prioritariamente, é preciso enfrentar a precariedade das condições de vida de parcela significativa da população do município que vive em condições de pobreza, sob a perspectiva da moradia digna como um direito social, no reconhecimento da função social do solo urbano e do papel do poder público de intervir em situações de exclusão social. Por moradia digna compreende-se aquela que garante ao morador a segurança na posse e ainda: ―dispõe de instalações sanitárias adequadas, que garanta as condições de habitabilidade e que seja atendida por serviços essenciais, entre eles: água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo, pavimentação e transporte coletivo, com acesso aos equipamentos sociais básicos‖ (PDE, art. 79 § único). A abordagem desta problemática requer uma caracterização temporal do aparecimento destas formas de moradias em situação de precariedade urbana. Data dos anos 1940 o aparecimento dos primeiros núcleos de favelas no município como conseqüência dos despejos, da forte urbanização e falta de alternativa habitacional. No entanto, devido ao seu grande estigma, esta alternativa cedeu lugar aos loteamentos de periferia. (Bonduki, 1998) Os loteamentos irregulares e clandestinos se constituíram em uma alternativa habitacional que predominou no município de São Paulo e em muitas outras cidades brasileiras e sua grande expansão deu-se na década de 1940. Estes empreendimentos se reproduziram em direção à periferia da cidade de forma descontínua e desarticulada da malha urbana. Eram formados por lotes baratos, desprovidos de infra-estrutura urbana e equipamentos públicos e pagos em prestações pelos adquirentes, que auto-construíam suas casas em etapas. O acesso era feito por meio de transporte público lento e precário. (Bonduki, 1998) Para a prefeitura do município de São Paulo, a expansão destes loteamentos viabilizou uma solução habitacional de baixíssimo custo, segregada e compatível com a baixa remuneração dos trabalhadores de forma que eles tivessem acesso à casa própria sem onerar o setor público. Os investimentos públicos foram concentrados nas áreas habitadas pela classe média e alta da cidade. (Bonduki, 1998) As favelas, por outro lado, passaram a ter presença significativa a partir da década de 1970. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, tanto o número de favelas quanto sua população residente aumentou significativamente em São Paulo Atualmente, elas continuam crescendo, e tornaram-se uma alternativa mais utilizada pela população pobre da cidade do que há dez anos (Saraiva e Marques, 2005). Junto aos loteamentos irregulares e clandestinos, elas ainda são as formas de moradia encontradas pela população de baixa renda que não consegue comprar no mercado formal. Esta duas alternativas de moradia abrangem extensa área do município e atingem uma parcela significativa da população. Este fato gera grande impacto na dinâmica social do município bem como na prestação de serviços públicos, quer seja de infra-estrutura urbana, quer seja equipamentos sociais. Por este motivo, as políticas habitacionais inclusivas representam um grande desafio no âmbito das políticas públicas. Mesmo porque o quadro urbano-habitacional não se altera com projetos restritos de construção de moradias ou de reassentamento de famílias que reproduzam o isolamento de grupos sociais sem a perspectiva de desenvolvimento econômico-social. A despeito do crescimento da demanda por moradia desde os anos 1970, as políticas habitacionais não têm apresentado resultados satisfatórios, nem no sentido quantitativo; a produção habitacional esteve sempre muito aquém da demanda por habitação, e nem quanto à qualidade dos programas implementados, empreendimentos com má qualidade urbanística e técnica que em grande parte dos casos aumentaram a segregação já existente. Podemos citar como exemplo em São Paulo os conjuntos habitacionais da Cohab, o Programa Prover (Cingapura). A análise no presente texto focará as favelas que estão se consolidando cada vez mais como uma alternativa habitacional para os mais pobres, abrange um número significativo de moradores vivendo em condições precárias e encerra alto grau de segregação em área extensa do território urbano. O conhecimento das suas características predominantes é fundamental para a formulação e implementação de políticas e programas apropriados a estes assentamentos e que incluam seus moradores na cidade de forma que eles passem ter acesso a moradia com infra-estrutura urbana, a segurança na posse e aos serviços públicos. As favelas se encontram localizadas predominantemente nas áreas remanescentes de loteamentos, geralmente impróprias para serem ocupadas por moradias, por estarem situadas em encostas de morros, nas margens dos cursos d’água, que representam fator de risco aos moradores. Em grande parte dos casos, estas áreas são ambientalmente protegidas. Com uma configuração urbanística desordenada, elas possuem infra-estrutura urbana insuficiente ou inexistente e serviços e equipamentos públicos escassos em seus arredores para a demanda existente. Seus moradores não têm segurança na posse de suas moradias devido à situação de irregularidade fundiária. A despeito desta precariedade, as favelas não pioraram ao longo da década de 1990, elas tiveram uma melhora em termos relativos e se aproximaram da situação de outros moradores da cidade. No entanto, esta melhora não significa a diminuição da segregação sócio-espacial. (Saraiva e Marques, 2005). Com base em dados obtidos pelo estudo dos censos demográficos de 1991 e 2000, a segregação residencial aumentou substancialmente em São Paulo na década de 1990 ao mesmo tempo em que o número relativo de famílias pobres diminuiu. Haroldo Torres define segregação residencial como o grau de aglomeração de determinado grupo social/étnico de uma dada área. Por exemplo: as favelas e loteamentos de alto padrão como Alphaville/Tamboré são diferentes partes do processo de segregação. O conceito de segregação remete a duas dimensões principais: os padrões de concentração espacial de determinados grupos sociais e o grau de homogeneidade social de determinadas áreas. (Torres, 2005) O argumento principal do autor é que a segregação social contribui para a perpetuação das situações de pobreza por meio de diferentes mecanismos. No caso das favelas, é possível associar a segregação com a qualidade ambiental de sua ocupação. Esta qualidade está fortemente associada ao não acesso desta população de baixa renda a terra e à moradia no mercado formal que acabam buscando por áreas impróprias para ocupação. Estas áreas se encontram em situação de irregularidade urbanística e fundiária. Urbanística porque estão localizadas em locais impróprios para moradia, sem obedecer qualquer padrão de uso e ocupação do solo e sujeitos à situações de riscos tanto de deslizamento de encosta como de enchentes para aquelas situadas nas beiras de córregos. Além disso, grande parte delas é considerada como Área de Preservação Permanente, conforme Resolução CONAMA nº. 303/02, ou seja, protegidas ambientalmente e apresentam infra-estrutura urbana precária e insuficiente. A irregularidade fundiária deve-se, em primeiro lugar, à situação jurídica das áreas ocupadas. Em sua maioria, são áreas públicas de uso comum do povo, ou seja, áreas verdes ou de uso institucional remanescentes de loteamentos que foram destinadas pelos loteadores por obrigatoriedade legal. O critério de escolha para estas áreas obedeceu invariavelmente à lógica de serem as áreas mais impróprias do loteamento para qualquer tipo de ocupação por edificação. Em muitos casos as ocupações por favelas estão associadas aos loteamentos irregulares e clandestinos, o que agrava sobremaneira a precariedade e segregação. Esta irregularidade fundiária contribui para diminuir o acesso aos serviços e equipamentos sociais uma vez que os órgãos públicos não podem investir em terrenos irregulares. Soma-se a esta situação o fato de que as favelas se localizam predominantemente nas regiões periféricas, aumentando consideravelmente o tempo e custo com transporte coletivo. Além disso, cresce também o gasto do trabalhador despendido com transporte. Os moradores também sofrem efeitos negativos em relação à saúde, quer seja pela falta de insolação e ventilação em suas moradias devido à construção precária e alta densidade do assentamento, quer seja pela falta ou precariedade dos equipamentos de saúde nos bairros periféricos com alta concentração de pobreza. Além disso, existem estudos que comprovam pior desempenho educacional em pessoas residentes em periferia que pessoas nas mesmas condições socioeconômicas nas áreas residenciais de classes mais altas. (Torres, 2005) O isolamento social destas áreas tende a reduzir significantemente as oportunidades dos moradores destes locais com relação a empregos e serviços públicos, ou seja, as oportunidades são muito menores, o que corrobora com aumento da segregação. (Torres, 2005) Outra prática encontrada nas favelas é a utilização das moradias para geração de emprego e renda. Por exemplo, em uma favela de periferia encontramos predominantemente pequenos comércios do tipo vendinha e bar, nas favelas localizadas em bairros de classe média, média alta e alta, como são os casos das favelas Heliópolis, Jaguaré e Paraisópolis, existe um comércio grande e diversificado. Mais do que isto, existe uma vida ativa dentro destas favelas. No caso da favela Heliópolis, existe uma grande permeabilidade pela utilização pela classe média do entorno. As políticas recentes com relação às favelas, tomaram duas linhas distintas de atuação no município de São Paulo. A primeira delas tem como objetivo a fixação dos moradores na local com respeito ao assentamento existente, a regularização jurídica da posse da terra e fortalecimento da participação da população no processo. Ela se viabiliza por meio da implantação de infra-estrutura urbana e construção de novas moradias onde necessárias. Esta solução prevê certo desadensamento na favela e consequentemente o oferecimento de uma alternativa habitacional fora da favela à população a ser removida do local. A outra linha de atuação previu também a fixação dos moradores no local, no entanto, por meio da demolição de todas as moradias existentes e construção de conjunto habitacional verticalizado nos moldes tradicionais. Não houve participação efetiva da população no processo. A primeira linha de atuação iniciou no município durante o governo Mário Covas que assumiu a prefeitura em 1983. Foi elaborado um plano habitacional intersecretarial para o município, agregando as secretarias do Bem Estar Social, Planejamento e Habitação. A atuação do poder público passou a ser subordinada às diretrizes de uma política habitacional e as favelas tratadas nesse âmbito, com diretrizes claras para sua reurbanização e regularização fundiária. (D’Alessandro, 1999). Foi criada uma nova estrutura administrativa na Secretaria do Bem Estar Social para a implementação da política habitacional. Os resultados da política foram tímidos, tanto na qualidade dos empreendimentos quanto na quantidade de favelas urbanizadas. Com relação à regularização fundiária, foram aprovadas sete desafetações de áreas de uso comum do povo, porém, as Concessões de Direito Real de Uso não foram outorgadas aos moradores. No âmbito da integração institucional não houve progressos, as três secretarias envolvidas não trabalharam de forma integrada e não se conseguiu interlocução com as outras secretarias, por exemplo, as responsáveis pela implantação de equipamentos urbanos, infraestrutura, educação e saúde. Também não houve integração com as concessionárias de serviços públicos. Quando o governo Luiza Erundina assumiu a prefeitura, a política habitacional do município ganhou maior ênfase, os programas existentes foram ampliados e as diretrizes de intervenção reformuladas. O programa ação em Favelas foi orientado pelo reconhecimento do direito à moradia e a fixação da população nos locais onde reside. Desta forma, buscou-se garantir o assentamento definitivo e a participação da população em todas as fazes do processo. (D’Alessandro, 1999) Houve uma descentralização e ampliação da estrutura institucional para a implementação do programa e um grande esforço em trabalhar de forma integrada às outras secretarias e concessionárias de serviços públicos. Foram feitos muitos avanços, no entanto, a não se conseguiu uma abordagem integrada no município. Também não houve avanço quanto à regularização fundiária. Alternando-se a esta primeira, a segunda linha de atuação foi implementada nos governos Maluf (1993-1996) e Pitta (1996-2000). O programa se chamou Programa de Verticalização de Favelas – PROVER e “corresponde a uma política habitacional que traduz uma forma de tratamento à população moradora em favelas que ignorou a situação gerada pela problemática sócio econômica que a empurrou para essa condição habitacional. “O descaso com a real situação desta população está refletido na idéia simplória de que é possível tirá-la de barracos e colocá-la em condomínios fechados, com unidades habitacionais multifamiliares, cuja sustentação implica em outra condição financeira, social e cultural ainda não obtida por esta população.” (Foratto, 2004) Suas diretrizes evidenciaram uma política de favelas que “partiu de uma concepção totalmente distinta das abordagens anteriores, baseada na manutenção da população favelada nas áreas já ocupadas, procurando atendê-la integralmente, quando possível, porém, desmontando a ocupação e o tecido social anteriormente existente, alterando completamente as condições locais das áreas de intervenção.” (Foratto, 2004) Logo após a conclusão das obras e em alguns casos durante a execução das mesmas, as famílias voltaram à situação anterior, mais precarizada, com a construção de barracos nas partes vazias que remanesceram da área original. Com a gestão Marta Suplicy (2001 0 2004), a política habitacional foi novamente alternada e deu-se continuidade às políticas iniciadas no governo Luiza Erundina. A política habitacional focou diversas frentes de atuação e teve grande ênfase na regularização jurídica da posse. Neste momento, havia uma nova ordem jurídica a partir do Estatuto da Cidade que possibilitou um grande avanço nas ações empreendidas. Por meio do reconhecimento e integração das áreas públicas ocupadas por moradias na malha urbana, garantindo a função social da propriedade, o programa de regularização fundiária desafetou e titulou 160 áreas abrangendo 45.856 famílias. No âmbito legal o reconhecimento do direito à moradia se deu por meio da outorga de concessão de uso especial para fins de moradia, previsto na Medida Provisória nº 2.220/01, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, no Plano Diretor Estratégico, e na Lei Municipal nº 13.430/02 que desafetou as áreas públicas de bens de uso comum do povo e autorizou o executivo a outorgar a concessão de uso especial para fins de moradia ou a concessão de direito real de uso, aos seus moradores. O Programa de Urbanização de Favelas teve como diretriz a ação integrada de qualificação habitacional e urbana em áreas territorialmente definidas, desenvolvido por meio de mecanismos de participação popular para permitir um planejamento sintonizado com a realidade local e compatibilizado com as diferentes demandas dos grupos sociais envolvidos. O programa tinha como objetivo a regularização urbanística e fundiária das favelas, transformando-as em área integrada à cidade e possibilitando aos moradores acesso à infra-estrutura, serviços urbanos e equipamentos comunitários. Ao promover intervenções físicas e sociais, o projeto buscou gerar mudanças profundas nas comunidades, possibilitando transformações na qualidade de vida de seus moradores com o objetivo de gerar reflexos na cidade. Os serviços técnicos desenvolvidos levaram em consideração as características da organização física e social existente, visando aprimorá-las na busca de um ambiente estável e saneado, a partir das práticas culturais e dos anseios das comunidades locais. O processo de urbanização de favelas teve como pressuposto, portanto, esforços conjuntos e a participação efetiva da população em todas suas fases de desenvolvimento. Buscou-se promover intervenções que organizassem o espaço físico da favela, incorporando às soluções adotadas: os dados físicos do assentamento existente, possibilitando aos moradores acesso aos serviços e equipamentos públicos urbanos e à espaços mais arejados e salubres, e as relações sociais, organizativas e econômicas, com ênfase nas atividades sociais coletivas e comerciais. Este programa abrangeu 30 assentamentos e cerca de 70.000 famílias. Durante a gestão Marta Suplicy, foram iniciadas três obras com recursos do Programa de Canalização de Fundos de Vale - PROCAV, e duas obras na gleba São Francisco. Quatorze projetos foram licitados e as obras iniciaram, parte no governo Serra e parte no atual governo Kassab. Com isto tentou-se, além de todos os benefícios alcançados pela urbanização social, criar uma permeabilidade maior entre as favelas e a cidade na busca de dirimir os processo de segregação existente. 2. Conquistas legais relativas ao direito à cidade Desde a Constituição Federal de 1988 e com a participação ampla da sociedade brasileira, observa-se uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito aos princípios, responsabilidades e obrigações compartilhadas entre o poder público e a sociedade civil, nas respostas às demandas políticosociais para um desenvolvimento urbano capaz de reverter o quadro da desigualdade social e da degradação ambiental, que venham possibilitar condições dignas de acesso à cidade pelos diferentes segmentos sociais. A Constituição Brasileira de 1988 estabelece parâmetros no art. 182 para a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes fixadas em lei, tendo como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A Emenda Constitucional 26/2000, por sua vez, garante entre os direitos sociais o direito à moradia (regulado pelo acesso ao solo urbano). A promulgação da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano ― Estatuto da Cidade (2001) ― regulamentando o capítulo constitucional da política urbana, culmina esse processo de conquistas políticas e sociais no campo urbano habitacional ao definir um conjunto de instrumentos que visam a garantir o exercício da função social da cidade e da propriedade. O sistema jurídico brasileiro passa a contar, então, com dispositivos voltados à indução de políticas de controle do uso e da ocupação do solo pelos municípios, bem como mecanismos destinados à ampliação das condições da participação popular na gestão pública e de agilização dos processos de regularização fundiária. No entanto, existe uma forte tendência das políticas de regularização fundiária em outorgar a segurança na posse para os moradores sem antes realizar as intervenções urbanísticas necessárias. Isto porque os recursos envolvidos para obras de urbanização de favelas são muito altos o que as inviabiliza. Se por um lado a regularização jurídica da propriedade da terra é importante para a inclusão desta população, por outro, quando ela é feita antes das intervenções urbanísticas, perpetua-se a situação de precariedade uma vez que se cristaliza lotes, sistemas viários e situações insalubres que inviabiliza a urbanização posterior se estes lotes não forem revistos. Além disso, o saneamento ambiental nunca será resolvido. As soluções possíveis para este dilema podem vir da combinação de vários mecanismos e instrumentos jurídicos e urbanísticos. Por exemplo, o projeto de urbanização da favela Heliópolis Gleba K, por meio de estudo urbanístico e conssulta à população, se estabeleceu um planejamento para toda a área considerando as ruas e quadras que seriam mantidas e o que deveria ser reformulado. Desta forma, pôde-se regularizar o que era possível individualmente e o que não era foi feito de forma coletiva até que a área seja reorganizada. Assim, esta reflexão tem que ser feita para que as regularizações fundiárias sejam feitas com critérios tirados caso a caso, pensando que um programa de regularização urbanística e fundiária de favelas é uma intervenção contínua no tempo, da mesma forma que ocorrem as dinâmicas sociais. 3. Cenários e perspectivas para uma gestão pública inclusiva O direito à cidade torna-se princípio e diretriz de intervenção urbana e se constitui num instrumento de defesa da universalização do acesso aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais numa perspectiva de gestão democrática, na garantia da função social da propriedade, no exercício pleno da cidadania, no princípio da igualdade e não discriminação de qualquer natureza, na proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis, no uso democrático do espaço público urbano, no direito à justiça, à segurança urbana e à convivência pacífica, ao acesso aos serviços públicos, ao transporte público e na defesa da mobilidade urbana, no direito à habitação, ao trabalho, à cultura, ao lazer e à saúde. As ações propostas devem privilegiar a contribuição da sociedade civil nos processos decisórios com controle social, ao erradicar a cultura existente do preconceito e da segregação social. De outra forma, ―a cidade legal (cuja produção é hegemônica e capitalista) caminha para ser, cada vez mais, espaço da minoria‖ (Maricato, 2001). Existe um grande peso também no desenvolvimento de programas habitacionais compartilhados entre todas as secretarias municipais, concessionárias de serviços públicos e quaisquer outros órgãos que legislem sobre as áreas para que a política seja aceita e assimilada por todas as entidades envolvidas. Isto traz grande impacto sobre a manutenção dos serviços a serem implementados, ao acesso desta população excluída aos serviços públicos, à situação de regularidade junto aos órgãos de licenciamento ambiental, e torna a favela parte do tecido social, com características próprias, a ser incorporado o processo de inclusão administrativa além da social. O desafio da política habitacional é enfrentar a precariedade das condições urbana e de habitabilidade e garantir a segurança na posse de parcela significativa da população do município que vive em condições de pobreza. O desafio está, pois, em pensar a cidade em termos de: Uma cidade constituída de direitos e de valores éticos, da qual o trabalhador faça parte como sujeito de direitos; Uma cidade cuja política urbana contemple interesses diversos existentes, mas, que atenda ao princípio da igualdade, qual seja tratar os iguais como iguais e os desiguais de forma desigual; Uma cidade que integre as políticas urbanas com as políticas sociais; Uma cidade com gestão democrática que privilegie o controle social democrático e transparente; Uma cidade que inclua o tema da segurança urbana na discussão da política urbana, e não somente na esfera exclusiva das forças policiais; Uma cidade planejada em que os eixos do transporte coletivo e da mobilidade sejam questões referidas ao cidadão e não ao automóvel; Uma cidade que garanta a função social da propriedade, incorporando os princípios da igualdade no acesso à terra. 4. Bibliografia BONDUKI, Nabil Georges. 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