Regularização Fundiária e Urbanização Social
Introdução
O processo de expansão urbana no Brasil apresenta características
singulares, de grandes desequilíbrios entre as classes sociais, presentes desde o
período colonial brasileiro, e é resultante da ausência de planejamento que se
materializa nos mecanismos de espoliação urbana, na invisibilidade da dimensão
social para o pensamento econômico, transformando as cidades brasileiras em
espaços de reprodução e acumulação do capital. A forma como a organização do
espaço urbano vem se consolidando no nosso país, desenhando as cidades,
como um produto histórico e social, contribui
“para o crescimento das forças produtivas, da produtividade do
trabalho,
da
utilização
das
técnicas
(e)
inversamente,
a
combinação das técnicas e da organização do trabalho na
produção contribuem para o crescimento da população urbana e
para a importância das cidades” (Lefebvre, 1999:146)
Em outras palavras, o direito á cidade pelos diferentes segmentos sociais tem sido
orientado por interesses e perspectivas diversos, determinantes nas possibilidades
de acesso e estabelecidos a partir da estrutura das classes sociais, e marcado por
uma tendência contemporânea de adensamento populacional e urbanização
acelerada: 50% da população mundial vivem em área urbana, dos quais 31,6%
vivem em favelas. Na América Latina a situação é mais grave: já em 1994, 73% da
população viviam nas áreas urbanas. Esta concentração populacional explica boa
parte dos problemas que as cidades vêm enfrentando, principalmente nas regiões
periféricas do desenvolvimento capitalista.
O direito á cidade pressupõe desafios complexos quando referido à cidade de São
Paulo. Com uma significativa população urbana (cerca de 80%) numa área de
1509 quilômetros quadrados, a metrópole de São Paulo constitui o terceiro maior
aglomerado urbano do mundo e é um dos principais pólos econômicos e
tecnológicos da América do Sul. Representa 18% do PIB brasileiro, com uma
população de 10,400 milhões de habitantes e sua região metropolitana concentra
cerca de 18 milhões de pessoas. Além desse aspecto populacional, São Paulo é
uma cidade que apresenta elevados níveis de desigualdade social e econômica:
aproximadamente 30% da população do município, cerca de 3 milhões de
habitantes, vivem em situação fundiária irregular ou ilegal.
O período da grande expansão urbana brasileira (entre 1950 e 1970) marcado
pela intensificação do desenvolvimento industrial no país, teve o Estado como o
indutor da modernização e expansão industrial, assim como provedor de
programas de bem-estar social. A crise econômica nacional que se iniciou nos
anos 1970 e levou à queda de investimento público e a um persistente
desequilíbrio entre o valor da terra e o salário mínimo, assim como as restrições
estabelecidas pelas leis de uso do solo, estimularam o crescimento do mercado
informal de habitação da cidade de São Paulo. O aprofundamento da precarização
das condições de vida e a ampliação dos problemas sociais relacionadas à
sobrevivência cotidiana da maioria da população evidenciaram o aumento da
desigualdade e a polarização social, expressos na tensão permanente entre as
tentativas de controle institucionalizado do uso do espaço urbano e as diferentes
formas de inserção espacial e social das classes mais pobres no tecido urbano. A
cidade
de
São
Paulo
apresenta
uma
forte
segregação
sócio-espacial,
característica das últimas décadas, que se explicita na separação da população
por classes de renda no espaço, em localizações distintas, com dinâmicas físicoambientais diferenciadas e de exclusão como privação dos direitos aos benefícios
urbanos individuais e coletivos, configurando uma cidade segmentada de cidadãos
e não cidadãos (Souza, 2001).
Com referência a esse último aspecto, podemos tomar como exemplo os dados
recentes do IBGE, que apontam que ao longo do século XX houve um significativo
crescimento da riqueza do Brasil, que todavia não foi acompanhado da
distribuição de renda. Conforme os dados, o Brasil que encerrou o século 20 é um
país mais velho, mais urbano, mais feminino, mais alfabetizado e mais
industrializado. E a desigualdade é a marca nacional: de renda, de gênero,
regional, racial.
São aspectos constitutivos da cidade de São Paulo que colocam a emergência de
análises teórico-críticas, com vistas a uma urbanização social, mesmo porque, e
tendo como referência Henri Lefebvre, pode-se afirmar que estamos falando de
uma cidade que contém
“ populações excedentes, satélites da grande indústria, “serviços”
de todo tipo (dos melhores aos piores). Sem esquecer os
aparelhos administrativos e políticos, os burocratas e os
dirigentes, a burguesia e seus séqüitos. É assim que a cidade e a
sociedade caminham juntas, se confundem, pois que a cidade
recebe no seu seio, como “capital”, o próprio poder capitalista, o
Estado. Nesse quadro se opera a distribuição dos recursos da
sociedade, prodigiosa mistura de cálculo sórdido e de desperdício
insensato” (op.cit., pág. 152)
A percepção aguda da dimensão do problema aponta para a falência das políticas
públicas de caráter tradicional, e para a emergência da administração das
necessidades sociais pelo seu primeiro responsável, o Estado.
1. A Questão Urbano-Habitacional
O desenvolvimento da economia industrial nacional, a partir da década de
1930, promoveu um período de intensa transformação urbana no Brasil,
configurada numa polarização regional com concentração da produção e dos
investimentos especialmente no Sudeste, dando sustentação a uma urbanização
acelerada, que foi característica do modelo de desenvolvimento urbano brasileiro
a partir de então. Na verdade, com o desenvolvimento tecnológico e maior
pressão social e política, os anos posteriores à década de 1950, se apresentam o
aumento da oferta dos serviços públicos e da melhoria de alguns indicadores
urbanos, expõem também o precário quadro da má qualidade de vida de
segmentos significativos da população urbana, ampliado pela combinação do
aumento do desemprego e do trabalho informal às condições habitacionais
marcadas por aspectos excludentes.
Com uma densidade populacional expressiva, a cidade de São Paulo é
provavelmente a mais representativa do modelo de desenvolvimento urbano
brasileiro. Os contrastes profundos, no que se refere a sua configuração sócioespacial, caracterizam uma dualidade explicita — se por um lado integra uma
estrutura urbana privilegiada em termos do saneamento básico e do sistema
viário, por outro, apresenta um enorme território em situação de miséria e
destacada iniqüidade no acesso a direitos sociais, inclusive ao de garantia a
moradia digna.
A população da cidade de São Paulo é 80% urbana com cerca de três milhões de
pessoas vivendo em habitações precárias ou mesmo sem teto ― o que representa
cerca de 30% da população que ocupa de forma irregular aproximadamente um
quinto do território do município ― explicitando a ineficácia das sucessivas
políticas sociais e urbanas no atendimento de uma significativa parcela da
população, reproduzindo o ciclo estrutural da pobreza e da desigualdade de renda.
Os assentamentos informais ― favelas e loteamentos irregulares ― e as
ocupações precárias ― cortiços ― constituem a face mais visível desse
desenvolvimento excludente. Diante do incremento populacional e da quantidade
de famílias com renda insuficiente para acessar as unidades habitacionais
produzidas regularmente pelo mercado imobiliário, a provisão estatal de habitação
social não se constituiu em respostas efetivas às demandas habitacionais. Assim,
as diversas formas de abrigo conquistadas pelas próprias famílias de baixa renda
se impuseram no cenário da metrópole e se transformaram em soluções de fato
para a questão da moradia.
Diante dessa conjuntura, a questão urbano-habitacional traduz-se como um dos
mais complexos desafios no campo das políticas públicas. Trata-se de reconhecer
que a cidade é para todos, mas tendo claro que, prioritariamente, é preciso
enfrentar a precariedade das condições de vida de parcela significativa da
população do município que vive em condições de pobreza, sob a perspectiva da
moradia digna como um direito social, no reconhecimento da função social do solo
urbano e do papel do poder público de intervir em situações de exclusão social.
Por moradia digna compreende-se aquela que garante ao morador a segurança
na posse e ainda: ―dispõe de instalações sanitárias adequadas, que garanta as
condições de habitabilidade e que seja atendida por serviços essenciais, entre
eles: água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo,
pavimentação e transporte coletivo, com acesso aos equipamentos sociais
básicos‖ (PDE, art. 79 § único).
A abordagem desta problemática requer uma caracterização temporal do
aparecimento destas formas de moradias em situação de precariedade urbana.
Data dos anos 1940 o aparecimento dos primeiros núcleos de favelas no
município como conseqüência dos despejos, da forte urbanização e falta de
alternativa habitacional. No entanto, devido ao seu grande estigma, esta
alternativa cedeu lugar aos loteamentos de periferia. (Bonduki, 1998)
Os loteamentos irregulares e clandestinos se constituíram em uma alternativa
habitacional que predominou no município de São Paulo e em muitas outras
cidades brasileiras e sua grande expansão deu-se na década de 1940. Estes
empreendimentos se reproduziram em direção à periferia da cidade de forma
descontínua e desarticulada da malha urbana. Eram formados por lotes baratos,
desprovidos de infra-estrutura urbana e equipamentos públicos e pagos em
prestações pelos adquirentes, que auto-construíam suas casas em etapas. O
acesso era feito por meio de transporte público lento e precário. (Bonduki, 1998)
Para a prefeitura do município de São Paulo, a expansão destes loteamentos
viabilizou uma solução habitacional de baixíssimo custo, segregada e compatível
com a baixa remuneração dos trabalhadores de forma que eles tivessem acesso à
casa própria sem onerar o setor público. Os investimentos públicos foram
concentrados nas áreas habitadas pela classe média e alta da cidade. (Bonduki,
1998)
As favelas, por outro lado, passaram a ter presença significativa a partir da década
de 1970. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, tanto o número de favelas quanto
sua população residente aumentou significativamente em São Paulo Atualmente,
elas continuam crescendo, e tornaram-se uma alternativa mais utilizada pela
população pobre da cidade do que há dez anos (Saraiva e Marques, 2005).
Junto aos loteamentos irregulares e clandestinos, elas ainda são as formas de
moradia encontradas pela população de baixa renda que não consegue comprar
no mercado formal. Esta duas alternativas de moradia abrangem extensa área do
município e atingem uma parcela significativa da população.
Este fato gera grande impacto na dinâmica social do município bem como na
prestação de serviços públicos, quer seja de infra-estrutura urbana, quer seja
equipamentos sociais. Por este motivo, as políticas habitacionais inclusivas
representam um grande desafio no âmbito das políticas públicas. Mesmo porque o
quadro urbano-habitacional não se altera com projetos restritos de construção de
moradias ou de reassentamento de famílias que reproduzam o isolamento de
grupos sociais sem a perspectiva de desenvolvimento econômico-social.
A despeito do crescimento da demanda por moradia desde os anos 1970, as
políticas habitacionais não têm apresentado resultados satisfatórios, nem no
sentido quantitativo; a produção habitacional esteve sempre muito aquém da
demanda
por
habitação,
e
nem
quanto
à
qualidade
dos
programas
implementados, empreendimentos com má qualidade urbanística e técnica que
em grande parte dos casos aumentaram a segregação já existente. Podemos citar
como exemplo em São Paulo os conjuntos habitacionais da Cohab, o Programa
Prover (Cingapura).
A análise no presente texto focará as favelas que estão se consolidando cada vez
mais como uma alternativa habitacional para os mais pobres, abrange um número
significativo de moradores vivendo em condições precárias e encerra alto grau de
segregação em área extensa do território urbano.
O conhecimento das suas características predominantes é fundamental para a
formulação e implementação de políticas e programas apropriados a estes
assentamentos e que incluam seus moradores na cidade de forma que eles
passem ter acesso a moradia com infra-estrutura urbana, a segurança na posse e
aos serviços públicos.
As
favelas
se
encontram
localizadas
predominantemente
nas
áreas
remanescentes de loteamentos, geralmente impróprias para serem ocupadas por
moradias, por estarem situadas em encostas de morros, nas margens dos cursos
d’água, que representam fator de risco aos moradores. Em grande parte dos
casos, estas áreas são ambientalmente protegidas.
Com uma configuração urbanística desordenada, elas possuem infra-estrutura
urbana insuficiente ou inexistente e serviços e equipamentos públicos escassos
em seus arredores para a demanda existente. Seus moradores não têm
segurança na posse de suas moradias devido à situação de irregularidade
fundiária.
A despeito desta precariedade, as favelas não pioraram ao longo da década de
1990, elas tiveram uma melhora em termos relativos e se aproximaram da
situação de outros moradores da cidade. No entanto, esta melhora não significa a
diminuição da segregação sócio-espacial. (Saraiva e Marques, 2005).
Com base em dados obtidos pelo estudo dos censos demográficos de 1991 e
2000, a segregação residencial aumentou substancialmente em São Paulo na
década de 1990 ao mesmo tempo em que o número relativo de famílias pobres
diminuiu.
Haroldo Torres define segregação residencial como o grau de aglomeração de
determinado grupo social/étnico de uma dada área. Por exemplo: as favelas e
loteamentos de alto padrão como Alphaville/Tamboré são diferentes partes do
processo de segregação. O conceito de segregação remete a duas dimensões
principais: os padrões de concentração espacial de determinados grupos sociais e
o grau de homogeneidade social de determinadas áreas. (Torres, 2005)
O argumento principal do autor é que a segregação social contribui para a
perpetuação das situações de pobreza por meio de diferentes mecanismos. No
caso das favelas, é possível associar a segregação com a qualidade ambiental de
sua ocupação.
Esta qualidade está fortemente associada ao não acesso desta população de
baixa renda a terra e à moradia no mercado formal que acabam buscando por
áreas impróprias para ocupação. Estas áreas se encontram em situação de
irregularidade urbanística e fundiária. Urbanística porque estão localizadas em
locais impróprios para moradia, sem obedecer qualquer padrão de uso e
ocupação do solo e sujeitos à situações de riscos tanto de deslizamento de
encosta como de enchentes para aquelas situadas nas beiras de córregos. Além
disso, grande parte delas é considerada como Área de Preservação Permanente,
conforme Resolução CONAMA nº. 303/02, ou seja, protegidas ambientalmente e
apresentam infra-estrutura urbana precária e insuficiente.
A irregularidade fundiária deve-se, em primeiro lugar, à situação jurídica das áreas
ocupadas. Em sua maioria, são áreas públicas de uso comum do povo, ou seja,
áreas verdes ou de uso institucional remanescentes de loteamentos que foram
destinadas pelos loteadores por obrigatoriedade legal. O critério de escolha para
estas áreas obedeceu invariavelmente à lógica de serem as áreas mais impróprias
do loteamento para qualquer tipo de ocupação por edificação. Em muitos casos as
ocupações por favelas estão associadas aos loteamentos irregulares e
clandestinos, o que agrava sobremaneira a precariedade e segregação.
Esta irregularidade fundiária contribui para diminuir o acesso aos serviços e
equipamentos sociais uma vez que os órgãos públicos não podem investir em
terrenos irregulares.
Soma-se
a
esta
situação
o
fato
de
que
as
favelas
se
localizam
predominantemente nas regiões periféricas, aumentando consideravelmente o
tempo e custo com transporte coletivo. Além disso, cresce também o gasto do
trabalhador despendido com transporte.
Os moradores também sofrem efeitos negativos em relação à saúde, quer seja
pela falta de insolação e ventilação em suas moradias devido à construção
precária e alta densidade do assentamento, quer seja pela falta ou precariedade
dos equipamentos de saúde nos bairros periféricos com alta concentração de
pobreza.
Além disso, existem estudos que comprovam pior desempenho educacional em
pessoas
residentes
em
periferia
que
pessoas
nas
mesmas
condições
socioeconômicas nas áreas residenciais de classes mais altas. (Torres, 2005)
O isolamento social destas áreas tende a reduzir significantemente as
oportunidades dos moradores destes locais com relação a empregos e serviços
públicos, ou seja, as oportunidades são muito menores, o que corrobora com
aumento da segregação. (Torres, 2005)
Outra prática encontrada nas favelas é a utilização das moradias para geração de
emprego e renda. Por exemplo, em uma favela de periferia encontramos
predominantemente pequenos comércios do tipo vendinha e bar, nas favelas
localizadas em bairros de classe média, média alta e alta, como são os casos das
favelas Heliópolis, Jaguaré e Paraisópolis, existe um comércio grande e
diversificado. Mais do que isto, existe uma vida ativa dentro destas favelas. No
caso da favela Heliópolis, existe uma grande permeabilidade pela utilização pela
classe média do entorno.
As políticas recentes com relação às favelas, tomaram duas linhas distintas de
atuação no município de São Paulo. A primeira delas tem como objetivo a fixação
dos moradores na local com respeito ao assentamento existente, a regularização
jurídica da posse da terra e fortalecimento da participação da população no
processo. Ela se viabiliza por meio da implantação de infra-estrutura urbana e
construção de novas moradias onde necessárias. Esta solução prevê certo
desadensamento na favela e consequentemente o oferecimento de uma
alternativa habitacional fora da favela à população a ser removida do local.
A outra linha de atuação previu também a fixação dos moradores no local, no
entanto, por meio da demolição de todas as moradias existentes e construção de
conjunto
habitacional
verticalizado
nos
moldes
tradicionais.
Não
houve
participação efetiva da população no processo.
A primeira linha de atuação iniciou no município durante o governo Mário Covas
que assumiu a prefeitura em 1983. Foi elaborado um plano habitacional
intersecretarial para o município, agregando as secretarias do Bem Estar Social,
Planejamento e Habitação. A atuação do poder público passou a ser subordinada
às diretrizes de uma política habitacional e as favelas tratadas nesse âmbito, com
diretrizes claras para sua reurbanização e regularização fundiária. (D’Alessandro,
1999).
Foi criada uma nova estrutura administrativa na Secretaria do Bem Estar Social
para a implementação da política habitacional. Os resultados da política foram
tímidos, tanto na qualidade dos empreendimentos quanto na quantidade de
favelas urbanizadas. Com relação à regularização fundiária, foram aprovadas sete
desafetações de áreas de uso comum do povo, porém, as Concessões de Direito
Real de Uso não foram outorgadas aos moradores. No âmbito da integração
institucional não houve progressos, as três secretarias envolvidas não trabalharam
de forma integrada e não se conseguiu interlocução com as outras secretarias, por
exemplo, as responsáveis pela implantação de equipamentos urbanos, infraestrutura, educação e saúde. Também não houve integração com as
concessionárias de serviços públicos.
Quando o governo Luiza Erundina assumiu a prefeitura, a política habitacional do
município ganhou maior ênfase, os programas existentes foram ampliados e as
diretrizes de intervenção reformuladas. O programa ação em Favelas foi orientado
pelo reconhecimento do direito à moradia e a fixação da população nos locais
onde reside. Desta forma, buscou-se garantir o assentamento definitivo e a
participação da população em todas as fazes do processo. (D’Alessandro, 1999)
Houve uma descentralização e ampliação da estrutura institucional para a
implementação do programa e um grande esforço em trabalhar de forma integrada
às outras secretarias e concessionárias de serviços públicos. Foram feitos muitos
avanços, no entanto, a não se conseguiu uma abordagem integrada no município.
Também não houve avanço quanto à regularização fundiária.
Alternando-se a esta primeira, a segunda linha de atuação foi implementada nos
governos Maluf (1993-1996) e Pitta (1996-2000). O programa se chamou
Programa de Verticalização de Favelas – PROVER e
“corresponde a uma política habitacional que traduz uma forma de
tratamento à população moradora em favelas que ignorou a
situação gerada pela problemática sócio econômica que a
empurrou para essa condição habitacional.
“O descaso com a real situação desta população está refletido na
idéia simplória de que é possível tirá-la de barracos e colocá-la em
condomínios
fechados,
com
unidades
habitacionais
multifamiliares, cuja sustentação implica em outra condição
financeira, social e cultural ainda não obtida por esta população.”
(Foratto, 2004)
Suas diretrizes evidenciaram uma política de favelas que
“partiu de uma concepção totalmente distinta das abordagens
anteriores, baseada na manutenção da população favelada nas
áreas já ocupadas, procurando atendê-la integralmente, quando
possível, porém, desmontando a ocupação e o tecido social
anteriormente existente, alterando completamente as condições
locais das áreas de intervenção.” (Foratto, 2004)
Logo após a conclusão das obras e em alguns casos durante a execução das
mesmas, as famílias voltaram à situação anterior, mais precarizada, com a
construção de barracos nas partes vazias que remanesceram da área original.
Com a gestão Marta Suplicy (2001 0 2004), a política habitacional foi novamente
alternada e deu-se continuidade às políticas iniciadas no governo Luiza Erundina.
A política habitacional focou diversas frentes de atuação e teve grande ênfase na
regularização jurídica da posse. Neste momento, havia uma nova ordem jurídica a
partir do Estatuto da Cidade que possibilitou um grande avanço nas ações
empreendidas.
Por meio do reconhecimento e integração das áreas públicas ocupadas por
moradias na malha urbana, garantindo a função social da propriedade, o programa
de regularização fundiária desafetou e titulou 160 áreas abrangendo 45.856
famílias.
No âmbito legal o reconhecimento do direito à moradia se deu por meio da outorga
de concessão de uso especial para fins de moradia, previsto na Medida Provisória
nº 2.220/01, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, no Plano Diretor Estratégico,
e na Lei Municipal nº 13.430/02 que desafetou as áreas públicas de bens de uso
comum do povo e autorizou o executivo a outorgar a concessão de uso especial
para fins de moradia ou a concessão de direito real de uso, aos seus moradores.
O Programa de Urbanização de Favelas teve como diretriz a ação integrada de
qualificação
habitacional
e
urbana
em
áreas
territorialmente
definidas,
desenvolvido por meio de mecanismos de participação popular para permitir um
planejamento sintonizado com a realidade local e compatibilizado com as
diferentes demandas dos grupos sociais envolvidos.
O programa tinha como objetivo a regularização urbanística e fundiária das
favelas, transformando-as em área integrada à cidade e possibilitando aos
moradores
acesso
à
infra-estrutura,
serviços
urbanos
e
equipamentos
comunitários.
Ao promover intervenções físicas e sociais, o projeto buscou gerar mudanças
profundas nas comunidades, possibilitando transformações na qualidade de vida
de seus moradores com o objetivo de gerar reflexos na cidade.
Os serviços técnicos desenvolvidos levaram em consideração as características
da organização física e social existente, visando aprimorá-las na busca de um
ambiente estável e saneado, a partir das práticas culturais e dos anseios das
comunidades locais. O processo de urbanização de favelas teve como
pressuposto, portanto, esforços conjuntos e a participação efetiva da população
em todas suas fases de desenvolvimento.
Buscou-se promover intervenções que organizassem o espaço físico da favela,
incorporando às soluções adotadas: os dados físicos do assentamento existente,
possibilitando aos moradores acesso aos serviços e equipamentos públicos
urbanos e à espaços mais arejados e salubres, e as relações sociais,
organizativas e econômicas, com ênfase nas atividades sociais coletivas e
comerciais.
Este programa abrangeu 30 assentamentos e cerca de 70.000 famílias. Durante a
gestão Marta Suplicy, foram iniciadas três obras com recursos do Programa de
Canalização de Fundos de Vale - PROCAV, e duas obras na gleba São Francisco.
Quatorze projetos foram licitados e as obras iniciaram, parte no governo Serra e
parte no atual governo Kassab.
Com isto tentou-se, além de todos os benefícios alcançados pela urbanização
social, criar uma permeabilidade maior entre as favelas e a cidade na busca de
dirimir os processo de segregação existente.
2. Conquistas legais relativas ao direito à cidade
Desde a Constituição Federal de 1988 e com a participação ampla da
sociedade brasileira, observa-se uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro,
no que diz respeito aos princípios, responsabilidades e obrigações compartilhadas
entre o poder público e a sociedade civil, nas respostas às demandas políticosociais para um desenvolvimento urbano capaz de reverter o quadro da
desigualdade social e da degradação ambiental, que venham possibilitar
condições dignas de acesso à cidade pelos diferentes segmentos sociais.
A Constituição Brasileira de 1988 estabelece parâmetros no art. 182 para a
política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo poder público municipal,
conforme diretrizes fixadas em lei, tendo como objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes. A Emenda Constitucional 26/2000, por sua vez, garante entre os
direitos sociais o direito à moradia (regulado pelo acesso ao solo urbano). A
promulgação da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano ― Estatuto da Cidade
(2001) ― regulamentando o capítulo constitucional da política urbana, culmina
esse processo de conquistas políticas e sociais no campo urbano habitacional ao
definir um conjunto de instrumentos que visam a garantir o exercício da função
social da cidade e da propriedade.
O sistema jurídico brasileiro passa a contar, então, com dispositivos voltados à
indução de políticas de controle do uso e da ocupação do solo pelos municípios,
bem como mecanismos destinados à ampliação das condições da participação
popular na gestão pública e de agilização dos processos de regularização
fundiária.
No entanto, existe uma forte tendência das políticas de regularização fundiária em
outorgar a segurança na posse para os moradores sem antes realizar as
intervenções urbanísticas necessárias. Isto porque os recursos envolvidos para
obras de urbanização de favelas são muito altos o que as inviabiliza.
Se por um lado a regularização jurídica da propriedade da terra é importante para
a inclusão desta população, por outro, quando ela é feita antes das intervenções
urbanísticas, perpetua-se a situação de precariedade uma vez que se cristaliza
lotes, sistemas viários e situações insalubres que inviabiliza a urbanização
posterior se estes lotes não forem revistos. Além disso, o saneamento ambiental
nunca será resolvido.
As soluções possíveis para este dilema podem vir da combinação de vários
mecanismos e instrumentos jurídicos e urbanísticos. Por exemplo, o projeto de
urbanização da favela Heliópolis Gleba K, por meio de estudo urbanístico e
conssulta à população, se estabeleceu um planejamento para toda a área
considerando as ruas e quadras que seriam mantidas e o que deveria ser
reformulado. Desta forma, pôde-se regularizar o que era possível individualmente
e o que não era foi feito de forma coletiva até que a área seja reorganizada.
Assim, esta reflexão tem que ser feita para que as regularizações fundiárias sejam
feitas com critérios tirados caso a caso, pensando que um programa de
regularização urbanística e fundiária de favelas é uma intervenção contínua no
tempo, da mesma forma que ocorrem as dinâmicas sociais.
3. Cenários e perspectivas para uma gestão pública inclusiva
O direito à cidade torna-se princípio e diretriz de intervenção urbana e se
constitui num instrumento de defesa da universalização do acesso aos direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais numa perspectiva de gestão
democrática, na garantia da função social da propriedade, no exercício pleno da
cidadania, no princípio da igualdade e não discriminação de qualquer natureza, na
proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis, no uso democrático do
espaço público urbano, no direito à justiça, à segurança urbana e à convivência
pacífica, ao acesso aos serviços públicos, ao transporte público e na defesa da
mobilidade urbana, no direito à habitação, ao trabalho, à cultura, ao lazer e à
saúde. As ações propostas devem privilegiar a contribuição da sociedade civil nos
processos decisórios com controle social, ao erradicar a cultura existente do
preconceito e da segregação social. De outra forma, ―a cidade legal (cuja
produção é hegemônica e capitalista) caminha para ser, cada vez mais, espaço da
minoria‖ (Maricato, 2001).
Existe um grande peso também no desenvolvimento de programas habitacionais
compartilhados entre todas as secretarias municipais, concessionárias de serviços
públicos e quaisquer outros órgãos que legislem sobre as áreas para que a
política seja aceita e assimilada por todas as entidades envolvidas.
Isto traz grande impacto sobre a manutenção dos serviços a serem
implementados, ao acesso desta população excluída aos serviços públicos, à
situação de regularidade junto aos órgãos de licenciamento ambiental, e torna a
favela parte do tecido social, com características próprias, a ser incorporado o
processo de inclusão administrativa além da social.
O desafio da política habitacional é enfrentar a precariedade das condições
urbana e de habitabilidade e garantir a segurança na posse de parcela significativa
da população do município que vive em condições de pobreza. O desafio está,
pois, em pensar a cidade em termos de:
Uma cidade constituída de direitos e de valores éticos, da qual o trabalhador
faça parte como sujeito de direitos;
Uma cidade cuja política urbana contemple interesses diversos existentes,
mas, que atenda ao princípio da igualdade, qual seja tratar os iguais como
iguais e os desiguais de forma desigual;
Uma cidade que integre as políticas urbanas com as políticas sociais;
Uma cidade com gestão democrática que privilegie o controle social
democrático e transparente;
Uma cidade que inclua o tema da segurança urbana na discussão da política
urbana, e não somente na esfera exclusiva das forças policiais;
Uma cidade planejada em que os eixos do transporte coletivo e da mobilidade
sejam questões referidas ao cidadão e não ao automóvel;
Uma cidade que garanta a função social da propriedade, incorporando os
princípios da igualdade no acesso à terra.
4. Bibliografia
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