Considerações sobre a segurança urbana das
mulheres através do direito à cidade, Polônia
Shelley Buckingham
As Mulheres e Violência Urbana
As ameaças de crime e violência são mais altas nas cidades, particularmente entre
as mulheres. O número crescente de incidentes nos espaços públicos urbanos
está se tornando uma grande preocupação, especialmente quando consideramos
a forte urbanização mundial que vem acontecendo por décadas. Este fenômeno
tem progredido ao ponto de que atualmente mais da metade da população do
mundo vive em cidades, revelando a importância do debate sobre a segurança
das mulheres na cidade. Embora os padrões de direitos humanos internacionais
estabeleçam objetivos para garantir o direito das mulheres a viver sem violência,
os ambientes urbanos particulares onde sofrem violência necessitam ser
examinados e ações devem ser tomadas nas esferas públicas locais. Se a violência
ocorre em grande parte da cidade, então ações precisam ser realizadas não
somente na cidade, mas através da sua própria criação. Enquanto o planejamento
e o desenho urbano não criam diretamente a violência, de algum modo facilitam
ambientes que podem apresentar mais ou menos oportunidades para assaltos.
O desenho e o planejamento urbano devem, portanto, ser examinados a fim de
entender completamente porque as mulheres sofrem ameaças e reais incidentes
de violência. A partir da compreensão dessas ameaças, atitudes podem ser
tomadas para mudar a forma como as mulheres experimentam e vivem a cidade
sem a ameaça da violência. Todas possuem tal direito à cidade, o qual deve ser
entendido como seu direito coletivo à segurança nos espaços que habitam.
O direito coletivo à cidade
Durante as últimas décadas as políticas econômicas neoliberais causaram múltiplas
violações dos direitos humanos e desigualdades sociais. David Harvey enuncia
que isso se deve grande parte ao fato de que a ideia dos direitos humanos sob o
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neoliberalismo tem se concentrado nos direitos individuais, tal como o direito de
propriedade privada, enquanto ignoram abundantemente os direitos coletivos.
Neste sentido, a propriedade privada deve ser entendida como infração sobre o
direito à cidade como um direito coletivo. O direito à cidade é um direito para
todos os que nela vivem, acessam e usam e isso envolve não somente o direito a
usar o que já existe no espaço urbano, mas também o direito de criar e definir o
que deveria existir a fim de conhecer as necessidades humanas para viver uma
vida decente no entorno urbano (Harvey, 2003). Em síntese, isso inclui o direito
a usar a cidade e participar da sua criação ou recriação. A realização do direito
à cidade tem sido executada através da colaboração entre grupos da sociedade
civil e organizações, governos e agências internacionais. O papel dos grupos
da sociedade civil e organizações é particularmente crucial para implementar o
direito coletivo à cidade, pois essas experiências informam sobre as estruturas
adequadas ou inadequadas nas quais vivem. Ainda mais importante é que os
diversos atores da sociedade civil estejam presentes no debate do direito à cidade,
já que nem todos tem a mesma experiência num mesmo entorno.
Isso é particularmente importante para grupos de mulheres como Tovi
Fenster que observa que “medo e segurança podem ser vistos tanto como uma
questão social como também espacial que, em muitos casos, estão relacionados
com o desenho dos espaços urbanos”. É esse medo que impede às mulheres o
exercício pleno do seu direito à cidade, uma vez que a maioria das políticas que
objetivam garantir a segurança das mulheres nos espaços públicos urbanos, ao
enfocar aspectos sociais, acaba negligenciando as construções físicas. Ruas sem
saída, vias inadequadamente iluminadas e parques públicos que são tipicamente
dominados por atividades masculinas, são algumas das circunstâncias sociais
e estruturais que instigam sensações de medo para as mulheres nos espaços
públicos. Através do direito de participar nas decisões referentes à criação
de espaços urbanos, as mulheres podem formar parte, de maneira ativa, na
prevenção da violência potencial contra si mesmas.
Auditoria Local de Segurança
O Processo de Auditoria Local de Segurança (“Community Safety Audit Process”)
foi desenvolvido pela primeira vez em 1989 pelo Comitê de Ação Metropolitana
sobre Violência Pública Contra Mulheres e Crianças (Metropolitan Action Commttee
on Violence Against Women and Children – METRAC) de Toronto como uma
ferramenta para avaliar os ambientes urbanos da perspectiva daqueles que se
sentem mais vulneráveis à violência. As recomendações feitas pelos participantes
da Auditoria foram posteriormente entregues aos profissionais de planejamento
urbano e aos que elaboram as políticas para então efetuar mudanças nos ambientes
avaliados. Essas mudanças reduziriam as possibilidades de assaltos. Como as
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mulheres são mais suscetíveis a situações de violência no ambiente urbano, seu
envolvimento durante a Auditoria Local de Segurança pôde ser entendida como
exercício de sua capacidade de criar ambientes seguros para si mesmas. Pela
participação ativa em fazer de seu ambiente urbano mais seguro para seu uso, as
mulheres estão exercendo seu direito à cidade. É o direito de participar da criação
da cidade que vá de encontro as suas necessidades e proporciona a sensação de
segurança durante o uso desses espaços.
Auditoria de Segurança das Mulheres da ONU-Hábitat
Sob o Programa de “Cidades Mais Seguras” da ONU-Hábitat, um projeto piloto
de Auditoria de Segurança das Mulheres foi dirigido pelo escritório local de ONUHábitat de Varsóvia, Polônia em 25 de agosto de 2007. A auditoria foi executada no
distrito de Srodmiescie, no centro de Varsóvia. Dela participaram oito mulheres
do município de Varsóvia, polícia militar, escritório da ONU-Hábitat, Câmara de
Urbanistas (Chamber of Town Planners), uma ONG local e a mídia. O Escritório da
ONU-Hábitat de Varsóvia adaptou a ferramenta Auditoria Local de Segurança
do METRAC para avaliar a segurança das mulheres que vivem em Varsóvia.
O relatório da auditoria reconhece o processo do METRAC que considera as
identidades pessoais à medida que contempla suas experiências de violência na
cidade, levando em conta gênero, raça, idade, religião, capacidade e orientação
sexual. Contudo, através da adaptação da ferramenta, o escritório de Varsóvia
enfocou apenas a percepção das mulheres e presumiu que uma área considerada
segura pelas por elas seria segura para todos. Essa hipótese, no entanto, negligencia
todos os demais grupos de habitantes que estão vulneráveis à violência no espaço
público. Isso é especialmente importante, considerando o fato de que as mulheres
frequentemente enfrentam múltiplas formas de discriminação, ou nesse caso,
violência baseada na intersecção de identidades (gênero, raça, idade, religião1).
Apesar disso, a auditoria não deveria ser classificada como irrelevante ou inútil,
mas deve-se entender que os resultados de uma auditoria realizada com tais
pressupostos conduzem a uma hipótese insuficiente para avaliar as questões de
segurança para todos os grupos de habitantes que usam o entorno urbano.
O processo de auditoria requeria que as participantes caminhassem pela
zona à noite e preenchessem um questionário que tinha como objetivo reunir
seus sentimentos de insegurança em relação ao desenho urbano e as estruturas
do entorno. Posteriormente, o Central District Hall (Repartição municipal do
distrito central) abrigou uma sessão de avaliação para reunir as recomendações
1
Refere-se ao fato de que algumas características de identidade conduzem ao sofrimento de
discriminação e violência e que, portanto, ao combinar estas características – tais como gênero,
raça, religião, idade ou orientação sexual – aumenta o risco de vulnerabilidade.
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dos grupos para os que elaboram políticas e planejadores urbanos baseadas no
resumo da pesquisa. As participantes identificaram como prioridade questões
relacionadas à iluminação, sinalização, acesso à assistência emergencial,
manutenção de infraestrutura e instalações urbanas. Também sugeriram
melhorias para aperfeiçoar a segurança urbana e o desenho do entorno. Notaram
que a maioria da iluminação adequada, sinalização e infraestrutura em bom
estado estavam ao redor dos grandes edifícios de escritórios. Ironicamente, muitas
dessas estruturas estavam sendo monitoradas pelos guardas para assegurar
que os edifícios estivessem salvos das pessoas. No geral, há um sentido de que a
cidade prioriza mais os edifícios que as pessoas. Por este motivo, as participantes
recomendaram a diversificação de usos urbanos na entorno como forma de
atrair maior presença humana. Outra recomendação feita à câmara municipal
e aos urbanistas foi a adaptação do desenho urbano para que enfatizasse mais a
segurança dos pedestres do que a dos edifícios e equipamentos.
Através das observações feitas pelas participantes da Auditoria de Segurança
das Mulheres, é claramente visível que o foco nos edifícios está alinhado com a
valorização dos direitos de propriedade privada em detrimento do direito da
comunidade de viver numa cidade mais segura. Não é a intenção criticar as
medidas que garantam a proteção dos edifícios de roubos e vandalismo. Tratase simplesmente de salientar que o mesmo esforço deve ser empreendido para
o bem estar da comunidade e segurança pessoal. Desse modo, os planejadores
da cidade deveriam considerar medidas de reestruturação do desenho sob
orientação daqueles que são por afetados. Considerando o caso estudado, o fato
de que as preocupações dos habitantes da cidade não sejam tomadas em conta
quando da implantação de projetos e planos urbanos, é uma evidência de que
os interesses econômicos têm prioridade dentro dos entornos e centros urbanos.
Isso demonstra a necessidade integrar os ideais do direito à cidade. O desenho
urbano está focado em fazer edifícios mais seguros para proteger a propriedade
privada enquanto negligencia o direito coletivo das pessoas de viver numa
cidade que lhes transmita segurança.
Infelizmente, nos dois consecutivos à realização da auditoria em Varsóvia,
não houve progressos no sentido de implementar as recomendações feitas pelos
participantes da auditoria de segurança. Embora as autoridades locais tenham
elogiado as recomendações e tenham prometido levá-las em consideração, o
escritório da ONU-Hábitat de Varsóvia ainda não foi contatado para participar
de qualquer tipo de ação seguinte.
Contudo, apesar da falta de resultados práticos ou progressos locais do projeto
piloto de Varsóvia, o processo de Auditoria de Segurança das Mulheres é útil
como exemplo da importância do processo de planejamento participativo para
assegurar o direito de cada um à cidade. Como afirma Harvey, nós moldamos
Experiencias - Políticas públicas 317
a cidade e a cidade nos molda. Isto nos faz questionar se a cidade se presta a
violência porque as estruturas nas quais vivemos conduzem a tal comportamento
ou se são as prioridades daqueles que estão no controle e a preponderância dos
interesses econômicos de poucos, sobrepostos ao bem-estar de todos, que resulta
na falta de medidas de segurança dentro dos ambientes urbanos. As respostas
das participantes femininas na auditoria de segurança sugerem que a última
alternativa é a verdadeira. Esquinas escuras nas entradas dos edifícios ajudam a
ocultar criminosos que desejam atacar suas vítimas, e os que planejam a cidade
e as autoridades devem estar cientes desses riscos e eliminar estas ameaças com
desenhos urbanos melhores. Certamente as estruturas urbanas não são as únicas
responsáveis pela violência que nelas ocorre, de modo que as políticas públicas
também devem considerar os fatores sociais que tornam determinados grupos de
pessoas mais vulneráveis a ameaças e incidentes de violência. Quando analisamos
o desenho urbano e o entorno através do processo de planejamento participativo
como exercício do direito à cidade, é absolutamente necessário considerar e incluir
as pessoas que usam esses espaços, as quais usualmente compõem uma grande
mistura de diversas identidades. Todos os habitantes de uma cidade deveriam
estar protegidos e deveria ser o direito de todas e todos, especialmente daqueles
grupos mais vulneráveis, identificando suas preocupações nos ambientes em
que vivem. Este é o chamado comum do direito à cidade; o direito a usufruir e
participar da criação de cidades seguras para todos os habitantes.
Referências
Bobak, Przemyslaw. Email communication. UN Habitat Warsaw Office. April 16, 2009.
Fenster, Tovi. “The Right to the Gendered City: Different Formations of Belonging in
Everyday Life” in Journal of Gender Studies, vol. 14, no. 3, pp. 217-231. November
2005.
Harvey, David. “The Right to the City” in International Journal of Urban and Regional
Research, vol. 27, iss. 4. 3 pages. December 2003.
Metropolitan Action Committee on Violence Against Women and Children, Community
Safety Program: http://www.metrac.org/programs/safe.htm
United Nations Human Settlements Programme. “Women’s Safety Audits for a Safer
Urban Design: Results of the pilot audit carried out in Centrum, Warsaw”. UN
Habitat Warsaw Office. 18 pages. October 2007. http://www.unhabitat.org/
downloads/docs/5544_32059_WSA%20Centrum%20report.pdf
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