Entrevista Harold Bloom: Saramago, "quase" Shakespeare Ana Marques Gastão H arold Bloom é uma das mais provocadoras e consistentes presenças na cena literária internacional. E um dos maiores estudiosos de William Shakespeare. De onde parte a crítica: de uma grande paixão pela leitura? Vou fazer 71 anos. Cresci em Nova Iorque e fui, sendo o último de cinco filhos, criado numa família que falava o yiddish. O inglês não o aprendi de ouvido, e cedo me tornei num leitor obcecado. Aos oito anos, apaixonei-me por dois poetas: William Blake e Hart Crane. Nesse tempo, havia uma rede de bibliotecas públicas que eu passei a frequentar. Sempre soube que queria ler poemas, peças, romances, histórias, ensaios... Um tio meu, dono de uma loja de rebuçados, em Brooklyn, perguntou-me, um dia, em yiddish, que gostaria eu de fazer na vida. E eu respondi-lhe: quero continuar a ler, a escrever, a falar sobre o que leio... Harvard e Yale poderiam ser o meu destino, disse-me. Levei metade de um século a cumprir essa profecia. A crítica literária e o ensino têm de surgir do amor. Da mesma paixão que sentimos pelos seres humanos. Qualquer que seja o posicionamento que adopte um crítico sobre um poema, deverá ser sempre uma abordagem poética? Certos críticos e intelectuais acreditam que podem ser científicos, históricos, moralistas, ideológicos, políticos, religiosos. Não se pode falar sobre um romance de Saramago, um poema de Pessoa, uma história de Hemingway, uma peça de Shakespeare, sem usar, mesmo inconscientemente, metáforas. Isso é incómodo para muitos? Ah, sim. Estou numa situação difícil. Continuo a ensinar a tempo inteiro em Yale, há 47 anos. E nos últimos 40, também na Universidade de Nova Iorque. Gosto de me considerar o pária da minha profissão. Demiti-me há 25 anos da Modern Language Association e do English Institute, por considerar que não estavam interessados em literatura. Vejo-me sempre a chamar a atenção para tudo o que está a ser destruído e a lutar vigorosamente contra a abolição dos valores estéticos nos estudos literários. São os académicos ou os jornalistas - que vêm da mesma origem políticoideológica - a escrever sobre os meus livros, que têm sido muito criticados, nomeadamente O Cânone Ocidental, Shakespeare: A Invenção do Humano ou Como Ler e Porquê. Não importa. Aprendi não só a lutar, como a ir à rádio, à televisão e a percorrer o país onde posso chegar a milhões de pessoas interessadas na leitura. Trata-se, no fundo, de uma extensão do que faço enquanto professor. Tudo o que é dito pelos académicos é uma mentira. Quem me ouve e compra os meus livros, novo ou velho, pobre ou rico, originário das mais diversas profissões, constitui um exército. Um exército de gente interessada pela leitura. Fala da crítica na universidade como uma espécie de estalinismo sem Estaline... São comissários. Comissários do politicamente correcto, do feminismo - num sentido que nada tem a ver com a igualdade de direitos e de oportunidades das mulheres, e de outros ismos... São políticos académicos. São aquilo a que chama a Escola do Ressentimento - provavelmente baseado no conceito definido por Scheler - composta por feministas, marxistas, novo-historicistas de inspiração foucaltiana, os desconstrutores? Estão a afundar-se e a destruir a profissão. Ensina-se Foucault e Derrida sem alguma vez se ter lido Shakespeare ou Cervantes. Em "O Cânone Ocidental" - no qual escreve sobre 26 autores que se tornaram representantes da nossa cultura literária - fala de anarquia, chegando mesmo a dizer que em breve os departamentos incluirão nos seus currículos Batman, propaganda mórmone, TV e rock em vez de Chaucer, Shakespeare, Milton, Wallace Stevens. Está a ser irónico ou demasiado pessimista? Não, em Yale, já não se ensina poesia, romance, teatro americanos. Estudam-se movimentos sociais, comic strips, cinema, programas de televisão, etc. Isto seria uma tragédia cultural se não fosse uma comédia. Que pensa da ficção de supermercado? Somos amigos, Toni Morrison e eu. Acho, porém, que no princípio da sua carreira, ela escreveu livros poderosos como Song of Solomon. É uma mulher de talento, mas recebeu o Nobel por aquilo que considero ser um romance de supermercado, Beloved. Trata-se de uma obra ideológica. Os Lusíadas, do grande Luís Vaz de Camões, dir-se-ia também um texto épicoideológico, mas tem uma imensa inventividade, exuberância, algo que se assemelha à mestria de Virgílio. Saramago tem também a vertente socio-política... Saramago é extraordinário, quase um Shakespeare entre os romancistas. Não há nenhum ficcionista vivo nos Estados Unidos, na América do Sul ou na Europa que tenha a sua versatilidade. Dir-se-ia tão divertido como pungente. Sei que é um marxista, mas não escreve como um comissário e opõe-se aos impostores da Igreja Católica. O seu trabalho ultrapassa tudo isso. Os escritores sempre se comprometeram com a sociedade. Mas há algo mais: se ele só tivesse o marxismo para dar, quem lhe prestaria atenção? LOUVOR DE QUATRO FERNANDOS PESSOAS E DA "ODE MARÍTIMA" Escreveu sobre o "Memorial do Convento", mesmo antes de José Saramago ter o Nobel. Trata-se de um romance que alia história e ficção com uma textualidade algo barroca... É uma obra encantadora e também engraçada e comovente. Baltasar e Blimunda são parecidos, mas não há felicidade para ambos. Serão destruídos, embora Blimunda não o possa ser completamente, é uma bruxa. Há poucos livros que tenham conseguido tratar a figura de Cristo. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago fê-lo. D.H. Lawrence também. Norman Mailer não tanto, não gosto muito do seu livro. Kazantzakis tem algumas coisas interessantes. Saramago é, por outro lado, um escritor demasiadamente inteligente para escrever peças de teatro: ele sabe que precisa de prosseguir com imensas vozes, o que não seria possível no palco. Por que escolheu Cervantes e não Camões para o "Canône"? Li Camões, acho-o fascinante, mas a influência de Cervantes é maior, comparável mesmo à de Dante e Shakespeare. Estou a escrever um livro que se chama Genius and Genius no qual abordo 115 figuras. Não têm que ser poetas, romancistas ou dramaturgos, podem ser visionários religiosos como Joseph Smith ou Santo Agostinho. Incluirei nessa obra vários portugueses, entre os quais Almeida Garrett com as suas Viagens na Minha Terra. Fascina-me por tentar dizer algo sobre a tristeza da sua vida erótica. Penso que isso será muito português, o que só lentamente começo a entender, até em Fernando Pessoa. Saramago parece lutar contra isso, nomeadamente em História do Cerco de Lisboa. Uma visão diferente daquela dos "Lusíadas"... Os Lusíadas têm aquela visão apocalíptica e extraordinária da Ilha dos Amores, mas que não se vive no quotidiano. Na minha leitura inadequada de António Lobo Antunes, de romancistas e poetas portugueses, mesmo na lírica camoniana, há sempre subjacente uma imensa dor. Define como, Pessoa: como um Whitman renascido? De alguma maneira. Há imensos Pessoas, quatro no mínimo, e há imensa coisa que não entendo. Álvaro de Campos, o engenheiro naval, é o mais extraordinário enquanto poeta. Faz uma pequena aparição no romance de Saramago O Ano da Morte de Ricardo Reis. Gostaria que houvesse mais. Num outro texto, aquele homem curioso e estranho, diz a Whitman qualquer coisa como isto: "Walt, não penses que te estou a imitar, não penses que me pareço contigo, de facto eu sou tu". É espantoso. Mais ninguém se teria lembrado disto. A "Ode Marítima" é, a seu ver, um dos mais espantosos poemas do século? Sem dúvida nenhuma. "CAMÕES É MAIOR DO QUE PESSOA" Pessoa poderia ser, como diz, uma invenção de Borges? Sim, é uma invenção borgesiana. Pessoa é uma máscara, uma persona. Há imensas vozes em Browning e Pessoa leu Browning muitíssimo bem. Em algum sentido, teve ter pensado que se ele havia conseguido ser vários poetas, talvez ele pudesse também sê-lo. Pessoa ele próprio dir-se-ia um heterónimo, mesmo na Mensagem, poema estranho, cheio de ansiedade na tentativa de o seu autor ser um Super-Camões... É a luta agonísta de que tanto fala na sua obra... Sim, uma luta na qual Pessoa não vence, de modo nenhum. Camões é maior do que Pessoa porque tem uma visão sublime, nomeadamente na criação do Adamastor, na concepção tremenda das musas, na tempestade terrível que ocorre quando o navio dobra o Cabo das Tormentas. O épico esteve sempre na história do sublime, e pede ao leitor para deixar um prazer mais fácil em benefício de um outro mais difícil. Pessoa não tem esse prazer difícil que existe nos Lusíadas. Na Jangada de Pedra, esse livro louco de Saramago, escreve-se com o sentido da totalidade da tradição. Acha que o Nobel lhe foi bem atribuído? Entre os mais recentes, o único Nobel bem atribuído foi o de Saramago, que o honrou mais do que o Prémio o honrou a ele. Não há romancistas no Novo Mundo, Brasil, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Austrália, mesmo na Europa Ocidental, tão modernos como ele. O Nobel foi tantas vezes dado a pessoas absurdas! Proust nunca o recebeu... Pode ensinar-se alguém a amar a grande poesia ou o grande romance? Pode ensinar-se como diz - a solidão? É muito difícil, mas não devemos desesperar. Falho todos os dias na Universidade. Dei recentemente uma conferência no âmbito dos 300 anos de Yale a um vasto público - nesse contexto, o nosso terrível presidente Bush, Bush II, recebeu agora um honroso grau académico - e fiquei muito sensibilizado porque estavam na assistência alunos meus de há 47 anos. Depois de todo este tempo, senti que valeu a pena: têm sido leitores toda a vida, embora seguissem outras profissões: médicos, engenheiros, etc. Sempre me esforcei por falar com as pessoas, novas e velhas. Apesar do desastre das universidades, a leitura está, porém, muito viva. Há milhões de leitores, no sentido do common reader do dr. Johnson e de Virginia Woolf, por esse mundo fora, mesmo entre os jovens que vivem na idade da informação, do visual, do e-book. O Homem evoluiu do pergaminho para o códice. O que está a suceder neste momento é o regresso ao pergaminho. Tem sido considerado um apóstolo da influência. Alguma vez sugeriu, como refere certa crítica, que o escritor é um devorador do pai, ou seja, que acontece uma espécie de canibalismo tendo como cenário as páginas? Não, nunca. É uma blasfémia. Escrevi 25 livros e o mais mal entendido foi A Angústia da Influência. A minha ideia fundamental tem a ver não com um efeito emocional no novo escritor, mas retórico. Quis falar da influência do precursor no sentido em que o autor, o poeta, tem a angústia da dívida em relação a um seu "mestre"? Shakespeare é provavelmente, como James Joyce disse, o mais extraordinário de todos os escritores. Até Shakespeare teve de absorver Marlowe mesmo ao ponto de eventualmente o ter engolido e nada dele restar. Os pais regressam na poesia dos filhos? Regressam com cores diferentes. Somos uma voz com muitas vozes. Há uma certa melancolia em tudo isso? Poderiamos dizê-lo desse modo. Hoje, se pudesse refazer o título, fá-lo-ia. Ficaria melhor: A Angústia da Contaminação. Fala do fascínio do incesto a propósito da poesia? Shelley disse que o incesto era o mais literário dos temas. E é o coração da tragédia grega. Por que motivo diz, em "Como Ler e Porquê" que lemos para fortalecer o nosso Eu? Lemos porque estamos sós. Sou casado, tenho um casamento feliz há 43 anos. Por mais reconfortante possa ser uma relação amorosa, com os filhos, com os alunos, os colegas, nenhum de nós nunca conhecerá o número suficiente de pessoas que compense a falta da leitura. Lemos para estar vivos, porque senão a solidão matar-nos-ia. Ler, escrever sobre os livros dos outros, é estar consciente da nossa mortalidade? Que mais poderia ser? É interessante como Saramago tratou esse assunto No Ano da Morte de Ricardo Reis na relação entre Pessoa, que morreu, e Reis. Pessoa aparece mais tarde e diz: "Chegou a hora". E Ricardo responde que tem de tirar o chapéu. Fernando diz que ali não se usam chapéus. E saem juntos. É uma brincadeira sobre a mortalidade. Uma das minhas colaboradoras, espécie de filha adoptiva, tem um terrível tumor no cérebro. Não sabemos se voltaremos a vê-la quando regressarmos. É uma pessoa delicada, generosa, talentosa. Que dizer? Nada nos cura da dor, o sentimento da perda é insuportável. Temos um tempo limitado, isso dir-se-ia evidente. Então tudo se torna urgente. O sentido terrífico do vazio passa pela obra de inúmeros escritores, Kafka, por exemplo. Acha que poderíamos seguir o exemplo de Shakespeare, o de tornar a dor e o riso mais leves? Ah, claro.... Novamente admiro Saramago por ser tão shakespeareano, porque tenta o mesmo efeito, embora não tão bem. Após quatro séculos, Shakespeare está mais presente do que alguma vez esteve? Vi representá-lo em todo o mundo nas mais diversas línguas. Costumo perguntar às pessoas que aderem a Shakespeare, no riso e nas lágrimas, o porquê dessa adesão. E elas respondem-me: "Porque ele me pôs no palco, a mim, ao meu amigo, ao meu amante." "NÃO CEDER A UM MUNDO ONDE IMPERA O ROCK" Samuel Johnson disse que o teatro de Shakespeare é uma espécie de espelho da vida... Sim, mas Shakespeare faz mais do que isso pela sua acuidade cognitiva, pelo seu poder inventivo, também no domínio da palavra. Freud: um codificador de Shakespeare? Por que não da tragédia grega? Freud leu incessantemente Shakespeare, que esteve sempre à frente dele. Shakespeare iluminou a psicologia de Freud. Considera a visão de Shakespeare mais crucial do que a de Ésquilo, Sófocles, Dante, Racine? Dante é quase tão crucial como Shakespeare, Cervantes também, talvez Chaucer, Proust, Joyce, Balzac. Racine é um dramaturgo trágico, mas com limites. No meu livro Shakespeare: A Invenção do Humano, escrevi que, pela primeira vez na história da literatura, as personagens ouvem o que estão a dizer. Sei que os seres humanos existiam antes de Shakespeare, mas algo na representação da Humanidade muda para sempre com Hamlet, Macbeth, Otelo... Há uma consciência de si que nunca havia sido representada. Considera Shakespeare mais nuclear para a cultura ocidental do que os filósofos. Porquê? Porque Shakespeare faz-nos ver coisas que não nos atreveríamos a enfrentar. Os filósofos mudam a forma como pensamos sobre a consciência de si. Mas não nos dão o furor, o fulgor. Acredita que as profecias da morte da arte individual são as de Hegel, Marx e Freud. A literatura não pode ter também um "background" social e político? Está-me a oferecer um fruto envenenado que não vou morder. Shakespeare vive e escreve ao mesmo tempo que 50 autores sujeitos às mesmas condições sociais, políticas, económicas, culturais. Estudamos e lemos Shakespeare e não os outros. Porquê? A resposta é personalidade, génio individual. Lobo Antunes é um bom romancista, um bom contador de histórias. Saramago e Antunes: o mesmo contexto. O primeiro quase shakespeareano na variedade do que faz; o outro, poderoso, mas faz uma única coisa. Nada disto se explica pela ideologia. Em "Abaixo as Verdades Sagradas" - e sabendo que sempre foi contra a ideologia teocrática de T.S. Eliot - há um espanto perante a transcendência. Há um Deus? E havendo, pode ser definido como o sublime? O Deus de Borges, de Schopenhauer? Ou do Deus dos gnósticos... Sou judeu herético. É a terceira fase da sua carreira, a da crença gnóstica... Sou uma pessoa religiosa. Acredito, como os gnósticos, como Emerson, que Deus se fragmentou em duas metades; uma delas está a vaguear no espaço interestelar, que não conseguimos alcançar, e a outra está dentro de nós, feita de rocha e de lama. Temos dificuldade em lidar com ela. Steiner fala da ausência de Deus e do seu eterno peso... Pois fala. Há um vazio, vivemos num vasto deserto, que encontramos em Nietzsche, Novalis, Kleist e Nerval, no Blood Meridian, de Corman MacCarthy. Fazer crítica é, para si, a única forma civilizada de autobiografia, como disse Wilde? As pessoas que me detestam dizem que esse é o meu defeito. Mas o divino Oscar tinha razão. "Eu sou o vosso verdadeiro crítico marxista, na esteira de Groucho em vez de Karl, e tomo por meu lema a grande advertência de Groucho: "Seja o que for, estou contra!" Está contra quê? Contra tudo. Também não seria membro de nenhum clube que me quisesse como membro. É um pessimista? Humanamente sou um pessimista. Social e politicamente também. Jamais no campo da imaginação. Conselhos para o novo século? Não ceder aos media, ao visual, ao gosto das massas, a um mundo onde impera o rock. Deveríamos lembrar-nos de que há milhões de leitores que estão à procura de um livro autêntico, de algo que cure a violência e a solidão. A cara da notícia Harold Bloom Professor e crítico literário Harold Bloom (n. 1930), Sterling Professor of The Humanities na Universidade de Yale e Berg Professor de Inglês na Universidade de Nova Iorque, é autor de alguns dos livros que mais marcaram a crítica literária norte-americana, e não só. Romancista de um só romance, The Flight of Lucifer, colabora no New York Review of Books e no Times Literary Supplement, tendo publicado mais de 20 obras, incluindo ensaios sobre Shelley, Keats, Blake, Yeats e Wallace Stevens. Lança dia 28, às 18 e 30, no Hotel Roma, Como Ler e Porquê (Caminho). Apresentação de Manuel Frias Martins.