“VIOLENTAS HIPOCRISIAS” Logo de início ficamos sabendo que alguma coisa está fora do esquadro, além da aparência pacata da pequena cidade dos anos 50 e do american way of life que Cathy (Julianne Moore) representa como dona de casa exemplar. Ela é uma criatura que se conforma às situações com educação, mas tem personalidade para apoiar discretamente a causa dos negros. A partir da crise deflagrada pelo marido Frank (Dennis Quaid), ela aproxima-se de Raymond (Dennis Haysbert), o jardineiro afro-americano de quem começa a gostar. Longe do paraíso trata do trânsito entre mundos diferentes e do preconceito que os separa. O que têm em comum é o ódio e a violência decorrente. Raymond acredita que pode ultrapassar a cor da pele e entrar no mundo do outro. Cathy acha que confiando em uma pessoa ela passa a fazer parte do seu mundo. E Frank é um radical que penetra num universo mais atraente fisicamente, pelo menos para ele. São personagens intimamente insatisfeitos com uma sociedade hipócrita e superficial que tentam encontrar outras formas de viver. Todd Haynes interpreta o conjunto da obra de Douglas Sirk e a associação com Imitação da vida, ícone do drama sobre segregação racial, é inevitável. Haynes deixa entrever em seus enquadramentos e montagem que a narrativa convencional é deliberada. Quando quer, suas imagens evocam sensações do invisível. Mas os movimentos com grua, algumas fusões e a edição da bela música de Elmer Bernstein, que insiste em sublinhar certas passagens com o intuito de emocionar a platéia, são excessivos. A narrativa flui em roteiro bem estruturado nessa produção, assinada entre outros por George Clooney e Steven Soderbergh, com desenho bem resolvido, cenografia apropriada e figurinos exuberantes. Julianne Moore combina interiorização e composição da personagem com sutileza e intensidade. Uma mulher contida que deixa transparecer um vulcão em erupção atrás dos olhos brilhantes. Sua bela voz também contribui para que não atravesse a linha da pieguice. Dennis Quaid apresenta uma interpretação elaborada em personagem difícil. E o Raymond de Dennis Haysbert é sólido e minucioso no seu equilíbrio. A beleza das folhas outonais nas árvores que abrigam a pequena cidade enganam. O paraíso está bem longe dali. Publicado no Jornal do Brasil em 11 de julho de 2003.