São Paulo, sábado, 14 de julho de 2001 Felicidade rebelde Flávio Gikovate analisa o que significa "ficar" RENATO JANINE RIBEIRO A Libertação Sexual Flávio Gikovate MG Editores (Tel. 0/11/3872-3322) 184 págs., R$ 25,00 Vamos direto ao ponto: o que mais impressiona no último livro de Flávio Gikovate são os capítulos finais, sobre o significado da prática juvenil do "ficar". Antes disso, ele procede a uma análise fina e devastadora da atual infelicidade amorosa, que soma problemas antigos e novos. Antigos: a milenar tendência dos homens a buscarem poder e prestígio para conquistar as mulheres. Novos: a tensão adicional que surge quando também as mulheres adquirem poder. E é nesse quadro, no qual parece não raiar esperança, que desponta uma prática nova, carregada de potencialidades, que Gikovate foi o primeiro, que eu saiba, a explicitar com tanta argúcia e desenvoltura. Porque, quase sempre, o que os comentadores -psicólogos ou nãodizem do "ficar" é bastante negativo. Já li que esses subnamoros descompromissados de algumas horas teriam o enorme defeito de não ensinar os jovens a firmar compromissos, a criar vínculos, em suma, a amar. Fariam parte de um quadro global de decadência, que prepara as pessoas para um mundo em que a principal relação é descartar e ser descartado: ou seja, quase uma não-relação. Ficar, por uma noite, seria o auge da conversão do outro em objeto, que serve para ser usado, mas logo é trocado, sem que os dois cheguem sequer a se conhecerem. Prevaleceria a atração física, a imagem externa, em detrimento da intimidade, do conhecimento do outro. Descompasso O curioso é que Gikovate talvez até concordasse em aplicar essa descrição à prática amorosa dos adultos, mas não ao "ficar" dos jovens. Ao contrário. Toda a análise que faz, há anos, da infelicidade amorosa tem por um de seus eixos a idéia de que há um enorme descompasso entre o desejo feminino e o masculino ou, talvez, entre as respectivas realizações. O rapaz, para conquistar uma namorada, precisa valer-se da diferença de idade e de posição. Daí que, sendo mais velho, se perceba uma clara desigualdade entre ambos. Mas a originalidade de Gikovate está em ir além das aparências, que mostrariam um poder do homem sobre a mulher. Não é essa a maior desigualdade, porque, se há um predomínio masculino em idade, dinheiro e status, é tentando compensar uma fortíssima sensação de inferioridade diante da garota. Talvez porque as mulheres sejam desejáveis e os homens, desejantes (essa, a tese clássica de Gikovate, que irrita as feministas, mas a partir de uma leitura superficial: ao dizer que os homens desejam vendo, e as mulheres sendo vistas, ele não tece nenhum juízo de valor -pelo menos, nenhum juízo que favoreça os homens...). Ora, a novidade do "ficar" está em se dar na mesma faixa de idade. Os meninos ficam com meninas de sua classe etária e escolar. Quer dizer que diminui a angústia e ansiedade que toma conta deles ao longo dos anos em que nascem para o sexo. Não precisam mais ativar inúmeros dispositivos compensatórios para sua inferioridade -sua, digamos, "nãodesejabilidade". Aliás, como em nosso tempo algumas mulheres começam a se portar como desejantes, e alguns rapazes como desejáveis, essa dorchave da masculinidade começa a ser superada. Este é um ponto em que o "ficar" muda a experiência masculina -e provavelmente -pensa Fláviotornará os homens criados sob a sua égide mais leves, menos ansiosos, menos ambiciosos, enfim, mais humanos. Mais que isso: o "ficar" é um período de treinamento para a sexualidade e o amor. Daí que não possa ser entendido de maneira tão simples como a imitação, o reflexo ou o decalque da vida posterior das pessoas. E aqui me permito contrastar duas maneiras de ver hoje em dia o que outros chamam de "imaginário" e que chamarei de experiências de desejo -duas maneiras praticadas, entre outros por aqueles que clamam por um mundo melhor e mais justo. A questão é: como relacionar a experiência de desejo com, digamos, a vida "real", o mundo do trabalho e/ ou do compromisso. Desejo e "mimesis" Uma das maneiras vê as experiências de desejo como reflexo, imitação ou preparação para a vida "séria". Essa articulação lembra o que Platão chamou de "mimesis" (imitação). Entre o imaginário (ou o desejo) e a conduta, a relação é de decalque. Uma copia a outra. Isso fica claro examinando-se o caso do "um tapinha não dói". Para essa leitura, o verso funk faz banalizar, aceitar e até praticar a violência. Pouca gente discorda dessa interpretação. Na imprensa, vi duas exceções: Fernando Gabeira (um tapinha pode levar não ao homicídio, mas "a dormir abraçadinho") e Ana Verônica Mautner (os críticos dessas músicas não lembram o que significa brincar). Esses comentários apontam a resposta da questão: o desejo (ou o imaginário) tem a ver com o brincar. Por isso, não pode ser lido ao pé da letra. Entender o desejo exige sair do decalque, da idéia de que todas as experiências de vida se relacionam entre si de maneira mimética, e perceber que nelas não ocorre mais a constante repetição do mesmo. Brincar de violência não significa sempre treinar para a violência: pode ser um modo de efetuar sua catarse, ou de absorvê-la, carnavalizada, para não a praticar a sério. É este, aliás, o sentido da educação: extrai-se de uma vivência outra coisa que não ela. As pessoas mudam, crescem. Na verdade, a educação se vale da imitação menos do que se pensa. O exemplo é importante, mas não é tudo. E não podemos propor uma educação mediante a hipertrofia da seriedade. Não é porque ouvimos falar no Lobo Mau que abusaremos de criancinhas, ou porque temos tal ou qual fantasia erótica que a aplicaremos em nossa vida profissional. E pela mesma razão as brincadeiras juvenis com o amor e a sexualidade podem constituir um bom veículo para uma vida amorosa e sexual mais madura. Se pensarmos que alguém repetirá na idade adulta o que fez como criança ou adolescente (ou, o que dá na mesma, se pensarmos que nossos desejos em matéria artística - ou sexual- retratam literalmente nossa conduta), projetaremos ideais respeitáveis em práticas que não coincidem com eles, mas nem por isso são indignas. Misturaremos o mundo do desejo com o da ética, o do "id" com o superego. E, como essa é a linha de muita gente empenhada em tornar o mundo mais justo, inclusive socialmente, não estranha constatar as limitações que disso decorrem para sua prática: seu projeto social passa, às vezes, ao largo do que desejam os beneficiários de suas ações, os quais, por isso, nem sempre respondem à justiça do modo que gostaríamos. Uma das principais convicções de Flávio Gikovate está no que eu chamaria retirar a ênfase do binômio seriedade/descompromisso e depôla nos pares felicidade/ infelicidade e liberdade/manipulação, talvez os principais com que ele lida. O compromisso ou a leveza numa relação é menos significativo do que sua capacidade, sem manipulação de um pelo outro, de proporcionar felicidade. E assim, na originalidade de sua análise sobre o "ficar", está uma advertência aos que lutam por um mundo melhor: deveriam pensar menos nos valores clássicos do compromisso e mais no valor, sempre rebelde, da felicidade. Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia na USP e autor de "Ao Leitor sem Medo - Hobbes Contra seu Tempo" (UFMG) Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.