3 A Investigação dialógica como uma ação filosófica e pedagógica criativa e transformadora André Santos do Nascimento Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, PAULO) Introdução O presente texto pretende reconhecer e evidenciar através do olhar pedagógico a importância e as implicações da investigação dialógica como uma docência problematizadora, libertária e transformadora, ou melhor, uma docência que manifesta-se criticamente numa perspectiva investigativa e dialógica. Nesse sentido, acreditamos na possibilidade da transformação da tradicional aula como a conhecemos em um tempo e um espaço para o pensar, para o questionar, para o investigar, para o diálogo. A proposta da Investigação Dialógica, apresentada pelo professor Juarez Sofiste, revela-se como uma possibilidade concreta para a realização de um exercício de liberdade de pensamento e de uma experiência de construção de conhecimentos e valores através do diálogo, da pesquisa, da vivência e do questionamento crítico permanente. Tendo o diálogo e a investigação como princípio metodológico e pedagógico, a Investigação Dialógica permite que educandos e educadores se estabeleçam como protagonistas de um conhecimento que não se ensina, mas que se constrói em comunhão. O envolvimento através do diálogo, da troca reflexiva de argumentos e o exercício da investigação como base de aprofundamento temático proporciona a descoberta das incertezas ao mesmo tempo em que permite também a assunção da perplexidade. Certezas são golpeadas, implodidas, explodidas, diluídas, rasgadas, despedaçadas, cortadas, quebras; ou mais ainda, escorrem como um líquido derramado nas mãos de uma criança que em vão tenta controlar e conter o fluxo que se esvai e se deposita no chão arenoso. 4 A Investigação Dialógica surge como possibilidade criativa, através de um movimento de construir juntos um conhecimento que se relaciona e se articula com a realidade social e de vida de educandos e educadores, possibilitando a edificação de uma lucidez crítica compreensiva e transformadora da própria existência como sujeitos e protagonistas históricos. Fundamento pedagógico Acredito ser necessário discutir a especificidade de uma educação que pretende ser transformadora, crítica e criativa a partir de uma perspectiva de caráter históricoantropológico. Este caráter permite a assimilação da educação como algo especificamente humano que não se constitui em um processo pronto e acabado. Ao contrário, a educação tem um sentido de movimento, de transformação porque são os seres humanos que a promovem durante toda a duração de sua existência que se realiza simultaneamente num processo de criação e de modificação subjetiva e coletiva entre os seres. As dimensões subjetiva e coletiva dos seres não caminham separadas, contudo, encontram-se articuladas num convívio nem sempre harmônico, mas conflituoso. Para uma maior contribuição evoco as palavras de Pinto (2005, p. 30-34) sobre o caráter histórico antropológico da educação: A educação é um processo, portanto é o decorrer de um fenômeno (a formação do homem) no tempo, ou seja, é um fato histórico. A educação é um fato existencial. Refere-se ao modo como (por si mesmo e pelas ações exteriores que sofre) o homem se faz ser homem. A educação configura o homem em toda a sua realidade. A educação é um fato social. Refere-se a sociedade como um todo. É determinada pelo interesse que move a comunidade a integrar todos os seus membros à forma social vigente (relações econômicas, instituições, usos, ciências, atitudes, etc.). A educação é um fenômeno cultural. A educação se desenvolve sobre o fundamento do processo econômico da sociedade. A educação é uma atividade teleológica. A formação do indivíduo sempre visa a um fim. A educação é uma modalidade de trabalho social. A educação é um fato de ordem consciente. A educação é um processo exponencial, isto é, multiplica-se por si mesma com sua própria realização. 5 A educação é por essência concreta. Pode ser definida a priori, mas o que a define é sua realização objetiva, concreta. A educação é por natureza contraditória, pois implica simultaneamente conservação (dados do saber adquirido) e criação. Nesse sentido, entendo a educação como possibilidade humana que se liga às condições de desenvolvimento material e cultural já existentes, bem como também compreendo que “a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2007). Outro ponto necessário a ser ressaltado é o caráter ideológico da educação e a denúncia de sua falsa neutralidade. A própria idéia de educação direciona a um processo que se alicerça em uma teoria que evidencia intencionalidades mesmo que de forma velada ou nítida. Freire (2007, p. 110) nos fala que: É na diretividade da educação, esta vocação que ela tem, como ação especificamente humana, endereçar-se até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da educação. A qualidade de ser política, inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. Esta especificidade –política- da educação implica da mesma forma a percepção da diferença existente entre concepção ingênua e concepção crítica da educação, uma vez que as correlações de forças que disputam a hegemonia dos tempos e espaços educacionais – produzidas pelo pensamento e pelas ações políticas e econômicas- penetram e influenciam inequivocamente a ação pedagógica. O pensamento pedagógico ingênuo é caracterizado pela compreensão da educação apenas como aparência, como fenômeno naturalizado, sem levar em consideração os aspectos econômicos, políticos, sociais, históricos e culturais. Esta concepção não identifica as contradições sociais que atravessam a educação, entendendo-a apenas em si. O conhecimento nesta lógica é entendido como pronto e acabado. Esta perspectiva entende o educando como um ser ignorante absoluto e como objeto da educação e não como sujeito. A noção do processo de ensino-aprendizagem é visto na forma de transmissão de conhecimentos finitos. Entretanto, Freire (2009, p.30) nos alerta sobre a distinção entre o ingênuo não malicioso e o ingênuo dissimulado, que permeia os debates e até mesmo as ações políticas e pedagógicas no âmbito da educação. Penso que o entendimento dessa distinção seja essencial para a possibilidade da assunção de uma nova posição. 6 Me parece importante chamar a atenção para a diferença entre o ingênuo não malicioso e o ingênuo astuto ou tático. É que, na medida mesma em que a ingenuidade daquele não é maliciosa, ele pode, aprendendo diretamente de sua prática, perceber a inoperância de sua ação e, assim, renunciando à ingenuidade mas rejeitando a astúcia ou a malícia, assumir uma nova posição. Agora, uma posição crítica. O pensamento pedagógico crítico vai além da pura aparência e busca sempre os caracteres que identifica, denuncia e propõe soluções. Na perspectiva crítica o conhecimento tem um caráter social e histórico, com valores e tradições presentes na sociedade. Busca-se a compreensão da educação como um fenômeno complexo, fazendo relação do ato pedagógico com as condições objetivas da sociedade. Leva em conta a realidade em que se produz a educação em determinado momento histórico, ultrapassando a visão de uma educação externa ao homem. Nesta perspectiva o educando é encarado como conhecedor e desconhecedor, sendo que o processo educacional é orientando para a articulação da educação formal a partir de sua base cultural permitindo refletir como sujeito da educação sobre o estado material e cultural da sociedade a qual pertence. Assim, a educação é pensada a partir da realidade social e política dos educandos onde homens e mulheres (re)constroem a compreensão de como se dá toda essa dinâmica e de como deve ser o processo de (re)elaboração de um conhecimento que não pode ser doado, mas sim, construído e apropriado em comunhão. “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. (FREIRE,1983, P.79). É nesse sentido que a proposta da Investigação Dialógica como uma pedagogia para a docência de filosofia se insere. E penso – ciente da complexidade e da especificidade das outras áreas de conhecimento como matemática, história e geografia, entre outras... - que a Investigação Dialógica se estabelece como possibilidade concreta de trabalho e de inovação para estas outras áreas, configurando-se como um exercício de liberdade de pensamento, de investigação e de construção de conhecimentos com o Outro e não para o Outro. Usado por Sócrates para fazer filosofia, o diálogo e a investigação constituem-se como princípios pedagógicos e metodológicos essenciais. A pedagogia socrática consiste, portanto, não no ensino da filosofia, mas no fazer filosofia. Considerando que a investigação e o diálogo são os princípios pedagógicos e metodológicos de seu modo de fazer filosofia, como já indicamos, 7 denominaremos de Investigação Dialógica a pedagogia socrática para a docência de filosofia. (SOFISTE 2007, P.87) Nesta lógica, não há aula, transmissão ou ensino de conhecimentos preestabelecidos, conforme nos fala Sofiste (2007, p. 88): Em princípio, podemos afirmar que a investigação dialógica é a arquitetura de uma nova docência, mediante o diálogo e a investigação, superadora do mero ensino, ou seja, da aula falada pelo professor e copiada pelo aluno. Estamos falando do procedimento que proporcionam ao educando o cultivo e o desenvolvimento de pensar, uma vez que participar da uma Investigação Dialógica significa ser protagonista, isto é, criador de conhecimentos com validade intersubjetiva. Ao agir sob os pressupostos da investigação e do diálogo, o educando conquista no tempo e no espaço um nível de envolvimento que o constitui como cúmplice da investigação, da busca criativa e da construção de um saber com sentido. Abrem-se as portas, portanto, para a superação de uma interpretação única e exclusiva pelo resultado de uma suposta pesquisa pronta, acaba e doada por outrem; mas desloca-se para uma lógica que permite a vivência e a compreensão de como se dá o caminho e o processo científico de uma pesquisa e do próprio conhecimento que está em constante desenvolvimento. É o educando se configurando também como pesquisador. Por isso, compreendemos que uma educação amestradora não combina com filosofia e com uma perspectiva pedagógica criativa, crítica, transformadora e humanizadora. Educar é possibilitar o humano. Considerando o princípio antropológico da inconclusão, da abertura para o mundo, podemos afirmar que educação tem relação direta com investigação. Pedagogia da resposta. A do saber pronto, é no mínimo, uma catástrofe pedagógica. Trata-se de um processo de desumanização. (SOFISTE 2007, P.98). Para tanto, a prática eficaz do método socrático exige dos educadores uma abertura para a perspectiva inovadora que está inserida a Investigação Dialógica. De acordo com Sofiste (2007, p. 98): 8 [...] do ponto de vista filosófico, podemos afirmar: a) o fundamento do método, o diálogo, supõe a natureza mesma do filosofar, no caso, desenvolvido comunitariamente; b) o método rompe como a lógica da afirmação, é garantia de liberdade intelectual e abertura da consciência frente às verdades constituídas, aos dogmatismos, totalitarismos e ideologias; c) o método não subtrai nenhuma idéia à livre discussão, é busca de fundamentação e verificação da validade dos raciocínios e d) é construção coletiva de conhecimentos com validade intersubjetiva. A investigação e o diálogo promovem um processo de desenvolvimento de habilidades e de competências tanto do ponto de vista da aquisição de conhecimentos quanto de habilidades de relacionamento, convivência e autoconhecimento. A exiquibilidade dessas habilidades pela pedagogia socrática é realizável e se configura numa proposta de transformação radical da perspectiva atual, uma vez que a Investigação Dialógica propõe categoricamente uma modificação drástica nas concepções em vigência. Uma metodologia que propõe desenvolver capacidades e habilidades como as indicadas acima se faz com um aluno sujeito do processo de aprendizagem, ou seja, é o aluno que vai raciocinar, investigar, inferir, relacionar-se etc. Para tanto, a Investigação Dialógica propõe uma transformação radical nas concepções de conteúdo, de sala de aula, de professor e de aluno. (SOFISTE, 2007, P.99) Então, o conteúdo não se reduz aos conceitos e saberes historicamente constituídos e transmitidos pelo professor ao estudante. É obvio que o que se pretende “não exclui a cultura filosófica, mas a entende como meio para o filosofar”. (JUAREZ, 2007, P.89). Já a sala de aula muda a partir de seu espaço físico, passando a permitir um ambiente de investigação e de diálogo e construção coletiva do conhecimento. O professor atua como assessor na edificação do saber, junto com os estudantes, e se estabelece também como investigador membro do grupo e como coordenador no sentido de alcançar processualmente o êxito. O estudante deixa de ser um indivíduo passivo e subalterno e passa a ser sujeito no processo de aprendizagem. Ele planifica, desempenha e avalia ao lado do professor. Na Investigação dialógica, o cerne do trabalho passa a ser as habilidades que serão assentadas em ação e vivenciadas para que se materializem. Ao evidenciar o sentido de busca, de procura e de constante inquietação proporcionado pelo diálogo e pela investigação, entendemos e reconhecemos na investigação dialógica uma ação filosófica e pedagógica crítica, inovadora e transformadora. Nessa ação, portanto, é possível assumirmos ao mesmo tempo com humildade e altivez a nossa condição 9 de sujeitos inacabados e necessitados de uma educação que se conceitua como vivência dinâmica que se realiza em comunhão de forma dialógica e investigativa. É uma opção e uma oportunidade de um quefazer que pode impedir que a vida se afaste do processo educativo, e que não se (re)produza e se institucionalize um tempo e um espaço mórbido e insalubre de vivencia cognitiva e afetiva. 10 Referências: FREIRE, Paulo .Pedagogia do Oprimido. 13.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 50.ed. São Paulo:Cortez, 2009. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2007. PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 14.ed. São Paulo: Cortez, 2005. SOFISTE, Juarez Gomes. Sócrates e o ensino da filosofia: Investigação dialógica uma pedagogia para a docência de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.