Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 1 O CRIME NO MUNDO RURAL DE MIGUEL TORGA Marcelo Brito da Silva (UEFS) O presente artigo analisa as representações do crime no universo rural de Miguel Torga, tendo como corpus os contos O Lopo e Teia de Aranha, ambos constituintes da coletânea Novos contos da montanha1, a partir de uma abordagem comparativista. Pretende-se identificar, no nível da forma, as opções estéticas do autor, tendo como referencial as considerações de Julio Cortázar sobre a teoria do conto. No nível do conteúdo, o artigo dialoga com alguns expoentes da fortuna crítica e propõe a revisão do ideal arcádico que tem se constituído ponto importante de convergência da crítica torguiana. Em seus contos, Miguel Torga revisita o povo rural de sua região natal, Trás-osMontes, retratando comunidades perdidas no tempo, esquecidas à própria sorte, homens e mulheres flagrados em sua luta pela sobrevivência, elevados à condição de heróis, mas, ao mesmo tempo, capazes de atos de crueldade e violência. Nas histórias do povo da montanha, o médico de Coimbra mergulha no particular para encontrar aspectos universais da condição humana. Sobre as figuras retratadas em sua ficção, Miguel Torga registra o seguinte comentário, no XV volume do seu Diário: Heróis altivos, cingidos às leis da condição, desde o nascimento que estão acostumados a enfrentar os caprichos do destino por sua conta e risco (...) Num livro que publiquei em tempos, a propósito de condicionamentos do meio, declarei que o universal é o local sem paredes. O que realmente acontece com eles. Psicologicamente, nenhum é murado. Daí que reajam e actuem como filhos do mundo em todas as circunstâncias. (TORGA, 1990, p. 11-12) Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 2 Certamente, no registro que faz da aventura cósmica de suas criaturas, não faltariam capítulos de crueldade, violência, crimes, traições e até monstruosidades2. No compromisso de retratar a tosca e agreste vida do povo transmontano, Miguel Torga fotografa o cotidiano dos camponeses sob os mais diversos ângulos. Diante disso, Maria Helena Santana (2008) aponta a necessidade de desconstrução do ideal arcádico muitas vezes associado pelos críticos à exegese torguiana. Com efeito, o “reino maravilhoso” de Trás-os-Montes, descrito no livro Portugal, como um ambiente generoso e ecologicamente harmonioso, onde homens, bichos e plantas celebram a Natureza e os ciclos da vida (TORGA,1996b), aparece na grande maioria dos contos muito longe da perfeição idílica, na medida em que a violência, o crime e a dor mostram sua face, como pretendemos demonstrar através da leitura dos contos O Lopo e Teia de Aranha. A hipótese de Maria Helena Santana (2008), a saber, a desconstrução do ideal arcádico, que desenvolvemos neste artigo, poderia ser testada através de outros contos nos quais a tensão dramática culmina em crime e morte ou mesmo suicídio, como no caso dos contos O Alma Grande, O leproso ou Repouso, para ficarmos apenas na coletânea Novos Contos da Montanha. Na verdade, a morte e os destinos trágicos freqüentam a ficção torguiana de forma bastante variada, levando Eduardo Lourenço a concluir que a escrita de Miguel Torga condensa a “metáfora lírico-trágica da vivência mais cotidiana e caseira” (LOURENÇO, 1995, p. 5), enquanto que, para Massaud Moisés, nos contos torguianos a “tônica recai na morte em todas as suas modalidades, especialmente as violentas” (MOISÉS, 1975, p. 241). Mas é o próprio autor de Portugal que, no capítulo desse livro dedicado a Trás-osMontes, ao descrever o povo transmontano, nos oferece a chave interpretativa para várias narrativas onde o crime alcança lugar de destaque: Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 3 Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (...) Usam todos bigodes e alguns suíças. E põem naqueles pêlos da cara uma dignidade tal, um sentido tão profundo da pessoa humana, que é de a gente se maravilhar. Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê-se que os motiva apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam e morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. (TORGA, 1996b, p. 36 – Grifo nosso) Essa descrição da alma transmontana contribui para a compreensão de muitos contos rurais, onde as rivalidades levam à violência e daí ao crime, sejam por motivos passionais, por incompatibilidades várias, na disputa por propriedades ou simplesmente para compensar uma injustiça sofrida, saciando com sangue a sede de vingança. Para a compreensão dos procedimentos formais, acionaremos alguns conceitos da teoria do conto de Julio Cortázar, bem como a noção de “unidade de efeito”, proposta por Edgan Allan Poe. Julio Cortázar, no texto em que analisa as ideias deste último sobre o conto, comenta que ele percebeu que a eficácia de um conto depende de sua intensidade como acontecimento puro. Em função disso, todo comentário ao acontecimento deve ser radicalmente suprimido: Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria (...) ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas. Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse. (CORTÁZAR, 1974, p. 122-123) Essa capacidade de condensação ou compactação é um traço característico nos contos de Miguel Torga, conhecido por sua linguagem lacônica e objetiva. Julio Cortázar, ao tratar da questão da brevidade, consagrou a famosa comparação que ilustra as diferenças entre o romance e o conto: o romance está para o cinema assim como o conto para a Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 4 fotografia (CORTÁZAR, 1974, p. 151). Ele prossegue na distinção entre romance e conto e, usando agora a analogia do boxe, lembra que enquanto o romance ganha por pontos, o conto ganha sempre por nocaute e que “um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases” (1974, p. 152). No ensaio citado acima, Cortázar aponta, ao lado da concisão (que ele vai chamar de intensidade), a significação e a tensão que formam o tripé teórico que caracteriza o conto como forma distinta de outros gêneros narrativos. Cortázar explica o termo significação como segue: “Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta” (1974, p. 153). A tensão será “uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta”. (1974, p. 153). Essas considerações teóricas nos ajudarão a compreender, no nível estéticoformal, o efeito dos contos de Miguel Torga sobre a sensibilidade do leitor. No conto O Lopo, narra-se a história de um cavador que perde na justiça a posse de uma mina para o Sr. Casimiro, homem ardiloso e rico, que se valeu no Tribunal, como fica subentendido, de expedientes suspeitos para ganhar a causa. O Lopo é o primeiro a receber do advogado a notícia de que perdeu a disputa judicial e se encarrega, ele mesmo, de comunicá-la ao adversário. E o faz, com efeito, tendo como instrumento o cano de sua espingarda. Após o tiro fatal, despede-se da mulher e foge. É interessante como o conto lança o leitor no centro do drama logo na primeira linha, sem interpor descrições e comentários: “– Perdeste – anunciou sem rodeios o Dr. Canavaro, quando o Lopo entrou.” Através de diálogos curtos, entre o advogado e o Lopo, o leitor tem contato com o estado de espírito da personagem central e percebe a inquietação que provoca uma espécie de sentimento de aceleração: “O Lopo, que desde as primeiras Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 5 palavras estancara à entrada do escritório, mordeu o beiço por debaixo do bigode espesso, pôs-se a desandar o chapéu na mão e ficou assim um pedaço” (NCM, p. 93). Um dano foi causado. O desespero que o protagonista procura disfarçar prenuncia que algo irá acontecer, especialmente porque o próprio vencido decide notificar o vencedor. O advogado parece ter desconfiado de alguma maquinação perigosa em seu cliente, pois “através dos óculos, ia lendo no rosto anguloso do Lopo o significado de cada palavra que dizia” (NCM, p. 94). O leitor atento certamente irá acompanhar o protagonista com igual desconfiança. O conto segue narrando a jornada do Lopo de volta a casa, durante a qual o narrador insiste nas cogitações íntimas do protagonista, bem como em sua cautela em dissimular seus pensamentos de vingança diante das pessoas que encontrou pelo caminho. Repetidamente, o narrador aponta a dissimulação do Lopo, o que transmite ao leitor tanto a certeza quanto a expectativa de que algo vai acontecer: “Por fora, respondeu a todas as pessoas que encontrou e o salvaram, e em Lobrigos, seco dos fumos da raia, bebeu um quartilho, sem que o taberneiro desse conta de qualquer nuvem a turvar-lhe o semblante” (NCM, p. 96). Vale ressaltar que a própria Natureza é envolvida pelo narrador no drama do Lopo, como na passagem: “Pelo caminho, duas léguas bem medidas de serras e de carvalhais, nem o ar lavado das fragas nem a serena calma de tudo conseguiram arredar o Lopo das suas cogitações” (NCM, p. 95). E, mais adiante, o veio de água que sai da mina que o Lopo escavou a duras penas, com o suor do rosto, parece simbolizar as lágrimas de sofrimento do infeliz cavador pela perda da propriedade: “... debruçou-se sobre o regato, meteu nele a mão calosa, encheu-a, e deixou cair em cascata a liquefeita frescura de três meses de trabalho (...) aquela íntima visita o comovera ...” (NCM, p. 96). Nesse conto, como em várias outras histórias do mundo rural de Miguel Torga, a descrição da Natureza, muito mais que Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 6 moldura ou pano de fundo para o enredo, torna-se elemento fundamental para a compreensão da psicologia das personagens. Ocorre, na visão de Miguel Torga, uma osmose entre homem e ambiente, hipótese que pode ser fartamente verificada também pelo exame de sua obra poética. O Sr. Casimiro, alvo da vingança do protagonista, é apresentado pelo narrador como aquele que “lhe tinha roubado nos tribunais a posse da mina” (NCM, p. 98) e como um homem “rico e manhoso, [que] movia montanhas a cavar o dia inteiro, sem ninguém descortinar como conseguia ter Portugal nas mãos quase sem sair da terra” (NCM, p. 99). Por essas palavras, nota-se de que lado está o narrador ou, dito de outro modo, qual o seu ponto de vista. Como acontece na grande maioria dos contos rurais torguianos, o narrador coloca-se solidário ao mais humilde, compreendendo e assumindo a sua desventura ou destino. Às vezes, o narrador assume uma voz coletiva, identificando-se com a aldeia e incorporando a cosmovisão dos camponeses e os regionalismos da linguagem. A essa altura do conto, o leitor que, como queria Edgar Allan Poe, lê a história de uma só vez, para que seja lograda a “unidade de efeito” (Apud GOTLIB, 1985, p. 32), já está convencido das razões e da “justeza” da contrapartida planejada pelo Lopo. Praticamente, coloca-se ao seu lado entre as grades da quinta no momento em que ele ajusta a mira da espingarda. O narrador não deixa dúvidas: o rico roubou o pobre. É válido lembrar que nesse conto, como em vários outros casos, os doutores da planície são retratados negativamente, sejam advogados ou médicos, homens sem escrúpulos que olham com indiferença o sofrimento do povo da montanha3. Nesse conto, os homens da lei, como insinua o narrador, estão mancomunados com o Sr. Casimiro para tirar do Lopo a propriedade. O crime é irremediável. Estava anunciado desde as primeiras linhas do conto. A tensão chega ao clímax no tiro fatal, momento em que a Natureza novamente toma parte Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 7 do drama do Lopo, pois sobre o corpo caído “o sol por detrás dos montes começou a tentar encher o dia de inverno de uma luz doirada de primavera” (NCM, p. 100). Por último, o narrador reforça o estado de pobreza do protagonista que não possui sequer o dinheiro necessário para a fuga. Mas esse foi o destino do Lopo: “Ganhou, que eu hei-de eu fazer?” (NCM, p. 94). Resta lavar a honra, fazendo timbrar o caráter de grande frontalidade do homem da montanha, conforme descrito por Miguel Torga em Portugal. O que dizer à esposa que fica? Somente o que está dito: “Adeus, e não chores” (NCM, p. 100). Mais uma vez, como ocorre no conto A Confissão, a força dos acontecimentos arranca o homem transmontano do acolhimento da terra matricial, argumento que é trabalhado por Miguel Torga, com algumas variações não menos trágicas em outras histórias. O conto O Lopo mostra que o “reino maravilhoso” de Miguel Torga pode ser o espaço afetivo da sua infância, do seu propagado telurismo e de suas lembranças. Não obstante, contrariando o ideal arcádico muitas vezes proposto pela crítica, é também um reino de sombras, onde a convivência dos “irmãos” transmontanos não exclui a violência e o crime. E a significação desse conto, retomemos a teoria cortazariana, não está no acontecimento em si, ou seja, no relato linear de um homicídio, mas naquilo que transcende a história narrada e se insere nos interstícios do conto. Em nossa leitura, Miguel Torga torna o conto significativo ao apontar, nas dobras do texto, a situação de um homem transmontano desassistido de privilégios e direitos, que em sua luta solitária por sobrevivência encontra não raro no grito de violência um instrumento de afirmação. No texto, O Portugal de Torga, Eduardo Lourenço advoga que Mais do que a miséria ancestral, sempre doeram a Torga a carga de submissão e a “incultura” do seu povo matricial, e por isso promoveu a heróis aqueles que, apesar dessa pesada herança, arrancaram das entranhas a violência que conquista os céus ou a finura instintiva com que se defendem do mundo “civilizado” (...) O poeta [Miguel Torga] é o medidor Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 8 da verdade profunda daqueles que só podem exprimi-la em gritos ou violência cega, enquanto eles mesmos o não puderam fazer. (LOURENÇO, 1995, p. 9) Passemos à análise do segundo conto, que se liga ao primeiro pela temática. Também há um crime e o personagem central comete um homicídio. Dois assassinatos, porém motivos diversos. O segundo conto constitui-se uma exceção à “violência por honra”, ou motivada por “altos sentimentos”, defendida por Miguel Torga no texto retro-mencionado do livro Portugal. O que ocorre em Teia de Aranha é algo diverso, mais igualmente relevante para o autor do Diário, na composição ficcional de uma “supra-realidade” que pretende abarcar todas as dimensões da condição humana, incluindo suas nuances mais obscuras. Em Teia de Aranha, um conto de enigma no melhor estilo poeano, a narrativa gira em torno do sumiço de um homem da aldeia, Bento Caniço, tio do protagonista Artur que será revelado como o autor da façanha mais perfeita já testemunhada pela aldeia de S. Cristóvão. E, mais uma vez, sem “prolegômenos”, o médico de Coimbra coloca o leitor na atmosfera de mistério já no primeiro parágrafo, onde nada é gratuito, como o desfecho revelará. O recurso utilizado para fisgar o leitor é a descrição por analogia do caráter enigmático dos homens de S. Cristóvão: a comparação insólita com um pé de milho, que o narrador habilmente transforma em emblema da aldeia: Um ano, ali, são trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos homens mas (sic) pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na forma, que só dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhes evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S. Cristóvão! (NCM, p. 193 – Grifo nosso) Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 9 O narrador, desde o início do conto, semeia os indícios que interessam à senda de suspense que a história vai gradualmente descortinar. Duas colocações são tão sutis quando fundamentais: primeiro, o conto vai tratar de uma “obra perfeita”, “...feita de mil cálculos e de mil ponderações” (NCM, p. 193); segundo, haverá nela “um defeito de fabrico”. Ainda no primeiro parágrafo, a imagem do pé de milho que “encobre” a sua espiga de forma enigmática serve de indício de que a “façanha” do “artífice de S. Cristóvão” envolverá algo que será ocultado ou encoberto. O narrador refere-se ao sumiço “como por encanto” do tio do Artur (NCM, p. 193), mas com o cuidado de colocar o rapaz acima de qualquer suspeita, “trabalhador e zeloso como sempre” (NCM, p. 193) e, mais adiante, “Honrado homem no conceito da aldeia, bom cristão nos anais da igreja, dedicado à família” (NCM, p. 195). Certamente, o “artífice” responsável pelo desaparecimento seria outro, e o Artur, tanto quanto seu tio, parecem igualmente vitimados pelo acontecido. Porém, no fluir da trama, o narrador semeará indícios que comprometem a suposta inocência do Artur. O primeiro lance que compromete o Artur infere-se da passagem abaixo. Não havendo vestígios de luta, o suspeito seria certamente um conhecido da vítima, pegando-a de surpresa em seu asilo doméstico: “A casa não estava roubada, não havia vestígios de luta nem de violência, reinava uma tal melancolia no sepulcro vazio, que o dono parecia ter subido ao céu” (NCM, p. 194). Por essa passagem o leitor provavelmente descartará a hipótese de que o velho ainda esteja vivo. Mais adiante, será crucial para o enigma a revelação de que a vítima era um solteirão que fizera do Artur seu único herdeiro. A essa altura, o leitor vislumbra um quebra-cabeças quase acabado, ou seja, contendo a identificação dos prováveis autor e motivo do crime. Falta-lhe apenas o modus operandi, Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 10 que é, ao fim e ao cabo, o argumento do conto, visto que está em foco a “perfeição dos artífices de S. Cristóvão!” (NCM, p. 193) Pesa contra o Artur ainda o seu zelo exagerado no luto e nas cerimônias sacramentais pela alma do tio: “Vinte missas em S. Cristóvão, já são missas! Juntando ainda o ofício a sete vozes, com que mandou encomendar a sombra do defunto, subiu-lhe a coisa a conto e pico, maquia de considerar” (NCM, p. 195). É oportuno aqui lembrar a presença do sentimento religioso e da ingerência dos sacerdotes católicos na vida da aldeia. No entanto, os contos rurais de Miguel Torga revelam que a doutrina cristã é muitas vezes pouco compreendida e, não raro, adaptada às conveniências de um povo dividido entre a lei biológica e as convenções sociais (Cf. o conto A ladainha). Ocorre em Teia de Aranha a personificação da aldeia, que aparece como uma personagem coletiva, expediente observado em vários contos rurais de Miguel Torga: “Ao cantar do galo, quando a aldeia acordou ...” (NCM, p. 194), “... outros interesses ocuparam a atenção lenta e ruminadora de S. Cristóvão” (NCM, p. 196). A própria caracterização psicológica descrita no início do conto, a saber, o ser calculista e enigmático, é colocada como um aspecto da coletividade, e não de um indivíduo em especial. O “artífice” do crime, na verdade, age conforme “os usos e costumes de S. Cristóvão” (NCM, p. 197). Está plenamente identificado com a aldeia enquanto “unidade socialmente determinante que permite ao indivíduo construir uma imagem de si próprio e do mundo” (SANTANA, 2008, p. 5). Assim como acontece no conto O Alma Grande, em que todos os moradores estão imbuídos no esforço conjunto de não relevar o segredo da aldeia, da mesma forma em Teia de Aranha há algo de misterioso que perpassa horizontalmente os membros da comunidade, constituindo-lhe um traço comum (Cf. o conto Fronteira, em que o contrabando é o “ofício” comum da aldeia). Nas palavras de Maria Helena Santana, “o indivíduo [nos Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 11 contos rurais de Miguel Torga] representa-se subjetivamente enquanto parte de um grupo – a sua aldeia – que lhe institui a marca humana, a noção de ser alguém” (SANTANA, 2008, p. 6). Nesses termos, é possível dizer que a façanha do homicida surge como um ato que corrobora a fusão do homem com o seu lugar, aspecto bastante reiterado nos contos torguianos. O conto trabalha a questão do pertencimento também através de duas personagens secundárias, a saber, os dois padres católicos, que polarizam como tese e antítese em relação aos aspectos identitários da aldeia. Ambos são forasteiros. O padre Maurício encarna o perfil oposto ao da comunidade: diante do “mundo de silêncio” que é S. Cristóvão, ele era “um homem bonacheirão e aberto, da boca de quem saíam, de vez em quando, confidências indiscretas que criavam o pânico no pequeno mundo de silêncio que pastoreava” (NCM, p. 196). A este o Artur, artífice de um crime perfeito, evidentemente não se confessaria. O novo padre, “enigmático como um cipreste” (NCM, p. 196), substitui o padre Mauricio, e encarna o espírito da aldeia: “Até parecia que nascera ali e mamara a sorna germinação da terra!” (NCM, p. 196). A este o Artur, na hora da morte, faz uma “confissão demorada” (NCM, p. 197) – mais um detalhe que alimenta as suspeitas de autoria – e o mistério permanece, pois da boca do sacerdote que vestiu a batina de silêncio nada escapará. Sendo assim, o defeito no fabrico, ou seja, o reconhecimento dos detalhes do crime só acontece pela intervenção do próprio Criador que teve de arranjar na serra uma trovoada desmedida (...) Só assim a corrente pôde levar o muro do lameiro e mostrar sob os alicerces o esqueleto branco do Bento Caniço – o que restava do corpo inteiro que o sobrinho ali enterrara na noite do crime, e sobre o qual os pedreiros, no dia seguinte, acamaram pedras inocentes. (NCM, p. 197) O desfecho revela aquilo que o conto havia prometido: uma obra tão perfeita que só Deus poderia apontar a “fenda do cântaro” (NCM, p. 193). Esse último lance une o fio à Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 12 meada, pois no início estava dito que o velho sumiu na “altura exacta em que o rapaz (...) murava o lameiro do ribeiro” (NCM, p.192). Aqui se dá o clímax da tensão e, com ele, o prazer da descoberta. Ao colocar essa história em seu inventário de “casos” transmontanos, Miguel Torga está reiterando, pela via da arte literária, o que ele mesmo declarou certa vez: “O universal é o local sem paredes”. Dito de outra maneira, o autor de Poemas Ibéricos transformou o seu reino de Trás-os-Montes num microcosmos onde todos os dramas humanos podem ser encenados. Nele se faz presente “uma galeria viva de aventureiros, figuras de alto retrato humano, vagabundos, santos e criminosos, de homens e mulheres de carne e osso, capazes do melhor e do pior” (SOARES In: TORGA, 1996, p.3). Os contos aqui analisados ilustram a considerável contribuição de Miguel Torga à ficção que tematiza o crime na literatura universal, ao mesmo tempo em que desautorizam uma compreensão arcádica do universo transmontano representado em sua ficção. NOTAS 1. Usaremos nas citações a sigla NCM, acrescida da indicação da página. 2. Lembremos do conto O leproso (NCM) em que uma aldeia enfurecida queima um leproso vivo, ou do prazer mórbido do abafador (O Alma Grande, NCM) em beber dos moribundos o último suspiro. 3. Cf. o conto O Senhor (NCM), no qual o médico se recusa a atender uma parturiente. Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1974. GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. 2 ed. São Paulo: Ática, 1985. LOURENÇO, Eduardo. O Portugal de Torga. 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