Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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O CRIME NO MUNDO RURAL DE MIGUEL TORGA
Marcelo Brito da Silva (UEFS)
O presente artigo analisa as representações do crime no universo rural de Miguel
Torga, tendo como corpus os contos O Lopo e Teia de Aranha, ambos constituintes da
coletânea Novos contos da montanha1, a partir de uma abordagem comparativista.
Pretende-se identificar, no nível da forma, as opções estéticas do autor, tendo como
referencial as considerações de Julio Cortázar sobre a teoria do conto. No nível do
conteúdo, o artigo dialoga com alguns expoentes da fortuna crítica e propõe a revisão do
ideal arcádico que tem se constituído ponto importante de convergência da crítica torguiana.
Em seus contos, Miguel Torga revisita o povo rural de sua região natal, Trás-osMontes, retratando comunidades perdidas no tempo, esquecidas à própria sorte, homens e
mulheres flagrados em sua luta pela sobrevivência, elevados à condição de heróis, mas, ao
mesmo tempo, capazes de atos de crueldade e violência. Nas histórias do povo da
montanha, o médico de Coimbra mergulha no particular para encontrar aspectos universais
da condição humana. Sobre as figuras retratadas em sua ficção, Miguel Torga registra o
seguinte comentário, no XV volume do seu Diário:
Heróis altivos, cingidos às leis da condição, desde o nascimento que estão
acostumados a enfrentar os caprichos do destino por sua conta e risco (...)
Num livro que publiquei em tempos, a propósito de condicionamentos do
meio, declarei que o universal é o local sem paredes. O que realmente
acontece com eles. Psicologicamente, nenhum é murado. Daí que reajam e
actuem como filhos do mundo em todas as circunstâncias. (TORGA, 1990,
p. 11-12)
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Certamente, no registro que faz da aventura cósmica de suas criaturas, não faltariam
capítulos de crueldade, violência, crimes, traições e até monstruosidades2. No compromisso
de retratar a tosca e agreste vida do povo transmontano, Miguel Torga fotografa o cotidiano
dos camponeses sob os mais diversos ângulos.
Diante disso, Maria Helena Santana
(2008) aponta a necessidade de desconstrução do ideal arcádico muitas vezes associado
pelos críticos à exegese torguiana. Com efeito, o “reino maravilhoso” de Trás-os-Montes,
descrito no livro Portugal, como um ambiente generoso e ecologicamente harmonioso, onde
homens, bichos e plantas celebram a Natureza e os ciclos da vida (TORGA,1996b), aparece
na grande maioria dos contos muito longe da perfeição idílica, na medida em que a
violência, o crime e a dor mostram sua face, como pretendemos demonstrar através da
leitura dos contos O Lopo e Teia de Aranha.
A hipótese de Maria Helena Santana (2008), a saber, a desconstrução do ideal
arcádico, que desenvolvemos neste artigo, poderia ser testada através de outros contos nos
quais a tensão dramática culmina em crime e morte ou mesmo suicídio, como no caso dos
contos O Alma Grande, O leproso ou Repouso, para ficarmos apenas na coletânea Novos
Contos da Montanha. Na verdade, a morte e os destinos trágicos freqüentam a ficção
torguiana de forma bastante variada, levando Eduardo Lourenço a concluir que a escrita de
Miguel Torga condensa a “metáfora lírico-trágica da vivência mais cotidiana e caseira”
(LOURENÇO, 1995, p. 5), enquanto que, para Massaud Moisés, nos contos torguianos a
“tônica recai na morte em todas as suas modalidades, especialmente as violentas”
(MOISÉS, 1975, p. 241).
Mas é o próprio autor de Portugal que, no capítulo desse livro dedicado a Trás-osMontes, ao descrever o povo transmontano, nos oferece a chave interpretativa para várias
narrativas onde o crime alcança lugar de destaque:
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Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de
frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (...) Usam todos bigodes e
alguns suíças. E põem naqueles pêlos da cara uma dignidade tal, um
sentido tão profundo da pessoa humana, que é de a gente se maravilhar. Às
vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem
feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê-se que os motiva
apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são
teologais porque Deus não quer. Fiéis à palavra dada, amigos do seu
amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam e
morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem
que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles,
realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da
exaltação, pode chegar ao assassínio. (TORGA, 1996b, p. 36 – Grifo nosso)
Essa descrição da alma transmontana contribui para a compreensão de muitos
contos rurais, onde as rivalidades levam à violência e daí ao crime, sejam por motivos
passionais, por incompatibilidades várias, na disputa por propriedades ou simplesmente
para compensar uma injustiça sofrida, saciando com sangue a sede de vingança.
Para a compreensão dos procedimentos formais, acionaremos alguns conceitos da
teoria do conto de Julio Cortázar, bem como a noção de “unidade de efeito”, proposta por
Edgan Allan Poe. Julio Cortázar, no texto em que analisa as ideias deste último sobre o
conto, comenta que ele percebeu que a eficácia de um conto depende de sua intensidade
como acontecimento puro. Em função disso, todo comentário ao acontecimento deve ser
radicalmente suprimido:
Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa
que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não
alegoria (...) ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou
didáticas. Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse.
(CORTÁZAR, 1974, p. 122-123)
Essa capacidade de condensação ou compactação é um traço característico nos
contos de Miguel Torga, conhecido por sua linguagem lacônica e objetiva. Julio Cortázar, ao
tratar da questão da brevidade, consagrou a famosa comparação que ilustra as diferenças
entre o romance e o conto: o romance está para o cinema assim como o conto para a
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fotografia (CORTÁZAR, 1974, p. 151). Ele prossegue na distinção entre romance e conto e,
usando agora a analogia do boxe, lembra que enquanto o romance ganha por pontos, o
conto ganha sempre por nocaute e que “um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua
desde as primeiras frases” (1974, p. 152).
No ensaio citado acima, Cortázar aponta, ao lado da concisão (que ele vai chamar
de intensidade), a significação e a tensão que formam o tripé teórico que caracteriza o conto
como forma distinta de outros gêneros narrativos. Cortázar explica o termo significação
como segue: “Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa
explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena
e às vezes miserável história que conta” (1974, p. 153). A tensão será “uma intensidade que
se exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta”.
(1974, p. 153). Essas considerações teóricas nos ajudarão a compreender, no nível estéticoformal, o efeito dos contos de Miguel Torga sobre a sensibilidade do leitor.
No conto O Lopo, narra-se a história de um cavador que perde na justiça a posse de
uma mina para o Sr. Casimiro, homem ardiloso e rico, que se valeu no Tribunal, como fica
subentendido, de expedientes suspeitos para ganhar a causa. O Lopo é o primeiro a receber
do advogado a notícia de que perdeu a disputa judicial e se encarrega, ele mesmo, de
comunicá-la ao adversário. E o faz, com efeito, tendo como instrumento o cano de sua
espingarda. Após o tiro fatal, despede-se da mulher e foge.
É interessante como o conto lança o leitor no centro do drama logo na primeira linha,
sem interpor descrições e comentários: “– Perdeste – anunciou sem rodeios o Dr. Canavaro,
quando o Lopo entrou.” Através de diálogos curtos, entre o advogado e o Lopo, o leitor tem
contato com o estado de espírito da personagem central e percebe a inquietação que
provoca uma espécie de sentimento de aceleração: “O Lopo, que desde as primeiras
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palavras estancara à entrada do escritório, mordeu o beiço por debaixo do bigode espesso,
pôs-se a desandar o chapéu na mão e ficou assim um pedaço” (NCM, p. 93). Um dano foi
causado. O desespero que o protagonista procura disfarçar prenuncia que algo irá
acontecer, especialmente porque o próprio vencido decide notificar o vencedor. O advogado
parece ter desconfiado de alguma maquinação perigosa em seu cliente, pois “através dos
óculos, ia lendo no rosto anguloso do Lopo o significado de cada palavra que dizia” (NCM, p.
94). O leitor atento certamente irá acompanhar o protagonista com igual desconfiança.
O conto segue narrando a jornada do Lopo de volta a casa, durante a qual o narrador
insiste nas cogitações íntimas do protagonista, bem como em sua cautela em dissimular
seus pensamentos de vingança diante das pessoas que encontrou pelo caminho.
Repetidamente, o narrador aponta a dissimulação do Lopo, o que transmite ao leitor tanto a
certeza quanto a expectativa de que algo vai acontecer: “Por fora, respondeu a todas as
pessoas que encontrou e o salvaram, e em Lobrigos, seco dos fumos da raia, bebeu um
quartilho, sem que o taberneiro desse conta de qualquer nuvem a turvar-lhe o semblante”
(NCM, p. 96).
Vale ressaltar que a própria Natureza é envolvida pelo narrador no drama do Lopo,
como na passagem: “Pelo caminho, duas léguas bem medidas de serras e de carvalhais,
nem o ar lavado das fragas nem a serena calma de tudo conseguiram arredar o Lopo das
suas cogitações” (NCM, p. 95). E, mais adiante, o veio de água que sai da mina que o Lopo
escavou a duras penas, com o suor do rosto, parece simbolizar as lágrimas de sofrimento
do infeliz cavador pela perda da propriedade: “... debruçou-se sobre o regato, meteu nele a
mão calosa, encheu-a, e deixou cair em cascata a liquefeita frescura de três meses de
trabalho (...) aquela íntima visita o comovera ...” (NCM, p. 96). Nesse conto, como em várias
outras histórias do mundo rural de Miguel Torga, a descrição da Natureza, muito mais que
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moldura ou pano de fundo para o enredo, torna-se elemento fundamental para a
compreensão da psicologia das personagens. Ocorre, na visão de Miguel Torga, uma
osmose entre homem e ambiente, hipótese que pode ser fartamente verificada também pelo
exame de sua obra poética.
O Sr. Casimiro, alvo da vingança do protagonista, é apresentado pelo narrador como
aquele que “lhe tinha roubado nos tribunais a posse da mina” (NCM, p. 98) e como um
homem “rico e manhoso, [que] movia montanhas a cavar o dia inteiro, sem ninguém
descortinar como conseguia ter Portugal nas mãos quase sem sair da terra” (NCM, p. 99).
Por essas palavras, nota-se de que lado está o narrador ou, dito de outro modo, qual o seu
ponto de vista. Como acontece na grande maioria dos contos rurais torguianos, o narrador
coloca-se solidário ao mais humilde, compreendendo e assumindo a sua desventura ou
destino. Às vezes, o narrador assume uma voz coletiva, identificando-se com a aldeia e
incorporando a cosmovisão dos camponeses e os regionalismos da linguagem.
A essa altura do conto, o leitor que, como queria Edgar Allan Poe, lê a história de
uma só vez, para que seja lograda a “unidade de efeito” (Apud GOTLIB, 1985, p. 32), já está
convencido das razões e da “justeza” da contrapartida planejada pelo Lopo. Praticamente,
coloca-se ao seu lado entre as grades da quinta no momento em que ele ajusta a mira da
espingarda. O narrador não deixa dúvidas: o rico roubou o pobre. É válido lembrar que
nesse conto, como em vários outros casos, os doutores da planície são retratados
negativamente, sejam advogados ou médicos, homens sem escrúpulos que olham com
indiferença o sofrimento do povo da montanha3. Nesse conto, os homens da lei, como
insinua o narrador, estão mancomunados com o Sr. Casimiro para tirar do Lopo a
propriedade. O crime é irremediável. Estava anunciado desde as primeiras linhas do conto.
A tensão chega ao clímax no tiro fatal, momento em que a Natureza novamente toma parte
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do drama do Lopo, pois sobre o corpo caído “o sol por detrás dos montes começou a tentar
encher o dia de inverno de uma luz doirada de primavera” (NCM, p. 100). Por último, o
narrador reforça o estado de pobreza do protagonista que não possui sequer o dinheiro
necessário para a fuga.
Mas esse foi o destino do Lopo: “Ganhou, que eu hei-de eu fazer?” (NCM, p. 94).
Resta lavar a honra, fazendo timbrar o caráter de grande frontalidade do homem da
montanha, conforme descrito por Miguel Torga em Portugal. O que dizer à esposa que fica?
Somente o que está dito: “Adeus, e não chores” (NCM, p. 100). Mais uma vez, como ocorre
no conto A Confissão, a força dos acontecimentos arranca o homem transmontano do
acolhimento da terra matricial, argumento que é trabalhado por Miguel Torga, com algumas
variações não menos trágicas em outras histórias.
O conto O Lopo mostra que o “reino maravilhoso” de Miguel Torga pode ser o
espaço afetivo da sua infância, do seu propagado telurismo e de suas lembranças. Não
obstante, contrariando o ideal arcádico muitas vezes proposto pela crítica, é também um
reino de sombras, onde a convivência dos “irmãos” transmontanos não exclui a violência e o
crime. E a significação desse conto, retomemos a teoria cortazariana, não está no
acontecimento em si, ou seja, no relato linear de um homicídio, mas naquilo que transcende
a história narrada e se insere nos interstícios do conto. Em nossa leitura, Miguel Torga torna
o conto significativo ao apontar, nas dobras do texto, a situação de um homem
transmontano desassistido de privilégios e direitos, que em sua luta solitária por
sobrevivência encontra não raro no grito de violência um instrumento de afirmação. No
texto, O Portugal de Torga, Eduardo Lourenço advoga que
Mais do que a miséria ancestral, sempre doeram a Torga a carga de
submissão e a “incultura” do seu povo matricial, e por isso promoveu a
heróis aqueles que, apesar dessa pesada herança, arrancaram das
entranhas a violência que conquista os céus ou a finura instintiva com que
se defendem do mundo “civilizado” (...) O poeta [Miguel Torga] é o medidor
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da verdade profunda daqueles que só podem exprimi-la em gritos ou
violência cega, enquanto eles mesmos o não puderam fazer. (LOURENÇO,
1995, p. 9)
Passemos à análise do segundo conto, que se liga ao primeiro pela temática.
Também há um crime e o personagem central comete um homicídio. Dois assassinatos,
porém motivos diversos. O segundo conto constitui-se uma exceção à “violência por honra”,
ou motivada por “altos sentimentos”, defendida por Miguel Torga no texto retro-mencionado
do livro Portugal. O que ocorre em Teia de Aranha é algo diverso, mais igualmente relevante
para o autor do Diário, na composição ficcional de uma “supra-realidade” que pretende
abarcar todas as dimensões da condição humana, incluindo suas nuances mais obscuras.
Em Teia de Aranha, um conto de enigma no melhor estilo poeano, a narrativa gira
em torno do sumiço de um homem da aldeia, Bento Caniço, tio do protagonista Artur que
será revelado como o autor da façanha mais perfeita já testemunhada pela aldeia de S.
Cristóvão. E, mais uma vez, sem “prolegômenos”, o médico de Coimbra coloca o leitor na
atmosfera de mistério já no primeiro parágrafo, onde nada é gratuito, como o desfecho
revelará. O recurso utilizado para fisgar o leitor é a descrição por analogia do caráter
enigmático dos homens de S. Cristóvão: a comparação insólita com um pé de milho, que o
narrador habilmente transforma em emblema da aldeia:
Um ano, ali, são trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as
pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de
relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como
nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado,
meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos
homens mas (sic) pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às
vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão
perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na forma, que
só dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhes evidenciar
os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para
que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S.
Cristóvão! (NCM, p. 193 – Grifo nosso)
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O narrador, desde o início do conto, semeia os indícios que interessam à senda de
suspense que a história vai gradualmente descortinar. Duas colocações são tão sutis
quando fundamentais: primeiro, o conto vai tratar de uma “obra perfeita”, “...feita de mil
cálculos e de mil ponderações” (NCM, p. 193); segundo, haverá nela “um defeito de fabrico”.
Ainda no primeiro parágrafo, a imagem do pé de milho que “encobre” a sua espiga de forma
enigmática serve de indício de que a “façanha” do “artífice de S. Cristóvão” envolverá algo
que será ocultado ou encoberto.
O narrador refere-se ao sumiço “como por encanto” do tio do Artur (NCM, p. 193),
mas com o cuidado de colocar o rapaz acima de qualquer suspeita, “trabalhador e zeloso
como sempre” (NCM, p. 193) e, mais adiante, “Honrado homem no conceito da aldeia, bom
cristão nos anais da igreja, dedicado à família” (NCM, p. 195). Certamente, o “artífice”
responsável pelo desaparecimento seria outro, e o Artur, tanto quanto seu tio, parecem
igualmente vitimados pelo acontecido. Porém, no fluir da trama, o narrador semeará indícios
que comprometem a suposta inocência do Artur.
O primeiro lance que compromete o Artur infere-se da passagem abaixo. Não
havendo vestígios de luta, o suspeito seria certamente um conhecido da vítima, pegando-a
de surpresa em seu asilo doméstico: “A casa não estava roubada, não havia vestígios de
luta nem de violência, reinava uma tal melancolia no sepulcro vazio, que o dono parecia ter
subido ao céu” (NCM, p. 194). Por essa passagem o leitor provavelmente descartará a
hipótese de que o velho ainda esteja vivo. Mais adiante, será crucial para o enigma a
revelação de que a vítima era um solteirão que fizera do Artur seu único herdeiro. A essa
altura, o leitor vislumbra um quebra-cabeças quase acabado, ou seja, contendo a
identificação dos prováveis autor e motivo do crime. Falta-lhe apenas o modus operandi,
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que é, ao fim e ao cabo, o argumento do conto, visto que está em foco a “perfeição dos
artífices de S. Cristóvão!” (NCM, p. 193)
Pesa contra o Artur ainda o seu zelo exagerado no luto e nas cerimônias
sacramentais pela alma do tio: “Vinte missas em S. Cristóvão, já são missas! Juntando
ainda o ofício a sete vozes, com que mandou encomendar a sombra do defunto, subiu-lhe a
coisa a conto e pico, maquia de considerar” (NCM, p. 195). É oportuno aqui lembrar a
presença do sentimento religioso e da ingerência dos sacerdotes católicos na vida da aldeia.
No entanto, os contos rurais de Miguel Torga revelam que a doutrina cristã é muitas vezes
pouco compreendida e, não raro, adaptada às conveniências de um povo dividido entre a lei
biológica e as convenções sociais (Cf. o conto A ladainha).
Ocorre em Teia de Aranha a personificação da aldeia, que aparece como uma
personagem coletiva, expediente observado em vários contos rurais de Miguel Torga: “Ao
cantar do galo, quando a aldeia acordou ...” (NCM, p. 194), “... outros interesses ocuparam a
atenção lenta e ruminadora de S. Cristóvão” (NCM, p. 196).
A própria caracterização
psicológica descrita no início do conto, a saber, o ser calculista e enigmático, é colocada
como um aspecto da coletividade, e não de um indivíduo em especial. O “artífice” do crime,
na verdade, age conforme “os usos e costumes de S. Cristóvão” (NCM, p. 197). Está
plenamente identificado com a aldeia enquanto “unidade socialmente determinante que
permite ao indivíduo construir uma imagem de si próprio e do mundo” (SANTANA, 2008, p.
5). Assim como acontece no conto O Alma Grande, em que todos os moradores estão
imbuídos no esforço conjunto de não relevar o segredo da aldeia, da mesma forma em Teia
de Aranha há algo de misterioso que perpassa horizontalmente os membros da
comunidade, constituindo-lhe um traço comum (Cf. o conto Fronteira, em que o contrabando
é o “ofício” comum da aldeia). Nas palavras de Maria Helena Santana, “o indivíduo [nos
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contos rurais de Miguel Torga] representa-se subjetivamente enquanto parte de um grupo –
a sua aldeia – que lhe institui a marca humana, a noção de ser alguém” (SANTANA, 2008,
p. 6). Nesses termos, é possível dizer que a façanha do homicida surge como um ato que
corrobora a fusão do homem com o seu lugar, aspecto bastante reiterado nos contos
torguianos.
O conto trabalha a questão do pertencimento também através de duas personagens
secundárias, a saber, os dois padres católicos, que polarizam como tese e antítese em
relação aos aspectos identitários da aldeia. Ambos são forasteiros. O padre Maurício
encarna o perfil oposto ao da comunidade: diante do “mundo de silêncio” que é S. Cristóvão,
ele era “um homem bonacheirão e aberto, da boca de quem saíam, de vez em quando,
confidências indiscretas que criavam o pânico no pequeno mundo de silêncio que
pastoreava” (NCM, p. 196). A este o Artur, artífice de um crime perfeito, evidentemente não
se confessaria. O novo padre, “enigmático como um cipreste” (NCM, p. 196), substitui o
padre Mauricio, e encarna o espírito da aldeia: “Até parecia que nascera ali e mamara a
sorna germinação da terra!” (NCM, p. 196). A este o Artur, na hora da morte, faz uma
“confissão demorada” (NCM, p. 197) – mais um detalhe que alimenta as suspeitas de
autoria – e o mistério permanece, pois da boca do sacerdote que vestiu a batina de silêncio
nada escapará. Sendo assim, o defeito no fabrico, ou seja, o reconhecimento dos detalhes
do crime só acontece pela intervenção do próprio Criador que
teve de arranjar na serra uma trovoada desmedida (...) Só assim a corrente
pôde levar o muro do lameiro e mostrar sob os alicerces o esqueleto branco
do Bento Caniço – o que restava do corpo inteiro que o sobrinho ali
enterrara na noite do crime, e sobre o qual os pedreiros, no dia seguinte,
acamaram pedras inocentes. (NCM, p. 197)
O desfecho revela aquilo que o conto havia prometido: uma obra tão perfeita que só
Deus poderia apontar a “fenda do cântaro” (NCM, p. 193). Esse último lance une o fio à
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meada, pois no início estava dito que o velho sumiu na “altura exacta em que o rapaz (...)
murava o lameiro do ribeiro” (NCM, p.192). Aqui se dá o clímax da tensão e, com ele, o
prazer da descoberta.
Ao colocar essa história em seu inventário de “casos” transmontanos, Miguel Torga
está reiterando, pela via da arte literária, o que ele mesmo declarou certa vez: “O universal é
o local sem paredes”. Dito de outra maneira, o autor de Poemas Ibéricos transformou o seu
reino de Trás-os-Montes num microcosmos onde todos os dramas humanos podem ser
encenados. Nele se faz presente “uma galeria viva de aventureiros, figuras de alto retrato
humano, vagabundos, santos e criminosos, de homens e mulheres de carne e osso,
capazes do melhor e do pior” (SOARES In: TORGA, 1996, p.3). Os contos aqui analisados
ilustram a considerável contribuição de Miguel Torga à ficção que tematiza o crime na
literatura universal, ao mesmo tempo em que desautorizam uma compreensão arcádica do
universo transmontano representado em sua ficção.
NOTAS
1. Usaremos nas citações a sigla NCM, acrescida da indicação da página.
2. Lembremos do conto O leproso (NCM) em que uma aldeia enfurecida queima um leproso
vivo, ou do prazer mórbido do abafador (O Alma Grande, NCM) em beber dos moribundos o
último suspiro.
3. Cf. o conto O Senhor (NCM), no qual o médico se recusa a atender uma parturiente.
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São Paulo: Perspectiva, 1974.
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SANTANA, Maria Helena. Notícias do Paraíso: o povo rural nos contos de Miguel Torga. In:
Actas do Colóquio Comemorativo do Nascimento de M. Torga, (M. Fátima Marinho,
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SOARES, Mário. Prefácio. In: Portugal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
TORGA, Miguel. Diário XV. Coimbra: Ed. do autor, 1990.
____________. Novos contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996a.
____________. Portugal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996b.
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