Memorias Convención Internacional de Salud. Cuba Salud 2015
ISBN 978-959-212-963-4
ID:1718
DESASTRE: SAÚDE E TRABALHO
Santos Oliveira, Simone; Rios Benevides, Lúcia; Dias Portella, Sergio. Brasil
RESUMO
Esta pesquisa visa analisar as relações e atuações institucionais e profissionais entre os diversos grupos
e comunidades implicados no processo de desastre da região serrana do Rio de Janeiro em janeiro de
2011, buscando contribuir para o fortalecimento e ampliação da capacidade de enfrentamento nesses
contextos, com ênfase nos aspectos psicossociais. As consequências desse evento se manifestaram em
várias dimensões: socioeconômica, subjetiva e simbólica. Damos destaque às correlações entre os
inúmeros profissionais envolvidos na resposta ao desastre e a própria população afetada - dos que
oferecem os cuidados e de como se cuidam ou são cuidados aqueles que cuidam - , para contribuir com
as ações de prevenção e promoção da saúde. Compreender de que maneira as ações foram e são
normatizadas e operacionalizadas, considerando as interações das instituições e os efeitos gerados nos
territórios. A atenção psicossocial vem ganhando espaço nas ações pós-desastres. Referimos-nos aqui a
atenção psicossocial num sentido amplo, não apenas uma ação voltada para o sofrimento psíquico
gerado pelas aflições no momento de crise, devido a perda de pessoas queridas, perda de suas casas, ou
do próprio controle de si. Existe aqui uma perda de amplitude muito maior, a perda simbólica, perda
identitária, que envolve aspectos objetivos e subjetivos das trajetórias de vida, individuais e coletivas. É
a desorganização de um espaço no qual as famílias tecem, em sua privacidade, a base para vínculos
sociais externos.
Palabras chave: desastre; atenção psicossocial, saúde do trabalhador, região serrana
INTRODUÇÃO
Os cenários atuais indicam um quadro de mudanças socioeconômicas, ambientais e demográficas, com
crescimento e concentração de populações em áreas de risco. Dessa forma, o aumento da
vulnerabilidade de determinados grupos populacionais, associado às tendências globais de maior
frequência e intensidade de eventos extremos, é uma consequência. No entanto, embora o tema de
desastres esteja no auge, devido aos últimos acontecimentos, sejam locais, regionais ou mundiais,
debates sobre desastres que visem colocar em foco os aspectos sociais, da saúde e das práticas de
trabalho e de seus desdobramentos para a vida em comunidade representam uma lacuna, no
conhecimento e no campo acadêmico. Tal situação ficou evidenciada quando buscamos tratar o
desastre de 11 de janeiro de 2011, acontecido nas cidades serranas do norte fluminense (Rio de Janeiro,
Brasil).
Esse evento extremo deu visibilidade a diversas ações e omissões políticas, vivenciadas através de
variados sentidos dados nos territórios, com perdas materiais, ambientais e simbólicas. As relações de
poder vieram à tona, nas disputas de dependências, de significados, na distribuição e concentração de
riquezas, nos embates de domínio e controle, que constroem as iniquidades sociais presentes1. Evento
extremo de violências simbólicas2 em função da relativa desigualdade entre o poder de agir de
políticos, profissionais do desastre e das próprias comunidades afetadas.
A partir dessas reflexões, damos destaque às correlações entre os inúmeros profissionais envolvidos na
resposta ao desastre e a própria população afetada: dos que oferecem os cuidados e de como se cuidam
Palacio de Convenciones de La Habana, 20-24 de abril de 2015
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ou são cuidados aqueles que cuidam. Colocar em análise, a organização e estruturação destas ações nos
permite refletir sobre os efeitos de suas práticas nas relações intersubjetivas no processo do desastre. As
atuações do período pós-desastre exigem uma especificidade diferenciada da lógica emergencial de
atendimento, na lógica da prevenção e promoção, que necessita ser compartilhada através de políticas
socioeconômicas, especialmente de saúde, na interrelação de profissionais e população sem deixar de
considerar suas contradições.
Recentemente, a atenção psicossocial vem ganhando espaço nas ações pós-desastres em função
justamente do aumento do registro de casos, envolvendo violência simbólica. Referimos-nos aqui a
atenção psicossocial num sentido amplo, não apenas uma ação voltada para o sofrimento psíquico
gerado pelas aflições no momento de crise, devido a perda de pessoas queridas, perda de suas casas, ou
do próprio controle de si. Existe aqui uma perda de amplitude muito maior, a perda simbólica, perda
identitária, que envolve aspectos objetivos e subjetivos das trajetórias de vida, individuais e coletivas
com a desorganização de um espaço no qual as famílias tecem, em sua privacidade, a base para
vínculos sociais externos. Falamos de uma atenção psicossocial capaz de alargar as representações
envolvidas nas definições de um evento, concebido muitas vezes como um processo a-histórico,
desvinculado das relações políticas e sociais expressas nos territórios3. Por isso, a importância da
desconstrução deste conceito de desastre, desenhado no imaginário social como algo natural, que não
permite a percepção das relações sociais desiguais, historicamente produzidas, que sofre pela omissão e
insuficiência de medidas públicas para prevenção e impacto das ameaças.
Esta pesquisa visa resgatar a vivência dos profissionais que atuaram e das comunidades afetadas no
evento extremo de 11 de janeiro de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, dando ênfase a atenção
psicossocial na perspectiva da prevenção e promoção da saúde. Compreender de que maneira as ações
foram e são normatizadas e operacionalizadas, considerando as possíveis interações das instituições e
os efeitos gerados nos territórios, buscando contribuir para o fortalecimento e ampliação da capacidade
de enfrentamento nesses contextos.
MATERIAL E MÉTODO
O tema de desastres é permeado de significados, motivações, aspirações, valores e atitudes, que nos
revela um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, irredutíveis a uma
análise operacional das variáveis. Portanto, essa pesquisa pretende adotar a abordagem qualitativa, para
propiciar o encontro dos pesquisadores com os atores sociais e institucionais, na perspectiva de
compreender a realidade em que vivem e revelar a dinâmica dessas relações4.
O primeiro passo da pesquisa foi o levantamento da literatura cientifica e de documentos oficiais, para
identificar as institucionais e suas redes de atuação, do evento extremo em foco. Diversas instituições
de pesquisas produziram relatórios técnico-científicos sobre os variados temas relacionados ao evento.
Comissões de inquérito foram instaladas em nível federal e estadual e todo este material, de caráter
público, será levantado e organizado para análise.
Para avançarmos na compreensão da relação sujeito cuidador e sujeito cuidado no contexto de desastres
nos aproximaremos do trabalho que vem sendo desenvolvido pelos Centros de Atenção Psicossocial,
pelas Unidades de Proteção Civil ligadas às Secretarias de Defesa Civil; pelos atendimentos
psicossociais realizados pela Cruz Vermelha em Teresópolis e Nova Friburgo, além da Associação de
Vítimas (Avit) da região serrana no pós-desastre e associações análogas de Nova Friburgo. O suporte
psicossocial pode ser compreendido como o processo de facilitação à resiliência dos indivíduos, das
famílias e das comunidades, em que se busca neste processo o respeito a autonomia e a dignidade,
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favorecendo as estratégias de enfrentamento das situações vivenciadas. Buscamos conjugar uma análise
situada e qualitativa através da realização de entrevistas, encontros/diálogos com moradores e
profissionais das instituições atuantes.
RESULTADOS
Podemos afirmar que a catástrofe serrana, foi uma daquelas de maior impacto nacional, em que forma
contabilizados 913 mortes, 8.901 desabrigados e 23.045 desalojados5. Trouxe como um dos seus
efeitos a reconstrução do aparato legal relativo ao tema, com a instituição da Política Nacional de
Proteção e Defesa Civil, lei nº 12.608/2012, onde o termo “proteção” aparece pela primeira vez dentro
da lógica de resposta militarizada pela expressão “Defesa Civil” da Segunda Guerra Mundial. A Defesa
Civil foi instituída sob a lógica de comando e controle à semelhança de ações militares, na qual a
prática de atendimento emergencial era a única priorizada, sem grande atenção dada anteriormente as
atividades de prevenção6. Essa lógica de resposta militarizada acaba contaminando tanto a prevenção
como as ações de reestruturação pós-desastres, onde a lista de atividades a serem realizadas são
altamente prescritivas, independendo da realidade onde são aplicadas. E mesmo que, a participação
social seja colocada em destaque, ela acaba por ser minimizada pela sua própria prescrição,
desqualificando suas características e diferenças locais que são a sua maior riqueza. Essa invisibilidade
da comunidade acaba na outra ponta por tornar invisíveis também os aspectos psicossociais
vivenciados pela população e considerados, então, “normais” – indicando que eles terão uma superação
natural, quando os danos materiais e o esquecimento das perdas das vidas se fizerem irrelevantes na
memória comunitária e individual. Se essas vivências são desqualificadas também o serão as
potencialidades comunitárias e o círculo vicioso de uma resiliência negativa se fecha: os vulneráveis do
evento extremo anterior são como que os vulneráveis do futuro evento.
Focamos nossa pesquisa nos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Nestes
municípios, encontramos populações afetadas por desastres que ainda lidam com a reconstrução e
minimização dos impactos sofridos há mais de quatro anos, principalmente pelo despreparo e
morosidade do poder público. Procuramos contribuir para a formação de agentes de transformação
social. Para isso, destacar atenção psicossocial em fase de pós-desastres passa a ter especial relevância
em função da invisibilidade das depressões, inadaptações emocionais e falta de sentido do próprio
cotidiano quando comparadas à visibilidade da perda de vidas e destruição material. Estas últimas,
todas, capazes de serem quantificáveis física e economicamente.
O trabalho na fase de resposta e recuperação, especialmente da saúde, envolve uma relação entre
sujeito cuidador (sua subjetividade, história, direitos, necessidades, relações com os demais
participantes do trabalho coletivo e concepção cultural-profissional de saúde) e o sujeito cuidado (suas
necessidades e concepções culturais de saúde), estas expectativas e interesses podem aproximar-se,
potencializando a perspectiva do cuidado ‘de si e do outro’ ou distanciar-se gerando conflitos”7.
Os profissionais trabalham em condições permeadas de imprevisibilidades, em função dos
componentes técnicos, humanos e culturais, por isso se remeteram, literalmente, ao dramático uso de si.
Ao deparar-se com o inesperado, faz-se necessário modificar o “planejamento técnico” estabelecido
para atuar. No duplo desafio, o profissional é conduzido a utilizar além da competência técnica, a sua
história pessoal, nas escolhas para agir, frente aos sentimentos de angústia e o medo de falhar. Se por
um lado as ações bem sucedidas são registradas como positivas, por outro, as ações com resultados
negativos podem marcar a vida do profissional de forma deletéria e definitiva. Caso a tomada de
decisão seja acertada, mas o desfecho seja de óbito do acidentado, o profissional pode ser fadado a
tatuar um sentimento de culpa ou incompetência. Estas situações podem promover diversas formas de
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adoecimento. De maneira que as escolhas, tanto das estratégias de salvamentos das vítimas, quanto da
sua proteção para que não se torne igualmente vítima (de socorrista à socorrido) constitui uma tensão
emocional que em geral permanece camuflada nos mecanismos de defesas a serviço da coragem e
virilidade, especificamente no caso dos bombeiros8.
Lidar com o medo, com a dor e as perdas é um desafio constante. Fazem um uso de si que envolvem
microescolhas, decisões a partir de suas capacidades e recursos. Ressaltamos a importância que essas
decisões levem em conta as vulnerabilidades e possibilidades de superação dos afetados, e não somente
se pautem a partir dos “saberes acadêmicos ou organizacionais, tendo em vista situações-tipo”9.
Escolhas e ações envolvidas em um debate de normas e valores para gerir as infidelidades do meio10,
isso porque as “experiências e as microescolhas de gestão das situações se ancoram em um patrimônio
de saberes acumulados e regulados por coerências internas” 9.
Além do fato de muitas vezes os profissionais de saúde atuantes nos locais de desastres são também
vítimas da catástrofe, e são convocados a assumirem suas responsabilidades em meio a crise, por isso
eles também devem ser alvo de cuidados.
Identificamos que existe uma prática comum do diagnóstico de depressão, de fobia ou paranóia,
acompanhado de uma prescrição medicamentosa. Ou diagnóstico de estresse pós-traumático. No
entanto, a maioria das reações psicológicas desencadeadas em período pós-desastre deve ser encarada
como sintomas normais devido ao evento traumático vivenciado. Esse adoecimento não se faz sem
consequências, uma vez que ele discrimina, estigmatiza e exclui. Abre espaço para a medicalização das
manifestações do sofrimento através da prescrição indiscriminada, principalmente, de antidepressivos e
ansiolíticos.
O processo de territorialização define se os efeitos do desastre serão adversos - ou não. Sendo assim, o
fator ameaça (chuvas, furacões, secas, etc.) depende muito mais de como a sociedade espacializa e
organiza a vida coletiva do que da força do evento natural em si. O sofrimento vivenciado pós-desastre
tem sua duração e intensidade definidas de acordo com a organização dos territórios. Construir um
planejamento para a atenção psicossocial pós-desastre demanda compreender a dinâmica da relação e a
forma como a comunidade se estrutura. É uma compreensão situada, única. A atenção psicossocial,
deve sempre objetivar a reintegração dos indivíduos à vida em sociedade, mas deve ir além dela
mesma.
CONCLUSÕES
Evidenciamos a necessidade de maiores níveis de integração institucionais para elaboração de
propostas condizentes com as vivências da comunidade, baseadas não apenas em análises puramente
estatística do perfil socioeconômico das vítimas, mas que enfatizem a importância da interação entre o
simbólico, o estrutural e o estruturante dos efeitos dos desastres. Para isso, consideramos o diálogo e a
participação social passos fundamentais para a redução das vulnerabilidades socioambiental e
concretização da promoção da saúde.
A atenção à saúde dos profissionais que atuam em desastres é sem dúvidas uma temática que merece
destaque. As experiências devem ser reconhecidas e compartilhadas, contribuindo para o
fortalecimento individual e coletivo, transformando o saber-fazer. O sofrimento não pode ser: negado,
ignorado ou patologizado e atomizado no individuo.
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REFERENCIAS
1. Valêncio, N. A sociologia dos desastres: Perspectivas para uma sociedade de direitos. In:
Psicologia de emergências e desastres na América Latina: promoção de direitos e
construção de estratégias de atuação/Conselho Federal de Psicologia. -Brasília: CFP, p13 –
30, 2011.
2. Bourdieu, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.
3. Valêncio, N. Desastres, Ordem Social e Planejamento em Defesa Civil: o contexto brasileiro.
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. São Paulo, 2010.
4. Minayo, MC. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo:
Hucitec/Rio de Janeiro: Abrasco, 1992. 269 p.,
5. Freitas, C. M. de et al. Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e
construção da resiliência: lições do terremoto no Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana,
Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 17, n. 6, 2012.
6. Portella, SLD; Nunes, JA. Populações serranas excluídas, cidades insustentáveis: o enigma da
participação pública. Ciência e Saúde Coletiva, 19(10): out., 2014.
7. Schwartz, Y., Durrive, L. (Orgs.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade
humana. Niterói: EdUFF, 2010.
8. Canguilhem, G. Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições, v. 12, n. 2-3 (35-36).
jul-nov. 2001.
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